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Humboldt

Por Latino Coelho

O nome de Humboldt é um século. É este nome a própria história da ciência,


durante todo o tempo em que o sábio prussiano serviu com a fatigável
actividade do seu espírito privilegiado a quase toda a ciência humana.
Busca-se em vão nos modernos anais do entendimento um homem que
deixasse padrões mais eloquentes da sua glória em tantas e tão distantes
províncias do saber.
O século XVIII, o século tantas vezes caluniado pelos que dele receberam o
facho com que ainda dissipar as trevas derradeiras, o século XVIII, de que
todos nós mais ou menos descendemos pela nossa genealogia intelectual, não
só foi um grande século pelos espíritos que iluminou e pelos nomes gloriosos
de que enriqueceu a história da humanidade. Foi também fecundo nos génios
que gerou ainda no seu seio, para que na puerícia vissem os últimos lampejos
daquela quadra memorável, e ao espírito de dúvida e investigação, que a
inspirou, ajuntassem a madura reflexão, que caracteriza a nossa idade.
O século XVIII viu morrer os grandes pensadores, a que a posteridade pleiteia
de vários modos a virtude, a generosidade, a independência, a sinceridade, a
fé, e a moral; mas a quem entre a apoteose dos parciais e a excomunhão dos
adversários, é unânime em conceder a glória. Parece que o século se não
queria despedir sem haver assegurado a sua prole intelectual. Quando muitos
dos grandes nomes daquele tempo recebiam no túmulo a consagração da
história, os louros dos que acabavam de expirar enramavam e enfloravam já o
berço, onde o carinho materno embalava as novas glórias da hurranidade.
Quase ao mesmo tempo surgem Napoleão, Byron, Chateaubriand, Humboldt,
Laplace e Cuvier; a vitória, a dúvida, a fé e a ciência. Os novos rebentos da
árvore da civilização vencem em vigor e em formosura aqueles, que nas
mesmas vergônteas se mirraram. Napoleão dá ao génio de Frederico a fortuna
da sua estrela e os brios cavaleirosos da Franga antiga retemperados pela
força juvenil da revolução; Byron dá à ironia de Voltaire a melancolia e o
encanto da musa do norte; Chateaubriand ressuscita e poetiza a piedade
eloquente de Bossuet; . Laplace continua Newton; Cuvier escurece a
memória de Buffon; e Humboldt transpõe o século XVIII, floresce, brilha, irradia,
deslumbra durante mais de meio século ainda, porque era destinado a resumir
e epilogar a ciência de todos, porque era destinado a cerrar o cortejo destes
nomes ilustres, a coligir os tesouros do saber humano, e a entregar as chaves
à época nova que se abre em nossos dias para a ciência e para a humanidade.
Não foi acaso que por tantos anos se dilatasse esta vida, enobrecida por
tamanhas peregrinações, por tão indefessos estudos, por tão ininterruptas
observações, por tantos respeitos, tantos triunfos, tantas glórias.
Desde a infância o incitou o desejo imoderado de lustrar as mais apartadas
regiões.
Vede-o no berço. Foi sábio? Cuidais que haveis de inferir que foi pobre e
humilde sob o tecto da família? Foi grande perante as vaidades humanas?
Pensais que o deveu únicamente à munificência dos que lhe galar-
doaram o talento? Tão acostumados estamos a ver que a pobreza entristece o
natal dos grandes génios, e que não é de ordinário a glória senão o resplendor
que irradia de uma cruz. Humboldt teve também por cúmplice a fortuna. Como
que andou a Providência aparelhando .todos os meios, para que tão singular e
primoroso entendimento não tivesse uma sombra para o enturvar, uma dor
para o enoitecer, uma penúria para o desanimar, uma só ingratidão para o ferir.
Nasceu nobre e opulento. Nobre, para que sem subir estivesse à altura
das protecções. Opulento, para que a humilharão de estender a mão aos
protectores lhe não entibiasse desde a infância este natural e moderado
orgulho, com que o génio mantém intemeratos os foros da sua realeza.
A quantos visitaria no castelo patrimonial, entre as soberbas da sua
condição, o desejo de comprar a glória pelo talento e pelo estudo? Pois a
Humboldt não o encantaram na puerícia os esplendores da corte, as delícias
da vida aristocrática, os sonhos do poder, as fantasias
da ambição, os nadas deslumbrantes com que a fortuna enfeita as
personagens da sua tragicomédia.
Quereis saber qual era a sua predilecta ambição no quieto remanso do
seu castelo de Tegel? Sabeis por que ansiava tanto deixar os afagos maternos,
as afeições domésticas, as perspectivas risonhas da corte, o patrocínio dos
Mecenas, e as promessas, com que a fortuna lhe encarecia as grandezas
mundanas e vulgares?
Era para discorrer viajante pela terra e pelo oceano. Julgais que por
vagar na ociosidade elegante das grandes capitais? Por entrar na frequência
do mundo, por luzir na sociedade os dotes do seu engenho? Não. Sorriam-
lhe as terras mais remotas, mais virgens, mais inóspitas, com tanto que a
natureza aí fosse esplêndida, original, opulenta, admirável.
Quatro homens buscaram as terras do Novo Mundo por instrumento da sua
glória: Colombo, Chateaubriand, Tocqueville e Humboldt. Colombo para ter
glória de aportar aonde ninguém jamais lançara ferro; Chateaubriand para
amaldiçoar a guilhotina desde fundo das florestas, onde a natureza é ciosa da
sua virgindade; Tocqueville para assistir ao regrado crescimento da nascente
democracia. Humboldt buscou-a para completar o navegador, e para ir além do
escritor e do publicista. Colombo descobriu a América, Humboldt estudou-a;
cantou-a Chateaubriand, e Humboldt conheceu-a; louvou-a Tocqueville, e
Humboldt fez mais que todos,; quase de novo para a ciência a descobriu.
E quanto maior não foi a fortuna de Humboldt! Colombo viu apenas as praias
patentes e abertas ao primeiro mareante afortunado. As selvas primitivas de
Chateaubriand, aradas pelo carril de ferro, pululam hoje, de cidades e de
indústrias) A democracia de Tocqueville macula com a servidão e com a luta
das raças antagonistas o idílio democrático do cândido escritor! Só a América
de Humboldt é sempre a mesma. Sempre indisputadas as conquistas do sábio
nas regiões que ele primeiro que todos esclareceu com a luz.do seu talento
indagador.
Poucos homens cursaram mais terras, sulcaram mais oceano do que
Humboldt. Raros alongam mais do que ele a vida neste mundo. Não vos
parece que a Providência lhe alargou o espaço às observações, o tempo aos
pensamentos com algum intento singular Newton viveu por anos dilatados. A
Fontenelle e Voltaire, a derradeira pulsação da vida se lhes confundiu com a
extrema centelha do espírito, ainda fecundo e criador, como nos dias da sua
primavera intelectual.
Mas Newton adivinhou no mesmo ponto do firmamento a lei suprema do
universo. Voltaire e Fontenelle conheceram sempre o mesmo azul dos céus, a
mesma cor das ondas, o mesmo recorte da folhagem, o perfume das mesmas
flores, a copa dos mesmos arvoredos, a crista das mesmas serranias.
Humboldt viveu muito, porque era grande a província que lhe cabia na ciência.
Viajou muito, porque tinha por missão compreender a natureza na sua infinita
variedade, e como que restaurar o molde perdido do universo, a unidade do
grande Todo universal, na mais ela e mais celebrada das suas numerosas
composições, o Cosmos.
É do tempo e do espaço que se compõe o mundo. E como quereis vós que o
pintor se desempenhasse do grande painel, da fidelíssima cópia do universo,
se lhe não acudira a Providência com mão larga, em lhe conceder liberalmente
aquelas duas tintas fundamentais?
Eis aí o segredo com que Humboldt abusou quase do espaço e da duração. Eis
aí por que ele foi por excelência o sábio cosmopolita, aquele que, se tinha a
velha e boa Alemanha por pátria tradicional, havia o globo inteiro por pátria de
adopção. Eis aí por que o haveis de ver já nonagenário quase, na quadra em
que o corpo se inclina para a terra, prosseguir com a energia de um
adolescente os estudos ainda havia pouco delineados.
Quem pronuncia o nome de Humboldt profere logo involuntariamente Cosmos.
É o Cosmos, por assim dizer,
a Bíblia do universo físico, é a mais completa descrição das suas harmonias,
das suas leis, da sua mística unidade. O grande movimento intelectual da
moderna idade se, repartindo as ciências, e atribuindo a cada investigador uma
província distinta do saber, facilitou os descobrimentos, como que esteve
mutilando as feições da natureza e deslustrando na sua fisionomia a
expressão, com que a assinalou o Criador. Nasceu a ciência una e
harmónica, se bem que errada e imperfeita, na cabeça dos grandes
pensadores da antiguidade. No eclipse em que as ciências se escureceram
depois que a sua herança caiu no domínio dos bárbaros, a filosofia natural
perpetuou-se apenas como uma tradição de autoridade. Com o século XVI,
com a nova alvorada da razão, invocou-se de novo o universo como o primeiro
e essencial fundamento do estudo da natureza. Descartes e Bacon venceram
Aristóteles, venerado até ali como o supremo oráculo. Mas a análise exagerou
com a sua influência a divisão indefinida do saber. A natureza, à semelhança
de uma bela estátua, foi como que partilhada entre os seus cultores, que lhe
truncaram aqui e ali as proporções e lhe deixaram perder, perante Deus e a
ciência, a unidade.
Esta admirável ciência moderna, digamos antes esta ciência que no
nosso século em muita parte germinou, cresceu, floriu, frutificou, e ensombrou
com a sua ramada, alastrando ràpidamente, o terreno em que nasceu, devia
achar um talento privilegiado que a ,soubesse com pendiar, resumir, encadear,
e da palheta riquíssima de todos os matizes, opulenta de todas as tintas
naturais, tirasse as cores para debuxar num quadro verdadeiro 0 aspecto
multiforme do universo, iluminado pelo radiante esplendor da unidade e da
harmonia.
O pintor foi Humboldt. O painel é o Cosmos. A antiguidade não sonhou sequer
uma obra assim. A idade moderna não a pudera antes de Humboldt conseguir.
É este livro o resumo eloquente do que sobre o universo se sabia até o meado
do século actual. É ao mesmo tempo uma cópia da natureza, e um tesouro do
saber. Quando os vindouros daqui a muitos séculos quiserem ter a medida do
que foi para a ciência a idade em que vivemos, hão de abrir o livro de
Humboldt, e como nós agora com as obras de Aristóteles recompomos ideal-
mente o génio científico mais completo da antiguidade grega, assim eles
poderão reconstruir a ciência do século actual interrogando as páginas, tantas
vezes eloquentes, animadas, quase inspiradas de estro, com que o ilustre
prussiano traçou as harmonias da criação, e registrou os êxtases em que o
enlevava a piteoresca religião da natureza.

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