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A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE

CIDADANIA: O QUE SIGNIFICA SER CIDADÃO NA


SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA?

MORAIS, Ingrid Agrassa


O termo cidadania origina-se do latim civitas, que significa cidade.

A questão da história do conceito de cidadania remete a dois questionamentos basilares: o que significa ser
cidadão e quem pode ser caracterizado como tal.

Segundo a ótica aristotélica, ser cidadão perpassa pela titularidade de uma espécie de poder público sem limitações e com poder de
decisão no âmbito coletivo.

Já no que tange aos critérios necessários à cidadania, Aristóteles os pontua de modo bem mais restritivo, situando os entre os poucos
homens que não dependiam de sua força produtiva para viver, com absoluta exclusão dos escravos, dos estrangeiros e, também, das
mulheres.

Uma origem romana, todavia, marca a edificação da categoria cidadania quando imbuída de um caráter mais jurídico. A palavra latina
civis, ainda com uma acepção ligada a cidadão, garantiria os direitos dos nativos – os indigenatos – em relação aos estrangeiros.

Desse modo, os direitos relativos aos cidadãos/civis relacionam-se ao voto – direito de paz ou guerra, às eleições nas magistraturas,
contração de obrigações, constituição de família, ou mesmo quanto à propriedade ou libertação de servos.

Na Roma antiga, os termos gentilis, patricius e civis remetiam igualmente à noção de cidadania, denominando uma mesma figura
social. Assim, destaca-se que a história de Roma atribuía uma noção bastante extensa aos critérios de cidadania, sendo relevante
destacar-se que, posteriormente, tais direitos seriam conferidos aos habitantes do império de um modo em geral.

O Fórum pode ser considerado o símbolo maior de um sistema político com forte participação da cidadania. Lá, os magistrados
defendiam seus pontos de vista e tentavam conseguir o apoio dos cidadãos. O poder dependia desse apoio, a tal ponto que grupos
rivais competiam pelo controle dos lugares em que os cidadãos se reuniam. Os romanos tinham um conceito de cidadania muito
fluido, aberto, aproximando-se do conceito moderno.
O conceito de cidadania, ao longo do tempo, afastou-se de seu sentido estrito, ligado à origem, ao indigenato,
apartando-se, igualmente, de acepções ligadas a características naturais, como o sangue ou o solo.

Assim, desvinculado de explicações naturalistas, o conceito de cidadania volta-se para o mundo da política, da comunidade, ganhando
relevância seja na polis grega seja com o surgimento da figura do burguês na idade medieval, ou mesmo com a transição para a
modernidade.

A cidadania liberal, (...) foi um primeiro – e grande passo – para romper com a figura do súdito que tinha apenas e tão somente deveres
a prestar. Porém, seus fundamentos universais (“todos são iguais perante a lei”) traziam em si a necessidade histórica de um
complemento fundamental: a inclusão dos despossuídos e o tratamento dos “iguais com igualdade” e dos “desiguais com
desigualdade”. Para tal fim, por uma “liberdade positiva”, é que virá à tona nos séculos vindouros a luta por igualdade política e social.

A Declaração Francesa de 1789, largamente influenciada pelos pensadores da Ilustração, em especial Rousseau, também representou
um marco para a questão da cidadania, postulando a liberdade e a igualdade de direitos entre os homens desde seu nascimento.

Foi ao longo da modernidade que tanto o conceito de cidadania quanto sua prática social desenvolveram-se largamente, incorporando-
se à experiência cotidiana. Porém, em um contexto de franca urbanização, apesar de inserido ao vocabulário político, o termo
cidadania ainda permaneceu atrelado à luta pelos direitos civis, somando-se aos movimentos sociais que eclodiram mundialmente, em
especial, a partir dos anos 1960/70, pois foi neste contexto que surgiram os movimentos de minorias, difundindo uma nova concepção
de igualdade, agora permeada pela ideia de diversidade.

A cidadania formatava-se como um exercício no palco do Estado de Direitos, evidenciando o convívio entre as diferenças, bem como
entre diferenças e igualdades.
Cidadania como uma identidade social politizada, engloba vários modos de identificação intersubjetiva entre pessoas e
entre grupos sociais, bem como sentimentos de pertencimento engendrados coletivamente em diversas mobilizações,
gerando, no cotidiano de cada um, aproximações, embates, negociações tanto no âmbito prático quanto no simbólico.

As noções de reconhecimento e pertencimento nos permitem refletir acerca do fato de que as noções de identidade e cidadania
são engendradas de acordo com a força que as mobiliza, daí seu caráter mutável, possibilitando, inclusive, o surgimento das
políticas identitárias.

A história da cidadania moderna tem sua trajetória marcada, portanto, pela articulação entre o Estado e a nação.

No Brasil, o trajeto da cidadania tem como palco a própria história do país, cujo processo de independência não significou melhoria
na qualidade de vida de boa parte da população, que continuou excluída dos direitos civis e políticos, bem como desprovida do
sentimento de nacionalidade que a impulsionasse a um processo efetivo de mobilização.

Assim, o status do cidadão passa a ser questionado no Brasil em diversos de seus períodos históricos, a exemplo do que ocorreu ao
longo da monarquia que, rodeada por repúblicas, enfrentou o desafio de dar conta do significado social do que representava ser
“súdito” ou “soberano”.

É na configuração da identidade do indivíduo moderno que a noção de cidadão assemelhada à de súdito passa a ser rejeitada. Ser
cidadão não pode mais ser concebido como ser um mero sujeito de deveres e um passivo cumpridor de obrigações.

A própria escravidão no Brasil, enquanto experiência social, mesmo após sua extinção, continuou a negar os direitos mais
elementares nos campos da liberdade e da igualdade, limitando, ainda nos dias atuais, o conceito de cidadania, por meio de um
legado de discriminação e exclusão.
A situação dos homens livres pobres, representantes da maioria da população nacional do período, não representou
grande diferença em relação ao contexto de vida dos escravos, haja vista que permaneciam vinculados a estruturas
tradicionais de dominação, a exemplo do coronelismo, nutrindo, para sobreviver, relações de favor com os mais
abastados e socialmente poderosos.

O favor, com sua marca baseada em características pessoais, acaba por aniquilar a universalização de direitos, negando, desta
forma, o próprio sentido de uma cidadania voltada para todos, prejudicando, também, a relação com o Estado, à medida que
fortalece a concepção de “dívida” para com aquele que prestou o favor, enfraquecendo a esfera estatal e afastando dela o caráter
de mediadora dos conflitos sociais.

Os sentimentos de pertencimento e de identidade nacional passam a ser incutidos, inicialmente, a partir da República, que –
proclamada em 1889 – passa a ideia de transformação dos nacionais da condição de súditos do imperador para a de cidadãos
brasileiros.

O Estado Novo, período demarcado de 1937 a 1945, representa contraditoriamente a entrada do Brasil em um contexto moderno de
cidadania à proporção que se constituía em uma ditadura que, como tal, negligenciava ou pouco reconhecia os direitos civis e
políticos em detrimento aos direitos sociais, legitimados no campo trabalhista.

Com Juscelino Kubitschek os paradoxos perduraram, englobando uma política integracionista que em nada modificou o grande
abismo social que já assolava o Brasil.

Com o advento da Ditadura Militar, instaurada por meio do golpe de 1964, o processo de construção da cidadania nacional sofreu
grande abalo à medida que os mais elementares direitos foram cerceados, entretanto, foi a partir do final dos anos 70, com o advento
da transição democrática que o Brasil passou a vivenciar um novo período na história da cidadania.
A década de 70 marcou o cenário nacional, trazendo à tona um amplo movimento de contestação aos modelos
totalizadores de cidadania – bem como aos valores que lhes são intrínsecos – vinculados de modo limitado
apenas ao Estado e à política partidária.

Ao questionar esta concepção de cidadania, colocava-se em xeque a própria política oficial, possibilitando a emergência de
paradigmas alternativos ao modelo vigente, formatando-se movimentos sociais múltiplos no campo da identidade e da luta por
direitos, como, por exemplo, o movimento negro, o feminista, o ambiental ou mesmo o LGBT.

Assim, os movimentos em prol da cidadania dirigem-se não somente ao Estado, mas à sociedade de um modo em geral,
desnaturalizando a universalização de direitos por meio de uma agenda política que permite particularizá-los.

A Constituição de 1988, conhecida emblematicamente como “constituição cidadã” despontou como relevante instrumento de
reconhecimento e de garantia dos mais variados tipos de direitos.

No Brasil, o processo democrático ainda precisa enfrentar desafios relativos aos contrastes sociais e às assimetrias de poder que
assolam o país de modo bastante intenso, sobretudo nos campos da educação, do trabalho, da saúde, do saneamento básico, da
segurança pública, enfim, de problemas que para serem resolvidos necessitam do rompimento com o modelo político excludente.

Conclui-se, portanto, que cidadania não é um conceito estanque, mas que guarda ampla marca de historicidade, característica que
o faz modificar-se de acordo com o tempo e o espaço em que o situamos.

Desse modo, torna-se essencial pensarmos o conceito de cidadania como categoria mutante, provisória, relativa, a ser analisada de
acordo com o contexto social que a produz, ou seja, sempre em relação aos fenômenos, instituições, grupos que a engendram.

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