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A morte de Sócrates de Romano Guardini

MIGUEL CABEDO E VASCONCELOS


Faculdade de Teologia, UCP

A decisão de estudar, do ponto de vista da relação História-Teologia, a obra em questão


deve-se ao facto de Guardini recorrer ao pensamento socrático para fortalecer o
conhecimento daquelas realidades que conferem validade aos saberes humanos (inclusive
os teológicos): o bem, a verdade, a justiça e o amor. E é sobre a noção de «validade» que
neste trabalho me quero debruçar, procurando demonstrar como essa noção se torna
fundamental para compreender alguns dos processos losó cos e societários que
cunharam a história do século XX.

Guardini escreve A Morte de Sócrates em 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, já


depois da resistência ao Nazismo no Castelo de Rothenfels (1933-39), e após de ter sido
afastado da Universidade de Berlim pelo regime do Terceiro Reich, por denunciar a
mitologização da pessoa de Jesus operada pelos nazis e por, alegadamente, enfatizar
excessivamente a hermenêutica judaica de Jesus. O Terceiro Reich, na realidade, enquanto
materialização política do nacional-socialismo hitleriano, põe em causa, entre muitas
outras coisas, precisamente essa mesma noção de «validade». Com efeito, com a sua forte
hostilidade face ao racionalismo, o seu ênfase do instinto e o seu carácter anti-intelectual e
anti-teorético, o nazismo insere-se na esteira do romantismo político, pretendendo ver no
carisma do ditador a única fonte de inspiração.

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No mesmo sentido, o Nazismo considerava-se também devedor de Nietzsche. A
a rmação dos direitos do Super-homem nietzschiano é, para os nacional-socialistas, um
passo claro em direcção à formulação da superioridade do raça ariana. De facto, o referido
Super-homem havia de emergir, de acordo com Nietzsche, no momento em que qualquer
homem atingisse o domínio completo de si mesmo e estivesse em condições de rasgar a
moralidade cristã, dita «de rebanho», e fosse capaz de construir a sua própria arquitectura
de valores, enraizada numa perspectiva imanente da existência. É certo que a interpretação
nazi do Übermensch é em si mesma errónea face ao pensamento de Nietzsche, mas a
apropriação feita pelos nacional-socialistas contribuiu, uma vez mais, para a
desconsideração da ideia de uma possível «validade» do saber humano, nomeadamente em
relação com as realidades espirituais (ou com «a vida no espírito», na expressão de
Guardini, também ele um existencialista e, em certo sentido, devedor de Nietzsche).

Se é nesta linha que procurarei estudar o ambiente histórico e societário em que


Romano Guardini escreve A Morte de Sócrates, também me interessará abordar a relevância
da sua leitura socrática para que se possa compreender o período do pós-Guerra,
particularmente o momento em que o século XX se depara com um outro movimento
intelectual que fragilizaria ainda mais, também ele, a noção de «validade». Trata-se da
Desconstrução, no contexto da qual Jacques Derrida viria a a rmar que «não existem factos,
apenas interpretações» e que «há uma in nita variedade de formas pelas quais se pode
interpretar o mundo», não sendo possível, na perspectiva do francês, determinar quais
dessas formas são canonicamente correctas, ou seja, válidas. Desde Derrida, há pelo menos
um caminho que vem dar aos nossos tempos e ao crescimento do chamado marxismo
cultural, e esse caminho passa por Michel Foucault. Com efeito, no marxismo cultural
a rma-se que, diante da in nitude de modos pelos quais se pode interpretar a realidade
(Derrida), o ser humano tem a tendência para escolher a narrativa que melhor serve os seus
propósitos próprios e a sua estabilização no interior das hierarquias de poder (Foucault),
pelo que se defende que a história se pode ler como con ito perene entre opressor e
oprimido, numa reiteração da leitura da história como con ito entre burgueses e
proletariado.

Assim, o recurso de Guardini a Sócrates para fortalecer o conhecimento daquilo que


pode trazer «validade» aos saberes humanos torna-se ainda mais pertinente se queremos
olhar a história não apenas como cronistas que relatam factos, mas como quem enquadra
os factos numa loso a da história, compreendendo os processos que a compõem.

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