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TEMAS LIVRES FREE THEMES


A categoria racionalidade médica
e uma nova epistemologia em saúde

The medical rationale category and a new epistemology in health

Marilene Cabral do Nascimento 1


Nelson Filice de Barros 2
Maria Inês Nogueira 1
Madel Therezinha Luz 1

Abstract This article is an analytical report on Resumo O artigo é um relato analítico da traje-
the 20-year trajectory of the ‘medical rationale’ tória de 20 anos da categoria racionalidade médi-
category that emerged in the early 1990s in the ca, que emergiu no Campo da Saúde Coletiva,
area of Social and Human Sciences in Health in área das Ciências Sociais e Humanas em Saúde,
the field of Public Health. Its objective was to study no início da década de 1990, com o objetivo de
complex and therapeutic medical systems and tra- estudar sistemas médicos complexos e terapêuti-
ditional, complementary and alternative medi- cas tradicionais, complementares e alternativas.
cines. Based on a critical review of the literature, Com base em revisão crítica da literatura, apre-
it presents some aspects of the cultural, political, sentam-se aspectos do contexto cultural, político-
institutional and social context of its emergence, institucional e social de seu surgimento, como
as well as its main contributions and developments também suas principais contribuições e desdobra-
on a theoretical level and on social policies and mentos nos planos teórico e das políticas e práti-
practices in health. The southern epistemology cas sociais em saúde. Utiliza-se o conceito de epis-
concept of Boaventura de Sousa Santos is used to temologia do sul de Boaventura de Sousa Santos,
reflect upon the contribution of the ‘medical ra- para a reflexão sobre a contribuição da categoria
tionale’ category to the critique of the post-mod- racionalidade médica à crítica da racionalidade
ern scientific rationale and to the creation of a científica pós-moderna e à construção de uma nova
new epistemology in health. epistemologia em saúde.
Key words Traditional medicine, Complementa- Palavras-chave Medicina tradicional, Terapias
1
Programa de Pós-
Graduação em Saúde ry Therapies, Culture, Epistemology, Medical ra- complementares, Cultura, Epistemologia, Racio-
Coletiva, Instituto de Saúde tionales nalidades médicas
da Comunidade,
Universidade Federal
Fluminense. R. Marques do
Paraná 303/3, Centro.
24.033-900 Niterói RJ
Brasil.
mnascimento3@gmail.com
2
Laboratório de Práticas
Alternativas,
Complementares e
Integrativas em Saúde,
Faculdade de Ciências
Médicas, Unicamp.

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Introdução terdição da ideia de bem-estar e prazer pela nor-


malidade medicalizada; o reducionismo biologi-
Este artigo é um relato analítico da trajetória de cista da medicina e suas consequências, como a
20 anos da categoria de análise ‘racionalidade limitação do sofrimento humano a dimensões
médica’ (RM), que emergiu no Campo da Saúde estanques, tecnologicamente especializadas8.
Coletiva, área das Ciências Sociais e Humanas Na esfera institucional, a Conferência das
em Saúde, no início da década de 1990. O texto Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Huma-
apresenta alguns antecedentes, as principais con- no, realizada em Estocolmo em 1972, foi um
tribuições e os desdobramentos desta categoria marco na defesa do “ambiente humano para as
inicialmente definida no Instituto de Medicina atuais e futuras gerações”. A resistência à degra-
Social da Universidade do Estado do Rio de Ja- dação da natureza passou a considerar crescen-
neiro (IMS/UERJ), com o objetivo de estudar sis- temente o meio ambiente em seu sentido amplo
temas médicos complexos e terapêuticas tradici- – natural, social e biológico –, em defesa da qua-
onais e complementares¹. Com base no conceito lidade de vida e da saúde. Vinte anos depois, a
de ‘epistemologia do sul’ de Boaventura de Sousa Conferência das Nações Unidas sobre Meio Am-
Santos2, trazemos uma reflexão sobre a contri- biente e Desenvolvimento, realizada no Rio de
buição da categoria RM à crítica da racionalida- Janeiro (Eco 92), consagrou o conceito de desen-
de científica pós-moderna e à construção de uma volvimento sustentável, considerando seus aspec-
nova epistemologia em saúde. tos econômico, social e ambiental, e propôs a
Agenda 21, um instrumento para repensar o pla-
Antecedentes e contexto de criação nejamento em âmbito global, nacional e local,
tendo como meta um novo paradigma econô-
O contexto que antecedeu a formulação da mico e civilizatório que valorize a preservação e o
categoria RM foi marcado pelo fortalecimento fomento dos ecossistemas do planeta, da vida e
do discurso em favor da preservação e valoriza- da saúde.
ção da natureza. No âmbito internacional, os No campo específico da saúde, a Conferência
movimentos de contracultura de tendência anti- Internacional de Alma-Ata, realizada na antiga
tecnológica, nos EUA e Europa, ao final dos anos União Soviética (URSS) em 1978, afirmou os cui-
60, resistiam à desvalorização do mundo natural dados primários como elemento chave para se
em prol de outro, construído pela ciência e a téc- chegar a um nível aceitável de saúde. Ao defender
nica, e fortaleciam noções e conceitos ligados à a realização de medidas sanitárias e sociais, pre-
ecologia. No caso específico da relação saúde- conizou a legitimação de práticas tradicionais, al-
medicina, tais movimentos deram espaço a uma ternativas ou complementares. O então diretor-
proposta ativa de promoção da saúde (ao invés geral da Organização Mundial de Saúde declarou
do combater doenças, característico da medicina nesta conferência a insuficiência da medicina tec-
científica), e a um conjunto de sistemas terapêu- nológica e especialista para a resolução de proble-
ticos e práticas de medicação e cuidados tenden- mas de saúde de dois terços da humanidade.
tes ao naturismo. O naturismo significava, nesse Em 1986, a I Conferência Internacional sobre
caso, “não apenas a rejeição da medicina especi- Promoção da Saúde realizada em Ottawa, Cana-
alizada e tecnificada, por invasiva e iatrogênica, dá, veio a afirmar que não apenas os fatores bio-
portanto antinatural, mas também a afirmação lógicos, mas também os políticos, econômicos,
da força curativa da natureza e da eficácia das sociais, culturais, de meio ambiente e de conduta
terapêuticas dela provenientes”3. podem intervir a favor ou contra a saúde. Entre
A crítica à farmacologia química como base outros aspectos, a Carta de Ottawa defendeu que
da terapêutica médica, formulada ao longo dos os serviços de saúde adotem “uma postura abran-
anos 70 por autores como Dupuy e Karsenty4, gente, que perceba e respeite as peculiaridades
Illich5, Foucault6 e Clavreul7, complementavam culturais”, e incentivem “a participação e a cola-
o discurso naturista em saúde. Entre outros as- boração de outros setores, outras disciplinas e,
pectos, estes autores destacaram a iatrogenia mais importante, da própria comunidade”.
médica e farmacêutica; a medicalização social No Brasil, foi criado o Sistema Nacional de
como instância de dominação política e controle Meio Ambiente em 1981, onde se defendeu a uti-
dos cidadãos; o deslocamento da saúde como lização racional dos recursos ambientais em con-
participação e possibilidade de atuação na or- dições propícias à saúde e à qualidade de vida. Em
dem social à suportabilidade de uma ordem im- 1986, o relatório final da VIII Conferência Nacio-
posta pela lógica de produção e mercado; a in- nal de Saúde propôs “a introdução de práticas

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alternativas de assistência à saúde no âmbito dos chegam a se realizar de forma acabada, por te-
serviços de saúde, possibilitando ao usuário o di- rem a capacidade de serem modificadas histori-
reito democrático de escolher a terapêutica prefe- camente pela ação dos agentes sociais. Trata-se
rida”. O texto constitucional de criação do Siste- de cinco dimensões básicas, estruturadas em ter-
ma Único de Saúde (SUS), em 1988, não faz refe- mos teóricos, práticos e simbólicos, conforme se
rência direta a práticas tradicionais e complemen- segue:
tares em saúde, mas afirma o “atendimento inte- 1) Morfologia humana (na biomedicina, ana-
gral, com prioridade para as atividades preventi- tomia), que define a estrutura e a forma de orga-
vas” e a participação da comunidade. nização do corpo;
Quanto às práticas sociais, os anos 70 e prin- 2) Dinâmica vital humana (na biomedicina,
cipalmente os 80 trouxeram um aumento da de- fisiologia), que define o movimento da vitalida-
manda por outras formas de bens e serviços de de, seu equilíbrio ou desequilíbrio no corpo, suas
saúde, entre amplos setores das populações ur- origens ou causas;
banas. Ao lado da importação de antigos siste- 3) Doutrina médica que define, em cada siste-
mas médicos orientais, como a medicina ayur- ma, o que é o processo saúde-doença, o que é a
védica e a tradicional chinesa, observou-se a rea- doença ou adoecimento, em suas origens ou cau-
bilitação de terapêuticas populares, como as xa- sas, o que é passível de tratar ou curar (na bio-
mânicas ou as ligadas às religiões afro-indíge- medicina, o que pertence ou não à clínica);
nas. A homeopatia foi retomada como medicina 4) Sistema de diagnose, pelo qual se determina
alternativa. Junto a ela, sob a denominação de se há ou não um processo mórbido, sua nature-
terapias alternativas, tradicionais, holísticas, in- za, fase e evolução provável, origem ou causa,
tegrais, naturais, doces, energéticas ou comple- 5) Sistema terapêutico, pelo qual se determi-
mentares, diversas formas de cuidado conquis- nam as formas de intervenção adequadas a cada
tavam expressão no campo da saúde. Por outro processo mórbido (ou doença) identificado pela
lado, estudos socioantropológicos nacionais diagnose.
abordavam a temática de práticas tradicionais e De acordo com o estudo, pode ser denomi-
complementares principalmente através do en- nada racionalidade médica apenas um sistema
foque da medicina popular e religiosa, praticada médico complexo estruturado segundo estas cin-
por rezadores, curandeiros, especialistas em er- co dimensões, sistematizadas em maior ou me-
vas, parteiras, entre outros, como no livro de nor grau. Ao final da primeira fase da pesquisa,
Maria Andréa Loyola, “Médicos e Curandeiros”, constatou-se a presença de uma sexta dimensão,
publicado em 19849. A formulação da categoria que embasa teórica e simbolicamente as outras
RM em 1992 veio inovar esta abordagem. cinco, denominada cosmologia. Seu caráter ela-
O projeto RM propôs a comparação das borado e sistemático qualifica as raízes filosófi-
medicinas homeopática, tradicional chinesa, cas das racionalidades médicas. A visão cosmo-
ayurvédica e ocidental contemporânea, também lógica da biomedicina está sustentada na física
denominada biomedicina. A hipótese central da clássica newtoniana e na metáfora cartesiana do
primeira fase do projeto é que existe mais de uma corpo como máquina direcionada pela mente.
racionalidade médica, contrariamente ao senso Nas medicinas ayurvédica e tradicional chinesa,
comum ocidental que admite somente a biome- a cosmologia está enraizada em filosofias religi-
dicina como portadora, no sentido científico do osas, como o conhecimento védico na Índia e o
termo. O projeto buscava demonstrar que dis- taoísmo chinês.
tintas racionalidades médicas efetivamente coe- A presença desta sexta dimensão permitiu a
xistem na cultura atual. constatação de limites na racionalidade dos sis-
temas, uma vez que a cosmologia, própria da
Dimensões como signo cultura em que se insere, é enraizada em um uni-
de comensurabilidade verso simbólico de sentidos que incluem ima-
gens, metáforas, representações e mesmo con-
A categoria RM foi construída em perspecti- cepções que são parte de um imaginário social
va tendencial histórica, ao estilo de um tipo ideal irredutível ao plano de proposições teóricas e
segundo o sociólogo Max Weber (1864-1920). empíricas demonstráveis pelo método científi-
Sua aplicação permitiu constatar a presença, com co10. Não obstante, as racionalidades médicas têm
maior ou menor grau de explicitação teórica, de em comum o fato de se constituírem em saberes/
traços ou dimensões fundamentais dos sistemas práticas doutos, cujas concepções e proposições
médicos estudados. Dimensões estas que nunca se pretendem demonstráveis empiricamente, seja

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por meio de tecnologias cientificamente avança- tureza presente na ciência contemporânea. Esta
das, seja por demonstração empírica tradicio- visão tem raízes no período Renascentista e na
nal. Trata-se também de sistemas institucionali- ascensão do discurso da ciência, quando o real
zados, seja na cultura ocidental, seja em sua cul- foi associado ao racional, e o homem se perce-
tura de origem (China e Índia, nos casos estuda- beu como herdeiro de Deus, mais senhor da na-
dos), às vezes nas duas, e ensinados em institui- tureza do que parte dela. Neste discurso, a natu-
ções acadêmicas legitimadas, embora inseridos reza foi separada do sagrado e do humano, pas-
no sistema global capitalista, onde prevalece a sou a ser objeto de conhecimento, sobretudo
hierarquização dos saberes, juntamente com a com o intuito de ser controlada com fins utilitá-
de sistemas econômicos e políticos. rios11. A tecnologia é a ferramenta para a execu-
As seis dimensões apontadas se constituem ção deste projeto. O complexo médico-industri-
condição necessária e suficiente para estarmos al e a concepção de cura enquanto controle de
em presença de uma racionalidade médica, sen- doenças integram e ilustram esta trajetória.
do base de comparação entre as diversas pesqui- O paradigma vitalista, centrado na saúde e na
sadas (Quadro 1). busca de harmonia da pessoa com seu meio am-
É importante destacar que não se pretendeu biente natural e social, valoriza a subjetividade
comparar sistemas culturais diferentes, mas dis- individual, a prevenção e a promoção da saúde e
tintos sistemas médicos implicados numa mes- a integralidade do cuidado12. Mostra-se compa-
ma cultura, a atual, definida como pós-moder- tível a anseios de preservação e sustentabilidade
na, ao mesmo tempo unificada, fragmentária e em seu sentido amplo, nos níveis biológico, social
sincrética. Não houve também uma tomada de e natural; cujas raízes, presentes em antigas tradi-
posição quanto ao valor ético ou epistemológico ções culturais, são ressignificadas e conquistam
dos sistemas médicos definidos como racionali- espaço crescente na atualidade desde os anos 60,
dade médica. Ao considerar apenas sistemas como portadoras do ideário da contracultura.
médicos complexos estruturados segundo as seis A fase inicial do estudo identificou ainda no
dimensões, o estudo excluiu em sua primeira fase interior de cada racionalidade a coexistência, não
o que se denomina práticas terapêuticas integra- sem conflito, de duas formas de apreensão/inter-
tivas e complementares. pretação: a primeira de caráter teórico, regida pela
A primeira fase do estudo, de caráter teórico razão; a segunda, de natureza prática, regida pela
conceitual, destacou também a presença de dois experiência singular, a sensibilidade e a intuição
paradigmas em saúde: o biomédico (ou da nor- proporcionadas pela percepção do terapeuta13. O
malidade-patologia) e o vitalista (ou da vitalida- conhecimento prático faz uso da razão, mas em
de-energia). O paradigma biomédico enfatiza con- função da eficácia a ser obtida em sua interven-
cepções materialistas, mecanicistas, centradas na ção, sendo, portanto, um conhecimento ativo.
doença e no controle do corpo biológico e social, Estas formas de conhecimento são potencialmente
compatíveis com a visão de controle sobre a na- complementares, embora uma delas possa ga-

Quadro 1. Resumo comparativo das Racionalidades Médicas.


Racionalidades Cosmologia Morfologia Dinâmica vital Sistema Sistema terapêutico
médicas (“Fisiologia”) diagnóstico

Medicina Ocidental Traços Traços Aspectos Aspectos Formas principais de


Contemporânea fundamentais básicos principais principais intervenção

Medicina Traços Traços Aspectos Aspectos Formas principais de


Homeopática fundamentais básicos principais principais intervenção

Medicina Traços Traços Aspectos Aspectos Formas principais de


Tradicional Chinesa fundamentais básicos principais principais intervenção

Medicina Traços Traços Aspectos Aspectos Formas principais de


Ayurvédica fundamentais básicos principais principais intervenção

Fonte: dados compilados pelos autores.

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nhar proeminência em sistemas médicos ou con- mecânico, que produz resultado sobre a dor ou
textos sócio-históricos específicos. inflamação. Este tipo de representação, presente
na clientela, seria induzido pela própria racionali-
Compartilhamento de representações dade da biomedicina17. Em todos os casos, entre-
e paradigmas entre profissionais tanto, observou-se que independente do sistema
e usuários dos serviços de saúde médico estudado, as representações não se mos-
tram ‘puras’ do ponto de vista de sentidos e signi-
A segunda fase do projeto RM teve início em ficados atribuídos, isto é, não se restringem ao
1994 e foi desenvolvida junto a profissionais e universo da racionalidade do sistema médico.
usuários de serviços de saúde da rede pública do Tal constatação expressa a presença de hibri-
município do Rio de Janeiro, através de entrevis- dismo e ecletismo, quando não de sincretismo na
ta e observação direta. Analisou representações e simbologia contemporânea18 sobre corpo, saú-
sentidos atribuídos à doença, saúde, tratamen- de, doença, tratamento, cura etc. As representa-
to, cura, corpo, relação corpo-mente, entre ou- ções do corpo como máquina coexistem com as
tras, em médicos ou terapeutas e pacientes de bioenergéticas (o corpo como uma organização
três racionalidades médicas (biomedicina, home- mais ou menos equilibrada de níveis de energia
opatia e medicina tradicional chinesa), bem como circulante) em uma mesma pessoa, cliente ou te-
verificou se estas representações eram partilha- rapeuta. A clientela transita de uma a outra racio-
das por profissionais e clientelas, ou não. A me- nalidade médica de acordo com a variação de seu
dicina ayurvédica não pode ser acompanhada adoecimento e dos sentidos que a ele atribui, en-
porque não havia serviços públicos desta racio- quanto os médicos e terapeutas conjugam proce-
nalidade médica no Rio de Janeiro. dimentos terapêuticos ou diagnósticos de mais
A hipótese nuclear do projeto era que a clien- de uma racionalidade em seu agir cotidiano.
tela e os profissionais de um determinado siste-
ma médico tendem a partilhar paradigma e re- Práticas terapêuticas e de saúde
presentações de sua racionalidade, e que este par-
tilhar cultural tende a facilitar as relações médi- A terceira fase do projeto RM, iniciada em
co-paciente, ou terapeuta-paciente, facilitando 1997, centrada nas práticas terapêuticas, consta-
assim o processo terapêutico. tou a diferença existente entre racionalidades
Observou-se que o compartilhamento de re- médicas e práticas terapêuticas. Estas, embora
presentações e paradigmas era claro quando se possam ser elementos de uma dimensão de uma
tratava da homeopatia – identidade de represen- racionalidade médica específica, são frequente-
tações corpo-mente como totalidade indissociá- mente utilizadas de forma isolada, deslocadas de
vel, de equilíbrio como sinônimo de saúde, de seu contexto de significados para outro, obede-
energia como fonte de vitalidade, e de cura como cendo mais a uma lógica empírica de eficácia no
um processo subjetivo de harmonização 14,15. estilo da biomedicina, que a uma coerência teóri-
Quando se tratava da biomedicina, o comparti- ca dos sistemas. Propiciam assim o hibridismo e
lhamento era parcial, com identificação em rela- o sincretismo das práticas no cuidado à saúde.
ção à representação do corpo como máquina No Brasil, o Ministério da Saúde optou pela
composta de ‘peças’ ou partes articuladas, do ado- terminologia PIC (práticas integrativas e comple-
ecimento como incapacidade de trabalhar ou mentares), que engloba tanto as racionalidades
mover-se, e de cura como retorno à normalidade médicas vitalistas quanto as práticas terapêuticas
sintomática e à vida ativa16. A valorização de aspec- ditas integrativas e complementares em saúde. Tais
tos subjetivos relacionados ao processo de adoeci- práticas estão cada vez mais ao alcance de usuári-
mento, entretanto, embora frequente em repre- os dos serviços públicos, em função do Sistema
sentações da clientela, não encontravam eco cor- Único de Saúde (SUS) e, mais recentemente, da
respondente nos profissionais da biomedicina. Política Nacional de Práticas Integrativas e Com-
Na medicina tradicional chinesa (MTC), o plementares (PNPIC), da qual trataremos adian-
compartilhamento de representações se mostrou te. Além das já tradicionais homeopatia, acupun-
menos presente, provavelmente devido ao lugar tura e fitoterapia, há um aumento gradual na pre-
de auxiliar terapêutico que esse sistema ocupava sença de diferentes práticas de abordagem corpo-
em relação à biomedicina. As representações dos ral ou psico-corporal, tais como tai chi chuan,
terapeutas, os que eram formados na visão holis- lian gong, lian kun, chi gong, do-in, tui-na, ioga,
ta da MTC, diferiam das de sua clientela, que ten- reiki, meditação, terapia comunitária, biodança,
dia a ver na acupuntura um procedimento quase osteopatia, termalismo/crenoterapia19,20.

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Estas práticas terapêuticas estão basicamente ca e reverencia valores de vigor, beleza e juventu-
associadas à intervenção em processos de adoeci- de como sinônimos de vitalidade, portanto saú-
mento ou mal-estar de indivíduos e grupos, de de. É frequentemente orientado por concepções
caráter ‘objetivo’ (patologias identificáveis pela bi- centrais do individualismo atual – o uso do cor-
omedicina), como também situações de estresse e po como forma de obtenção de status social, o
sofrimento psíquico. Algumas utilizam as artes consumismo como valor de prestígio e diferen-
como parte constitutiva de seus procedimentos: ciação social e o sucesso como valor fim para a
música, teatro, artes plásticas, dança. Preenchem vida; desta perspectiva expressa o triunfo de va-
lacunas do sistema biomédico quanto à resoluti- lores do capitalismo entre jovens da classe média
vidade terapêutica de seus serviços; ao lado disto, das grandes metrópoles, seus principais prati-
sustentam sentidos, significados e valores sociais cantes22. Mas à medida que se avança na faixa
diante do sofrimento, do adoecimento, como etária, observa-se uma maior diversificação de
também do tratamento e da cura de doenças, dis- práticas, que contemplam, além das menciona-
tintos dos dominantes. Estes valores tendem a das acima, o alongamento, a ioga, o pilates, o tai
favorecer a autonomia das pessoas na busca de chi chuan, a dança de salão, entre outras, fre-
uma vida mais harmoniosa, isto é, equilibrada quentemente adotadas por aconselhamento mé-
mental e fisicamente, menos competitiva ou agres- dico, seja por causa de doenças crônicas (hiper-
siva, e mais solidária no plano familiar e social. tensão, diabetes, artrites, osteoporose, obesida-
As Práticas Integrativas e Complementares de etc.), seja por problemas emocionais (estres-
(PIC) expressam, assim, a complexificação do se, depressão, baixa autoestima, isolamento so-
campo da saúde acompanhada de uma multipli- cial etc.). Na faixa etária dos 40 anos em diante,
cação de sujeitos implicados nas práticas tera- os praticantes estão buscando cada vez mais con-
pêuticas, e integram o processo de medicalização servar ou recuperar a saúde, o que inclui os valo-
da saúde como a gestão social do sofrimento e res de conservação da juventude e beleza e tam-
do adoecer. É importante ressaltar, entretanto, bém a busca de bem-estar.
que de acordo com o referencial teórico utilizado É possível afirmar, a partir das entrevistas e
neste artigo, as PIC não são racionalidades mé- observações realizadas na terceira fase do proje-
dicas. A utilização da categoria RM em diferentes to, que há uma diversidade de sentidos, significa-
núcleos de pesquisa, nas diversas regiões do país, dos e valores associados à multiplicidade de prá-
tem contribuído para expandir a reflexão desta ticas e praticantes atuais em saúde. Alguns estão
temática. Não obstante, tem-se observado algu- nitidamente associados à cultura capitalista hege-
mas apropriações ou usos inadequados, que le- mônica e seus valores, como o culto individualis-
vam a interpretações e análises equivocadas, so- ta à beleza corpórea, ao consumo de bens materi-
bretudo quando se aplica a categoria na pesqui- ais como forma de diferenciação, à competição
sa de práticas integrativas e complementares, como norma de vida e meio de alcançar o suces-
buscando-se identificar nestas as dimensões que so, considerado como um valor fim. Outros, mais
caracterizam os sistemas médicos complexos. relacionados a maneiras de estar consigo mesmo
Cabe aqui alertar para o uso impróprio desta e com outros, se não solidárias, ao menos cordi-
ferramenta analítica, considerando suas premis- ais e amigáveis. Assim sendo, não apenas valores
sas e possibilidades interpretativas. fisiculturistas ou relativos ao paradigma doença-
Mas além de práticas terapêuticas, foi possí- saúde estão presentes nestas práticas, mas tam-
vel verificar no desenvolvimento da terceira fase bém ligados ao bem estar pessoal, à modificação
do projeto RM, novas práticas de saúde, que va- de estados emocionais, à maior disposição para o
lorizam a tríade beleza-vigor-juventude, toman- trabalho e a convivência familiar e social, e à recu-
do como referencial de saúde a boa forma (fit- peração da alegria de viver13,22.
ness), identificada à beleza das formas, ou o bem- Em síntese, as concepções presentes nas prá-
estar (wellness), geralmente visto como estar equi- ticas de saúde contemporâneas partilham o mo-
librado, ou harmonizado, ou ainda ‘bem consi- delo preventivista (prevenir, amenizar ou ao me-
go mesmo’21. nos deter o desenvolvimento de enfermidades
O fisiculturismo, associado ao fitness, envol- crônicas), o modelo promocionista (manter a
ve a musculação e diversas formas de ginástica saúde, não adoecer), o modelo estético (beleza,
localizada e aeróbica, podendo incluir alguns es- vigor, juventude) e o modelo vitalista (expansão
portes, sobretudo os de risco e aventura, e algu- da vitalidade, equilíbrio, harmonia das dimen-
mas artes marciais ou lutas, como judô e caratê. sões da vida), podendo haver dominância de um
Tem lugar privilegiado nas academias de ginásti- ou mais modelos de acordo com especificidades

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de cada prática, de contextos e praticantes cor- tegrativas desde 2010. Neste estudo, busca-se
respondentes. analisar a presença da homeopatia e da medicina
tradicional chinesa no ensino técnico e universi-
Pesquisa e ensino de racionalidades tário (graduação e pós-graduação) em saúde,
médicas e práticas em saúde assim como identificar inovações no ensino da
biomedicina, e relacioná-las a premissas huma-
A produção científica sobre o tema das racio- nizantes trazidas pela área da Saúde Coletiva, tais
nalidades médicas teve início no final da década como ampliação da clínica, acolhimento, cuida-
de 80 e se consolidou como atividade de pesquisa do, integralidade e promoção da saúde.
coletiva a partir da proposição da categoria RM Entende-se que a formação em distintas racio-
em 1992, tendo um crescimento significativo nos nalidades médicas e práticas de saúde seja fun-
anos seguintes (Tabela 1). damental para o seu avanço sustentável, com
Estes números consideram apenas a produ- segurança, qualidade e eficácia no SUS, de forma
ção dos integrantes do grupo de pesquisa vincu- a garantir o direito da população ao cuidado in-
lado ao Conselho Nacional de Pesquisa e Tecno- tegral e à escolha do modelo terapêutico, de acor-
logia (CNPq) e intitulado atualmente Racionali- do com as concepções de saúde dos cidadãos e
dades em Saúde: Sistemas Médicos e Práticas grupos sociais, como também das possibilida-
Complementares e Integrativas. O grupo conta des terapêuticas envolvidas.
com núcleos de pesquisadores em diferentes ins-
tituições de ensino e pesquisa em Florianópolis Legitimação, institucionalização
(SC), Campinas (SP), Rio de Janeiro (RJ), Niterói e legalização de racionalidades médicas
(RJ) e Juiz de Fora (MG). Contudo, outros pes- e práticas integrativas e complementares
quisadores não diretamente vinculados utilizam em saúde
a categoria RM em seus estudos e publicações ci-
entíficas, inclusive fora do país, como é o caso de A expressiva produção e repercussão de estu-
Portugal, onde alguns artigos resultantes de teses dos acadêmicos com a utilização da categoria RM
de doutorado trabalham com essa categoria23-27. tem informado o debate entre profissionais e
Em sua quarta e atual fase, o projeto RM gestores sobre a legitimação, institucionalização
descreveu a Medicina Antroposófica como raci- e legalização das racionalidades médicas e práti-
onalidade médica28 coexistindo na sociedade atual cas integrativas e complementares em saúde.
no campo da saúde, juntamente com outras ra- Os anos 80 marcaram o começo da trajetória
cionalidades já estudadas na primeira fase do de institucionalização das PIC nos serviços públi-
grupo de pesquisa. cos de saúde no município do Rio de Janeiro, im-
A pesquisa ‘Racionalidades Médicas e For- pulsionada principalmente pela acupuntura, cujo
mação em Saúde’ encontra-se em andamento no processo de legitimação e legalização tem lidera-
Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva do e ao mesmo tempo exemplificado o percurso
(PPGSC) da Universidade Federal Fluminense, das práticas complementares no Brasil. Após uma
que sedia o grupo Racionalidades em Saúde: Sis- bem sucedida estratégia de divulgação e legitima-
temas Médicos e Práticas Complementares e In- ção através da mídia impressa, teve início uma

Tabela 1. Distribuição da produção científica do grupo Racionalidades em Saúde, da década de 1980 até o
ano de 2011. Brasil.
Total
Produção RS Década 80 Década 90 2000-2011 Nº %
Livros 1 10 37 48 10
Capítulos de Livros - 15 107 122 26
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Fontes: 1. Arquivos do grupo “Racionalidades Médicas e Práticas em Saúde”. 2. Informações contidas na Plataforma LATTES do
CNPq a partir do diretório do grupo de pesquisa “Racionalidades em saúde: sistemas médicos e práticas e complementares
integrativas”.

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experiência piloto no Hospital Municipal Paulino rar suficientemente o sistema coerente e integra-
Werneck. Pouco depois, em 1984, a acupuntura do do qual se origina e faz parte a acupuntura,
passou a integrar o atendimento nas chamadas ou seja, um sistema médico que traz a noção de
clínicas da dor, em quatro hospitais do municí- continuidade entre os diferentes planos da exis-
pio. Em 1987, foi criado o Serviço de Medicina tência (psicobiológicos, sociais e espirituais) na
Alternativa na Secretaria Municipal de Saúde, com produção da saúde, da doença e da cura, e no
o objetivo de oferecer à população serviços de acu- qual a pessoa é entendia como integralidade viva,
puntura, homeopatia e fitoterapia29,30. em sua relação com o meio natural e social. Além
Entretanto, duas propostas dividiam os acu- do peso da formação biomédica, características
punturistas: a que pleiteava a exclusividade mé- sociais, econômicas e culturais da demanda e dos
dica para o exercício desta terapêutica, com a profissionais têm contribuído para uma recria-
consequente interdição da prática de profissio- ção da prática da acupuntura no meio médico32,33.
nais não médicos; e a que defendia o seu exercício Neste contexto, a proposição da categoria RM,
também por não médicos, desde que devidamen- baseada na hipótese de existência de diferentes
te habilitados. racionalidades médicas e sua coexistência efetiva
Os médicos que já nessa fase inicial aderiram na cultura atual, passou a informar o debate não
à prática da acupuntura exerceram papel impor- apenas nos centros acadêmicos de pesquisa, mas
tante na introdução desta terapêutica na rede também nas instituições de saúde, seja entre os
pública de saúde, como também na sua recepti- profissionais, seja na produção de normas e, mais
vidade pela população. Muitas vezes frustrados tarde, legislação específica sobre a acupuntura e
com as possibilidades oferecidas em sua prática outras práticas terapêuticas que partilham o pa-
profissional, voltaram-se para o estudo da me- radigma vitalista.
dicina chinesa, encontrando nela instrumentos A categoria RM passou a ser utilizada com
eficazes para o desempenho de suas funções. Po- uma perspectiva política, na afirmação da legiti-
rém, os conselhos de medicina não reconheciam midade de diferentes sistemas médicos comple-
a acupuntura enquanto prática terapêutica, as- xos e na defesa de sua integração nos serviços
sociando-a ao misticismo e ao charlatanismo. públicos como prática multiprofissional, de for-
Este fato contribuiu para que a maioria dos ma integrativa e complementar. A Política Nacio-
acupunturistas fosse composta por profissionais nal de Práticas Integrativas e Complementares,
não médicos, havendo entre eles fisioterapeutas, editada em 2006, adotou a expressão ‘sistemas
enfermeiros e outros profissionais da área da médicos complexos’, associando-a aos estudos
saúde, inclusive de nível médio. Apenas em 1992, do projeto RM através da referência direta a al-
o Conselho Federal de Medicina reconheceu a gumas de suas publicações.
acupuntura como ato médico e três anos mais Através da PNPIC, o Ministério da Saúde
tarde veio a designá-la uma especialidade (Reso- passou a preconizar o desenvolvimento da MTC-
lução 1455/95)31. Nessa ocasião, foi desencadea- Acupuntura “em caráter multiprofissional, para
da uma ampla campanha na mídia em defesa do as categorias profissionais presentes no SUS e
monopólio médico no exercício da acupuntura, em consonância com o nível de atenção”. A PN-
como já acontecia com a homeopatia, reconhe- PIC preconiza também a implementação de mais
cida como especialidade em 1980, e desde então dois sistemas médicos complexos no SUS: a ho-
praticada exclusivamente por esta categoria. meopatia e a medicina antroposófica. Entre as
A polêmica entre médicos e não médicos para práticas terapêuticas, são contempladas as plan-
o exercício da acupuntura persiste até os dias atu- tas medicinais e a fitoterapia, o termalismo so-
ais, com importantes repercussões no processo cial-crenoterapia, como também um conjunto
de institucionalização e legalização desta prática de práticas dentro da abordagem terapêutica es-
e também de outras modalidades terapêuticas pecífica da MTC: lian gong, chi gong, tui-na, tai-
integrativas e complementares. Os anos 90 mar- chi-chuan, plantas medicinais, orientação alimen-
caram um acirramento nesta polêmica. tar e meditação.
O processo de incorporação da acupuntura
pela categoria médica apresenta uma caracterís- Contribuição a uma nova epistemologia
tica básica de complementaridade com a medici- em medicina e saúde
na ocidental contemporânea (ou biomedicina),
configurando-se um estilo eclético nas formas Sistemas médicos tradicionais e modernos
de atuação. Entretanto, observa-se uma tendên- estão alinhados em uma interação, às vezes con-
cia entre os profissionais médicos a não conside- flituosa, às vezes de maneira pacífica e mais ou

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menos integrada. Sua cooperação, mesmo que to. O desafio à hegemonia cultural tem resultado
ocasional, tem contribuído para acelerar a assi- numa abertura à diversidade de saberes, diferen-
milação mútua, de modo híbrido ou sincrético, tes lógicas e formas de pensar, que exigem a pos-
tanto em termos teóricos como empíricos. As sibilidade de diálogo e comunicação entre cultu-
relações de continuidade, ruptura e hibridização ras, quer numa interação com a ciência moderna,
e os processos de negociação entre diferentes sis- quer para além desta, no sentido de recuperar
temas do desenvolvimento cultural são hoje um saberes e práticas de grupos sociais que, por via
dos maiores desafios das ciências sociais no cam- do capitalismo e colonialismo, foram subalterni-
po da saúde. Os conflitos e as formas de coe- zados, marginalizados e desacreditados.
xistência, em uma comunicação multicontextu- De acordo com Meneses37, é necessário, en-
al, multiétnica, migrante, composta de elemen- tretanto, fugir do risco de “reificações funciona-
tos multiculturais, tornam-se um relato recons- listas da tradição (...) como forma de contrapor a
truído incessantemente, de modos diversos, nos racionalidade moderna a outros saberes e experi-
desiguais campos de produção, comunicação e ências considerados tradicionais porque anterio-
apropriação da cultura34. res à modernidade”. Este risco “limita a possibili-
Ao propor a expressão ‘epistemologia do sul’, dade crítica e analítica da estrutura conceitual so-
Boaventura de Sousa Santos2,35,36 afirmou que a bre a qual assentam as concepções ideológicas da
colonização epistêmica persiste e gera profundas modernidade”. O desafio, portanto, é reconfigu-
contradições, com uma divisão radical entre sa- rar sentidos e explicações dominantes e construir
beres que atribui à ciência moderna o monopólio uma nova narrativa teórica, como forma de alar-
universal de distinção entre o verdadeiro e o falso. gar e qualificar a epistemologia do século XXI.
A persistência da dominação epistêmica de ma- Desta perspectiva, a categoria RM pode se apre-
triz colonial, para além do processo das indepen- sentar como uma contribuição da “epistemologia
dências políticas, exige uma revisão crítica de con- do sul” que permite revisitar diferentes saberes e
ceitos hegemonicamente definidos pela racionali- práticas em saúde, de forma a ultrapassar a com-
dade moderna a partir de uma perspectiva e con- preensão hegemônica da racionalidade biológica,
dição de subalternidade. Segundo ele, uma das e afirmar a abertura ao intercâmbio solidário en-
batalhas políticas mais importantes do século XXI tre diferentes sistemas culturais em saúde, no sen-
é travada, sem dúvida, em torno do conhecimen- tido de sua complementaridade.

Colaboradores Referências

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2011; 21(4):1207-1229. Versão final apresentada em 08/08/2012

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