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PENSATA • POR UMA ÉTICA NA DEMISSÃO?

POR UMA ÉTICA NA DEMISSÃO?


Maria Ester de Freitas
FGV-EAESP

O mundo tremeu de indignação reitos humanos estão atentas à ob- dades, os hospitais e órgãos da ad-
quando foram divulgadas as fotos de servância de princípios que reduzam ministração pública?
militares norte-americanos tortu- a selvageria própria da guerra e Para responder a essa pergunta,
rando e humilhando prisioneiros abram a possibilidade de um pós- precisamos dar uma olhada rápida
iraquianos na prisão de Abu-Ghraib. guerra mais civilizado. Aqui, civili- para as reengenharias ocorridas na
A primeira pergunta que essa indig- zado tem o sentido de oposto a bár- década de 1990. É certo que o movi-
nação suscita me parece ser: não é baro, a bruto, a ignóbil e a desuma- mento de revalorização das empre-
tudo permitido numa guerra? no. O que vale a pena reter é que sas as colocou como o modelo de
Se a indignação demonstrada no uma guerra é apenas o ápice de uma gestão por excelência que deve ser
repúdio explicitado por diferentes seqüência de episódios resultantes seguido por outros formatos organi-
países é justa, isso significa que exis- de interesses contraditórios, que ti- zacionais, ainda que as suas finali-
tem alguns compromissos morais veram sua solução inviabilizada por dades não guardem semelhanças. Ou
que devem ser observados mesmo meio da negociação e da barganha. seja, vale a lógica em que o critério
durante uma guerra. Não sou espe- Quer dizer, houve um esforço das baseado em custos dê sempre a pa-
cialista em tratados de guerra e paz, partes antes de sua declaração, hou- lavra final ao processo decisório, que
tampouco nos meandros das con- ve – pelo menos teoricamente – a subordina os demais pontos a serem
venções do Direito Internacional. possibilidade de resolução das dife- julgados, tal como os benefícios en-
Contudo, parece evidente que deve renças e contendas antes do ataque. volvidos nos compromissos assumi-
existir uma espécie de ética de guer- Mas ainda assim houve o aviso do dos e discursados em alto tom.
ra que preserve pelo menos alguns ataque. Não se fazem mais guerras Na década de 1990, especialmen-
pontos, quais sejam: a) a guerra diz de surpresa, nem na calada da noite. te no Brasil, onde o peso da maioria
respeito aos Estados e não às pes- Ainda que certos países façam guer- dos sindicatos é insignificante e cujo
soas; b) os soldados são diferentes ra sem o apoio da comunidade inter- capitalismo é obcecado pela queima
dos civis, pois são armados e agem nacional, cada vez mais parece que de etapas, os processos de reenge-
em nome dos Estados; c) as popu- esse acordo tende a ser importante nharia das empresas, salvo raras
lações civis devem, na medida do para legitimar a ação dos guerreiros. exceções, foram marcados pelo ex-
possível, ser poupadas; d) os prisio- Fizemos referência à guerra para cesso de equívocos. Equívocos que,
neiros têm direito a manter preser- ilustrar que, mesmo nas situações como tive a oportunidade de discu-
vada a sua integridade física e psi- mais radicais e graves na vida de um tir em outro momento,1 dizem res-
cológica e a um julgamento justo; país ou grupo, algumas condições de peito à forma simplificada, mal de-
e) os vencedores têm obrigações hu- respeito humano ainda são mantidas, finida e mal operacionalizada des-
manitárias para com os vencidos sob e, quando são violadas, despertam a sas reestruturações. Simplificada
o seu poder; f) os vencidos têm a repulsa e a reprovação dos demais. E porque foram centradas em meros
obrigação de obedecer às condições o que tem isso a ver com o mundo cortes de custos; mal definida por-
acordadas com o vencedor. das organizações modernas, como as que se confundiu realinhamento
Cada vez mais a comunidade in- empresas privadas e outras institui- estratégico com curto prazo; e mal
ternacional e as instituições de di- ções, como as escolas, as universi- operacionalizada porque se comete-

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ram vários desatinos, desrespeitos e visão, que as carreiras longas aca- feitas, mas as maneiras como elas
demonstrações explícitas de insen- baram, que novas qualificações são têm ocorrido e as ofensas ao ser
sibilidade, crueldade, cinismo e requeridas, que a competição está humano em sua dignidade.
irresponsabilidade no trato com os mais acirrada, que as organizações Pretendo levantar alguns pontos
profissionais que foram demitidos. devem apresentar resultados má- que podem talvez contribuir para o
O artigo acima referido é intitu- ximos em prazos menores; enfim, desenvolvimento de um comporta-
lado “O day-after das reestrutura- que a reengenharia se transformou mento organizacional mais respon-
ções”, e causou certo frisson nos lei- numa prática constante. Não é difí- sável, menos danoso para as pessoas
tores dessa revista, pois recebi di- cil compreender isso. Estamos tra- e também para as organizações. Sim,
versas cartas compartilhando o pon- tando aqui da aprendizagem que o porque é preciso ter claro que as or-
to de vista ali defendido e brindan- modelo de demissões citado acima ganizações não têm preocupações
do-me com mais exemplos da pusi- gerou, pois várias empresas que as- outras além do seu próprio bem-es-
lanimidade e da covardia com que sumiram aquela postura tiveram tar. Até esse ponto não há problema
algumas empresas estavam agindo muito do que se arrepender, fizeram algum: é de sua natureza artificial e
na hora das demissões. Apenas para mea-culpa e tiveram sérios arra- expansionista racionalizar práticas
relembrar um pequeno trecho, nhões não só internamente quanto e instrumentalizar variáveis para
junto ao público exterior. Muitas atingir os seus objetivos. Conces-
[...] muitas demissões foram fei- pagaram um preço enorme pelos sões, negociações e barganhas são
tas por e-mail, por telefone, no desmandos cometidos e algumas apenas meios para se concretizarem
meio das férias, no final do expe- continuam pagando, pois fazem vis- resultados; a linguagem que as or-
diente quando o indivíduo já es- ta grossa para o que a experiência ganizações falam é a dos interesses,
tava no estacionamento e por atos já validou como um caminho a ser começando pelos seus, e eventual-
covardes semelhantes. Muitas coi- evitado. Uma parte desse preço diz mente pela convergência de interes-
sas foram empacotadas e enviadas respeito ao fomento a um compor- ses alheios que possam ser capitali-
por boys para se evitar o constran- tamento cínico e mercenário que se zados. Não existe nada de errado
gimento causado por uma presen- desenvolveu no seio de várias orga- nisso, é a sua lógica.
ça infeliz. Negou-se ao homem nizações. Como já afirmava Guerreiro Ra-
demitido não apenas o direito de Em países desenvolvidos, ainda mos, não se pode culpar o leão por
limpar as suas gavetas ou armários, que as demissões não sejam uma ser carnívoro. Não se pode esperar
mas também o de demonstrar a ocorrência rara, costumam ser dis- aquilo que a natureza da coisa nega.
sua humanidade, fosse no adeus cutidas e negociadas com represen- É preciso ter em mente que as orga-
aos colegas de tantos anos, fosse tantes de categorias e sindicatos. nizações são por natureza animais
na face que exprimia uma dor. Em Geralmente são vistas outras possi- carnívoros, que se alimentam diaria-
boa medida uma dor que não es- bilidades, como remanejamentos, mente das disputas com a concor-
tava relacionada simplesmente requalificação, incentivos às demis- rência e das forças que são capazes
com a perda do emprego, mas por sões voluntárias ou antecipação de de gerar internamente. O gozo que
ser tratado como um lixo, como aposentadorias para os profissionais importa é o seu, e se para isso pre-
um nada, como um ninguém.2 com muitos anos de serviço. Mas no cisarem lançar mão de algumas ama-
Brasil não é bem isso que acontece, bilidades, elas o farão sem pudor.
Ora, não se questiona aqui o fato seja porque os sindicatos realmente Portanto, a única forma de se con-
de as organizações demitirem. De- são mais frágeis, seja porque o po- seguir um comportamento organi-
missões, assim como admissões, são der de as empresas legislarem inter- zacional respeitoso é demonstrar
fatos corriqueiros da vida organiza- namente é muito maior e os exces- que o respeito não precisa ser exer-
cional. É bem verdade que houve sos são raramente castigados. De cido por mérito nem por qualidades
uma mudança na natureza dos pro- qualquer forma, é inconcebível morais. Mas porque o desrespeito
cessos, pois antes as demissões eram ocorrerem demissões de surpresa e atenta contra os seus objetivos, afas-
no singular e agora são no plural, sem discussão com os afetados e ta o comprometimento necessário
como já analisou Miguel Caldas.3 É seus representantes. De novo repi- das forças internas, gera desmotiva-
senso comum que hoje o mundo dos to: não estou analisando as razões ção e ressentimentos, desconstrói a
empregos passa por uma grande re- pelas quais as demissões possam ser firmeza de propósitos, desobriga o

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outro de cumprir a sua parte. É tes. Ele sabe que, ao primeiro desli- vo, ninguém está isento do espec-
mostrar também que, é óbvio, se ze, perderá clientes e, portanto, per- tro do legalista maldoso, ou seja, de
todos numa empresa esperam ser derá mais dinheiro do que poderia alguém que, mesmo respeitando a
traídos ou tratados com desprezo, obter com tal deslize. Ora, então é lei, possa cometer grandes desati-
não existe razão para se crer no te- melhor ser honesto, mas essa hones- nos. Essa ordem também é incapaz
cido organizacional como uma ma- tidade é exercida pelo interesse e de controlar a si própria, e, assim, é
lha protetora que merece cuidado e não pelo dever de ser honesto. Se a necessário que o controle venha do
dedicação. Será a corrida de quem ética na empresa é uma fonte de lu- exterior.
trai primeiro. cro ou uma forma de evitar perdas, A ordem moral diz respeito à ver-
André Comte-Sponville pode nos ela é do signo da gestão e do marke- dade, à liberdade, ao humanismo, à
esclarecer alguns pontos quando afir- ting, e não da moral ou da ética; ela honestidade, ao dever. Existem coi-
ma a necessidade de distinguir as or- é diluível e instrumental. sas que a lei autoriza, mas que de-
dens econômico-tecnocientífica, ju- Voltemos à distinção das ordens vemos nos proibir; outras que a lei
rídico-política, moral e ética.4 Ele as- citadas acima. A ordem tecnocien- não nos impõe, mas que cabe a nós
sume que o retorno da discussão mo- tífica tem a ver com o campo de nos impor. A consciência de um
ral está na moda, apesar de não ser pertinência dos problemas e das homem honesto é mais exigente que
uma moda. Durante a guerra fria, o questões, bem como os limites den- o legislador, e o indivíduo têm mais
capitalismo podia se sentir justifica- tro dos quais um dado saber é ca- deveres que o cidadão. Se uma lei
do do ponto de vista moral por sua paz de dar resposta. O autor par- racista, por exemplo, não contraria
oposição ao comunismo. Agora ele ticipou de um colóquio em que vá- a Constituição de um país, ainda
precisa encontrar outras justificati- rios economistas discutiam o preço assim, do ponto de vista moral, ela
vas, pois vive sem adversários e re- do cacau e um deles disse: “Já fazer é indefensável. Essa ordem é inter-
presenta um quase-monopólio ideo- algum tempo que o preço do cacau namente estruturada pela oposição
lógico. Mas as sociedades têm hor- está além do que a decência pode do bem e do mal, do dever e da proi-
ror ao vazio, e por isso precisam tolerar”. A sua resposta foi: “Enten- bição. Ela se impõe por si mesma,
encontrar justificativas. Assim, a atual do o que o senhor quer dizer e con- independentemente de sanção ou de
discussão moral vem preencher essa cordo com isso, mas a decência não recompensas externas. É o conjun-
lacuna. No entanto, a questão mo- é uma noção econômica”. Ora, a to que se impõe incondicionalmen-
ral é mais o discurso do que o com- economia tem competência para dar te por uma dada consciência, mas
portamento das empresas, pois é outras respostas, não, porém, para existe o risco do moralismo. A dife-
uma ética que melhora o clima in- definir o que é decência, por exem- rença está em que a moral se ocupa
terno, melhora a imagem, melhora plo. Essa ordem é da definição do do dever e o moralismo, do dever
o desempenho, ou seja, uma ética possível e do impossível, do viável dos outros. Dessa forma, é preciso
que faz vender. O autor se diz alta- e do inviável, do passível de execu- que essa ordem seja complementada
mente perplexo, pois, como filóso- ção ou não com os recursos de que pela ética, que é usada quase que
fo, é primeira vez que vê uma virtu- se dispõe. A tendência é o saber ca- alternadamente com a moral.
de ser fonte de lucro, uma virtude minhar do possível ao impossível, e A ordem ética pertence à ordem
que faz ganhar dinheiro. Isso não ela não tem como se limitar inter- do amor. Para o autor, a distinção é
significa que não se possa ganhar di- namente. Portanto, é necessário que simples: moral é o que se faz pelo
nheiro honestamente ou que o de- o controle venha do exterior. dever; ética é o que se faz pelo amor,
ver e o interesse não possam coin- A ordem jurídico-política trata e é estruturada pela oposição da ale-
cidir em determinadas situações. concretamente da lei e do Estado, gria à tristeza. Ela compreende o
Porém, se uma escolha é feita por discorre sobre a oposição entre o amor à verdade, à honestidade, à hu-
dever ou por interesse, tem sentidos legal e o ilegal, e de quem o autori- manidade ou ao próximo. É o amor
diferentes, pois o valor moral con- za. Mas a lei, por exemplo, não proí- que pode intervir nas ordens prece-
siste fundamentalmente numa esco- be a mentira, nem o egoísmo, nem dentes sem as abolir, como, por
lha desinteressada. Para ilustrar essa o desprezo, nem o ódio. Ora, mes- exemplo, o amor à verdade, ao tra-
afirmação, Kant nos dá como exem- mo que se tenha claro o que é legal balho bem-feito e à justiça.
plo o caso do comerciante que é e quem aplica a lei, tanto do ponto Comte-Sponville afirma ainda
honesto para manter os seus clien- de vista individual como do coleti- que as ciências não têm moral, tam-

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pouco as técnicas. Em lógica não numa empresa, bem sabe que o foi de empresa. O que existe é ética de
existe moral: na matemática, 2 mais porque existia o interesse profissio- pessoas, e são elas que podem alte-
2 é sempre igual a 4, e não cabe se nal, e por isso não deve nenhuma rar o comportamento chamado or-
isso é ou não moral. O mesmo racio- gratidão ao seu chefe. Da mesma ganizacional. É claro que o compor-
cínio vale para as demais ciências forma, quando alguém aceita um tamento não é um mero decalque do
quanto à sua essência: mesmo em emprego, faz isso por interesse, e o individual, mas uma gestão exerci-
economia, quando se maximiza o chefe não lhe deve nenhuma grati- da por pessoas que valorizam um
bem-estar como comportamento ra- dão. Nesse sentido, a moral não comportamento mais humano, mais
cional, não se trata de uma aborda- tem nada a ver com essas questões. responsável e mais honesto e sau-
gem moral, pois se trata de interes- No entanto, a moral está, sim, re- dável. Tal comportamento tenderá
se e não de dever, ainda que o racio- lacionada às demissões perversas e a produzir decisões em que os as-
nal nem sempre seja razoável nem ao tratamento desumano praticado pectos éticos serão considerados
virtuoso. Por exemplo, um assassi- por algumas organizações durante relevantes. Moral e ética são esco-
no pode ter um comportamento per- a demissão. lhas que não negociam com cir-
feitamente racional, e não será me- Numa sociedade que se diz cada cunstâncias. Infelizmente, não cos-
nos culpado por isso. O que o autor vez mais democrática e transparen- tumam ser critérios para a escolha
ressalta é que a ordem econômico- te, é importante que as organizações de chefes.
tecnocientífica não é jamais moral, e instituições que lhe dão corpo sai- Também acontece que, na ânsia
nem imoral. Isso não impede que bam que o social exerce sobre elas por resultados rápidos, determina-
fatores psicológicos e sociológicos certo controle, e que lhe será exigi- dos perfis gerenciais parecem ser
intervenham na economia, como a do um comportamento que respeite mais apropriados que outros. Nessa
necessidade de confiança do merca- o ser humano individual e coletivo. decisão, em que a rapidez valida a
do, por exemplo, mas essa confian- A maior parte das organizações de- escolha dos dirigentes, não raro se
ça é uma evidência econômica e não clara em voz alta que respeita a dig- fecham os olhos à ausência de ou-
moral: o mercado pune quem o trai. nidade humana, e é bom para elas tros atributos que possam sacrificar
Não é a moral que determina os pre- que isso seja verdadeiro. Mas quan- resultados de longo prazo. Políticas
ços, é a oferta e a procura; não é a do elas dão provas de degradar em predatórias de recursos humanos,
virtude que cria o valor, é o traba- ações o que aplaudem em palavras, desmandos e abusos de poder pare-
lho; não é o dever que comanda a é preciso denunciá-las dentro de sua cem ser legitimados em nome dos
economia, é o mercado. Comte- própria lógica. Fala-se muito em resultados rápidos.
Sponville é categórico: o capitalis- responsabilidade social, em condu- As empresas não são apenas lu-
mo não é moral nem imoral, é ape- tas responsáveis, em virtudes orga- gares de trabalho. São também es-
nas amoral. Se quisermos moral na nizacionais. No entanto, nunca na paços em que as pessoas desenvol-
sociedade capitalista, ela não pode- história das organizações se têm vis- vem laços fortes de amizade, cons-
rá vir da economia, não podemos to tantas denúncias de corrupção, troem expectativas de futuro, ade-
contar com o mercado para ser mo- escândalos, sabotagens, espiona- rem a um imaginário que lhes fala
ral em nosso lugar. gens, mau comportamento organi- de um projeto comum, ancoram
Voltemos às demissões. Não po- zacional, assédio moral, humilha- uma parte de sua identidade social,
demos pedir às empresas ou orga- ções no trabalho e expressões de enfim, um sistema que ultrapassa a
nizações que não demitam porque sadismo.5 sua finalidade econômica. A demis-
isso não é moral. Elas têm objetivos Trata-se de um paradoxo: quan- são é o ritual que degrada todas es-
para atingir, e as demissões podem to mais se escreve sobre ética e res- sas vinculações. Ela já é por si mes-
ser os meios de atingir esses objeti- ponsabilidade, menos parece que ela ma uma essência cruel para quem
vos, sendo, portanto, contra a sua é praticada. Em boa medida, perce- está sendo desligado. Não existe
natureza recusar as saídas que lhes bemos que o que muitos chamam nada, além de perversidade e sadis-
permitam atingir o alvo. Também correntemente de ética é mais a preo- mo, que justifique que um chefe ou
não é ilegal demitir alguém, desde cupação com o comportamento uma empresa humilhe alguém quan-
que se cumpra o estabelecido em lei, desviante, que pode ser alvo do in- do o demite no final do expediente.
seja com relação a prazos ou a di- teresse da mídia e sujar-lhes a repu- Tomam-lhe o crachá imediatamen-
reitos. Quando alguém é admitido tação. Não existe moral nem ética te, limpando seu nome de todos os

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computadores como se esse recente tem tocados por essa indignidade, NOTAS
ex-colaborador fosse apenas um ar- cuja impotência em dar uma respos-
quivo “deletável” na vida, impedin- ta gera o silêncio com jeito de cum- 1
Veja em FREITAS, M. E. O day-after das
do-o de se despedir de seus colegas plicidade. Nenhum discurso pode reestruturações: as irracionalidades e a
coisificação do humano. RAE Light, v. 6, n.
de longa data. Isso é uma forma de apagar o estrago feito por ações
1, p. 5-7, 1999.
negação dessa pessoa como pessoa; como essas. O que fica é uma má-
é a negação da biografia desse su- goa duradoura para quem foi e para 2
Ibidem, p. 6.
jeito, uma tentativa de apagar o seu quem ficou.
passado e suas vinculações, tratan- Costumo dizer que as organiza- 3
Veja em CALDAS, M. P. Demissões. São Pau-
do-o como uma coisa que não tem ções não são clubes, nem de anjos lo: Atlas, 2000.
sentimentos nem humanidade. Tal nem de suicidas. Contudo, sempre
comportamento, por parte de certas podemos encontrar uns anjos caídos 4
Veja em COMTE-SPONVILLE, A. Le
empresas, é abominável e deve ser por aí. Esses, além de maldosos, capitalisme est-il moral? Paris: Albin Michel,
objeto de todas as reprovações. costumam também ser suicidas, e 2004. Há tradução para o português: O capi-
talismo é moral? São Paulo: Martins Fontes,
Quando isso ocorre, é a organização um perigo quando têm um pouqui- 2005.
como um todo que se degrada aos nho de poder nas mãos. Uma orga-
olhos dos que ficam, envergonhan- nização que não se abstém de ali- 5
Veja em FREITAS, M. E. Existe uma saúde
do a todos os que dela fazem parte. mentar seus anjos caídos, mais moral nas organizações? Revista Organização
Joga lama em todos os que se sen- cedo ou tarde cairá junto com eles. e Sociedade (O&S), n. 2, 2005.

Artigo recebido em 21.07.2005. Aprovado em 17.11.2005.

Maria Ester de Freitas


Professora titular da FGV-EAESP. Doutora em Administração de Empresas pela
FGV-EAESP com pós-doutorado em Administração Intercultural pela HEC-França.
Interesses de pesquisa nas áreas de teoria e análise das organizações, cultura e
imaginário organizacional, recursos humanos e administração intercultural.
E-mail: mfreitas@fgvsp.br
Endereço: Av. 9 de Julho, 2029, Bela Vista, São Paulo – SP, 01313-902.

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