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Edo
CADERNOS DO RIO GRANDE

VII

“UM FERNANDO PESSOA

EGa (O
ES
27£L
7747)

No AGOSTINHO DA SILVA

INSTITUTO ESTADUAL DO LIVRO


Pórto Alegre 1959
El
CADERNOS DO RIO GRANDE

atpmrmmeniii Eas
Secção 1
ENSAIOS E MONOGRAFIAS
Nº2
Aos Amigos de Outros
ad ENS peS

Bidon 0,58.
MENSAGEM UM

Aquites à quem, não querendo mal, também


especialmente não amam concedem os deuses uma
vida fácil e benigna, que os faz, a éles e aos
tantes, acreditar em protecção celeste; aos outroress,
porém, Aquêles cuja carreira se vê essencia. ane
destinos do mundo, vendem us deuses, é bem caro,
codos as dons de que os cumuleram; e, porventura,
o preço mais alto que reclamam: de sua mercadoria
é o de, à caia momento realmente importante da
vide, siada disporem como que de maneira
deixando que seu amado possa, emplena liserfatal
dade,
,
escolher o que mais é de seu agrado; é aqui a maior
parte se perde; porque à chama queos tornaria
celestes preferem a temperada medianidade quep ara
sempre os prende à Terra,
Começa logo a escólha pela Pátria, Para
grende maioria dos homens, se apresenta a Pátri a
“penas como um acidente ou um acaso Físico: sãoa
de onde nascem e, a pouco e peuco, a convivência
dos pais, de sens conterrâneos, mais tarde a Escola
& o Estado, os dois grandes organismosencarregados
essencialmente de não deixar escapar ning
uém das
malhas do exército sucial, os vão gradual e rezlmente
convencendo de que não poderiam ter
rascido
lugar e de que uma escólha futura que livrnout ro
emente
pudessem fazer representaria sempre e de qualquer
modo uma diminuição ou uma traição. A outros, no
entanto, e porque são amados dos deuses, se apre-
senta o caso de modo diferente: a vida, mostrando
à superfície, como circunstância, o que é meditado
e deliberado propósito de quem rege a História, os
encaminha à escôlha que decidirá de seus destinos:
o de resplandecer num véu de glória, que é quase
sempre, visto por dentro, um véu de lágrimas, ou
o de ser jogado fora como um vaso de oleiro que
mentiu, pela má qualidade do barro, à diligente
regularidade da roda e à inventiva agilidade do gesto.
Quem pode, em raro jôgo, escolher o seu País por
aí mesmo está escolhendo a sua vida: uma vida
que dêle mesmo se vai alimentar. -
Para Fernando Pessõa, cuja existência se iria
desenrolar, tanto quanto se poderia prever, no Por-
tugal de seus tempos, isto é, no ponto mais baixo
que poderia atingir a descendente curva da austera,
apagada e vil tristeza, a alternativa apresentada foi
a mais tentadora que se poderia imaginar: a da
Inglaterra, e a de uma Inglaterra apreendida na sua
história e na sua cultura, Por uma daquelas pe-
quenas resoluções que movem depois as grandes
molas, poderia Fernando Pessôa ter passado intei-
ramente ao domínio inglês e nêle se afirmado como
um homem de Império, já que o encontro se cumpria
xa África, ou como um homem de Universidade, já
10 que o encontro era igualmente num ambiente à
Walter Pater, com imaginários retratos de Ingla-
terra elisabeteana mascarando uma outra que apenas
procurava colocar seus capitais c manter pela fôrça
os seus mercados, Numa ou noutra carreira, teria
Fernando Pessõa sido célebre: as críticas a seus
poemas inglêscs seriam apenas o prenúncio do que
cutros críticos viriam a escrever; um outro Conrad,
noutro domínio, se incorporaria à literatura in-
glêsa; apenas isso, porém.
O que, no entanto, acontecia era que iam mais
alto as ambições de Pessõa e penetrava a sua in-
teligência mais longe do que a dos estadistas inglêses.
Era o mundo mais nobre, mais humano e mais
divino, do que o supunha a Inglaterra e jamais se
resignaria a aceitar como permanente, apesar de
tôdasas suas excelências sôbre os outros, apesar de
não ter constituição escr: apesar de tender já a
uma Comunidade de nações livres, um império que,
na base de tudo, mantinha as duas noções e inven-
gões diabólicas da fôrca e do lucro. No fim de contas,
o melhor que a Inglaterra lançava sóbre o universo
já Portugal o fizera, muito antes dela; e Portugal
porque não era de nenhuma Igreja reformada, por-
que se mantivera ficl a Roma e à fraternidade
católica, porque nunca fôra sequaz de uma ciência
que tendia apenas a dominar, de uma economia que
tendia apenas a explorar e de uma política que não
era outra coisa senão de origem maquiavélica, dei-
xara aberta, apesar de suas falhas, uma esperança 1
para o futuro: a de que o seu império do marfôra
apenas o primeiro passo, por isso mesmoainda físico
e político, de uma ação que depois a Europa, in-
compreensiva como sempre. lhe viria cortar: a de
trazer para o mundo aquêle Reino que milhões d:
homens quotidianamente imploram em vão.
Vai, pois, Fernando Pessôa, deliberadament:,
confirmar o acaso físico: vai nascer português por-
que tem a convicção de que Deus não pode aban-
donar seu outro povo eleito e de que, passado o
domínio da Europa, quando a técnica tiver esgotado
tôdas as suas possibilidades, quando a economia
protestante se verificar plenamente antihumana,
quando a centralização estatal se revelar estéril,
Portugal virá de novo construir o seu mundo de
paz, por maior que tenha de ser o seu sacrifício:
mundo de uma paz que não surja como a Romana
ou a Inglêsa, do exterior para o interior, de um
César para seus súbditos, dos tribunais para os cor-
pos; paz que se realize antes de tudo nas almas,
lei que seja inteiramente não escrita e, no melhor
de si, informulada; Reino de Deus que surja pela
transformação interior do homem.
É como umajustificação e uma explicação dêste
seu ato fundamental de vida que Fernando Pessõa,
pacientemente, vai durante quase duas dezenas de
anos escrevendo Mensagem, sem dúvida a mais
importante de suas obra e plenamente emparelhando
12 com Fernão Lopes, Os Lusíadas, D, João de Castro
e a História do Futuro na compreensão do
que
verdadeiramente é Portugal; pela inteligência
e en-
tendimento fundamentais que enformam tôda a
obra
& por ter pôsto mais a claro do que Camões
na Jlha
dos Amores a concepção de um verd
adeiro Império
Português ou Quinto Império, veríamos até
Men-
sagem como de importância superior à dos Lust
adas -
no total, o não é, porque initilmente proc
uramos
na obra de Pessõa traços daquela espantos
a e elo-
quente vitalidade de Camões, daquela ígne
a perso-
nalidade que em si ardendo destruia todos
os cír-
culos limitadores que êle próprio ou os outr
os ten-
tavam traçar à sua volta; a diferença que
há entre
Camões e Pessõa é à diferença que há
entre um
homem e a sua inteligência: mas esta, em
Pessoa,
mais clara e penetrantemente brilhav:
foi mass
compreensiva quanto ao Passado estático e
ao Pas-
sado dinâmico, tão incisiva como a de
Camões
quanto ao Presente e muito mais aguda
na previsão
do Futuro,
A primeira idéia que nos dá Pessõa é a de que
há um certo passado de Portugal que não
é de
natureza puramente histórica: é apenas
uma rey>-
lação no passado do que é em Portugal
uma pere-
nidade; o apuramento dessa perenidade cons
titui
9 conteúdo da primeira parte do poema,
aquilo a
que Pessôa chamou justamente Brasão, mas
que não
é para êle brasão de túmulo, ou brasão daqu
êles
palácios em ruínas que foram obsessão em
Gomes 13
Leal: o seu Brasão é a nobreza emcerne, é a essência
do ser fidalgo de Portugal. Quando agir, será no
Passado, a segunda parte do Poema, Mar Português,
e, no Futuro, a terceira parte, O Lincoberto. Brasão
terá como lema Bellum sine bello: é a potência sem
o ato, a energia sem a matéria, a História sem q
tempo: Deus, vendo Portuga! em Si cterno, escre-
veria Brasão, Mar Poriuguês é o ato que não
esgota a potência, a matéria que não apaga à energia,
& tempo que não liquida a História: por isso é ape-
nas a Possessio Maris que o Poetalhe deu por lem:
é Portugal podendo apenas uma mínima parte do que
pode; não se entregando todo e, portanto, apenas
possuindo; em Mar Portuguêz, Portugal Tem, não É.
Em O Encoberto, porém, tôda a sua grandeza se
revela: e o descerramento desta sua glória é quase
a renovação, agora de homens para homens, do
clamor antigo dos anjos, quando o Céu fêz, por um
Terra que dêle se desaviera, o sacrifício supremo
de si próprio: Pax in excelsis, paz nas alturas em
que o homem,indo além de si mesmo, se faz Santo;
não a paz em que o homem, se rendendo, organiza,
explora e defende sua própria baixeza,
Em Brasão, Portugal é o rosto com que a
Europa fita um Ocidente que, ao plenamente ser,
justificará todo o passado de miséria que a huma-
sidade tiver atravessado; a missão de Portugal não
poderá ser outra senão a de resgatar o que a Europa
14 [bz e de a salvar à seus próprios olhos; por isso o
seu campo, o dos Castelos, é o que serve de
base
ao das Quinas, o das Chagas de Cristo, êste o camp
o
próprio de Portugal: é expirando na cruz, esgotan-
do-se no seu sangue e na sua piedade, que Portu
gal
poderá salvar o mundo. No dos Castelos, poré
m
Portugal porá, como seu alicerce, o que
de mais
fundamental a Europa poderá ter dado ao mundo:
com Ulisses, a idéia de que o mito é mais importan
te
do que a realidade, de que o poder vir a ser é
o
substrato do que é, de que as coisas morrem à me-
dida que são; com Viriato, a de que a verdadeira
fôrça propulsora da vida não é a inteligência, mas
à reminiscência, e de que o ponto criador não é a
definição, mas o pressentimento; com
O Conde D.
Henrique a de que a ação, se Deus é o agente,
se
faz para além das intenções e das possibilidades do
herói, consistindo o heroismo apenas em se não
tecusar º que se não compreende; com D. Tarej
a,
juntamente com a da contemporaneidade
do tem-
poral e do eterno, a de que o dever peran
te a obra
consiste em a ela se dedicar com a bruta e natur
al
certeza com que a Mãe amamenta a seu filho;
com
D. Afonso Henriques, a de que, para se vencerem
infiéis, só vale uma indefinível arma, que, espinosia-
namente, tenha como umdos aspectos
o da espada
€ como outro o da bênção, como um,
o do corpo,
como outro, o do espírito; com D. Diniz,
a de que
a intuição poética vale mais do que o plano
; como
sétimo castelo, o que junta D. João e D.
Filipa, o 15
que se afirma é que a História, ao ser, toma dois
aspectos: o do homem e o da obra, sendo as modi-
ficações de qualquer dêsses o reflexo das modifica-
ções do outro; e ainda, que o milagre da concepção
humana consiste em que cada filho, sendo de seus
pais, não tem ao mesmo tempo nada que ver com
êles: a cada nova geração reafirma o Espírito Santo
a liberdade de criar. A Europa em que Portugal
assenta não é, felizmente, a Europa cartesiana.
Se a fôrça de alicerce de Portugal vem de ter
afirmado a existência de uma Europa que duas
vêzes se perdeu de si própria, primeiro na Idade
Média grega, depois na Idade Média Ocidental,
sua fôrça de salvação virá de, voluntâriamente,
ter incluído em seu brasão as chagas de Cristo, não
pintando-as apenas, mas consubstanciando-as em
gente sua: primeiro em D. Duarte, o mártir do
dever; depois em D. Fernando, o mártir da gran-
deza de alma, superior sempre a seu destino; e em
D, Pedro, o mártir da fidelidade a uma idéia clara-
mente pensada e claramente sentida; e em D. João,
o mártir de não querer senão o todo, ou o seu nada:
e, finalmente, em D. Sebastião, o mártir do sonho
de grandeza que está para além das circunstâncias
históricas. Coroando os campos, a santidade ativa
de Nuno Álvares, a sua pureza guerreira, o halo
que no céu gravam suas ações terrestres; e, numa
afirmação final da energia que a tudo subestá, o
16 Grifo com sua cabeça de águia advinhando o mundo
— mn
como um perfeito globo, ou melhor, obrigando o
mundo a ser o globo que pensava; com uma de suas
asas rasgando o firmamento num sulco de vontade
com a outra das asas o rasgando num sulco de poder.
Sôbre a base teórica de que a vontade de Deus
desperta o sonho do homem e de que o sónho do
homem provoca o surgimento da obra, e afastando
por af, para explicar a História, tudo o que sejam
causas espirituais ou materiais limitadas ao círculo
humano, e pondo nitidamente, logo no primeiro
poema, que a história que vai contar, a da Possessio
Maris, não é a história de Portugal, mas apenas o
seu interrompido prólogo, Pessõa dá o que foi a
encantamento máximo dos navegadores, o de trans-
formar o abstrato em concreto; o que foi basilar
em suaatividade, a convicção de que só em Deus,
comoúltimo pôrto, encontrariam o pôrto de repouso;
a vontade de um Rei de caráter sacramental que,
faz, ao mais humilde dos homens, poder mais de
que todos os mêdos do mundo; a glória de ter mos-
trado que o mar é sempre o mesmo e que a sua
posse nada significa de vital; o sentimento de que
o que vale na emprêsa de buscar é a busca e não
“ encontro; o mérito de ter sido o corpo da vontade
de Deus, de ter sido o Tempo da Eternidade a
revelar; o impulso que irá conduzir a história para
além dos que o lançaram; a consciência de se ter
realizado, no mundo físico, e sem nisso estar verda-
deiramente empenhado, a mais alta façanha de que 17
Pontifícia U 'tólica de R. A&
TRAL
homens se podem orgulhar; o ter ensinado que tôda
a descoberta se faz apenas quando se tem a coragem
de passar além dos domínios da alegria e da dor;
por fim, em Última náu e Prece, a certeza de que,
embora tenha vindo a noite e seja vil a alma, Deus
ainda reserva para seu povo Distância a conquistar.
É essa Distância como distante,é essa conquista
como inconquistável o que, em O Encoberto, se
anuncia pelos Símbolos, pelos Avisos, o último dos
quais é o do próprio Fernando Pessôa, e se afirma
triunfantemente através do negrume dos Tempos.
Portugal, completando a sua obra, dará ao mundo
o seu íntimo Império feito de anseios, de lonjuras,
de Reinos ilocalizáveis em tempo ou espaço, o seu
reino de alma humana continuamente sendo e con-
tinuamente ansiosa de mais ser, tendo-se inteira-
mente desprendido das ilusões de uma afirmação
puramente pessoal e de uma pessoal felicidade; o
mar bate nas costas do Império, mas, se o escutar-
mos, pára; decerto, porém, um dia, desistindo de
nos opormos ao mundo, não mais o quereremos
escutar; então, através de todo o nevoeiro, peio
próprio nevoeiro, terá surgido a Hora; o Encoberto,
em milagre supremo, se descobrirá.
FERNANDO PESSOA

Tomada a primeira decisão e aceite o dom dos


deuses, encontram-se êles no pleno direito de exigir
a paga, tanto mais pesada quanto menos qualidades
intrínsecas apresentava aquêle que se resolveu à
escôlha; se a dádiva foi a quem, de certo modo,
menos a merecia, mas se decidiu onde outros por-
ventura hesitaram, só poderá êle redimir-se do pe-
cado de ter roubado fogo do céu sofrendo na sua
carne e no seu espírito. Nenhum autor de verda-
âeiras epopéias o deixou de saber; ncm Homero nem
Camões, nem Milton se eximiram ao preço; não
poderia outra coisa ter sucedido com Pessõa. Há,
porém, quanto a êle, umadiferença importante: as
outras epopéias surgiram da inteira personalidade
de seus autores e cram les heróis como os de seus
poemas, heróis apenas traídos pela diferença dos
tempos, a diferença de resto necessária para que a
perspectiva épica lhes fôsse possível; Homero se
poderia ter batido em Tróia, Camões tem o entn-
siasmo da primeira viagem, Milton, não podendo
estar com Lúcifer, estêve com Cromwell. Mas
Fernando Pessõa criou a exopéia com a compreensão
que lhe davam inteligência e sensibilidade, numa
união religiosa; falharam-lhe, no entanto, a vontade
e a ação, Tiveram os outros todos os sofrimentos 19
que vêm da presença e da participação; caíramsôbre
ele os que surgem de se recusar e estar ausente.
Nenhum dos autênticos poetas épicos, e daqui
sc excluirão muitos dos que estilisticamente escre-
veram epopéias, incluindo-se muitos dos que traba-
lharam outros gêneros, nenhumdêles foi primacial-
mente um literato; foram, na essência, homens de
ação que, nos intervalos, a escreviam. Dêste ca-
minho deviaram a Pessôa ou o êrro ou a fatalidade
cu, mais de acôrdo coma idéia sua de que vendem
os deuses quando dão, a fatalidade de errar.
Foi sua primeira manifestação a de confundir
o Portugal que teve a posse do Mar com o Portugal
que o Encoberto deveria, ressuscitando, conduzir às
novas e supremas aventuras. O primeiro Portugal
foi o Portugal continental, o da defesa contra a
Espanha, ou melhor, contra Castela, c, porventura,
sobretudo o Portugal da velha unidade galáico-
portuguesa, o Portugal lírico e guerreiro das cantigas
de amigo e das velhas trovas do cancioneiro popular;
nêle estiveram as raízes mais profundas da nacio-
nalidade e nêle sempre residiram as inabaláveis bases
daquêle religioso amor da liberdade que caracteriza
Portugal como grei política; e é porque Deus faz a
História e gosta, poêticamente, de jogar com seus
símbolos, que o Infante D. Henrique nasce no Pôrto
e no Pórto se bate o Rei D. Pedro. Terminada,
porém, a fase de expansão, outro Portugal entrou
20 em jôgo e muito mais adaptado à sua tarefa do que
hi
o Portugal do Norte, demasiado rígido para as
aventuras da miscigenação, da tessitura econômica
e do nomadismo que nãoreconheceria limites e, no
entanto, firmaria fonteiras: é esta a vez do alente-
jano, andarilho de estepa, do algarvio, barqueiro de
pôrto a pôrto, ambos já, por súbditos mouriscos,
colonos e crioulos, Também, por símbolo, Raposo
Tavares nasce no Alentejo, e vão das Ilhas, com
raízes alentejanas e, algarvias, os casais do Sul do
Brasil,
É esta ação mais direta de um segundo Por-
tugal que se deve a estabilização e a conservação
do que o primeiro conquistara e se deve, portanto,
a possibilidade de ter surgido, como palco para à
grandiosa ação, o Portugal de nossos dias, que já
não é, de modo algum, o continental, mas o Portugal
dos cinco continentes, de que o outro é, apenas, a
dependência ou província européia. Portugal está
hoje em tôda a parte e, porque os territórios
da
América, da Ásia, da África e da Occania sofreram
muito menos a opressão da Europa de Carlos V e
conexos, o Portugal mais autêntico c de maior vi-
talidade não é o País cuja capital é Lisboa, mas
o
do Brasil, ou o de Angola, ou o da Índia. É um
Portugal que não tem seu centro em parte alguma
€ cuja periferia será marcada pela da expansão de
sua língua e da cultura de Pax in excelsis que ela
levar consigo; é um Portugal que se não importará
com a definição de regimes políticos, de regimes 21
econômicos oude instituições religiosas, porque êsse
será o problema de cada uma de suas unidades, só
ficando, por essência c definição do próprio
conceito-
Portugal, totalmente excluídas aquelas formas
ins-
titucionais que vão, como o autoritarismo político,
o liberalismo econômico ou a negação do Espírito
Santo, contra o que há de estrutural no próprio
homem: o Portugal da Hora, o Portugal de Bandarra.
de Vieira e da Mensagem, não é de modo algum o
Portugal do Minho ao Algarve, culturalmente tão
provinciano e tão acanhado: é, mas já expandido
a todo o mundo, o Portugal que ainda vive no co-
ração e na ação de seus pescadores e de seus mon-
tanheses, o Portugal cujo Rei jurava as Ordenações
como qualquer outro cidadão, o Portugal das terras
comunais, o Portugal de Santa Maria. Só para êste
Portugal ressuscitarão os mortos de Alcácer, porq
ue
só para êle vale a pena alguém viver. O outro só
pode trazer a quem nêle se aferra, e por mais heróicas
que sejam as suas razões, o desânimo, a amargura,
ou 0 imaginar, o puro imaginar, da evasão; Portugal,
porque a História passou, se ultrapassou.
Para o Fernando Pessõa que concebera a Men-
sagem ia o drama ser muito mais profundo. Se,
para o surto poético, êle soubera distinguir e tivera
a coragem de escolher entre a Inglaterra de Isabel
eo Portugal do Bellum sine bello, queé apenas outra
forma de expressar o Pax in excelsis, dando nêste
22 a plenitude do que no outro é a semente, quando
se chegou ao terreno da prátic
a o único Portugal
que êle viu foi o da Europa, vic
iado por trezentos
anos de ocupação estrangeira; o
êrro foi mais longe,
porque de Portugal se restri
ngiu a Lisboa, mais
viciada ainda, porque lhe tem cab
ido, como sede de
govêrno, o papel de impor o
estrangeiro ao resto
do País; e em Lisboa escolheu
os

para conviver o pior


meio que se pode imaginar, o dos
cafés de literatos.
A sua existência, como Fernan
do Pessôa, vai ser a
de se mover dentro de um círcul
o estreito que não
Susa romper e de que apenas
se evade pela leitura
e pela conversa, pela bebida
e pelo fumo; o que
poderia ter sido à violenta, arr
astadora, desperta-
dora torrente, lentamente se
pantaniza entre quem
O não valia, e êle próprio se não
valendo a si. Nem
os impulsos do caráter, como
a um Espinosa, nem
os impulsos de temperamento,
como a um Camões,
o salvaram do tédio de se ver
ao espelho; pisando,
no mesmocírculo se afundou,
e afinal, como outros
portuguêses que, tendo a alavan
ca de mover mun-
dos, lhe procuraram ponto de
apoio em Portugal,
tevede se resignar ao suicídio:
e ao pior dossuicídios,
O que vem de se deixar morrer
.
Quando se entrega aos planos
de Deus, como
na Mensagem, a sua inteligên
cia atinge o plano da
genialidade generosa; o que aco
ntece é que a adesão
a Deus é sempre nêle um
ato que a cada passo “e
tem de renovar: Fernando Pessôa
era incapaz de
fazer votos perpétuos; então,
nos intervalos, o Diabo 23
o espreita, e com a tentação da inteligê
ncia, que é,
além de tudo, por ser le próprio
inteligente, a
tentação que o Diabo melhor maneja
. Tão mefis-
tofêlicamente inteligente sc torna então
Pessôa que
inteiramente lhe desaparece a
faculdade de amai;
que, num pobre sucedâneo da conjunção
dos tempos
na Eternidade, elabora a subtileza, purame
nte int>-
lectual, de ser feliz outrora agora; que se sent
e
contente 20 imaginar a beleza das paisagens
descor-
tinadas através das janelas de lares que nuncate
rá;
que, finalmente, ao contrário do novêlo divin
o, que
é eternamente um novêlo se desenrolando no
es-
Paço € no tempo e um novêlo a si mesmo eter
na-
mente voltando, se transforma num novêlo
embru-
lhado para o lado de dentro.
Só que a natureza do homem não é diabólica e
é seu último fim a santidade; pode o Diabo
não
querer, por demoníaca obstinação, livrar-se
de seu
bêco, mas nem orgulho nem preguiça formam
à volta
de coração humano muralha tão espêssa que
a es-
perança não a rompa: ao passo que o que perd
e 9
Diabo é ter perdido a esperança; ou não
querer ter
esperança. O problema seguinte a resolver
é natu-
ralmente o de a vontade se seguir à imaginaç
ão que
sempre a esperança arquiteta, o de ter quem
espera
o caráter suficiente para persistir no caminho entr
e-
visto, Mas o que se punha em primeiro lugar,
para
Pessõa, era a questão de saber como haveria
pos-
24 sibilidade de se não suicidar, tendo caíd
o no meio
em que caíra e não vendo ma
neira de dêle se livrar,
pelo tal prêço dos deuses ou
Por circunstâncias d>
feitio puramente histórico,
Não uma, mas várias
foram as soluções concebida
s: e tão grave era à
questão para Pessõa, tão vit
al à sua resposta, que
as soluções, como por um no
vo baixar do Espírito,
não surgiram, como seria nat
ural num escritor, sob
a forma de ensaio ou poesia
: surgiram encarnadas,
surgiram como gente, e, comoi
ndivíduos autônomos,
puderam, independentement
e da vontade de Pessõa,
não da sua vontade crítica,
é evidente, mas da sua
vontade criadora, anunciar
o que eram como solu-
ção e, até, travar polêmi
cas entre si ou com 2
próprio Fe rnandoPessõa, O que havia de fe
minino
em Pessôa,e nêle tanto import
a,se paria em poetas.
RICARDO REIS

O primogênito foi Ricardo Reis, que nasceu


no Pórto, e trouxe, fiél à origem, o amor da digni
dade sóbria, da clareza de idéias, da simplicidad:
de concepção de vida, e à convicção de que, num
meio corrmpto c porventura destinado à destruição,
o único caminho que há a tomar é q de altuntar a
sorte com um silêncio, uma elegância e uma nos-
talgia que muito têmde inglês. Formado em Medi-
sina, ganhoutados os hábitos de quem, ingressando
auma carreira cientfica, não o faz, entretanto, pelo
amor de umaciência pura: 0 seu interêsse primordial
é o de ajudar uma humanidade sofredora, não o de
entrar, por uma última expressão matemática, em
paraíso de deuses; o seu escôpo essencial não é o
de saber, mas o de minorar dores; e, se algum dia
se prender em prevcupações filoséicas, elas serão
primacialmente de caráter pragmático: será, se as
sim se pode dizer, uma filosofia não puramente
especulativa e teórica, mas prática e moral.
Com éste alicerce de portuense, que o pode de
quando em quando tornar pesado emsuas reações,
mas que lhe dá segurança é o não deixa perturbar-se
demasiado, e com a formatura em Medicina que lhe
traz a paciência da análise c a paciência humana e,
com um certo cepticismo dos poderts do homem, 2
caSi
torna ao mesmo tempo consciente de que é possível,
dentro de um universo que provavelmente vive em
desordem, impor a ordem, embora num círculo pe-
queno, Ricardo Reis vai encontrar a possibilidade
máxima de expressão na circunstância de ter sido
educado num colégio de jesuítas, o que se explica
ainda porter sempre vivido com uma velha tia-avó.
A disciplina jesuíta afirmou a vocação de sol-
dado que se esconde em todo o cidadão do Pórto é
se revela, sobretudo, quando tem de batcr-se por
uma causa que parece perdida; mas fêz ainda outra
coisa mais importante: revelou-lhe Roma, Embora
Ricardo Reis tenha, por sua própria iniciativa, es-
tudado grego, o que significa naturalmente não
apenas a língua mas a cultura grega, o que é certo
é que nunca foi, c o testemunho de tão agudo
crítico como Fernando Pessõa é nêste ponto de tôda
a confiança, senão um semi-helenista; ora, se há l
E
algum domínio em que seja difícil ser semi, êsse i
domínio é exatamente o da Grécia: Grécia é muito
mais complicada do que a fizeram os franceses, e
saber só metade de uma complexidade é narealidade
não a saber; ao passo que não há perigo nenhum
em se saber só metade da simplicidade que foi
Roma.
De qualquer modo, Ricardo Reis não sabia
apenas metade de Roma. Aprendeu-a nalguns dos
seus aspectos essenciais e v que dela aproveitou é
28 porventura o que melhor poderá resumir tôda à
i

carreira e tôda a importância histórica


de Roma:
efetivamente, tendo importado da
Grécia, juntamen-
te com tudo aquilo que teria que dar
ao Ocidente
europeu, as formas métricas, criadas,
experimenta-
das e apuradas na Grécia, Roma,
com poetas como
Catulo e Horácio, lhes deu uma nitidez,
um despo-
jamento, uma atlética enxutêz
que perfeitamente se
casavam com todo o temperame
nto de um povo
de soldados; se fôsse possível dizê-lo
sem umpouco
de absurdo, se poderia afirmar
que a dança grega
sc traduziu em Roma na legião mar
chando.
Ora, de todos os poetas modernos,
pelo menos
de língua românica, e aqui não
se deve esquecer
que a tarefa de Ricardo Reis foi
facilitada por ter,
por assim dizer, no sangue o estu
do, a prática e o
sentimento da métrica inglêsa, é
exatamente um
Ricardo Reis, e apesar dos exemplos
de um Carducci
ou de um Unamuno, um dos que
melhor, tocado de
romani smo, pôde trazer o espírito da
métrica antiga
até a época moderna: o talhe da
estrofe de Ricardo
Reis é o de quem compreendeu até
o mais íntimo,
até a própria essência da criação
poética, até aquêle
momento em que o Verbo encarn
a em palavras, o
que faz a inegualável estrutur
a de uma estrofe ho-
taciana. Não creio que nêst
e ponto tivesse sido
muito importante a influência
de seus mestres jesuí-
tas: o que êles lhe poderão ter
mostrado é o latim,
mas não prôpriamente o ser
latino; seria uma con-
tradição para um sacerdote cató
lico entender, por 29
dentro, e ensinar, por dentro. paganismo; e aí reside
talvez mais largamente a dificuldade máxima, senão
a impossibilidade máxima de tôda a filologia clás-
sica: a de que só é apreensível na medida em que
o cristianismo ainda não pôde em nós vencer intei-
ramente o paganismo. Seja como fôr, dominou
Ricardo Reis melhor do que ninguém a forma dos
poetas latinos, O que implica que ninguém domi-
nou melhor do que Ricardo Reis o conteúdo dos
poetas latinos.

reino
É naturalmente difícil apontar os traços essen-
ciais de uma poesia cm que se exprimiram persona-
lidades tão diferentes como as de um Ênio e de um
Tibulo ou as de um Propércio e um Lucano; difícil
também separar do que seria prôpriamente latino
o que deu a cada um dos que poetaram em latim uma
linhagem oriental ou espanhola ou provençal; mais
difícil ainda o fazer uma discriminação segura dos
tempos, das circunstâncias de vida e dos imperativos
políticos, sempre tão presentes num Romano, Em
todoo caso, não seria totalmente alheio da realidade,
apresentar como uma das características da lírica
latina a idéia de que a vida se deve afrontar sempre,
senão com o ímpeto de ataque que garante a vitória,
pelo menos com aquela serena determinação da
sentinela de Pompéia: a mola essencial do Romano
não é a de vencer; não é de seu tempo nem de seu
caráter a “fúria spagnuola”: o que o mantém é o
30 se não render. Êste permanecer do homem em face
da natureza e da história, que está porv
entura na
base do desenvolvimento da administ
ração e do
direito romano,traz como conseqiiência quese assiste
ao desfilar diante do homemdo próprio temp
o, e
que é possível, portanto, ter dêle uma visã
o serena
€ histórica: romano sabe que atrás de temp
o tempo
vem, que a um deus se vemjuntar outr
o deus, tão
verdadeiro ou tão falso quanto os outr
os, pois que
tudo depende de nosso ponto de vista, Tudo,
porém,
se reflete no indivíduo, não coma alegria que,
cstra-
nhamente, nós passamos do nosso cris
tianismo para
º paganismo antigo — e o julgarmos o
cristianismo
triste é ainda um resto de nosso Paganism
o, — mas
com uma tão intensa meluncolia que os
próprios
jogos do Amor, o desabrochar das rosas c
o saborear
dos vinhos têm sempre diante de si o
homem im-
passível que já está pressentindo como hão-de os
ventos de Outono varrer amor, flore
s, aroma; que
já, mais terrivelmente, o sabe pela sua expe
riência
de gerações passadas. E é esta exatamen
te a atitude
de Ricardo Reis diante da vida que exist
e à sua
volta.
Tudo está a seu ver, como na decadênc
ia da
cultura antiga, quando já os bárbaros
transpunham
as fronteiras e uma estranha religião
ameaçava
aquela tão compreensiva, tão segura e tão
realmente
inexistente religião dos romanos; agora tudo é talv
ez
Pior ainda: porque, se no outro tempo, havi
a pelo
menos os bispos que se tinham afastado
de tôda 31
* corrupção de uma civilização que morria e, espe-
rando os bárbaros, tentariam comêles sepultar Ro-
ma para sempre — e foi o não terem sabido levar
sua tarefa até o fim que permitiu tudo o que de
máu, com o Renascimento. caiu sôbre a Europa —
no presente nada havia que os pudesse substituir;
nem um deus triste surgiria para juntar 20 panteon
antigo. Dentro mesmo da cidade, hordas tornavam
impossível a quieta meditação, a sossegada resig-
nação que fôra possível aos sábios antigos; os re-
publicanos, que, fiel partidário da monarquia, de-
testava, apareciam-lhe piores que bárbaros, porque
presentes e ativos. De modo que o ter adotado,
para se exprimir, pensamentos e formas da anti-
guidade romana representa efetivamente ummeio
delicado,discreto, portanto ainda portuense e inglês,
de declarar o seu desgôsto pela realidade ambiente
e de apontar qual a única atitude que poderá tomar,
como que numa última defesa de existir, qualquer
homem com noção da dignidade e da seriedade da
vida.
Em primeiro lugar, de nenhum modo se pode
admitir que, quaisquer que sejam as circunstâncias,
dê o indivíduo menos do que pode dar e se não
ponha inteiro em tôda a obra que fizer, por mais
pequena ou insignificante que seja ou pareça ser:
no fundo, acha Ricardo Reis, só é insignificante
aquilo em que não pomossignificação nossa. Escu-
32 sado será dizer que, por cutro lado, não deve o
autor de qualquer obra nela se esgotar;
pode esgo-
tar-se na vida, mas não em cada um
dos trabalhos
que durante ela realizar; fiel ao seu deve
r romano,
à contenção inglêsa e ao civismo
e artesanato por-
tuenses, fiel ainda à sua vocação de méd
ico, Ricardo
Reis é inimigo de tudo quanto signifiq
ue o roman-
tismo de morrer traduzindo-se em
obra: de certo
modo, se deve o artista manter alhe
io ao que faz,
num supremo dever crítico; e, emb
ora a obra seja
pessoal sua, como quedeveria ser real
izada de modo
que se confundisse, anônima, no
anonimato de uma
classe ou de uma época; não há
razão alguma para
“iue um poema contenha menos int
eiramente o poeta
do que uma intervenção um médico
ou um sapato
o sapateiro; mas deve ser, com
o as obras de arte-
sanato que se nomearam,
tão impessoal quanto
possível pelo querespeita à fatura; e,
para isso, nada
melhor que as exigências de processo
das métricas
antigas.
Em segundo lugar, nenhum mom
ento nem ne-
hum acontecimento da vida deve
ser tomado ao
trágico; a nossa obrigação é a de pôr
flores mesmo
nas horas mais difíceis ou naquelas
que sabemos
mais inúteis e perdidas, exatamente
como a senti.
nela põe a flor da sua dignidade no tum
ulto da
erupção, e o cortesão põe a flor de sua iron
ia na
brutalidade da ordem de suicídio, e
o namorado
põea flor de seusilêncio perante o bre
ve encanto ou
a futilidade de Lídia. Os deuses que,
movendo os 33
destinos, ou talvez a êles mesmos sujeitos, nos olha
m
indiferentes só nos poderão aceitar como de algu
m
modo dignos de sua companhia ou, pelo menos, de
sua imperturbada serenidade, quando virem que nos
não agitamos em vão nem clamamos
contra uma
sorte que nem êles próprios poderão talvez modifica
r.
Como terceira idéia fundamental, poríamos
a
de que se tem de ter na vida aquela econ
omia de
gestos que uma estética clássica reco
mendaria
para a obra de arte; temos de agir mais
com o
sentido de volumes que é, por exemplo, o da grande
escultura do que com a riqueza de linhas em que
degenerou o alexandrinismo; ocupar o mínimo de
espaço e fazer o mínimo de ruído; o melhor de
tudo seria poder passar na vida inteiramente igno
-
sado de tudo e de todos; já que tal não é
possível,
tenhamos ao menos o cuidado de tornar bem ní-
tido que não temos empenho algum em exist
ir e
que nenhuma culpa nos cabe em que nos suceda
viver.
Parecendo ser esta uma doutrina que exige do
indivíduo o mínimo de esfôrço possível, é cla exa-
tamente a que foi talhada para as almas ímpares
dos melhores estóicos e dos melhores epicuristas,
naquêle campo mais para o lado dos romanos, nêste
,
e aqui nos devemos lembrar da aiguma educação
helênica de Ricardo Reis, mais para o lado dos
gregos. Mas não era dêsse tipo, apesar do que êle
34 próprio supunha, a alma do médico poeta: contri-
riamente ao que pensava, e porque a energia lhe
era sobretudo de inteligência e não de caráter, não
tem nem a fôrça de abstenção para se não meter
em política, nem a fôrça de sofrimento necessária
para agiientar a derrota de seu partido. Sufocada
a revolução da passageira Monarquia do Norte,
Ricardo Reis emigra para o Brasil; e tão pouco fêz
que se tornasse digno de nota em seu novo campo
de ação, que Fernando Pessôa, em 1935, se limita,
numa rápida menção, a confirmar a sua ausência de
Portugal.
ALBERTO CAEIRO

Nascido em 1289, dois anos depois de Ricardo


| Reis, e emLisboa, Alberto Caeiro passou, no en-
tanto, quasi tóda a sua vida fora da cidade, numas
mopriedades do Ribatejo que possuía um primo
seu e onde veio à conhecê-lo Álvaro de Campos,
cujas noras, juntamente com algumas de Fernando
Pessda, os únicos elementos de que dispomos
para aquilo que poderíamos chamar a biografia ex-
tema do poera. De estatura média, um pouco mais
baixo do que Ricardo Reis, era de frágil compleição,
embora 9 não aparentasse; usava cara rapada e o
cabelo, sôbre a abundante,era Jouro, acastanhando-
se um tanto quando a luz lhe faltava; os ombros
baixos, us malares salientes, a cár um pouco pálida.
as mãos para o delgado poderiamindicar, a um bom
observador, que qualquer fraqueza interna » derru-
baria de um instante à outro. Contudo, o calmo,
intemerato, infantil, direto olhar azul, o sorriso que
era como que uma afitmação ou uma constatação
da plenitude de existir, a resta alta de poderosa
cura, a voz igual, média, narnrale, depois, no
decurso dasconversas, o tranquilo, inocente, seguro
discorrer, tudo néle dava, por outro lado, a impres-
são de que o fim não poderia estar muito próximo.
Durou, porém, apenas vinte e seis anos, tendo fa- 37
lecido quatro anos antes de Ricard
o Reis, de quem
era amigo, ter erabarcado para o
Brasil.
Dêste poeta, que, à pergunta que lh
e fôra feita
de se estava contente consigo, res
pondeu apenas
que estava contente, o que signific
a que o seu con-
tentamento era apenas o contentam
ento de existir
ou que tinha tantas ou tão poucas raz
ões de estar
contente consigo como com núvens,
aves, vagas ou
perfumes, tão partes como êle de
um reino natural,
não se poderia naturalmente esperar uma
obra feita
com o meticuloso, exato cuidado de
um Ricardo
Reis, o homem para o qual a mentira era
detestá-
vel por ser sempre uma inexatidão;
nada de tarefa
regular lhe seria provavelmente sup
ortável, como
igualmente não o prenderiam nem a sub
missão a
rigorosas regras métricas nem sequer o
trabalho de
revisão que se supõe indispensável a tod
o o artista.
E sabemos, efetivamente, que grande par
te da pro-
dução poética de Alberto Caeiro foi escr
ita a jatos
de inspiração e composição, podendo dep
ois pas-
sar diretamente das mãos do escritor par
a as do
tipógrafo. Só no dia 8 de março de
1914, mais ou
menos um ano antes de morrer, escreveu os
trinta
e tantos poemas de O Guardador de Rebanh
os.
O pensador ou o imaginador, ou o fantasia
dor,
que seria talvez o têrmo exato para reunir as
duas
categorias geralmente separadas que, jun
tamente
com o artista, formam o poeta, é naturalme
nte em
38 Alberto Caeiro muito semelhante ao escri
tor. Em-
bora declare que sabe igualmente fazer conjeturas,
a verdade é que tem consciência, plena ou confusa,
de que na conjetura há, até etimolôgicamente, o
voluntário reunir de idéias que andavam dispersas
e o esfôrço de as lançar tôdas juntas a um determi-
nado alvo. Ora, para Caeiro, o ideal é que se não
junte coisa alguma daquelas que o mundo, natural-
mente, nos apresenta separadas; que se viva sem
esfôrço de existir; e que finalmente, não quebre o
homem a harmonia da vida distribuindo os seres
pelas três classes dos arqueiros, das setas e dos al-
vos,
A conjetura, além de tudo, segundo lhe pare-
ce, a nada conduz senão àquilo a que anteriormente
se fôra levado apenas por se deixar flutuar na pró-
pria corrente da vida. Que se poderia descobrir ao
fim de um longo, difícil, angustioso filosofar? Aquilo
mesmo que se descobre sem filosofar, e tendo-se
ainda poupado a amargura de, para dissecar, ter
transformado em cadáver o que era ser vivo.
Realmente, pensa Caeiro, o fazer conjeturas
levá-lo-á à conclusão de que em cada coisa existe,
animando-a, dando-lhe o ser, aquilo que ela é; na
planta é a exterior ninfa pequena que a abandona
quando seca; no animal, já interior, é como que
uma confusa inspiração longínqua, não trágica, no
entanto, porque no animal se contém e com êle
desapareceria se morresse; no homem é a alma que
é êle, que vive com êle, mas que não tem o mesmo 39
tamanho que seu corpo, o que
igualmente não é
trágic
o desde que o homem aceite
à diferença de
tamanhos e, na impossibilidade
de fazer comungar
a sua alma com coisas tão dif
erentes comoa exte-
rior ninfa pequena da planta
e o ser interior lon-
giquo do animal, reconheça que
só lhe é possivel
a comunhão dos corpos; a úni
ca dúvida que se
poderia pôr era pelo que respeita
a outros seres
humanos; e, mesmo aí, talvez
a dúvida não subsis-
ta: se a alma é à distinção
entre ser e ser, tôdas
elas scrão diferentes umas
das outras e portanto
impossível será a coincidência tota
l, o que já não
acontece com ocorpo. Por fim, vêm
os deuses; nes-
ses, o que êles são tem nat
uralmente de ocupar
a totalidade do que são, visto
que, caso contrário,
haveria nêles alguma coisa que não
era divino; por
outro lado, a substância tem
de ser una, sendo por
conseguinte absurda, quanto
a deuses, qualquer
distinc entre corpo e alma; os deuses
são então
alguma coisa e, sendo alguma coisa,
devem ocupar
outra alguma coisa que corresponda
ao que em nos-
sa linguagem se chama o espaço;
mas aquilo que
entre nós ocupa cspaço chama-
se corpo: logo os
deuses são só alguma coisa idêntica
ao que entre
nós se chama corpo. É cviden
te também que têm
os deuses de ser eternos, Primeiro,
porque só ocu-
pam espaço, e depois porque, cas
o contrário, o ser
superior do mundo não seria nenhum
deus, mas a
40 Morte, conclusão que todo o inst
into vital de Caei-
er
TO se recusa a aceitar; o que é perfeitament
e com-
preensível num homem essencialmente
visado pela
morte. Se os deuses são só corpo, será entã
o o corpo
e não a nossa alma ou espírito o que
existe de
imortal; o que estará certo em
nós é, portanto,
aproximar-nos o mais possível da estabili
dade, da
segurança, da pureza, diríamos da virgindade do
corpo; c não nos importarmos muito
com as fra-
quezas, as fragilidades e as corruptas imaginações
da alma,
À tudo isto se pode chegar, como dizíamos
, ou
tudo isto se pode ser, se assim se preferir, apenas
sendo. O vício de pensar é porventura dos mais
daninhos que se abateu sôbre a humanidade
quanto mais felizes seríamos se pudessemos regres e
sar a tempos que, simbôlicamente, cham
-
aríamos de
ante-pré-socráticos, quando a filosofia
ainda não
aparecera com a pretenção de substitu
ir o conto de
fadas, ou até antes disso, quando o cont
o de fadas
ainda não aparecera com a presunção de substituir
a vida. O primeiro remédio para noss
os males será
o denos convencermos que há metafísi
ca bastante
em não pensar em nada; que a única
coisa realmen-
te misteriosa do mundo é haver gente
que, cm lugar
de viver, passa o seu tempo, scu limi
tado tempo,
pensando no mistério; e que é tota
lmente absurdo
andarmos procurando o sentido ínti
mo das coisas,
quando elas não têm sentido íntimo
algum senão
êsse de serem coisas e de não terem, por
conseguin- 4
te, sentido íntimo. Quem sabe viver, vive, não se
interroga sôbre a vida; substitui o pensamento pela
sensação: pensa, como os deuses, pelos pés, pela
bôca, pelos ouvidos, pelos olhos. E, para resumir
tudo, o Deus que Alberto Caeiro está disposto a
adorar não é um Deus teológico, abstrato, que não
se vê, que não se ouve, mas um Deus que é as
flores, as árvores e os montes, um Deus ao qual se
pode amar sem pensar nêle ou um Deus que se
pensa ouvindo e vendo.
Neste mundo de coisas, de corpos, de sensa-
ções e de perfeito negar-se ao pensamento, até os
sonhos são tão nítidos, tão ordenados, tão contem-
pláveis em sossêgo como umafotografia; e pela afir-
mação dêste fato principia Alberto Caeiro o que
é talvez o scu poema fundamental. Jesus desce dos
céus e vem ter com o poeta, fugindo a tudo que
sôbre êle lançaram as invenções dos homens que
pensam; Cristo abandona no céu a sua cruz, os seus
instrumentos de suplício, seu Padre Eterno, dema-
siado adormecido em sua Eternidade, S. José, tão
velho que o não pode ver como Pai, sua Mãe que
não amara antes de o ter, e o Espírito Santo que,
sendo criança, apenas vê como Pomba. Para fugir
do céu teve que usar de dois milagres: do primeiro
para que ninguém soubesse que éle tinha fugido,
do segundo para deixar eternamente pregado na
cruz um eterno Cristo sofredor. O terceiro milagre
42 é que é, porém, o mais importante: com êle ganha
Cristo a liberdade de ser eternamente humano e
menino.
Menino, pois, vem Jesus viver com o poeta,
naturalmente o único ser cuja inocência é compatí-
vel com a sua e o único que jamais teria tentações
de construir sôbre a fuga e a nova vinda à Terra
uma complicada teologia de terceira Revelação,
quando se trata ainda da segunda, oculta pelos ho-
mens. Vem viver para a aldeia, exatamente como
Alberto Caciro, porque o ar da cidade se encontra
demasiado corrompido pela acumulação de meta-
físicas, não sendo o próprio urbanismo, provâvel-
mente, mais do que a consequência de umafalta de
naturalidade; e vem viver não para ser um prega-
dor da bondade e da justiça, ambas daninhas por
serem abstrações ou sôbre abstrações terem seu
alicerce, mas para chapinhar nas poças de água,
limpar o nariz ao braço direito e atrever-se, até,
a outras mais ousadas artes. Ligada a esta, a de
ser uma criança natural, tem ainda outra missão,
a de ensinar o poeta a olhar para as coisas, a des-
cobrir todos os encantos, por serem coisas, que na
flor existem ou que cxistem nas pedras quando
devagar as tomamos e lentamente as vamos dei-
xando ser. É êle, pegando Alberto Caeiro pela mão,
que o leva de passeio, enquanto a outra mão do
Menino se dá a tudo quanto existe, e vão os três
andando, não pelo caminho que há e em que de-
masiado é patente a obra e a determinação dos que 43
ensam, mas pelo
Pen sam, mas p caminho que houver;
o que hot O que, p or
ser, exis tir.
lação de hTão bem seh dão os foi
dois, que até nessa
Felação de humano a humano foi poss ível d
Tecer$ o pensar: não
º pen
sam um
P ível desa
no esa pa-
p
x A outro; juntos
são, -
por um acôrdo íntimo. E a prece
. . final do poeta
é para que, um dia, o Men 4
ã . de;
ino Jesu s, a êle o toman-
O como criança,
dormindo, dorSa
o eite em sua cama
mindo e sonhando, maatée que
o cons onserve

. , nasça
aquele outro dia que só Jesus sabe
qual é.
Para que esta paz se estabelecess
e foram preci-
sos três milagres, e três milagres de Cristo. Nu
mundo de adultos e de adultos hab
m
ituados a pen-
sar, Jesus teria de crescer, para preg
ar, porque os
homens só entendem à Pregaç
ão e não a vida, e
para de novo ser crucificado, porque
eternamente
os homens estão crucificando, pelo que
os não vale,
o melhor de si próprios. E, num mundo
de pensado-
res, logo os metafísicos viriam com
o argumento,
já não falando de contradições, de que tôda
a filo-
sofia de Caeiro peca pela base: pensar que
se não
deve pensar é tão pensar como pensar
que se deve
pensar; chamar coisa a uma coisa, ou flor
a uma
flor ou amarelo ao que é amarelo é entr
ar imedia-
tamente no reino da abstração; e supor eter
na uma
criança, ou tê-la como Mestre sup
remo envolve,
imediatamente, uma Concepção do Univ
erso e uma
Teoria da História. A doutrina de Caeiro
é tão
frágil como a sua saúde: ambas estão ame
açadas
44 por infecções, o raciocínio e a tuberculose,
que sen-
| . -
do intecçõe -
s são fenaômenos de vid
: a a
e têm de ser
Ê]
explicados na vida, mesmo para serem des
- truidos.
| O destino do poeta foi: o de morrer como homem
| £ como pensador, embora sobreviva como
artista e
como profeta: e foi perante o desapare '
cimento do
profeta, apesar de o saber redivivo no
Futuro e de
o saber fazendo do Nada alguma coisF a de lumi' noso
E
E, e alto, que confessou a sua angústia e a
q sua tristeza
o que foi- o mai:or ami:go e o mai-or Pont
discípulo do
poeta: Álvaro de Campos.
ea

Pontif . ,
. «ca do
ALVARO DE CAMPOS

Nascido emTavira, pelo outono de 1890, ál-


varo de Campos, alto e magro, com seu rapado
rosro, entre branco é moreno, de feições ligeiramen-
te semíricas, que, mais do que o aparentarem a
judeus, como julgava Fernando Pessoa, o ligam
provivelmente à grande massa mourisca do Algarve,
teve a vulgar cducação secundária de menino porta.
guês e foi em seguida enviado para à Inglaterra,
ou antes, para a Escócia, a csndar engenharia;
principiou pela engenharia mecânica, mas a emia
de sua província e, pot outro lado, como mais forte,
uma dominante do seu temperamento, inclinado à
audácia, o linçaram para a engenharia naval; for-
mou-se em Glasgownão tendo, no entanto, feito um
curso muiro brilhante, visitou a Irlanda, o que não
contribuiu emnada para o inclinar av catolicismo,
emboza fêsse partidário da monarquia comregime,
e, numas férias, fez uma viagem ao Oriente.
Nada o pode dar a conhecer melhor quanto
ao queera por essa altura do que o seu poema
Opiário; convencido de que pertence iquela es-
pécic de porcuguêses que ficaram sem rrabalho
depois de terem descobrido 2 Índia, Álvaro de
Campos proenra para se consolar, como com um
ápio, um Oriente a oriente de umoriente; sabe de- 47
certo que em parte alguma coisa alguma poderá
encontrar que o cure de seu tédio e são apenas
formas dêsse têdio o ter veleidades de publicar li-
vros no Plon ou no Mercure e o entregar-se à falsa
vida cosmopolita de bordo, namorando suécas ou
conversando com funerários franceses; no fundo,
sente um grande despeito por ser êle, engenheiro
naval, perfeito conhecedor da língua neliso dee
ligente e lido, menos notado do que um cria a
bordo, cujo amplo gesto impressiona. Esta alsa
posição na vida, e exatamente porque o poeta está
exprimindo só parte do que sente, e não o que
se
outros sentem por êle, ou o que deveria sentir,
exprime por uma falsa forma tradicional, em que
alguma coisa de novo a cada passo aponta pa
romper e, como que amordaçada por um desejo 4
do
forma clássica, recua para o que de mais profun
possa haver no ser do poeta; a forma, canhestra-
mente tradicional, é para o artista Álvaro de Cam
pos o que o monóculo, que nunca mais deixou e
pa nz
usar, é para o homem: um disfarce, imposto
im e
dae pelo tédio à sua verdadeira pessoa. ro
no
contas, Álvaro de Campos só poderia sal varse
transfor
dia em que êsse monóculo simbólico se
aconce.
masse, por uma reação interna ou por um
um sin;
cimento exterior, no que foi para oficiais:
.
de domínio sôbre sí mesmo.
A mudança se deu e principiou por ser de ori-
- ente,
ao Oriente,
48 gem externa: no regresso da viagem
quando o tédio mais umavez o fizera desembarcar
em Marselha e vir a Portugal por terra, ou quando
o não poder suportar mais a vida de bordo era sinal
de que a transforma. O, ou a morte, estavam perto,
Álvaro de Campos foi levado por um primo seu
ao Ribatejo, a casa de um primo de Caeiro, com
quem tinha negócios; tudo sucedia como que por
acaso, e como que pordesdém, utilizando-se, como
possibilidades de aproximação, primos e primos, tal-
vez o elo menos seguro, menos estável, da
relação
humana. Noentanto, o passeio ia ter para Álva
ro
de Campos consequências irrevogáveis: Alberto
Caeiro, apenas um ano mais velho do que êle,
ia-se
tornar seu Mestre, e não apenas o mestre
de ensi-
nar, mas o Mestre de que se fica para tôda a vida
adorador discípulo.
Começando por alguma coisa que, sem o ser,
ainda se poderia considerar mais externa, Albe
rto
Caeiro logo revelou a Álvaro de Campos
quanto a
sua forma era inteiramente desajustada ao que ti-
nha realmente para sentir, ao que tinha realmente
para exprimir; a um homem que até aí se
sentira
preso, e desageitadamente, a uma forma diga
mos
tradicional, como preso se sentira a tédios de suéc
as
e de condes, Alberto Caeiro quebrou as peias de
servidão, mostrando-lhe como a forma tem de ser
como que a marca exterior da personalidade que
se exprime e como a um homem novo tem efetiva-
mente de corresponder a forma nova. Quanto a êle
49
mesmo, Alberto Caciro, o problema se simplificara,
porquanto a sua quasi nula educação, evitando-lhe
as deformações que a escola sempre provoca, não
o metera nunca pelos caminhos da métrica habitual;
o verso de Caeiro cra, escrevendo, o descuidado,
irreflexivo, anti-ref xivo passcio c anti-discursiva
ontemplação que adotara como seutipo de vida.
E depõe a favor do que de melhor havia em Álvaro
de Campos que, tendo-lhe sido a forma nova reve-
lada por Alberto Caeiro, tendo sofrido a impressão
de absoluta serenidade e de majestade que, sem o
querer, o pocta impunha, o seu verso seja, no en-
tanto, tão diferente do de Caeiro. Nêste, o ritmo
é, como nos passeios com o Menino Jesus, o do
caminho que houv er; em Álvaro de Campos o que
se deu Íoi o despedaçar de uma forma pelos surtos
deenergia: aldeiasalinhadas e criadas que erupções

Es
destróem.
Efetivamente, a influência de Alberto Caeiro
exerccu-se em domínio muito mais profundo do que
poderia fazer supor o cxame apenas do campo da
métrica. Deu a Álvaro de Campos a lição suprema
de que a única obrigação que a alguém cabe, o
único dever a que não pode faltar, é o ser êle pró-
prio; e o único pecado que pode cemeter contra o
Espírito Santo é o de não ser êle próprio, em tôda
a sua plenitude, aceitem ou não os outros sua ma-
neira de ser. Assim, Caeiro, num mundo de refle-
xivos e de metafísicos, era, ou pelo menos pretendia
ser; 0 não-metafísico, o não-discursivo, o não-refle-
xivo; cumpria-lhe ser calmo, porque o era, cum-
pria-lhe ser, porque o era, uma coisa entre as coisas.
A coragem de ser, eis aí o que daria a Álvaro de
Campos o remédio de seus insondáveis tédios.
Tomando em pleno a lição do Mestre, Álvaro
de Campos passou a ser o que era: um cultor e um
admirador da energia e da fôrça, naturalmente no
sentido de energia aplicada; e passou a ver as gran-
des criações, no domínio da arte, da ciência ou d1
convivência, como puras e completas manifesta-
ções de energia. Passando ao partido de existir, co-
mo seu Mestre Caeiro, Álvaro de Campos totalmen-
te se afasta de um Ricardo Reis, cuja arte admira,
como manifestação de energia e como expressão da
fôrça - Ricardo Reis; ou de um Fernando Pessoa,
que lhe parece inteiramente votado às potências
destrutivas do raciocínio e ao absurdo gôsto, à es-
tranha preocupação, de provar. Ricardo Reis, ao
que lhe parece, realmente não existe; se vê sempre
como histórico, e daí a sua ficção de falso paga-
nismo; se vê sempre em função de um Passado ou
de um Futuro, e por conseguinte sem plenitude de
vivência no Presente. Quanto a Fernando Pessoa,
acha-o inerte e tímido: prova porque não tem uma
de duas coragens, ou a de afirmar sem provas, dei-
xando aos outros o encargo de as buscarem, se qui-
serem, ou a de ficar calado; uma prova, crê Álvaro
de Campos, é, pelo que respeita ao caráter do indi- 51
víduo, sempre « de qualquer forma uma desculpa.
E êle, pelo menos, êle, Álvaro de Campos, veio à
vida como um núcleo de energia para explodir em
emoção e em arte,
Ficl discípulo de seu Mestre Caeiro, Álvaro
de Campos sente perfeitamente que não seria êsse
fiel discípulo se concordasse com o Mestre, Se a
doutrina de Caeiro tem como um de seus pontos
fundamentais que cada coisa o é por ser, Álvaro de
Campos só poderá distinguir-se de Caeiro e ser o
objeto-discípulo de um sujeito-mestre na medida
em que seguir as suas opiniões ou as suas tendên-
cias ou as suas emoções sem se importar com o que
sucede, nos mesmos domínios, com Alberto Caeiro.
Ao contrário dêste, que não tem metafísic: ao con-
trário de Ricardo Reis, para quem no fundo, como
para todo o epicurista e todo o estóico, a metafí-
sica, de resto muito mal pensada, é apenas, por tra-
dição escolar, o alicerce de regras de comportamento;
ao contrário de Fernando Pessoa, para o qual a
metafísica é uma arte, Álvaro de Campos acha que
se deve ter metafísica, que a metafísica tende a
ser uma ciência, e nisto se revela vocacionalmente
engenheiro, e que, enquanto a metafísica não é uma
ciência, se deve ter, a cada dia que passa, a meta-
física que apetecer, isto é, aquela que estiver mais
de acôrdo com a modalidade pessoal do momento.
Tôdas as preocupações de corerência vêm provã-
52. velmente de uma covardia, de caráter predominan-
temente social; mesmo quando a metafísica fôr uma
ciência, não está provado que se não possa, a cada
novo dia, inventar uma metafísica, digamos a ou-
tra dimensão, como se inventaram as goemetrias
não-euclidianas.
Porque o importante é que a energia se não
limite e o que é verdade é que a energia é essen-
cialmente livre; o seu sôpro é o sôpro do Espírito
e o que convém a homens é como que um novo voto
monástico de obediência, ou melhor, de disponibili-
dade: estará sendo essencialmente homem aquêle
que estiver, todos os dias, disposto a seguir nas di-
reções a que novo surto de energia o fizer rumar.
Não tenhamos por fundamentais as precauções
que apenas nos faz tomar o nosso mêdo de nos
magoarmos na vida, e de sermos tão pouco respei-
tados pelo nosso próximo que nos venha a faltar o
pão do corpo, e aquêle pão do espírito que consiste
em gozar na nossa praça da mais profunda consi-
deração e confiança. Poderia dizer-se, levando a
idéia ao ponto extremo, que teremos atingido o
máximo de nós próprios quando ninguém tiver em
nós a menor confiança; quanto a respeito, a histó-
ria é outra: porque teremos o respeito dos grandes,
dos que reconhecem e adoram a energia; e só, como
um louvor, o desrespeito dos fracos.
É em virtude de inteiramente exprimirem estas
idéias que as duas composições máximas de Álvaro
de Campos são a Ode Triunfal e a Ode Marítima: 53
numa o engenheiro comanda o mun
do, com o impé-
rio da matéria além de todosos escrúpulos que po-
deriam pôr uma interrogação religiosa sôbr
e a uti-
lização divina ou diabólica da ciên
cia e da técnica;
na outra, o corsário comanda os homens
, igualmen-
te sem se interrogar, religiosamente,
sôbre a fron-
teira até que se pode estender ésse domíni
o imperial.
Mas, na própria Ode Marítima, outr
a nota irrompe
que tudo lança de novo em confus
ão e perigosa-
mente faz regressar ao ambiente de Opiá
rio ou ex-
Plica um pocma, novamente regular, como o de
Cruz na porta da Tabacaria: a energia não resplan-
dece, como lhe competia, para que pudess
e real-
mente agir, num fluxo uno e contínuo; e
aqui não
pode ela ser quântica, como no resto do Uni
verso;
porque o mundo dos homens continua, pela
memó-
ria, a existir enquanto o outro se int
errompe e se
volta sôbre Alvaro de Campos, derruindo-o,
com Í
suas ondas de nostalgia e, mais dolorosas para que
m |
se quer afirmar, de anonimato. Não import
a que
em caprichos, sobressalto, histerias ou sonhos, ÁI-
varo de Campos se veja herói; falta-lhe, para cons
-
truir mundos, a persistente consciência de um
In-
fante em Sagres e na Córte: falta-lhe talvez o
heroismo de, por amor de seu sonho, ser cruel, e
de em seguida, ainda como o Infante, usar cilícios.
De qualquer modo, o que sempre há, depois de
tôdas as exaltações, é o inútil círculo se gravan
do
54 nosilêncio comovido de sua alma; do mais pro-
fundo de seu ser não surge, perante um barco, o
“Ahoy!”, grito de águia precedendo abordagem:
surge a murmurada prece de que passe e lhe deixe
apenas a distância; e, destruidoramente, sabe que,
por sua morte, as cidades não mudam. Pode ima-
ginar, proclamar, gritar o que quiser: no fundo tem
a certeza suicida de que o seu destino civil é o de,
cortêsmente, dizer “Adeus, ó Esteves!”,
MENSAGEMDOIS

Sem se mexer, nem sequer por dentro, como


dêle dizia Alvaro de Campos, Fernando Pessoa agn-
damente se observa à sí mesmo e 20 grupinho que
com êle tinham formado os três poetas. Era o con
junto de mais penetrante inteligência, de maio
capacidade de ironia, de menor provincianismo quer
jamais se constituira em Portuga); no entanto, rendo
tão superiormente ultrapassado a vida, poden do,
por exemplo, dizer a um S&-Cameiro que o não
achavam compleramente civilizado, podendotratar
2 saciedade portuguesa du tempo com o desembaraço,
a desdém é à apressividade com que a trataram —
apenas, de onde a onde, com algumas ingenuidades,
“como à de propôr Mensagem a políticos cuja carac-
terística essencial era a de não serem nem imperiais,
nem proféricos, nem épicos mas chapadamente pe-
desrres, retrégrados, locais — o certo era que afina
» meio ambiente acabava por os vencer, cam asl
bebidas, o fumo e os cafés de Fernando Pessoa,
o
exílio sem glória de Ricardo Reis, a morte prem
tura de Alberto Caeiro, c é fora de dúvida sera-a
tuberculose nma doença de ambiente, e o cansaço
Juasi permanente de um Álvaro de Campos, O que
Ps abatia e afinal os unia num mesmo denominador
tra essa [alta de uma energia que todos louvavam
57
e todos punham como o bem mais desejável de
todos os bens, mas que apenas lhes dava para es-
4[
creverem seus panfletos de várias formas é os
co-
mentarem ou comentarem os dos outros à volta
das mesas do Martinho.
O grito de tervindo a noite e deser vil a alma
era afinal o grito de todos, mas nenhum tinha
à
coragem prática de agir. Era como se o aconte
-
cimento histórico que emasculara a Nação os ti-
vesse emasculado também a êles; era como se
a Europa socrática e renascentista, vingando-se de
todo o desprezo cultural e político a que sempr
e
Portugal a tinha votado; vingando-se daquêle so-
berbo desdém que Fernando Pessoa melhor que
qualquer outro exprimira em Mensagem, o desdém
pelo estrangeiro que apenas achara o que no encon-
trar português só por destino não fôra achado; vin-
gando-se daquela autonomia religiosa que construi-
ria a Trindade vivida de Santa Maria, o Menin
o
Jesus e o Espírito Santo, em oposição a uma teo-
logia pensada que tanto conservara de judeus, gre-
gos e romanos; cra como se ela, entrando na Penín-
sula pela mão de Carlos Vc com o caminho pre-
parado por erros anteriores, tivesse dado o golpe
fundamental para acabar de vez com os homens
que jamais desprendiam suas mãos do leme ou que
tendo na mão a pena sômente a manejayam nos
58 repousos da espada ou conservavam debaixo dos
buréis os arneses vestidos, E tão separados tinham
para sempre ficado os portugueses de seus ante-
passados que, mesmo quando um acaso interno os
lançava aos antigos caminhos, não mais os conhe-
ciam: Fernando Pessoa estivera em África e a África
se mascarara de Inglaterra; Álvaro de Camposesti-
vera no Oriente e o seu Oriente fôra Port Said e não
Ormuz, fôra um conde francês e não um Fernão
Mendes; Alberto Caeiro estivera no Ribatejo e o
seu Ribatejo nunca fôra o de Giraldo nem o de
Alfarrobeira; e Ricardo Reis, partindo para o Brasil,
não soubera encontrá-lo.
O poder de esmagar de tal forma o que fôra
a Nação mais original do Ocidente e a de mais larga
e profunda missão em todo o mundo só poderia ter
sido dado à Europa por um grande acérto ou por
uma grande tentação; para Fernando Pessoa a idéia
de grande acêrto não poderia existir, porque detes-
tava a América do Norte e a Rússia e não podia
deixar de vê-las como o perfeito fruto da mentali-
dade européia; tinha por conseguinte de se voltar
para a idéia de uma tentação diabólica, mais temí-
vel do que a de quedas anteriores, e de que a hu-
manidade só possivelmente se veria redimida por
um novo sacrifício, provavelmente pelo sacrifício
de Portugal como nação. Essa tentação não podia
ter deixado de ser a da eficiência, e a da eficiência
vista não como serviço prestado aos outros, mas
como uma afirmação da própria superioridade: coma
da outra vez, o Diabo pegara o pecado
r pelo Or-
gulho. E passava de coincidência inte
ressante a
necessidade lógica que, tendo o palco
da nova ten-
tação e da nova queda sido a Alemanha,
fôsse exa-
tamente Carlos V quem tivesse vindo
emascular a
Espanha e Portugal; mais à êste, como
inimigo fun-
damental: porque afinal Castela sempre
tivera suas
pre
tensões a Prússia da Península.
O golpe essencial a favor da eficiência
tinha
sido o de ver a sociedade como uma
máquina de
produção, em que cada qual tem de ocu
par o seu
lugar e de se desempenhar de suas tare
fas com o
máximo de obediência a uma Organi
zação central;
para que isso se conseguisse tinham-se
apurado as
instituições estatais, eclesiásticas e esco
lares pondo-
as, no máximo que era possível, ao
serviço dos
produtores. De tôdas elas, as
que porventura ti-
nham causado maior mal eram exatam
ente as es-
colares, porque a sua missão cons
istia em fazer du-
rar o menospossível a criança, de modo ter
, para
prod
uzir, um maior número de adultos:
é porisso
que é inteiramente errado dizer-se
que, na épaca
de sua revolução industrial tin
ha a Inglaterra no
serviço das minas crianças de cinco ano
s; o que ela
tinha trabalhando era uma coisa
muito mais mons-
truosa: eram adultos de cinco anos
de idade,
De então para diante em nada mai
s se mudou,
na grande massa de educação, sen
ão nas técnicas de
60 fabricar adultos pelo assassínio
das crianças; a hu-
manidade de jeito ocidental pratica em grande es-
cala o infanticídio de espírito, apenas o
punindo
quando é físico porque isso lhe rouba definitiva
-
mente a matéria prima do adulto. Aquelas
crianças
que várias vêzes Fernando Pessoa apontou como
a melhor coisa que há no mundo, aquêle Meni
no
eternamente criança e humano que era para Alberto
Caeiro o Deus verdadeiro e supremo que faltava
no universo, a essas diáriamente as sacrificam
as
nossas escolas, diáriamente as crucificam,
diária-
mente as imolam nas aras da Eficiência.
O que
permitiu à Europa dominar Portugal, chegando ao
extremo de lhe apresentar o que há de mais
estran-
geiro, de mais alheio à índole nacional como intei-
ramente nacionalista, foi o pecado de ter
levantado
como valores supremos de vida humana os do
adul-
to, o saber, o trabalho e aquela separação de sujcito-
objeto que permite a filosofia, a ciência e à técni
ca.
A Europa se vendeu ao Diabo e o dinheiro que
nisso ganhou lhe serviu para comprar Portugal.
E, comprando-o, destruiu o último refúgio que
ainda poderia haver no mundo para as qualidades
infantis, que se deveriam conservar até a Morte como
qualidades distintivamente humanas, as da imagi-
nação, em vez do saber, do jôgo, em vez do traba-
lho, da totalidade, em vez da separação; são essas
e não as outras as que têm demonstrado
os grandes
criadores de ciência, os grandes artistas,
ou os gran-
des políticos: porisso os perseguimos quando vivos 6
e os aproveitamos, porque já eficientes, quando se-
guramente mortos. Não haverá salvação para o
mundo enquanto não entendermos e fizermos pene-
trar em nossas consciências êstc fato basilar, e en-
quanto as nossas escolas, transformando-se inteira-
mente, não forem, em lugar de máquinas de fabri-
car adultos, viveiros de conservar crianças; enquan-
to não forem as crianças que nos levem, pelo que
uma ciência fáustica previu, dando a mão, ao mesmo
tempo, a nós c às coisas: enquanto não for o Me-
nino Jesus nossc Deus verdadeiro.
É evidente, no entanto, que a escola é apenas
um dos elementos de um sistema; pedagogia está
ligada à sociologia, à economia e à teologia racio.
nais por laços muito mais íntimos do que se pensa;
tudo são fabricações de adultos. Pensam êles, os
pobres, que pode jamais haver no mundo alguma
forma satisfatória de govêrno organizado, de eco-
nomia organizada ou de discurso do sobrenatural,
a não ser que os pensemos sempre dentro de um
mundo de adultos: fora dêle, num universo de qua-
lidades infantis, num Paraíso, — e é por isso, por-
que os adultos aí eram crianças, que não havia
crianças com Adão e Eva, e só as houve depois
que, para podermos comer e se vestir, principiaram
êles a ser adultos, — num Paraíso, todo o govêrno
que não fôr amar será absurdo, tôda a economia
que não for colher será absurda, tôda a teologia
62 que não fôr contemplar será absurda,
Poderia parecer que por êste caminho se po-
deria Fernando Pessoa opôr a todo o crescimento
da técnica; mas é técnico Álvaro de Campos nos
melhores momentos de sí próprio e, se não exerce
a sua profissão, é decerto pelos seus arrebatos me-
lancólicos, mas também porque se não percebe um
engenheiro naval num País que não mais constrói
navios — embora possa, como a Holanda, fabri-
car paquetes ou cargueiros: e o grupinho de Pessoa
sabe perfeitamente atravez dêle que é exatamente
pela técnica, mas pela técnica tomada como um
jôgo geral e não como um meio individual de ga-
nhar dinheiro ou poder, que pode o homem abrir
o seu caminho de regresso ao Paraíso: mas, para
tomar a técnica como um jôgo, é preciso que se
seja anteriormente criança: a conversão religiosa ao
Menino Jesus deve preceder a revolução social. O
contrário seria materialismo, coisa de padres sem
religião, como dizia Alberto Caeiro; o que também
se poderia afirmar da religião que avassalou Portu-
gal a partir do século XVI.
Ligando os pecados da Europa ao que foi Por-
tugal antes de a noite vir, poder-se-ia pensar que
o D. Sebastião da Mensagem, o Encoberto, o que
há de voltar na manhã de mais cerrado nevoeiro,
quando tôda a esperança parecer perdida, é ao
mesmo tempo o Menino que jamais se resignou a
ser adulto no Rei de Alcácer e o Menino que jamais
se resignou a ser adulto nos melhores homens do 63
mundo; a grandeza qual a Sorte a não dá seria,
não a grandeza dêste mundo em quelogo se pensa,
mas a grandeza do Reino que Jesus afirmava ser
o seu e que seria povoado dos pequeninos quea si
chamava e que apontava como modêlo a seus dis-
cípulos; e à volta de D, Sebastião, iniciando no
mundo o novo Império, cada homem e cada mu-
lher, redimindo-se de ser adultos, iria oferecer a
um Deus também Menino, libertado finalmente de
sua Cruz e de seudistante Céu, o seu ramoinfantil
de contempladas flores.
É por êsse Império, que nem êle nem os seus
companheiros têm a coragem ou a fôrça ou a hora
de construir, porque numa história movida por
Deus tudo vem a ser o mesmo; é por êsse Império,
que não tem lugar marcado nos mapas porque vive
nosorriso, no olhar, nos sonhos dos meninos; é por
êsse Império, que se tornará consciente ou incons-
ciente a nós, como se torna consciente ou incons-
ciente a uma criança o que, dormindo, a faz sorrir;
é por êsse Império, que só poderá surgir quando
Portugal, sacrificando-se como Nação, apenas fôr
um dos elementos de uma comunidade de língua
portuguesa; é por êsse Império, que já foi aurora de
realidade e que hoje é apenas o cavo passo que se
escuta em palácios desertos, que Fernando Pessoa
pensa, escreve, concebe gênios, sofre recolhido e
ignorado morre, Mas sôbre êle reina, como já reinou
| 64 sôbre nós outros, aquêle Menino Imperador que,
em oposição ao Imperador germânico, o Imperador
dos adultos, e iniciando seu Império pela abertura
das prisões e pela abundância para os pobres, coroa-
vam, por amor do Futuro, os portugueses do melhor
tempo; e que ainda hoje coroam os homens de
Santa Catarina, entre os quais vivo e escrevo: aqui,
também, esperemos, por amor do Futuro.
ÍNDICE

Págs.

9 — Mensagem um

19 — Fernando Pessoa

27 — Ricardo Reis

37 — Alberto Caeiro

47 — Álvaro de Campos

37 — Mensagem dois

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