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Assim, e é nisso que Guardini procura re ectir, o Nazismo traz consigo uma oposição à
verdade em si mesma, que se declina numa reacção contrária ao bem, ao amor e à justiça.
Por esta razão, o nazismo de Hitler – e, a propósito, também o fascismo de Mussolini –
põem o ser humano numa solidão existencial quase absoluta, a que o pensamento de
Romano Guardini se opõe veementemente, pelo simples facto de um tal entendimento
antropológico ser falso. Com efeito, para o teólogo alemão, os dois polos da existência
humana residem na sua capacidade de elevação, entendida como a abertura do espírito ao
incondicionalmente válido, e na possibilidade de interiorização, entendida não como
fechamento em algum lugar recôndito dentro da pessoa, mas como desenvolvimento de
uma vida comunitária de amor, beleza e plenitude.
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conseguinte, a beleza, a bondade, a justiça e a verdade, e são conceitos que se clari cam
não na contemplação estética mas na vivência existencial e no processo de crescimento
pessoal. Para Guardini, o exercício intelectual sem experiência existencial corre o risco de
ser mero manejar de conceitos e, se nos mantivermos apenas a esse nível, não somos
capazes de captar toda a fecundidade que da unidade, da bondade, da justiça, da beleza e
da verdade se pode fruir. A este propósito, ao comentar o Críton de Platão, Guardini
começa por referir-se à justiça:
A validez e a exigência de compromisso que tem o bom não depende de como o outro
– ou, em geral, um homem – se comporte na prática; nem sequer quando esse
comportamento nos afecta pessoalmente de modo mais directo. Não se apoia em absoluto
sobre o concreto e o efémero, mas antes sobre a essência mesma do bom, sem ter em conta
o que ocasionalmente se faz ou deixa de fazer2.
Guardini conclui, defendendo que a incondicionalidade de uma tal validez não se reduz
a um enunciar da mesma; pelo contrário, trata-se de algo em que a loso a platónica lança
as suas raízes mais profundas.
Com efeito, quando a nossa vida pessoal se aprofunda e vamos trazendo para a luz as
motivações profundas do nosso agir, vamos vislumbrando que em cada uma das nossas
1 Romano GUARDINI, La muerte de Sócrates, Palabra, Madrid, 2016, 169 (tradução nossa).
2 Romano GUARDINI, La muerte de Sócrates, 170 (tradução nossa).
3 Romano GUARDINI, La muerte de Sócrates, 172 (tradução nossa).
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acções estão, de modo «supraactuante», estas realidades subtis que dão razão de ser à nossa
existência.
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Se abandona a verdade, o espírito humano adoece. Um tal abandono não tem lugar
quando o homem erra, mas quando abandona a verdade; não quando mente, ainda que o
faça com frequência, mas quando deixa de considerar a verdade como vinculativa; não
quando engana outros, senão quando dirige a sua vida a destruir a verdade. Aí, enferma
do espírito, o que se traduz necessariamente em perturbações psicopatológicas. Um
homem assim podia inclusivamente ser muito forte e ter muito êxito, mas estaria doente; e
um observador consistente em questões não apenas psíquicas mas também espirituais
havia de o advertir4.
De tais considerações se depreende que parece também ser possível que a pessoa
como tal corra perigo quando nos desvinculamos das realidades e normas que são a
garantia da pessoa: a justiça e o amor. A pessoa adoece se abandona a justiça. Não quando
comete injustiça, ainda que seja amiúde, mas quando abandona a justiça. Esta [a justiça]
signi ca o reconhecimento de que as coisas têm o seu próprio modo de ser – a sua
essência – e a disposição de salvaguardar essas essências e a ordem entre as coisas que
delas possa derivar […] A pessoa nita apenas tem sentido se se orienta para a justiça; se
se aparta dela, corre perigo e converte-se num perigo: um poder desordenado. Justamente
por isso adoece como pessoa: ca fora de si5.
Com efeito, é precisamente a este nível que se descobre a a crítica histórica que a obra
de Guardini permite realizar. Diante de um Terceiro Reich com aparente sucesso e numa
fase de ascensão e força, o perigo que corre a pessoa como tal – e, poderíamos dizer, a
humanidade como tal – é o do abandono da verdade, da justiça e do amor. Não apenas
numa lógica de «queda», que supõe ainda uma opção fundamental pela verdade e pelo
amor, mas numa lógica de desistência da verdade e de recusa do amor.
4 Romano GUARDINI, Mundo y persona, Encuentro, Madrid, 2000, 106 (tradução nossa).
5 Romano GUARDINI, Mundo y persona, 107-108 (tradução nossa).
6Nesta conclusão, socorremo-nos do pensamento de George Steiner. Cf. George STEINER, No
Castelo do Barba Azul, Relógio d’Água, Lisboa, 1992.
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– Em primeiro lugar, a perda de uma centralidade geográ ca de que a Europa gozava até
então, nomeadamente em termos culturais. Hoje, com efeito, a produção cultural
Ocidental acontece de modo claro nos Estados Unidos da América, e não por transferência
directa. Com efeito, enquanto na Europa a produção cultural se organizava em torno da
ideia de memorial, na medida em que o passado era sempre uma herança irrenunciável, na
América do Norte a soberania da Cultura reside no modo de olhar o futuro, regra geral de
maneira optimista, e como potencialidade quase in nita.
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