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Ano V nº 7/8 (J an./ Dez.

2007) Revista da Faculdade de Educação

O PAPEL DA LUDICIDADE NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM INFANTIL

Darlene Scholze1
Vantoir Roberto Brancher2
Cláudia Terra do Nascimento3

RESUM O: Este trabalho tem como objetivo investigar a importância da ludicidade


no processo de aprendizagem de crianças. Para realizá-lo, elaboramos uma pes-
quisa qualitativa de cunho bibliográfico, buscando entender o que alguns autores
compreendem sobre o jogo, os brinquedos e as brincadeiras para a aprendizagem
e o desenvolvimento infantil. Tentando apontar uma nova perspectiva para a
ludicidade construímos este trabalho, acreditando que, muitas vezes, não é levado
em conta que é na hora das brincadeiras que a criança tem oportunidade de
experimentar situações que ocorrem no seu dia-dia e transformá-las em novos
conhecimentos, através das trocas e re-criações que faz de sua realidade. Este
estudo traz alguns conceitos e concepções importantes que fazem parte da vida da
criança como: ludicidade, infância, educação, pedagogia, brincadeira, brinquedo
e jogos, bem como a importância da presença do lúdico na construção de conheci-
mentos infantis.

PALAVRAS-CHAVE: Infância; Ludicidade; Aprendizagem.

ABSTRACT: This work has as an objective to investigate the importance of ludicity on


children’s learning process. To do that, we elaborated a qualitative research based
on bibliography so that we searched to understand what some authors comprehend
about games, toys and plays to children’s learning process and development. Trying
to point out a new perspective to ludicity, we built this work believing that, many
times, it is not consired that it exactly in the plays time children have the opportunity
of experiencing situations that occur throughout their daily life and change them
into new knowledges, through changes and recreations they do from their own
reality. This study brings some important concepts and conceptions that are part of
children’s life, such as: ludicity, childhood, education, pedagogy, plays, toys and
games, as well as the importance of the ludic presence in the building of children’s
knowledges.

KEYWORDS: Childhood; Ludicity; Learning.

1
Autora da Pesquisa. Professora. E-mail: darlenescholze@ yahoo.com.br
2
Professor M s. em Educação, substituto do Departamento de Fundamentos da
Educação/ U FSM . Orientador da Pesquisa. E-mail: vantobr@ yahoo.com.br
3
Psicopedagoga. Professora M s. substituta do Departamento de Fundamentos da
Educação/ U FSM . Co-Orientadora da Pesquisa clauidia@ claudia.psc.br

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Introdução
Esta pesquisa surgiu do desejo de conhecer o que diferentes
autores pensam e apontam sobre a ludicidade hoje, pois o ser humano
necessita cada vez mais, atingir metas, cumprir horários, o que pode deixá-
lo automatizado. Em função disso, é importante apontar outra perspecti-
va existencial do ser humano: o homo ludens, tese pouco trabalhada na
contemporaneidade. Garcia (2002) vai apontar para a relevância do jogo e
das brincadeiras, enquanto espaço de ressignificação da realidade, bem
como de constituição do sentimento de si. Além disso, destaca a impor-
tância destes na construção subjetiva do ser no mundo.
Diante dessas questões indaga-se: e as nossas crianças? Será que
o nosso modo de viver mecanicamente não torna a educação escola algo
também mecânico? Estamos dando espaço para que a criança desenvolva-
se em todas suas possibilidades e dimensões, e em todos os contextos?
Sobre estas questões, Trindade; Santos (2000, p. 09) trazem a seguinte
reflexão:

[...] a gente olha e não vê, a gente vê, mas não percebe,
a gente percebe, mas não sente, a gente sente, mas não
ama e, se a gente não ama a criança, a vida que ela
representa, as infinitas possibilidades de manifesta-
ção dessa vida que ela traz, a gente não investe nessa
vida, a gente não educa e se a gente não educa no espa-
ço tempo de educar, a gente mata, ou melhor, a gente
não educa para a vida; a gente educa para a morte das
infinitas possibilidade. A gente educa (se é que se pode
dizer assim) para uma morte em vida: a invisibilidade
(TRINDADE; SANTOS, 2000, p. 09).

Vive-se hoje em uma sociedade em que tempo é dinheiro, e


acaba-se submetendo as crianças a uma nova realidade. Assim desta rea-
lidade, está-se educando as crianças à competição, oferecendo-lhes mui-
tas “oportunidades”, acreditando que elas, no futuro, trabalhem em prol
do cumprimento das metas dessa mesma sociedade. O que muitos não
enxergam é que estamos privando-as de sua especificidade infantil: ima-
ginar e brincar.
Na escola, percebemos que as brincadeiras têm tempo e hora,
na medida em que se avança nas séries, ou fases subseqüentes. Nesse
contexto, o espaço de brincadeiras torna-se cada vez menor e, por fim,
acaba. Borba (2007, p. 33) também se pergunta sobre esta questão: “Por
que à medida que avançam os segmentos escolares se reduzem os espa-
ços e tempos do brincar e as crianças vão deixando de ser crianças para
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serem alunos?” E, mais adiante, em seu texto, responde afirmando “[...] a


brincadeira está entre as atividades avaliadas por nós como tempo perdi-
do” (p. 35). Pois, por muito tempo a brincadeira foi vista apenas como
aporte à frivolidade, como oposição ao trabalho.
Nas escolas, priorizam-se os conteúdos e os ensinamentos “séri-
os”, o brincar e a imaginação ficam limitados. E, somente na hora do re-
creio se pode viver aventuras e experimentar situações novas. Após este
período as crianças voltam a ser alunos e retornam aos assuntos conside-
rados importantes. Garcia (2002, p. 76) afirma que, “a relação de oposição
entre a realidade e o brincar deve-se ao fato de que a atividade lúdica
apóia-se, fundamentalmente, no princípio do prazer”. E mais adiante con-
tinua dizendo que é através do jogo, num processo de inter-relação entre
consciente inconsciente, que a criança consegue elaborar a realidade e a
fantasia.
A criança, portanto, usa meios da realidade e insere-a em suas
brincadeiras. Nelas, ela pode experimentar, re-elaborar situações do seu
dia-dia e criar novas realidades. afirma que “O brincar envolve complexos
processos de articulação entre o já dado e o novo, entre experiência, a
memória e a imaginação, entre a realidade e a fantasia” (BORBA, 2007, p.
36). Assim, as crianças buscam em suas brincadeiras descobrir e construir
novas visões de sua realidade.

A ludicidade
O brincar sempre se fez presente na vida das crianças. Através
dele, elas viajam do mundo real para um mundo imaginário onde tudo
pode acontecer. Objetos criam vida, ao mesmo tempo em que desapare-
cem e adquirem novas formas e sentidos; lugares distantes ficam a ‘um
passo’ do alcance e até planetas desconhecidos viram ‘reais’. Pode-se
construir e desconstruir ‘mundos’ e objetos. Nas brincadeiras, pode-se
ser rainha ou bruxa, herói ou bandido, pequeno ou grande, pois elas nos
permitem ir além.
Garcia (2002, p. 56) comenta que “ao brincar, o sujeito ensaia,
treina, aprende, se distrai, sim; mas se constrói: afirma, assimila, reorga-
niza, descobre e inventa suas formas enfrenta os enigmas, os desafios, as
oportunidades e as imposições que a vida lhe apresenta”. As brincadeiras
permitem à criança imaginar e ao interagir nas brincadeiras. Ela, ao mes-
mo tempo em que cria ‘saídas’ para situações reais, assimila regras sociais,
observa o outro e elabora novos conhecimentos.
Brincar, contudo, não é apenas ‘coisa de criança’. A ludicidade faz
parte de toda a vida do homem e não é porque os adultos não brincam que
ela deixa de existir. Brancher (2007) entende o lúdico como atividade ine-
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rente ao ser humano. Nós educadores devemos percebê-lo não apenas


enquanto prática utilitarista, pois o jogo pelo jogo também pode promo-
ver produções de conhecimento. A prática do jogo nos proporciona essa
alegria; alegria que também é saber, saber viver e saber ser. Almeida (1990,
p. 11) enfoca que “ninguém é mais livre neste mundo do que aquele que
consegue viver a alegria na liberdade, a liberdade na alegria e a alegria no
viver”. O jogo exige que o jogador crie estratégias envolvendo seus co-
nhecimentos na busca de soluções para sair-se bem. Ao conseguir resol-
ver os problemas, o jogador assimila novos saberes e um sentimento de
poder vencer os desafios.
As atividades lúdicas, portanto, nos permitem experimentar,
sentir, criar e re-criar mundos e situações. Através dela podemos nos li-
bertar da nossa realidade mecânica e ir muito além deste mundo, trocar
experiências, viver momentos de alegria e liberdade, enfim, aprender
com as situações.

Conceitos e concepções
Demorou muito tempo para que as crianças pudessem ser consi-
deradas como ser histórico e de direitos, bem como sujeitos produtores
de culturas e sendo ‘construídos’ por estas. Também tem que se levar em
conta que existem diferentes processos na construção do que significa
infância4 , que varia de cultura para cultura e de sociedade para sociedade.
A própria palavra infância significa alguém que não possui fala. Segundo
Oliveira; Oliveira (2006, p. 42) “A infância é uma invenção, com isso, não
está garantida em nenhum momento histórico, nem mesmo na
contemporaneidade, com todos os direitos e deveres garantidos em lei
pela sociedade com relação às crianças e jovens. Não basta ser criança
para ter uma infância”.
Uma primeira concepção de infância surge no século XVII, quan-
do os adultos passaram a observar os movimentos de dependência das
crianças pequenas e preocuparam-se com as mesmas enquanto seres de-
pendentes e fracos. É a partir daí que “a infância foi designada como pri-
meira idade de vida: a idade da necessidade e da proteção que perdura
até hoje” (NASCIM ENTO; BRANCHER; OLIVEIRA, 2007, p. 05).
Pode-se dizer, então, que a primeira preocupação com a infância
foi no sentido ligado à disciplina e à difusão da cultura existente, que

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Quando usamos infância, no singular, ou infâncias no plural, queremos dizer que
não acreditamos em uma única concepção de infância. Ela diferencia conforme o
contexto em que a criança está inserida.

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limitava os movimentos infantis ligados ao aprendizado e ao prazer. As


crianças eram vistas como seres irracionais, que não pensavam e, sendo
assim, não eram vistas como seres sociais.
Foi com Rousseau (1995) que a criança passou a ser vista de ma-
neira diferente da concepção então existente. Foi ele quem propôs uma
Educação Infantil sem juizes, sem prisões e sem exercícios. Em 1789, com
a Revolução Francesa, modificou-se a função do Estado, com isso, houve
uma preocupação dos governantes com o bem estar e a educação das
crianças.
Embora indiferente aos ideais democráticos tributários dos prin-
cípios de liberdade, igualdade e fraternidade, promulgadas pela Revolu-
ção Francesa, bem como contrário à necessidade de respeitar os elementos
constitutivos do ser criança, Durkheim (1978) foi quem primeiro buscou
tecer os fios da infância aos fios da escola, com objetivos de “moralizar” e
disciplinar a criança. Segundo Durkheim (1978), a criança além de
questionadora, passa de uma impressão para outra, de um sentimento
para outro, de uma ocupação para outra, com a mais extraordinária rapi-
dez. Seu humor não tem nada de fixo: a cólera nasce e aquieta-se com a
mesma instantaneidade; as lágrimas sucedem-se ao riso, a simpatia ao
ódio, ou inversamente, sem razão objetiva ou sob a influência da circuns-
tância mais tênue. Portanto, educar a criança passa a significar moralizá-la
no sentido de inscrever na subjetividade desta os elementos da
moralidade.
A infância, no século XIX, tornou-se problema social. Porém, isso
não foi motivo para que fossem feitas investigações científicas sobre ela.
Educação e infância, até a década de 60, eram vistas como dois campos
distintos. A educação, entre o final do século XIX e início do século XX,
segundo Ghiraldelli (1988, p.10) é definida como “o fato social pelo qual
uma sociedade transmite o seu patrimônio cultural e suas experiências de
uma geração mais velha para uma mais nova, garantindo sua continuidade
histórica”. Todavia, não há uma única forma de educação, cada grupo soci-
al possui fatores culturais distintos que considera importante para formar
seus cidadãos.
A educação, portanto, é uma forma de transmissão de cultura
entre os povos. Ela também está em todo lugar. A escola não é o único
lugar que propícia construção de conhecimentos, pois a educação aconte-
ce em todo lugar em que existam pessoas convivendo (BRANDÃO, 1981).
Ainda conforme o autor supracitado, a pedagogia, é “[...] (a teoria da edu-
cação) cria situações próprias para o seu exercício, produz métodos, esta-
belece suas regras e tempos, e constitui executores especializados” (1981.
p. 26). A pedagogia, então, trabalha para que a educação seja transmitida.
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Assim, ao mesmo tempo em que se reconheceu a infância, surgi-


ram instituições protetoras para cuidar e formar os mais jovens. Foi a par-
tir da escolarização das crianças e do desenvolvimento de uma pedagogia
para elas que se pode dizer que houve uma construção social da infância.
A construção social da infância se concretiza pelo estabelecimento de
valores morais e expectativas de conduta para ela. Podemos falar de uma
invenção social da infância a partir do século XVIII, em que há uma funda-
ção de um estatuto para essa faixa etária. Com a mudança da concepção da
criança, reconheceu-se aquilo que é específico da infância, nas palavras
de Kramer (2006, p.15):

[...] seu poder de imaginação, a fantasia, a criação, a


brincadeira entendida como experiência de cultura.
Crianças são cidadãs, pessoas detentoras de direitos,
que produzem cultura e são nela produzidas. Esse modo
de ver as crianças favorece entendê-las e também ver o
mundo a partir do seu ponto de vista. A infância, mais
que estágio, é categoria da história: existe uma histó-
ria humana porque o homem tem infância. As crianças
brincam, isso é o que as caracteriza.

Além de produzir cultura, a brincadeira faz com que a criança se


confronte com a cultura. “Na brincadeira, a criança se relaciona com con-
teúdos culturais que ela produz e transforma dos quais ela se apropria e
lhes dá uma significação” (BROUGÈRE, 2004, p.77). Tratando o brincar como
atividade humana criadora, Borba afirma que:

O brincar é uma atividade humana criadora, na qual


imaginação, fantasia e realidade interagem na produ-
ção de novas possibilidades de interpretação, de ex-
pressão e de ação pelas crianças assim como de novas
formas de construir relações sociais com outros sujei-
tos, crianças e adultos. Tal concepção se afasta da
visão predominante da brincadeira com atividade res-
trita à assimilação de códigos e papéis sociais e cultu-
rais, cuja função principal seria facilitar o processo
de socialização da criança e sua integração à socieda-
de. Ultrapassando essa idéia, o autor compreende que,
se por um lado a criança de fato reproduz e representa
o mundo por meio das situações criadas nas ativida-
des de brincadeiras, por outro lado tal reprodução não
se faz passivamente, mas mediante um processo ativo

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de reinterpretarão do mundo, que abre lugar para a


invenção e a produção de novos significados, saberes
e práticas (2007, p.35).

Sendo assim, a criança ao se deparar com situações reais que ela


já experimentou em suas brincadeiras e já produziu novos significados e
saberes poderá aplicar seus novos conhecimentos na prática.
Ao brincar as crianças criam uma nova forma de comunicação
entre elas. Percebemos a partir da obra de Brougère (2004, p. 99) que, “A
brincadeira só é possível se os seres que a ela se dedicam forem capazes
de certo grau de metacomunicação, ou seja, se forem capazes de trocar
sinais que veiculem a mensagem isto é uma brincadeira.” Além da
metacomunicação, a brincadeira exige que sejam formuladas regras a seu
respeito. “Uma regra da brincadeira só tem valor se for aceita por aqueles
que brincam e só vale durante a brincadeira” (BROUGÈRE, 2004, p.101). É
brincando que a criança representa através da imaginação ou da imitação,
novas situações ou situações do seu cotidiano.
O brinquedo apareceu para dar à brincadeira “possibilidades de
ações coerentes com a representação” (BROUGÈRE, 2004, p.15). Pode-se
afirmar que o brinquedo adquire valor simbólico enquanto objeto da brin-
cadeira, que só terá sentido enquanto durar a brincadeira e para quem
estiver participando dela. Uma vassoura só serve para varrer, quando ela
está na mão de uma criança pode ‘transformar-se’ em cavalo, fuzil, ou, até
em uma árvore. É através da imaginação da criança que o objeto passa a
‘ter vida’. A criança, através da brincadeira, transforma o ser inanimado
em ativo.

A criança dispõe de um acervo de significado. Ela deve


interpretá-los: a criança deve conferir significados ao
brinquedo, durante sua brincadeira. Neste sentido, o
brinquedo não condiciona a ação da criança: ele lhe
oferece um suporte determinado, mas que ganhará
novos significados através da brincadeira (BROUGERE,
2004, p.09).

O brinquedo, como objeto, dá à brincadeira uma representação.


Ele traz imagens que a farão dar sentido à brincadeira, traduzindo o real ou
imaginário. “A brincadeira pode ser considerada como uma forma de in-
terpretação dos significados contidos no brinquedo” (BROUGERE, 2004,
p.08). “Os objetos têm uma tal força motivadora inerente, no que diz res-
peito às ações de uma criança muito pequena e determinam tão extensi-
vamente o comportamento da criança” (VIGOTSKY, 1987, p.110). Como por
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exemplo, uma boneca, como representa uma criança, faz com que quem
esteja brincando tenha cuidados específicos que se tem com um bebê,
como: ninar, cuidar, trocar roupas etc.
Kishimoto (2003, p.07) aponta o brinquedo como “objeto, supor-
te de brincadeira, quer seja concreto ou ideológico, concebido ou sim-
plesmente utilizado como tal ou mesmo puramente fortuito.” Diz ele “esta
definição, bastante completa, incorpora não só brinquedos criados pelo
mundo adulto, concebidos especialmente para brincadeiras infantis, como
os que a própria criança produz a partir de qualquer material ou investe de
sentido lúdico.” Então, um qualquer objeto pode servir como brinquedo,
desde que a criança atribua um significado a ele. Esse significado só servi-
rá para o objeto enquanto durar a brincadeira.
Além de objeto representativo, o brinquedo também exerce uma
função social, perante a criança. Essa relação entre criança e objeto o ins-
creve no processo de socialização. E como afirma Brougère (2004), “com o
brinquedo, a criança constrói suas relações com o objeto, relações de pos-
se, de utilização, de abandono, de perda, de desestruturação, que consti-
tuem, na mesma proporção, os esquemas que ela produzirá com outros
objetos na sua vida futura” (BROUGÈRE, 2004, p.64). Então, é através do
brinquedo que a criança experimenta relações sociais que no seu dia-dia
ela viverá.
Dentro deste mundo de brinquedos e brincadeiras, ainda pode-
mos encontrar os jogos que também são representações, momento em
que a criança assimila e transforma sua realidade.

O brinquedo é um objeto infantil e falar em brinquedo


para um adulto torna-se, sempre, um motivo de zomba-
ria, de ligação com a infância. O jogo ao contrário, pode
ser destinado tanto à criança quanto ao adulto: ele não é
restrito a uma faixa etária. Os objetos lúdicos dos adul-
tos são chamados exclusivamente de jogos, definindo-se
assim pela sua função lúdica (BROUGÈRE, 2004, p.13).

Percebemos que a diferenciação de jogo e brinquedo surge a


partir de diferentes concepções culturais. Enquanto a criança brinca, o
adulto joga; o brinquedo torna-se próprio do mundo infantil. A partir dis-
so poderíamos perguntar e inferir se já não estaria na concessão de brincar
a dificuldade enfrentada por muitos professores de trabalhar ludicamente
com seus alunos? Podemos pensar, assim, que talvez até inconsciente-
mente alguns adultos pensassem que brincar com a criança seria sinôni-
mo de infantilidade e/ ou loucura?

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Porém, como afirma Vigotsky (1987, p.108), “poder-se-ia ir mais


além, e propor que não existe brinquedo sem regra. A situação imaginária
de qualquer forma de brinquedo contém regras de comportamento, embo-
ra possa não ser um jogo com regras formais estabelecidas a priori”. E conti-
nua, “os assim chamados jogos puros com regras são, essencialmente, jogos
com situações imaginárias. Da mesma forma que uma situação imaginária
tem que conter regras de comportamento, todo jogo com regras contém
uma situação imaginária” (VIGOTSKY, 1987, p.109). Ao jogar a criança cria
regras, sejam elas reais ou imaginárias, para que o jogo tenha sentido.
O jogo é para a criança a representação e comunicação, abertura
ao imaginário, à fantasia e à criatividade; mas também unificação e
integração da personalidade, fator de interação com os outros. O jogo
possibilita experimentar, criar e reconhecer-se. Contudo, Kishimoto des-
taca que:

[...] embora predomine, na maioria das situações, o


prazer como distintivo do jogo, há casos em que o
desprazer é o elemento que caracteriza a situação
lúdica. Vigotsky é um dos que afirmam que nem sem-
pre o jogo possui essa característica porque em certos
casos há esforço e desprazer na busca do objetivo da
brincadeira. A psicanálise também acrescenta o
desprazer como constitutivo do jogo [...] (2003, p. 04).

Quando a criança se vê forçada a fazer o que não quer, ou quando


se depara com situações desagradáveis para ela, o jogo torna-se algo ruim,
sem nenhum sentido de aprendizagem. Por isso é que, se deve permitir
que a criança crie as regras da brincadeira, mesmo que não sejam os obje-
tivos específicos a ser atingidos. Também deve-se propiciar a experimen-
tação, pois é errando e acertando que a criança tira suas conclusões sobre
como agir. Portanto, o jogo, o brinquedo e as brincadeiras proporcionam
para a criança aprendizagens, que lhes permitem construir as relações
sociais que serão aplicadas na vida real.

A ludicidade e a aprendizagem infantil


Podemos dizer que não existe uma única maneira de aprender e
que não existe uma idade determinada para que se comece a aprender ou
para que se pare de aprender. A aprendizagem é uma mudança relativa-
mente permanente no comportamento que resulta da experiência. Ela
ocorre durante todo o tempo no desenvolvimento normal durante toda a
vida, desde que alguma coisa desperte nosso interesse. Segundo Vigotsky

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(1987, p. 94-95), “[...] o aprendizado das crianças começa muito antes de-
las freqüentarem a escola. [...] quando a criança assimila os nomes de
objetos em seu ambiente, ela está aprendendo”.
Enquanto brinca, a criança aprende e percebe-se que há motiva-
ção e satisfação nesse tipo de aprendizagem, pois ela pode basear sua
‘nova aprendizagem’ em algo que lhes dá prazer e é familiar. Porém, te-
mos que levar em conta que, como afirma Vigotsky (1987, p.105), “o brin-
car nem sempre representa para a criança, uma atividade que lhe dá prazer.
O brincar só trará prazer para criança quando seu resultado for interessan-
te para ela”. Então, se o resultado das brincadeiras for ruim, se a criança
perder essa atividade não terá prazer. De acordo com Vigotsky (1987) a
brincadeira cria uma zona de desenvolvimento proximal, que possibilita-
rá ao individuo cheguar a uma zona real do desenvolvimento.
É através da brincadeira que a criança vai confrontando idéias
sobre sua realidade, apropriando-se da cultura, construindo conhecimen-
tos, bem como, tenta resolver problemas que lhe são propostos pelos que
lhe rodeiam – pessoas e realidade. A brincadeira proporciona para a crian-
ça um aprendizado de relações com o mundo, baseado em sua realidade.
Antunes (2004) afirma que é através do brincar que a criança se apropria
do mundo, o que significa dizer que não existe brincar sem aprender.
Quando brinca a criança aciona vários elementos (sentir, imagi-
nar, falar, experimentar, etc.) estes elementos quando atrelados aos co-
nhecimentos que a criança já possui transformam-se em novas significações
que serão aplicadas no cotidiano da criança. Wajskop cita Vigotsky para
ressaltar a importância da brincadeira na aprendizagem:

[...] para Vigotsky, a aprendizagem configura-se no de-


senvolvimento das funções superiores através da apro-
priação e internalizarão de signos e instrumentos em
um contexto de interação. A aprendizagem humana
pressupõe uma natureza social especifica e um pro-
cesso mediante o qual a crianças acedem à vida inte-
lectual daqueles que a rodeiam. A brincadeira é
partilhada pelas crianças, supondo um sistema de
comunicação e interação da realidade que vai sendo
negociado passo a passo pelos pares à medida que
este se desenrola. Da mesma forma implica uma ativi-
dade consciente e não evasiva, dando a cada gesto
significativo, cada uso de objetos implica a (re) elabo-
ração constante das hipóteses da realidade com as
quais esta confrontando (2001, p. 34).

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A aprendizagem acontece, então, quando a criança experimenta


a realidade e os objetos durante as brincadeiras, quando ela troca expe-
riências brincando com outras crianças. Enfim, é enquanto brinca que ela
cria e re-cria conceitos.
No momento em que cria e recria sua realidade, a criança desen-
volve sua imaginação e sua capacidade de abstração, além de possibilitar
a produção de experiências, tanto em termos de conteúdos escolares quan-
to no desenvolvimento psíquico. Pois, os jogos permitem estimular o es-
tudante a ter atitude de cooperação, responsabilidade, participação,
respeito, iniciativa, tomada de decisão. Enfim, “ajuda o sujeito a tornar-se
um ser autônomo embora socializado” (ASCOLI; BRANCHER, 2006, p.05). O
jogador depara-se com muitas possibilidades de jogadas, ao escolher uma,
ele deverá arcar com as conseqüências dessa escolha, seja ela boa ou
ruim, assim aprenderá. Assim, o brincar pode ser um exercício de autono-
mia e de auto-controle infantil.
A criança precisará analisar as possibilidades rapidamente, cri-
ando estratégia para atingir seus objetivos, bem como encontrar manei-
ras de dificultar as possibilidades positivas de seu oponente. A criança
aprenderá dentro de um quadro imaginário (o jogo) com as trocas de ex-
periências entre seus colegas. Dessa forma, é através das brincadeiras
que o aluno constrói seus conhecimentos com maior facilidade.
Com os jogos, os estudantes também podem adquirir uma visão
mais aprofundada do meio em que vivem, de forma que, o educando
adquira noções de socialização, lealdade, espírito crítico, competitividade
e descubra-se como um ser diferente dos outros. Ou seja, “trabalhamos a
coletividade e a subjetividade concomitantemente” (ASCOLI; BRANCHER,
2006, p.05). A realidade nunca fica fora das brincadeiras. Ela está presente
em cada jogada, pois, quem joga não consegue separar-se de suas experi-
ências para entrar no mundo imaginário do jogo.
Temos que levar em conta que a escola “acolhe crianças cuja
atividade fundamental, do ponto de vista afetivo, social e cognitivo é a
brincadeira de faz-de-conta, marcada pelos acontecimentos e relações
sociais vividas por elas” (WAJSKOP, 2001, p.17). Por isso, os jogos e/ou
brincadeiras devem ser vistos por estas instituições como recursos para
uma aprendizagem diferenciada, significativa e prazerosa. O jogo possui
algumas características essenciais que fazem com que o sujeito que joga
reencontre-se a si mesmo no transcorrer das jogadas. Entre estas caracte-
rísticas estão a liberdade de ação do jogador, os limites de tempo e espa-
ço, a existência de regras. Regras estas, que podem ser seguidas ou
reinventadas pelos jogadores. Conforme Ascoli et al (2006) ao seguir ou
reinventar regras que o aluno constrói sua aprendizagem.
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O jogo e o brincar proporcionam à criança constituição de conhe-


cimentos, no âmbito da cognição, da linguagem e da sociabilidade. Esses
conhecimentos, ao se juntarem com os conhecimentos que a criança já
possui do seu dia-dia, proporcionam para ela pensar o mundo e interpretá-
lo de formas diferentes. Uma aprendizagem significativa que amplia e
afirma o conhecimento sobre o mundo.
Como afirma Kishimoto (2003, p. 22) “qualquer jogo empregado
na escola, desde que respeite a natureza do ato lúdico, apresenta o cará-
ter educativo e pode receber também a denominação de jogo educativo”.
Então, podemos afirmar que os jogos e as brincadeiras são possibilidades
de aprendizagem – dentro e fora da escola. Desde que neles esteja pre-
sente a imaginação, o sentir, o olhar, o criar, o re-criar, o prazer; permitin-
do que a criança interaja com novos e velhos conhecimentos, podendo ser
autônoma em suas decisões.

Algumas considerações finais


Considerando as leituras realizadas, pode-se perceber que a
ludicidade está presente na vida de todos nós, especialmente no desen-
volvimento infantil, já que através dela a realidade pode ser assimilada,
decodificada e recriada, estabelecendo novas formas de entendê-la. Ten-
do em vista os fatos históricos, sabe-se que a infância é uma invenção
moderna e que a partir dela surgiram problemáticas sobre como tratar a
criança. Precisou-se também criar concepções (o jogo, o brinquedo, as
brincadeiras, a educação e a pedagogia) em torno do mundo infantil, para
melhor entender a criança e suas relações com o mundo. M as, com o pas-
sar dos anos, esse mundo de imaginação e brincadeiras deu espaço para
uma rotina de ‘treinamento’, cujo objetivo expresso era a criação de adul-
tos com prestígio.
A educação passou a ser uma forma de exclusão (só tem lugar na
sociedade quem estuda) e as brincadeiras passaram a ter tempo e hora
determinada nas escolas. A criança não tinha mais tempo de ser criança,
pois precisava ‘correr’ para ser um adulto melhor que seu colega.
Atualmente, a educação vem passando novamente por transfor-
mações, no seu modo de ver a criança e de entender as suas
especificidades. As brincadeiras infantis estão voltando a ser vistas como
fatores importantes e indispensáveis para a aprendizagem e o desenvol-
vimento infantil. A ludicidade voltou a ser entendida não apenas como
oposição às coisas sérias, mas como fator de experimentação, troca, sen-
timento, criação, re-criação, momento em que a criança pode viver suas
aventuras e aprender com elas.
Permitamo-nos, adultos e crianças, a viver um pouco mais essa
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magia e trazer que a ludicidade nos proporciona. Transformar realidade


em imaginação, viajar por terras desconhecidas, acreditar que sonhos po-
dem se tornar reais, olhar, brincar, pular, jogar, trocar, sentir, sorrir. Enfim,
sermos mais humanos e menos mecânicos.
Por fim, deixo marcado o questionamento de Kramer (2006, p.16):
“será que é possível trabalhar com crianças sem saber brincar, sem nunca
ter brincado?” E pergunto: Será que nós, professores, sabemos brincar?
Será que motivamos ou podamos nossas crianças quando estabelecemos
momentos adequados para as brincadeiras?
Acredito que precisamos mudar nossa necessidade de ensinar
baseados em livros didáticos, não que eles não sejam importantes, mas
deixá-los de lado a fim de perceber e conhecer quem são nossos alunos, o
que eles pensam e gostam. Proporcionar momentos de trocas, em que
eles nos ensinem algumas coisas como, por exemplo, brincar. Deixar de
lado a idéia de que isso é coisa de criança, arrancar as amarras de uma
sociedade que se baseia no TER e não no SER. Enfim, construir um mundo
melhor para se viver através da educação e da imaginação.

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