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LICENCIATURA EM FILOSOFIA - TC

A CONTRIBUIÇÃO DE SÊNECA SOBRE VIVER, ENVELHECER E MORRER

ANDRÉ SILVA UHRYN


R.A. 1930758

Campo Mourão - PR
2021
ANDRÉ SILVA UHRYN

A CONTRIBUIÇÃO DE SÊNECA SOBRE VIVER, ENVELHECER E MORRER

Trabalho de Conclusão de Curso, como parte


do exigido para obtenção de Licenciatura de
Graduação em Filosofia, apresentado à
Universidade Paulista – UNIP, como requisito
para a obtenção de nota.

Orientador: Cidclei Santos Guimarães

Polo UNIP, Campo Mourão - PR


2021
ANDRÉ SILVA UHRYN

A CONTRIBUIÇÃO DE SÊNECA SOBRE VIVER, ENVELHECER E MORRER

Trabalho de Conclusão de Curso, como parte


do exigido para obtenção de Licenciatura de
Graduação em Filosofia, apresentado à
Universidade Paulista – UNIP
.

Aprovado em:

BANCA EXAMINDORA:

_________________________________/___/___
Profª XXXXXXX Universidade Paulista – UNIP

_________________________________/___/___
Prof XXXXXXXXXX Universidade Paulista - UNIP

_________________________________/___/___
Prof XXXXXXXXXXX Universidade Paulista - UNIP

UNIP
2021
AGRADECIMENTOS

Agradeço a Poder Superior em primeiro lugar,


por ter possibilitado meu retorno aos meus estudos,

Também a Instituição UNIP,


e todos professores e profissionais envolvidos.
DEDICATORIA:

Meu pai, Ihor Uhryn postumamente*,


que de certa forma
sempre foi um incentivador de meus estudos
e deu forças para que continuasse
as pesquisas cansativas e dedicadas,
Dona* Carmem, minha mãe, que sempre me ajudou
nas formas humanitarias possiveis,
Meu irmão a quem me ajudou na elaboração e
Reflexão desse trabalho,
e amigos verdadeiros,
que sempre torceram por mim e apoiaram
e Minha amiga e Namorada SS2,
que viu algo em mim, Não sei o que...
e me fez vivenciar e confrontar* o Estoicismo,
ter novas perspectivas e pontos de vistas
e isso foi muito importante para uma melhor
compreensão com a conclusão desse trabalho.
“Quando empregaste teu tempo contigo mesmo? Quando mantiveste a aparência
imperturbável, o ânimo intrépido? Quantas obras fizeste para ti próprio? Quantos não terão
esbanjado tua vida, sem que percebesses o que estavas perdendo; o quanto de tua vida não
subtraíram sofrimentos desnecessários, tolos contentamentos, ávidas paixões, inúteis
conversações, e quão pouco não te restou do que era teu! Compreendes que morres
prematuramente. Qual é pois o motivo? Vivestes como se fósseis viver para sempre, nunca
vos ocorreu que sois frágeis, não notais quanto tempo já passou;”

“Podemos afirmar que se dedicam a verdadeiros deveres, somente aqueles que


desejam estar cotidianamente na intimidade de Zenão, Pitágoras, Demócrito, Aristóteles,
Teofrasto e os demais mestres de virtude. Nenhum deles deixará de estar à nossa
disposição […] Nenhum destes forçará tua morte, todos te ensinarão a morrer, nenhum
dissipará teus anos, mas te oferecerá os seus. deferência. […] Conseguirás deles tudo o que
quiseres: não será deles a culpa se não tiveres exaurido tudo o que desejas.“

“Não temos exatamente uma vida curta, mas desperdiçamos uma grande parte dela. A
vida, se bem empregada, é suficientemente longa e nos foi dada com muita generosidade
para a realização de importantes tarefas. Ao contrário, desperdiçada no luxo e na
indiferença, se nenhuma obra é concretizada, por fim, se não se respeita nenhum valor, não
realizamos aquilo que deveríamos realizar, sentimos que ela realmente se esvai. Desse
modo, não temos uma vida breve, mas fazemos com que seja assim.”

“Não julgues que alguém viveu muito por causa de suas rugas e cabelos brancos: ele
não viveu muito, apenas existiu por muito tempo”.

“Vemos que chegaste ao fim da vida, contas já cem ou mais anos. Vamos! Faz o
cômputo de tua existência! Calcula quanto deste tempo credor, amante, superior ou cliente,
te subtraiu e quanto ainda as querelas conjugais, as reprimendas aos escravos, as
atarefadas perambulações pela cidade; acrescenta as doenças que nós próprios nos
causamos e também todo o tempo perdido; verás que tens menos anos de vida do que
contas.”

“Assim é o caminho da vida, incessante e muito rápido, que, dormindo ou


acordados, fazemos com um mesmo passo e que, aos ocupados, não é evidente,
exceto quando chegam ao fim”.
Lucius Annaeus Seneca; (Corduba, 4 a.C. — Roma, 65)

Fonte: Google 2021


RESUMO
O objetivo do trabalho foi analisar através de revisões bibliográficas a contribuição
de sêneca sobre viver, envelhecer e morrer. O método de revisão bibliográfico
permite incluir pesquisas experimentais e não experimentais, obtendo a combinação
de dados empíricos e teóricos que podem direcionar à definição de conceitos,
identificação de lacunas nas áreas de estudos, revisão de teorias e análise
metodológica dos estudos sobre um determinado tópico. Este método exige
recursos, conhecimentos e habilidades para o seu desenvolvimento. Esta etapa foi
representada pelo estabelecimento de critérios para inclusão e exclusão de estudos/
amostragem ou busca na literatura. Para a busca dos artigos foram utilizadas as
bases de dados: Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), Literatura Latino-Americana e
do Caribe e Ciências da Saúde (LILACS) e na Medical Literature Analysis and
Retrieval Sistem on-line (MEDLINE) e Scientific Electronic Library Online (SciELO).
Portanto, entende-se que a aproximação da velhice, um corpo marcado pelo
avançar do tempo, que desvia dos padrões ditados socialmente, as perdas e a
associação com a morte, podem provocar um estranhamento do corpo que
envelhece, especialmente em função da lógica social vigente. Esse corpo que não é
aceito, que é negado, sofre os efeitos do mal-estar do sujeito, especialmente da
dificuldade de elaboração dessas perdas. Da mesma maneira, sugere-se que o
mesmo pode acontecer com a morte, pois assim como o envelhecimento, ela
também causa estranhamento e deixa de ser bem aceita nas pautas sociais.

Palavras-chave: Epicteto, Vicissitudes; Vida; Filosofia; Alma.


ABSTRACT

The objective of the work was to analyze, through bibliographical reviews, the
contribution of Seneca on living, aging and dying. The literature review method allows
for the inclusion of experimental and non-experimental research, obtaining a
combination of empirical and theoretical data that can lead to the definition of
concepts, identification of gaps in the areas of study, review of theories and
methodological analysis of studies on a given topic. This method requires resources,
knowledge and skills for its development. This step was represented by the
establishment of criteria for inclusion and exclusion of studies/sampling or literature
search. The following databases were used to search for articles: Virtual Health
Library (VHL), Latin American and Caribbean Literature and Health Sciences
(LILACS) and the Online Medical Literature Analysis and Retrieval System
(MEDLINE) and Scientific Electronic Library Online (SciELO). Therefore, it is
understood that the approach of old age, a body marked by the advance of time,
which deviates from socially dictated standards, losses and association with death,
can cause an estrangement in the aging body, especially due to social logic current.
This body that is not accepted, which is denied, suffers the effects of the subject's
discomfort, especially the difficulty of elaborating these losses. Likewise, it is
suggested that the same can happen with death, as, like aging, it also causes
estrangement and is no longer well accepted in social agendas.

Keywords: Epictetus, Vicissitudes; Life; Philosophy; Soul.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................11
CAPÍTULO 1 - O PROCESSO DE ENVELHECIMENTO...........................................14
CAPÍTULO 2 - A MORTE............................................................................................18
CAPÍTULO 3 - BREVIDADE DA VIDA: OBRAS SÊNECA E SUAS IDEIAS NO
CONTEXTO ATUAL NA ADOAÇÃO DE PRÁTICAS ESTOICAS COMO FILOSOFIA
DE VIDA......................................................................................................................27
3.1. PENSAMENTOS DE SÊNECA........................................................................28
3.2. IMPORTÂNCIA DO LAZER..............................................................................29
3.3. COISAS VALIOSAS E COISAS BOAS............................................................32
CONCLUSÃO..............................................................................................................36
REFERÊNCIAS...........................................................................................................37
INTRODUÇÃO

Em seu ensaio moral, Sobre a brevidade da vida, Sêneca, o filósofo e


dramaturgo estóico, nos oferece um lembrete urgente sobre a não renovabilidade de
nosso recurso mais importante: nosso tempo. É uma leitura obrigatória para quem
deseja viver em todo o seu potencial e é um manifesto sobre como recuperar o
controle de sua vida e vivê-la ao máximo (BEZERRA, 2012).

Em "On the Shortness of Life", Sêneca baseia-se em seus muitos anos de


experiência no serviço público no Império Romano para argumentar que a maioria
das pessoas desperdiça suas vidas e que mesmo a considerável riqueza e o
reconhecimento que são possíveis em uma carreira de serviço público são eles
próprios apenas formas de vaidade. Sêneca é considerado um dos principais
filósofos estóicos, junto com Marco Aurélio (121–180 DC) e Epicteto (55–135 DC)
(D’ANGELO, 2011).

O estoicismo é um ramo da filosofia cujos adeptos acreditam que a verdadeira


sabedoria, conhecimento e felicidade só podem ser alcançados vivendo uma vida
simples de moderação que evita os prazeres mundanos, riqueza e fama. Em
contraste, grande parte do mundo está perdido nas práticas rebeldes e corruptas da
sociedade. Sêneca critica essas falhas ao longo do ensaio e as usa para ilustrar a
importância de usar o tempo com sabedoria. Os leitores modernos costumam achar
essas críticas mais relevantes no mundo contemporâneo do que quando foram
escritas (HADOT, 2012).

Na verdade, talvez a citação mais famosa de Sêneca venha deste ensaio:


Não é que tenhamos pouco tempo de vida, mas desperdiçamos muito. Sêneca nos
exorta a examinar os problemas que fazem com que a vida pareça passar rápido
demais, como ambição, dedicar todo o nosso tempo aos outros e praticar o vício. Ele
argumenta que realmente vivemos apenas um curto período porque nossas vidas
eram repletas de negócios e estresse (OLIVEIRA, 2011).

Sêneca usa o exemplo de romanos de grande sucesso para demonstrar que


uma grande conquista tem um preço alto: uma vida que passa, cheia de obrigações
e vazia de lazer. Sêneca menciona que Augusto César, considerado um dos
maiores romanos de todos os tempos, sempre desejava em voz alta uma pausa de
seus muitos deveres e ansiava desesperadamente por uma vida de lazer (SÊNECA,
2015).

Augusto passou a vida dirigindo conquistas, mas no final das contas nem
mesmo teve o controle da própria vida, porque não tinha liberdade para usar o
tempo como quisesse. Sêneca queria demonstrar que a grandeza pela qual os
homens se esforçam pode ser uma armadilha horrível, um rio avassalador de
responsabilidades que lava a única vida que temos. Sêneca está fazendo uma
afirmação poderosa - seria melhor viver como escolheu do que governar o mundo
(BEZERRA, 2012).

O grande político, orador e escritor romano, Marcus Cicero, considerava-se


prisioneiro em sua grande e luxuosa casa, simplesmente por causa de suas muitas
obrigações. Ele reclamou da vida que tinha uma vida que muitos outros certamente
invejaram e que certamente tinha potencial para ser agradável. Sêneca critica a
reclamação de Cícero de ser um prisioneiro, alegando que nenhum estóico poderia
ser prisioneiro, já que ele se possui em qualquer circunstância, estando acima de se
desesperar com o próprio destino. Este é um breve retorno à prescrição da filosofia,
especialmente da filosofia estóica, para o problema de uma vida que pode parecer
correr incontrolavelmente enquanto lutamos para fazer nosso trabalho e agradar aos
outros (SÊNECA, 2015).

O objetivo do estudo foi analisar através de revisão bibliográfica a brevidade


da vida, segundo obras Sêneca e suas ideias no contexto atual na adoção de
práticas estoicas como filosofia de vida.

O tipo do estudo é uma revisão bibliográfica, pesquisas do tipo tem o objetivo


primordial à exposição dos atributos de determinado fenômeno ou afirmação entre
suas variáveis. Assim, recomenda-se que apresente características do tipo: analisar
a atmosfera como fonte direta dos dados e o pesquisador como um instrumento
interruptor; não agenciar o uso de artifícios e métodos estatísticos, tendo como
apreensão maior a interpretação de fenômenos e a imputação de resultados, o
método deve ser o foco principal para a abordagem e não o resultado ou o fruto, a
apreciação dos dados deve ser atingida de forma intuitiva e indutivamente através
do pesquisador.

O método de revisão bibliográfica permite incluir pesquisas experimentais e


não experimentais, obtendo a combinação de dados empíricos e teóricos que podem
direcionar à definição de conceitos, identificação de lacunas nas áreas de estudos,
revisão de teorias e análise metodológica dos estudos sobre um determinado tópico.
Este método exige recursos, conhecimentos e habilidades para o seu
desenvolvimento (GIL, 2018).

Considerando a classificação proposta por Gil (2018, p. 5), pode-se afirmar


que “esta proposta é mais bem representada por meio de uma pesquisa do tipo
exploratória, cujo objetivo é possibilitar um maior conhecimento a respeito do
problema, de modo a torná-lo mais claro ou auxiliando na formulação de hipóteses”.
No entendimento do autor, o principal objetivo deste tipo de pesquisa pode ser tanto
o aprimoramento de ideias, quanto a descoberta de intuições, o que o torna uma
opção bastante flexível, gerando, na maioria dos casos, uma pesquisa bibliográfica
ou um estudo de caso. (GIL, 2018).
O desenvolvimento dessa revisão integrativa foi fundamentado conforme as
seis etapas propostas por Gil (2018). São elas: 1. Identificação do tema e
formulação da questão norteadora; 2. Definição dos critérios de inclusão e exclusão;
3. Definição das informações que serão extraídas dos estudos; 4. Avaliação dos
estudos; 5. Interpretação dos resultados; 6. Apresentação da revisão do
conhecimento.
CAPÍTULO 1 - O PROCESSO DE ENVELHECIMENTO

A sociedade contemporânea é caracterizada, sobretudo, por uma crise de


significação e valores e uma procura tortuosa e incansável por soluções imediatas
(DANTAS, 2011). Sabe-se que é, ainda, uma cultura evidentemente acelerada
(BIRMAN, 2012) em que prevalece a lógica do capitalismo, centrada no consumo
(NASCIMENTO, PRÓCHNO & SILVA, 2012).

Tendo em vista o caráter acelerado, competitivo e imediatista, ela passa a


adquirir características como o aumento do relativismo e do individualismo, além de
uma transitoriedade dos valores, fugacidade das experiências e escalada da
violência. Ao mesmo tempo, na “sociedade do espetáculo” (DEBORD, 1997), essa
individualidade necessita incessantemente do olhar do outro para se “manter”. É
nessa cultura contemporânea, em que é preciso, a todo custo, mostrar uma
performance contínua de beleza e felicidade, que não há espaço para a falta e a
incompletude (CAMPOS, 2013).

Entende-se que o sujeito se relaciona com o mundo por meio do seu corpo e
este, por sua vez, faz com que ele se torne refletor da própria cultura. Nas
sociedades ocidentais, o corpo aparece como o bem mais precioso (BIRMAN, 2012).
Nesse sentido, passa a ocupar um lugar privilegiado de contato com o mundo.

Vale dizer que está em destaque, “sob a luz dos holofotes” (DANTAS, 2011,
p. 906), uma vez que: é por meio dele que é possível tornar visível o belo, o bem-
estar e a felicidade, valores altamente cultuados. Assim, a sociedade ocidental
passa a assumir como valores fundamentais padrões associados à juventude,
beleza e saúde, e o culto ao corpo torna-se um meio utilizado para a manutenção de
uma “performance” social ideal. Tendo isso em vista, percebe-se a existência de um
ideal supremo de saúde, segundo o qual o corpo precisa ser ajustado, modificado e
melhorado para que possa se adaptar ao modelo de juventude e felicidade
permanente (DANTAS, 2011).

Nessa direção, os cuidados com o corpo passam a ser praticamente uma


“obrigação”, como rituais que devem ser seguidos a todo custo e que podem gerar
um sentimento de culpa àqueles que não conseguem realizá-los. A publicidade em
geral apregoa que toda imperfeição ou defeito é originário de uma negligência
pessoal, ou seja, todos são capazes de alcançar o padrão de beleza, desde que
haja disciplina, força de vontade e que se sigam as dicas dos experts (DANTAS,
2011).

Em consequência disso, criam-se demandas de consumo e novos mercados


como os de cosméticos e farmacológicos, os alimentos dietéticos, os espaços para
prática de exercícios, os serviços médicos, entre outros, em função do combate das
evidências do passar do tempo e da morte. Assim, os sujeitos são impulsionados a
obterem simulacros de um corpo ideal, que parecem alcançáveis, mas, na verdade,
nunca são completamente atingíveis (MAROUN & VIEIRA, 2008), uma vez que o
corpo encontra-se sempre aquém do ideal perseguido (BIRMAN, 2012).

Entretanto, o corpo, enquanto meio de comunicação com o mundo e lugar


em que as sensações se tornam visíveis, também veicula os sintomas tanto
subjetivos, quanto sociais. Birman (2012) aponta que o corpo, na
contemporaneidade, é a caixa de ressonância privilegiada do mal-estar. Isso porque
se tornou o bem-supremo dos sujeitos, atravessado pelos discursos naturistas e
naturalistas que prometem um ideal supremo de saúde.

É interessante ressaltar que o sujeito acredita que algo sempre pode ser
feito para melhorar sua performance corporal, porém, frente às múltiplas
possibilidades oferecidas para o cuidado do corpo, sente-se constantemente faltoso
e culpado, em posição de dívida. Assim, os sujeitos passam a estar imersos em um
estado de estresse constante, que, por sua vez, é designado como o maior mal-
estar permanente na contemporaneidade por estar como “pano de fundo” de todos
os demais (BIRMAN, 2012).

Além disso, pondera-se que a padronização dos ideais estéticos


desconsidera a subjetividade humana, uma vez que, nesse imperativo de se
adequar a um corpo ideal (MAROUN & VIEIRA, 2008), excluem-se as
particularidades de cada corpo, as singularidades de cada sujeito. Isso, sem dúvida,
acaba repercutindo na relação dos sujeitos com seus próprios corpos.

Dessa forma, Nascimento, Próchno e Silva (2012) destacam que a


contemporaneidade é marcada por um culto exacerbado de um corpo que nunca
esteve tão separado do sujeito como agora. Nesse movimento, o corpo passa a ser
o centro da vida dos sujeitos, mas isso paradoxalmente os desconecta de seus
corpos (DANTAS, 2011): há um corpo superinvestido a fim de alinhar-se a padrões
estéticos e de saúde, mas, ao mesmo tempo, um corpo que deixa de ser próximo,
personalizado e íntimo do sujeito. Entende-se que há um corpo excessivamente
investido que, no entanto, é regido por regras externas – conforme os padrões – e
deixa de ser escutado conforme a sua singularidade. Com isso, considera-se que
um dos principais efeitos desse paradoxo é a desconexão do sujeito com seu corpo,
pois a implicação subjetiva com seu corpo fica fragilizada.

É importante salientar que as diversas regras ditadas sobre os corpos,


propagadas pelas tecnologias da informação alteraram profundamente a relação que
o sujeito estabelece com a vida, com o sofrimento, com a morte e consigo. Uma vez
que o imaginário relativo ao corpo contemporâneo se caracteriza por uma excessiva
preocupação com a saúde, a beleza e a juventude (MAROUN & VIEIRA, 2008), as
mudanças do corpo são combatidas pelas técnicas da medicina, em que se busca
os últimos tratamentos para combater, entre outras demandas, o envelhecimento.
Assim, “medicaliza-se” o corpo na mesma proporção em que não se aceita o seu
próprio processo natural de contínua mudança, esquecendo o seu caráter temporal,
histórico e singular (DANTAS, 2011).

Evidencia-se, por meio disso, uma forte negação do envelhecimento,


especialmente por ele estar ligado às mudanças corporais, que não correspondem
aos ideais de beleza e juventude. Ainda, Concentino e Viana (2011) destacam que
os diversos rituais, vistos em demasia na contemporaneidade, de manutenção da
juventude, são reconfigurações de uma construção mítica da fantasia de
imortalidade e garantia de eternidade. Então, tal movimento de protelar a velhice
parece adiar o confronto com a morte, uma vez em que há uma forte associação
entre envelhecimento e morte, de forma incisiva na sociedade e na cultura.

Dessa maneira, há um grande esforço por parte dos sujeitos para que a
velhice, assim como a morte, apresente-se como uma possibilidade muito distante.
Embora ela seja racionalmente esperada, é reconhecida pelo sujeito com surpresa
ou até com certo espanto. Assim, a sinalização do envelhecimento parece vir do
meio externo, pelo olhar do outro ou por acontecimentos corriqueiros
(CONCENTINO & VIANA, 2011).

Pensa-se que isso gera mais uma evidência dessa desconexão entre o
sujeito e seu corpo. São diversas as perdas que perpassam o envelhecimento. No
que se refere às questões orgânicas, destacam-se possíveis perdas as que os
sujeitos estão suscetíveis no processo de envelhecimento: acuidade visual e
auditiva, o vigor físico, a beleza juvenil – veemente valorizada socialmente –, a
memória, a elasticidade e a potência sexual. Ainda, o status alcançado por meio do
exercício profissional, a convivência com colegas de trabalho e a redução de
proventos (CONCENTINO & VIANA, 2011).

Além disso, verificam-se mudanças que podem ocorrer no âmbito das


relações: alteração de papel e status no círculo familiar, a perda do par amoroso e
de amigos. Dessa maneira, entende-se que a morte está constantemente visível nas
transformações que o envelhecimento impõe ao sujeito. Essas são mudanças que
exigem um trabalho de luto referido ao corpo e suas possibilidades, bem como as
relações e atividades cotidianas que vão se transformando. Esse contexto, assim,
coloca em evidência a condição de desamparo do sujeito (CONCENTINO & VIANA,
2011).

Portanto, entende-se que a aproximação da velhice, um corpo marcado pelo


avançar do tempo, que desvia dos padrões ditados socialmente, as perdas e a
associação com a morte, podem provocar um estranhamento do corpo que
envelhece, especialmente em função da lógica social vigente. Esse corpo que não é
aceito, que é negado, sofre os efeitos do mal-estar do sujeito, especialmente da
dificuldade de elaboração dessas perdas. Da mesma maneira, sugere-se que o
mesmo pode acontecer com a morte, pois assim como o envelhecimento, ela
também causa estranhamento e deixa de ser bem aceita nas pautas sociais.
CAPÍTULO 2 - A MORTE

Encarar a morte, saber lidar com quem está morrendo, aceitar o fato da
nossa própria mortalidade: essas preocupações parecem sempre ter acompanhado
o ser humano, desde os antigos. A dificuldade de enfrentar a finitude humana, aliada
aos crescentes avanços tecnológicos no âmbito das ciências da saúde, que
propiciam tantos e tão variados tipos de intervenções, procedimentos e tratamentos,
resulta em nossos dias numa tendência à prática da obstinação terapêutica, de
modo a evitar ou adiar a morte – nossa grande inimiga – ao máximo.

Não temos aqui a pretensão de adentrar em profundidade um tema vasto e


complexo como a morte, que conjuga aspectos diversos (históricos, antropológicos,
sociais, psicológicos, religiosos) que mereceriam ser analisados em detalhe em
estudos separados. Como exemplos de obras interessantes que abordam diferentes
aspectos relacionados à morte, mencionamos as seguintes: o historiador francês
Philippe ARIÈS aborda a evolução da atitude perante a morte no Ocidente, desde a
Idade Média até os nossos dias, descrevendo costumes e ritos relacionados à morte
em diferentes épocas (ARIÈS, 1989).

Contudo, já é possível perceber, hodiernamente, o início de uma tomada de


consciência e de uma reação tanto por parte de profissionais da área da saúde,
como de outros estudiosos e do público leigo, de que excessos vêm sendo
cometidos no que tange ao fim da vida. Dilemas éticos e jurídicos passam a fazer
parte do dia a dia de médicos e de outros profissionais da saúde, abrindo espaço
para discussões e reflexões acerca dos limites éticos que devem se impor no
tratamento de doentes terminais e que devem pautar a decisão relativa ao modo e
ao momento da morte (ARIÈS, 1989).

No que diz respeito à morte, é possível perceber, na sociedade ocidental, os


sentimentos de angústia e horror que a sua simples menção costuma trazer. A morte
– ao menos a morte de pessoas próximas e o fato da nossa própria mortalidade –
tem sido encarada como um assunto tabu, extremamente desagradável, a ser
evitado (ARIÈS, 1989).
Apesar de a ideia e o comportamento acerca da morte terem adquirido
novos contornos ultimamente, a preocupação com a morte e o morrer não é de
modo algum uma questão da atualidade. Já no mundo antigo encontra-se essa
preocupação e a elaboração de diferentes concepções quanto ao modo de
compreendê-la e quanto às atitudes perante ela, razão pela qual se opta por
mencionar, a título ilustrativo e de forma bastante simplificada, os entendimentos de
alguns filósofos da antiguidade acerca da morte.

Sófocles (1999), intelectual grego contemporâneo de Sócrates, desenvolve


na peça Antígona a ideia de morte digna e honrada, bem como, o sentir-se morto em
vida. Antígona, filha de Édipo, revolta-se sozinha contra decreto de Creonte, rei de
Tebas, que ordena restar sem sepultura, exposto a céu aberto, o cadáver de
Polinice, irmão da heroína. Creonte entende que os homens maus, que se voltaram
contra a cidade, quando mortos não podem receber a honra devida aos justos. Já o
outro irmão morto, Etéocles, que lutou bravamente pela cidade, é considerado digno
de sepultura e dos demais ritos dedicados aos mortos. A pena para o
descumprimento do decreto é a morte por apedrejamento. Antígona está
determinada a enterrar seu irmão e não teme a morte: “Se ao fazê-lo tiver que
morrer, que bela morte será!” (SÓFOCLES, 1999, p.36).

Ela já se sente como morta e, estando morta em vida, deseja servir aos
mortos, sepultando seu irmão de modo a honrá-lo. Creonte é acusado de
desrespeitar os deuses com as mortes que causou: Antígona, presa viva em uma
tumba rochosa, termina por suicidar-se, enforcando-se; Hemon, filho de Creonte e
noivo de Antígona, mata-se ao encontrar morta sua amada; também a esposa de
Creonte dá fim à sua vida ao saber da morte do filho. Infeliz, ele próprio passa a
considerar-se culpado, pedindo que seja levado embora e julgado (SÓFOCLES,
1999).

O Mensageiro reflete sobre a infelicidade que recaiu sobre o rei de Tebas e


sua condição de morto em vida: “Creonte – para mim – vivia vida invejável até bem
pouco (...). Tudo lhe escapa agora. As doçuras da vida, quando alguém as perde,
não posso dizer que vive, tenho-o por morto vivente” (SÓFOCLES, 1999, p. 95).
Em dois diálogos platônicos, Apologia de Sócrates e Fédon, pode-se
encontrar a discussão acerca da morte e da imortalidade humana. No primeiro, que
relata o julgamento de Sócrates, Platão dá voz à sua defesa. Dirigindo-se aos juízes
que o absolveram, Sócrates afirma que morrer pode ser um bem e que, se está
certa a tradição grega que crê na emigração da alma deste mundo para outro, então
ao homem bom mal algum pode ocorrer, pois as boas almas serão bem tratadas
pelos deuses (PLATÃO, 2000).

Em Fédon, o personagem que dá nome ao diálogo recorda uma visita que


fez a Sócrates na prisão, juntamente com Símias e Cebes, no dia em que o filósofo
ingeriu a cicuta. Naquela ocasião, encontrou o amigo Sócrates feliz com seu próprio
comportamento e com as palavras que havia proferido, e imbuído de coragem e
serenidade diante da sua morte iminente.

Fédon relata um debate entre eles, no qual Sócrates afirmar sua crença na
imortalidade da alma e a desnecessidade de temer a morte. Diz não se afligir com
sua morte, pois morrerá tendo a esperança de que há alguma coisa depois daquela
vida, e que os bons serão mais bem tratados que os maus. Morte, para Sócrates,
significa separação da alma e do corpo. O corpo é mortal, mas a alma não: ela
emigra para outro lugar (o Hades), para depois regressar à vida (ARISTÓTELES,
2001).

A crença na imortalidade da alma humana é rejeitada por Aristóteles. A alma


não possui, para o filósofo, um modo de existência que pode se separar da
substância material do corpo; ela não transcende. O homem é corpo animado pela
alma: quando o corpo morre, a alma deixa de animá-lo, e o homem se extingue
(ARISTÓTELES, 2001).

Hoje assiste-se à morte tecnificada: morre-se em hospitais, em meio a


máquinas e especialistas, e não mais, no ambiente familiar, em companhia das
pessoas próximas. Os próprios parentes, muitas vezes, desejam esquivar-se de um
envolvimento com o moribundo, “protegendo-se” de presenciar a morte. Reduzem-
se os ritos familiares quando da proximidade da morte. Entregamos nosso direito de
presidir nossa vida e nossa morte aos técnicos, à medicina, renunciando à reflexão e
à tomada de decisão. Até mesmo o luto medicaliza-se: quem perde um ente querido
deve sedar-se, alienar-se através de ansiolíticos. A dor e o desespero decorrentes
da perda passam a ser vistos como quadros clínicos que necessitam ser tratados
pelos recursos médicos.

Philippe Ariès (1989), descreve costumes e atitudes perante a morte em


diferentes épocas, e traça cenários comparativos entre a morte e o morrer ontem e
hoje. Segundo o historiador, o homem sempre foi o senhor absoluto da sua morte –
o que hoje resta completamente modificado. De um modo geral, ao longo dos
últimos séculos, considerava-se normal que o homem soubesse quando a sua morte
se aproximava. As doenças um pouco mais graves quase sempre eram mortais, o
que fazia com que a morte costumasse “anunciar-se”.

Raramente a morte era súbita, sendo está muito receada: não apenas
porque impedia o arrependimento, mas também porque privava o homem da sua
morte e de presidi-la. Chegado o momento da morte, o moribundo mandava chamar
os filhos, familiares e outras pessoas próximas, para proferir suas últimas palavras,
conselhos e despedidas. Ao doente convinha morrer em um tempo apropriado, nem
tão curto que impossibilitasse a realização dos usos e ritos, nem tão longo que
prolongasse em excesso a cena das despedidas29/30. Hoje, a morte “anunciada”
parece não fazer mais sentido –nem desejamos perceber a morte chegando – e não
mais se reveste de um caráter de solenidade pública – a morte é algo vergonhoso,
acontecimento a ser escamoteado, além do que, tende-se a morrer isolado, distante
do ambiente familiar. As crianças tendem a ser afastadas do doente, por considerar-
se que a morte e a doença são assuntos fortes demais para elas.

O moribundo frequentemente é privado de sua morte, tanto pela sua família


quanto pelos profissionais da saúde, restando alienado do processo decisório acerca
da utilização ou limitação de tratamentos. A duração do processo de morrer também
se altera, podendo este ser prolongado ou abreviado, caso se faça uso excessivo de
tratamentos e aparelhos ou se limite a sua utilização31. Contudo, frente ao horror à
morte e ao desejo de evitá-la a todo custo, a atitude contemporânea perante a morte
tende para a prática do prolongamento excessivo do processo de morrer.

A morte, por sua vez, é encarada como um fracasso e ganha destaque


enquanto evento doloroso, associada, em geral, à agonia, à luta e ao sofrimento.
Instala-se, na contemporaneidade, um afastamento diante da morte, o que resulta
em movimentos como a simplificação dos funerais, uma atitude de quase indiferença
diante da morte e uma impessoalidade frente a vivência do luto (KOVÁCS, 2003).
Além disso, há a coexistência de duas representações sociais da morte, que criam
um paradoxo: não há espaço para elaborar a morte própria, enquanto a morte do
outro seduz cada vez mais (CAMPOS, 2013).

Mattedi e Pereira (2007) corroboram ao dizer que o processamento da morte


na sociedade é contraditório, ou seja, apesar do contínuo afastamento, há um
crescente interesse popular sobre ela, com imagens que a retratam na televisão,
websites e jornais. Nesse sentido, fala-se em morte silenciada e “morte
escancarada” (KOVÁCS, 2003). Tais concepções remetem à, respectivamente,
exclusão da problemática da morte da circulação social, estando confinada apenas
aos hospitais e às instituições de saúde, na qual ganha uma conotação de assepsia,
isolamento afetivo e negação.

Por outro lado, a morte escancarada diz sobre uma banalização tanto da
morte, quanto da violência na cultura, uma vez que ela se torna um objeto de
consumo. Apesar de escancarada, ela também possui uma imagem distanciada, o
que dificulta qualquer movimento identificatório, podendo resultar em uma
desafetação, em uma anestesia diante da morte.

Desse modo, há uma banalização da morte, que passa a bombardear o


cotidiano através da mídia, mas parece não afetar mais os sujeitos (CAMPOS,
2013), pois, sendo a morte um assunto de intervenção especializada, não é possível
uma identificação com a morte do outro (MATTEDI & PEREIRA, 2007). Nesse
sentido, esse paradoxo também se torna evidente no corpo quando morre. Apesar
de, por um lado, as cenas de morte atraírem os sujeitos, por outro, o corpo morto se
insinua como uma visão insuportável para os vivos, uma vez que o corpo torna
visível o real da morte.

Para tanto, Kovács (2003) aponta que há uma produção e maquiagem do


corpo morto com a finalidade de que ele pareça vivo, produzindo o efeito de que a
morte não ocorreu, em uma procura pela bela morte e por um corpo que remeta ao
repouso (KOVÁCS, 2003). Com isso, pensa-se que até mesmo o corpo quando
morre precisa corresponder à certo ideal social: de estar belo e aparentar bem-estar.
É preciso esconder, “maquiar” os sinais da morte, da mesma maneira que se faz
com o envelhecimento nos corpos vivos. Sugere-se que o não reconhecimento da
morte e essa tentativa de negá-la e “maquiá-la”, dificulta o processamento subjetivo
da morte e, consequentemente, das perdas.

Mattedi e Pereira (2007) estabelecem uma relação entre o (não) lugar da


morte na sociedade e o avanço dos conhecimentos técnicos-científicos e a
abundância com que hábitos de saúde são difundidos pelos meios de comunicação
de massa. Segundo os autores, a engrenagem social força os sujeitos a pensarem
na morte indiretamente, ao tornarem-se responsáveis pela saúde do corpo. Assim, a
morte é processada subjetivamente como uma falha técnica ou acidente, ou como
uma espécie de punição por uma vida desregrada (MATTEDI & PEREIRA, 2007),
em vez de poder ser reconhecida enquanto uma etapa natural da vida. Sob o ponto
de vista psíquico, a morte sinaliza uma perda a ser processada pelo sujeito.

Não só a ausência do objeto de amor, como uma série de mudanças que a


morte, frequentemente, impõe, precisam ser elaboradas. Contudo, o modo como a
morte é encarada na contemporaneidade, juntamente aos movimentos de
sensacionalismo e o culto ao corpo, que, mesmo diante do corpo morto, exigem uma
certa adequação aos padrões sociais, levantam uma questão: como o sujeito pode
lidar com suas perdas, elaborar a morte e se implicar, subjetivamente, em um
processo de luto, se há um controle rígido – e muitas vezes, indireto – sobre os
padrões ditados que, frequentemente, inviabilizam a subjetivação? Dessa maneira,
entende-se ser importante discutir acerca das perdas e o processamento do luto, por
sua relevada importância para o processo de subjetivação da morte.

Vale dizer que a lógica social é regida, não só pela ditadura da beleza e
juventude, mas também pelo imperativo de felicidade e bem-estar. Tal imperativo
determina que o sujeito, independentemente de suas condições psíquicas e
emocionais, deve demonstrar alegria, não podendo evidenciar sentimentos de
angústia, desamparo e tristeza. Nesse sentido, é possível compreender que tais
regras são impostas, mesmo diante do sofrimento e da morte (NASCIMENTO,
PRÓCHNO & SILVA, 2012).
Com isso, percebe-se que há um espaço reduzido para elaboração do luto,
seja pela perda real de um objeto de amor, ou seja, pelas perdas simbólicas de um
corpo que não se adequa aos ideais sociais, como um corpo que engorda, ou um
corpo que envelhece. O luto, por sua vez, constitui-se, de maneira geral, como uma
reação a perda de um ente querido ou de uma abstração que ocupava tal lugar
(Freud, 1915/2006). Ele é entendido como “trabalho psíquico”, pois é evocado pelo
sujeito a fim de realizar uma assimilação psíquica da perda, frente à separação do
objeto perdido e visando ao reinvestimento em um substituto, na tentativa de fazer
com que a dor não se eternize (PINHEIRO, QUINTELLA & VERZTMAN, 2010).

Ainda, o processo de luto busca um novo equilíbrio de forças, em um


redimensionamento das fantasias e defesas do psiquismo. Nesse sentido, consiste
em simbolizar e elaborar a perda, redescobrindo novos caminhos para o desejo. Tal
trabalho leva certo tempo e pesar, uma vez que este não é um processo simples,
pois o sujeito tem que desinvestir do objeto de amor perdido, para que a libido seja
liberada e, ainda, elaborar as fantasias conscientes e inconscientes que são
ativadas com a perda (CAMPOS, 2013). Assim, entende-se que a elaboração da
perda é um processo, frequentemente, doloroso e que exige tempo e espaço.
Convém, além disso, destacar que a sociedade contemporânea não tolera
manifestações de tristeza e sofrimento e nem concede tempo ou abertura para a
assimilação da dor.

Kovács (2003) articula que o processo de luto sofre interferência, uma vez
que é preciso agir de forma discreta, como se a dor não existisse. Ele torna-se tão
obsceno quanto a morte, causando, inclusive, situações de constrangimento. Sabe-
se que, em uma sociedade que preza por produção e eficiência, as manifestações
de dor tendem a ser excluídas. Ainda, as expressões de emoções muito intensas
são difíceis de serem manejadas.

Nesse sentido, é, geralmente, exigido do enlutado que ele lide com a perda
de maneira contida, manifeste força e controle, como modo para que as demais
pessoas não se sintam constrangidas ou sem saber o que fazer. Com isso, estas,
frequentemente afastam-se, para não serem inundadas pelo sofrimento da perda
(KOVÁCS, 2003).
De modo geral, considera-se que na sociedade contemporânea há uma
tentativa de extinguir o sofrimento e obter resultados imediatos. Há uma exigência
por soluções rápidas e isso não permite que o sujeito sinta sua dor e,
principalmente, não a externalize. Desse modo, a medicalização ganha um papel
importante na sociedade contemporânea, assumindo um espaço privilegiado no
combate ao sofrimento. Birman (2012) destaca que a medicalização promoveu o
ideário de saúde do espaço social atual. O discurso psiquiátrico venera o manuseio
das drogas que podem regular o mal-estar corpóreo (BIRMAN, 2012), bem como o
mal-estar psíquico.

Com isso, entende-se que a medicalização excessiva ganha um importante


espaço social, pois pode dar conta, mesmo que momentânea e ilusoriamente, do
mal-estar que se instala ante as perdas. Dessa forma, “consomem-se soluções
imediatas e ilusórias que se apresentam como portadoras da capacidade de
preencher o sentimento de vazio produzido por uma sociedade seduzida pelo mundo
dos objetos” (HAUSEN, 2013, p. 207). Nessa direção, o discurso “medicalizante”
assume, nos dias de hoje, posição central quanto à morte, à dor, ao luto e ao
sofrimento. Indubitavelmente, é preciso reconhecer a importância dos medicamentos
– quando manuseados adequadamente – a fim de amenizar algumas situações
específicas.

Contudo, o emprego da medicalização excessiva busca uma maior eficiência


e assepsia possível e, principalmente, silenciar as manifestações do sujeito por meio
de tranquilizantes ou sedativos, substituindo a escuta e o cuidado. Assim, mantém-
se a passividade, evitando, inclusive, a possibilidade de expressão de seu
sofrimento, calando sua dor e sua possibilidade de comunicá-la (KOVACS, 2003).
Por conseguinte, uma vez que o sujeito é posto de forma passiva, não pode
comunicar e, assim, reeditar e elaborar sua dor, também não pode participar de
forma ativa, nem viver aquilo que lhe é inerente.

Parkes (1998) aponta que se partirmos do pressuposto de que o luto é um


processo, é necessário que o sujeito enlutado passe por ele, por sua dor e
sofrimento para elaborar a perda. Assim, qualquer coisa que o interrompa
continuamente e permita à pessoa evitar ou suprimir tal dor, poderá vir a dificultar
sua elaboração.
Além disso, tendo em vista que são as simbolizações que permitirão
ressignificar os eventos traumáticos da vida do sujeito e podem trazer uma nova
significação para um conjunto de fantasias inconscientes (CAMPOS, 2013),
questiona-se: como é possível que o sujeito elabore suas perdas, a morte e todas as
implicações que isso acarreta, se é posto em uma posição passiva e,
consequentemente, deixa de estar subjetivamente implicado nesse processo?
Aponta-se isso, pois a medicalização excessiva pode acabar incrementando esse
processo de subjetivação que caracteriza o sujeito na contemporaneidade, bem
como comprometer a sua relação com o corpo e o processo de morrer.

Dessa maneira, considera-se que a sociedade contemporânea parece estar


marcada por uma fuga daquilo que não é belo, da satisfação que não é imediata e
do que está relacionado com o envelhecimento e com a morte. A não aceitação
desse lugar de incompletude – inerente das perdas, da morte, das mudanças e das
diferenças – indica as dificuldades do sujeito em lidar com o desamparo e em
construir sentidos para as perdas inerentes à vida. Isso empobrece seus recursos
para lidar com aquilo que a medicação, a mídia e a série de regras ditadas, não
podem dar conta, a singularidade da sua dor, do seu sofrimento.

Assim, as experiências da vida, de transição, mudanças, envelhecimento,


perdas, morte, parecem ser como Calligaris (2008) descrevia em relação às formas
de infelicidade: “[...] muito mais trágico me parece o destino de quem atravessa a
vida sem se molhar, como se os eventos (felizes ou nefastos) escorressem sobre a
pele como água sobre as plumas de um pato” (p. 153).

Diz-se isso, uma vez que o sujeito contemporâneo parece estar coberto por
plumas de um pato que o protegem da água, metáfora para transformações e
perdas próprias da vida. Na mesma direção, Calligaris (2008) ainda diz discordar,
em geral, dos artifícios usados pelos sujeitos que os fazem desistir de serem
sujeitos, como as estratégias que estes encontram para evitar aquelas dificuldades
inerentes à vida, que fazem parte do “lote standart” (p.153) de nossa cultura.
Continua, ao expressar desconfiança acerca de estratégias coletivas que oferecem a
seus adeptos oportunidades para eximir-se das expressões básicas da
subjetividade, desde a incerteza moral à questão do seu próprio desejo
(CALLIGARIS, 2008).
É nesse sentido, que se entende que tais estratégias coletivas na
contemporaneidade – como a mídia, ou a medicação – são, na maioria das vezes,
utilizadas de forma dessubjetivante. Desapropriam, com isso, o sujeito do seu
próprio desejo, inviabilizam que ele deseje por si só e principalmente, que possa
questionar seu desejo. É possível observar, portanto, que diante dos diversos
processos naturais da vida, especialmente no que se refere ao envelhecimento e à
morte, percebe-se, na contemporaneidade, a tentativa de afastamento, de evitação e
principalmente o estabelecimento de uma luta inglória contra estes fenômenos. Isso
favorece, na maioria das vezes, um processo de subjetivação, de fragilidade
psíquica, o que potencializa as vivências de desamparo.
CAPÍTULO 3 - BREVIDADE DA VIDA: OBRAS SÊNECA E SUAS IDEIAS NO
CONTEXTO ATUAL NA ADOAÇÃO DE PRÁTICAS ESTOICAS COMO
FILOSOFIA DE VIDA

Sêneca foi ordenado por Nero a cometer suicídio por seu suposto
envolvimento em uma tentativa fracassada de assassinato do imperador, embora ele
provavelmente fosse inocente. No entanto, mesmo em face da morte, Sêneca
praticou sua filosofia simples e elegante de estoicismo (SÊNECA, 2015).

Dizia-se que ele estava extremamente calmo enquanto seguia o protocolo do


suicídio da Roma Antiga: cortar veias para sangrar até a morte e ingerir veneno.
Hoje, mais de 2.000 anos depois, os escritos de Sêneca permanecem altamente
influentes na filosofia estóica. Embora Sêneca tenha abordado a maioria das áreas-
chave da vida, incluindo felicidade, riqueza, morte e relacionamentos, ele é mais
citado em suas idéias sobre como aproveitar ao máximo o tempo em seu ensaio On
The Shortness of Life (BEZERRA, 2012).

Sobre o valor de ler e escrever filosofia: Esta é a única maneira de prolongar


a mortalidade, até mesmo convertê-la à imortalidade. Homenagens, monumentos, o
que quer que os ambiciosos tenham ordenado por decreto ou erguido em edifícios
públicos logo são destruídos: não há nada que a passagem do tempo não demole e
remova. Mas não pode danificar as obras que a filosofia consagrou: nenhuma era as
apagará, nenhuma idade as diminuirá. A próxima era só aumentará a veneração por
eles, uma vez que a inveja atua sobre o que está à mão, mas podemos admirar mais
abertamente as coisas à distância. Portanto, a vida do filósofo se estende
amplamente: ele não está confinado à mesma fronteira que os outros (D’ANGELO,
2011).

Devemos ser indulgentes com a mente e, de vez em quando, permitir-lhe o


lazer que é seu alimento e força. Devemos sair para caminhadas ao ar livre, para
que a mente possa ser fortalecida e revigorada por um céu claro e muito ar
fresco. Às vezes, adquire energia renovada com uma viagem de carruagem e uma
mudança de cenário, ou com a socialização e a bebida à vontade. Ocasionalmente,
deveríamos chegar ao ponto de embriaguez, afundando na bebida, mas não sendo
totalmente inundados por ela; pois elimina as preocupações e leva a mente a suas
profundezas, e cura a tristeza assim como cura certas doenças (SÊNECA, 2015).

3.1. PENSAMENTOS DE SÊNECA

Os pensamentos de Sêneca vão contra o pensamento popular de que o


tempo é curto. Temos tempo suficiente para cumprir nossos objetivos e viver uma
vida extraordinária, contanto que consideremos o tempo como nosso recurso mais
precioso. As palavras de sabedoria de Sêneca são um poderoso lembrete para tratar
o tempo como nosso recurso não renovável mais valioso. Eles revelam um paradoxo
intrigante na vida humana: sabemos que nosso tempo é limitado, mas vivemos como
se não fosse. Em um mundo de constante ocupação, Sêneca nos exorta a sair da
roda do hamster da vida e viver cada dia como se fosse o último (BEZERRA, 2012).

Sobre a brevidade da vida é que precisamos valorizar nosso tempo e evitar


desperdiçá-lo a todo custo. Claro, entendemos isso intelectualmente, mas quantos
de nós podem realmente dizer que vivem de verdade. Como Maria Popova, da Brain
Pickings, observaria, o ensaio é “um lembrete pungente do que intuímos tão
profundamente, mas esquecemos tão facilmente e cronicamente deixamos de
colocar em prática” (D’ANGELO, 2011).

Não faltam coisas que tiram nosso tempo e devemos nos precaver contra
elas. Para viver esta lição, pratique dizer "Não!" a muitas das coisas que você faz
que perdem tempo, como tentar impressionar as pessoas ou olhar para uma
tela. Considere as suas ações potenciais são virtuosas, irão realmente beneficiá-lo e
se elas são dignas de fazer sua única vida. Se não, comprometa-se a recusá-lo,
mesmo que possa causar descontentamento de outras pessoas. As lições de sobre
a brevidade da vida nos incentivam a fazer um balanço de como vivemos até agora
e a contar o tempo que foi realmente vivido, em vez de preenchido com ocupações e
distrações indignas (HADOT, 2012).

O que pode começar a fazer hoje é praticar a arte estóica de registrar um


diário e começar a refletir sobre como você gasta todos os dias. Pegando
emprestado de Sêneca, sua hora favorita para escrever um diário era à
noite. Quando a escuridão caiu e sua esposa adormeceu, ele explicou a um
amigo: “Eu examino todo o meu dia e volto ao que fiz e disse, não
escondendo nada de mim mesmo, não deixando passar nada”. Em seguida,
ele iria para a cama, achando que “o sono que se seguia a esse autoexame”
era particularmente agradável (SÊNECA, 2015, P. 3).

A lição final que devemos tirar do trabalho de Sêneca, e um tema que


é constante para os estoicos em geral , é que precisamos lembrar que podemos
morrer a qualquer momento e que, salvo algum avanço médico massivo, temos no
máximo um mais alguma décadas para viver. Devemos encontrar uma maneira de
nos lembrar todos os dias que vamos morrer, talvez colocando notas em lugares que
veremos todos os dias, pode sentir que não esquece que vai morrer, mas pensa
sobre isso regularmente. Informa sua tomada de decisão. A maioria das pessoas
não pode dizer sim a isso, então devemos trabalhar um pouco para ter certeza de
que podemos (BEZERRA, 2012).

3.2. IMPORTÂNCIA DO LAZER

Sêneca acredita que é importante abrir espaço para o lazer na vida, mas uma
vida de puro lazer é considerada sem sentido. Ele fala de pessoas que nunca
precisam levantar um dedo e que desaprenderam as funções humanas básicas
como um símbolo de status, algo que ainda ocorre em nossa época. Ele diz de tal
homem: "Ele está doente, não, ele está morto." Uma vida com propósito é
necessária para viver de verdade, desde que seja um propósito que se possui e
controla (D’ANGELO, 2011).

Sêneca também critica outro tipo de luxo excessivo, aquele preocupado em


dar show de tudo e ser chique. Ele chama as pessoas que buscam isso de
“preguiçosamente preocupadas” e, portanto, desperdiçando suas únicas vidas em
buscas vãs. Ele condena aqueles que se preocupam com a aparência de seus
cabelos, que podem ser estendidos a qualquer pessoa que se preocupa com sua
aparência, e afirma que eles não estão realmente descansando. Ao nos
concentrarmos em nossa aparência, estamos desperdiçando nosso recurso mais
precioso de todos, o tempo (SÊNECA, 2015).

Existem inúmeras outras distrações às quais esta lição pode ser aplicada,
especialmente nos tempos modernos, onde investimos muita força vital em nossa
presença nas redes sociais. Uma maneira interessante de conceituar isso é pensar
na tela sugando sua alma enquanto navega no Instagram e no Facebook ou
enquanto assiste TV. Já que nosso tempo é nossa única vida, isso não é um
exagero (BEZERRA, 2012).

Sêneca está essencialmente nos levando a questionar nossas vidas e


perguntar: Que prova eu tenho de que estou realmente vivo. Muitos de nós estamos
vivendo o que poderia muito bem ser considerado uma vida de mera existência:
preguiçosos e desperdiçando nosso potencial (D’ANGELO, 2011).

Mas Sêneca define a vida real como estar no controle de si mesmo e se


divertir de forma significativa e trabalhar em prol de objetivos que são
importantes. Ele compara como a maioria de nós parece viver com um barco que
nunca saiu do porto:

Pois e se você pensasse que aquele homem fez uma longa viagem que foi
pego por uma forte tempestade assim que deixou o porto e, varrido de um
lado para o outro por uma sucessão de ventos que sopraram de diferentes
partes, foi expulso em um círculo ao redor do mesmo curso? Ele não teve
muitas viagens, mas muitas agitações (SÊNECA, 2015, P. 2).
Sêneca é uma importante figura filosófica do período imperial romano. Como
filósofo estoico que escreve em latim, Sêneca dá uma contribuição duradoura ao
estoicismo. Ele ocupa um lugar central na literatura sobre o estoicismo da época e
molda a compreensão do pensamento estoico que as gerações posteriores
teriam. As obras filosóficas de Sêneca desempenharam um grande papel no
renascimento das ideias estoicas na Renascença (BEZERRA, 2012).

Até hoje, muitos leitores abordam a filosofia estoica por meio de Sêneca, em
vez de por meio das evidências mais fragmentárias que temos dos estoicos
anteriores. Os escritos de Sêneca são espantosamente diversos em seu alcance
genérico. Mais do que isso, Sêneca se desenvolve e dá forma a diversos gêneros
filosóficos, dos quais se destacam a letra e os chamados “consolos”; seu
ensaio sobre a misericórdia é considerado o primeiro exemplo do que veio a ser
conhecido como a literatura do “espelho do príncipe” (D’ANGELO, 2011).
Depois de vários séculos de relativa negligência, a filosofia de Sêneca foi
redescoberta nas últimas décadas, no que pode ser chamado de um segundo
renascimento do pensamento de Sêneca. Em parte, esse interesse renovado é o
resultado de uma reavaliação geral da cultura romana. Também é alimentado pelo
grande progresso que foi feito em nossa compreensão da filosofia helenística grega
e por desenvolvimentos recentes na ética contemporânea, como um interesse
renovado pela teoria das emoções, papéis e relacionamentos, e pela comunhão de
todos os seres humanos. E, finalmente, alguns estudiosos influentes descobriram,
na esteira da leitura de Sêneca por Foucault, que Sêneca aborda algumas
preocupações distintamente modernas (SÊNECA, 2015).
Leitores que se aproximam de Sêneca como estudantes de filosofia antiga,
tendo adquirido uma certa ideia do que é filosofia estudando Platão, Aristóteles ou
Crisipo, muitas vezes me sinto perdido. Para eles, os escritos de Sêneca podem
parecer longos e meramente admonitórios. Em parte, essa reação pode refletir
preconceitos de nosso treinamento (BEZERRA, 2012).

Os resquícios de uma narrativa hegeliana (e nietzschiana e heideggeriana)


para a filosofia estão profundamente arraigados em influentes trabalhos
acadêmicos. Por conta disso, a história da filosofia antiga é uma história de declínio,
os pensadores romanos são imitadores medíocres de seus predecessores gregos e
assim por diante. Esses preconceitos são difíceis de se livrar; por muitos séculos,
versões diluídas deles moldaram a maneira como os alunos aprendiam latim e
grego. Nos últimos anos, porém, muitos estudiosos passaram a adotar uma visão
diferente (D’ANGELO, 2011).
Sêneca não escreve como um filósofo que cria ou expõe uma teoria filosófica
do zero. Em vez disso, ele escreve dentro da trilha de um sistema existente com o
qual ele está amplamente de acordo. Uma reconstrução da filosofia de Sêneca, se
visasse algum tipo de completude, teria que ser multifacetada. Em vários pontos,
teria de incluir relatos da filosofia estoica anterior e discutir quais aspectos dessas
teorias anteriores se tornaram mais ou menos proeminentes no pensamento de
Sêneca. Às vezes, a própria contribuição de Sêneca consiste em desenvolver ainda
mais uma teoria estoica e adicionar detalhes a ela. Outras vezes, Sêneca descarta
certos aspectos técnicos e enfatiza o lado terapêutico e prático da filosofia (HADOT,
2012).

Como outros estoicos tardios, Sêneca se interessa principalmente pela


ética. Embora ele seja bem versado nos detalhes técnicos da lógica estoica, filosofia
da linguagem, epistemologia e ontologia, ele não dedica nenhum tempo significativo
a esses campos. No entanto, não devemos permitir que os velhos preconceitos
sobre o pensamento romano versus grego influenciem nossa interpretação do
interesse de Sêneca por questões práticas (SÊNECA, 2015).

3.3. COISAS VALIOSAS E COISAS BOAS

A distinção estoica entre coisas valiosas e boas está no centro das cartas de


Sêneca. Os chamados indiferentes preferidos, saúde, riqueza e assim por diante -
têm valor (seus opostos, indiferentes diferidos, têm desvalor). Mas só a virtude
é boa. Repetidamente, Sêneca discute como a saúde e a riqueza não contribuem
para a nossa felicidade (BEZERRA, 2012). 

Sêneca aborda essa questão não como um quebra-cabeça acadêmico, como


se precisássemos ser compelidos por uma prova intrincada para aceitar esse
ponto. Ele fala muito diretamente com seus leitores, e seus exemplos prendem a
nós, modernos, tanto quanto prendem seus contemporâneos. Temos a tendência de
pensar que a vida seria melhor se não tivéssemos que viajar pela tarifa mais baixa,
mas de uma forma mais confortável; ficamos desanimados quando nossas provisões
para o jantar não são melhores do que pão dormido (D’ANGELO, 2011).

Ao abordar essas situações muito concretas, Sêneca continua martelando na


afirmação central da ética estóica: que a virtude por si só é suficiente para a
felicidade e nada mais faz uma contribuição. É importante notar que os indiferentes
preferidos têm valor, embora não sejam bons no sentido terminológico dos estóicos
(SÊNECA, 2015).

Os estudiosos às vezes sugerem que, para Sêneca, os indiferentes preferidos


não têm valor e devem ser desaprovados. Ao fazer isso, eles pegam as metáforas e
exemplos que Sêneca emprega. Sêneca escreve com uma consciência aguda de
como é difícil não ver coisas como saúde e riqueza como boas, ou seja, como uma
contribuição para a felicidade. Assim, Sêneca continua dando exemplos vívidos, com
o objetivo de ajudar seu público a se tornar menos apegado a coisas de mero valor
(D’ANGELO, 2011).

No entanto, ele não sugere que coisas como saúde ou riqueza devam ser
consideradas com desdém ou não cuidadas. indiferentes preferidos são inúteis e
desaprovados. Ao fazer isso, eles pegam as metáforas e exemplos que Sêneca
emprega. Sêneca escreve com uma consciência aguda de como é difícil não ver
coisas como saúde e riqueza como boas, ou seja, como uma contribuição para a
felicidade (SÊNECA, 2015).

Embora os estóicos sejam, com respeito ao bem, os mais famosos por afirmar
que apenas a virtude é boa, eles definem o bem como benefício. Sêneca concorda
com a visão estóica inicial de que o bem se beneficia. Como vimos, Sêneca pensa
que tanto a vida pública quanto a filosofia são boas formas de vida, se conduzidas
da maneira correta, precisamente porque ambas beneficiam os outros (BEZERRA,
2012). Ao discutir o benefício que uma vida filosófica traz para os
outros, ele afirma que a vida da pessoa virtuosa é benéfica mesmo que ela não
desempenhe qualquer função pública. Seu andar, sua persistência silenciosa e a
expressão de seus olhos são benéficas. Assim como alguns medicamentos atuam
apenas através do cheiro, a virtude tem seus bons efeitos, mesmo à distância
(D’ANGELO, 2011).

Sêneca dedica um tratado inteiro à questão de como alguém deve beneficiar


os outros e como deve receber benefícios, On Benefits. Sobre Benefícios é o tratado
do Sêneca mais antigo existente sobre um tópico ético específico. Embora o tratado
esteja firmemente situado no contexto social romano, sua análise detalhada e
riqueza de exemplos o tornam mais do que um documento histórico. Sêneca discute
boas ações e favores mal realizados, o recebimento gracioso e desgracioso, a
alegria ou o fardo de retribuir favores, bem como a gratidão e a inveja (HADOT,
2012). O tópico de Sêneca é um híbrido do tipo de fenômeno que os antropólogos
discutem em termos de troca de presentes, a configuração específica desses
fenômenos estudados na Roma antiga e as visões estóicas de que apenas a pessoa
boa beneficia os outros. Esta mistura torna o texto bastante difícil. Não é surpresa,
então, que não houvesse quase nenhuma literatura útil. Este estado, no entanto, é
melhorado por traduções recentes com introduções filosóficas (SÊNECA, 2015).
Grosso modo, pode-se pensar em beneficiar como qualquer tipo de ajuda que uma
pessoa possa oferecer a outra enquanto membro de um grupo, de forma que
fortaleça a coesão do grupo e afirme ou crie laços sociais. Os exemplos incluem: dar
dinheiro ou outra assistência material, usar a influência de alguém em favor de
alguém ou em favor de um membro da família de alguém, para melhorar a saúde ou
segurança pessoal de alguém, para salvar alguém (seu filho etc.) de uma
calamidade, para obter alguém fora da prisão, para consolar, para falar em nome de
alguém, para promover a carreira de alguém, para ensinar e educar alguém, para
instruir ou aconselhar alguém (BEZERRA, 2012).

Os benefícios são concedidos principalmente entre aqueles que não


pertencem à mesma família. Assim, eles diferem das responsabilidades atribuídas
às funções de filho ou esposa e dos serviços que se espera que os escravos ou
empregados prestem. O que os pais fazem por seus filhos, no entanto, conta como
benefício e não como responsabilidades específicas da função. Os filhos estão
devolvendo o que devem, cumprindo assim as obrigações inerentes ao seu
papel. Mas é importante para Sêneca que os filhos também possam beneficiar
genuinamente seus pais, por exemplo, se por meio de suas realizações notáveis
eles colocam os pais no centro das atenções, aos olhos de Sêneca um benefício
inestimável (D’ANGELO, 2011).

Até agora, Sêneca estabeleceu que não valorizamos o tempo, prestamos


muita atenção aos bens e passamos grande parte de nossas vidas preocupados
com o futuro. O próximo aspecto prejudicial das atitudes e comportamentos
humanos que ele almeja é a nossa tendência de perseguir honras e status. Somos
obcecados por subir na hierarquia, argumenta Sêneca, seja socialmente ou em
nossas carreiras. Mas a aquisição de status e honra realmente acrescenta algo de
valor duradouro às nossas experiências vividas (SÊNECA, 2015).

Podemos nos iludir pensando: “Assim que conseguir isso, serei feliz”, mas
esse é o mesmo raciocínio pobre da pessoa preocupada. Em vez de valorizar o que
temos e ficar contentes agora, adiamos nossa felicidade para uma data posterior,
atribuindo-a a uma coisa ou circunstância além de nosso controle imediato. Neste
ciclo de altas fugazes e desejos sem fim, como diz Sêneca, sempre haverá motivos
para ansiedade, seja pela prosperidade ou pela miséria. A vida será conduzida por
uma sucessão de preocupações: sempre desejaremos o lazer, mas nunca o
desfrutaremos (BEZERRA, 2012).

A resposta de como devemos viver nossas vidas, é claro, está na


filosofia. “De todas as pessoas”, escreve Sêneca, “apenas aquelas que encontram
tempo livre para a filosofia, apenas aquelas estão realmente vivas”. E porque
Sêneca dá tanto valor à filosofia como atividade. Por três razões principais
(D’ANGELO, 2011).

Em primeiro lugar, ao estudar filosofia, permitimos que a maior sabedoria da


história entre em nossas vidas, juntando os tesouros do passado à glória do
presente e, assim, alongando e enriquecendo o tempo. Como afirma Sêneca, ao
estudar filosofia somos levados à presença de coisas que foram trazidas das trevas
para a luz. Não somos excluídos em nenhuma época, mas temos acesso a todos
eles; e se estivermos preparados com altivez de mente para ultrapassar os limites
estreitos da fraqueza humana, há um longo período pelo qual podemos vagar
(HADOT, 2012).
Em segundo lugar, podemos nos basear na rica sabedoria da filosofia para
nos orientar sobre todo e qualquer desafio que enfrentamos hoje. Os escritos dos
filósofos do passado sempre estarão lá, sempre que precisarmos deles. Eles não
tomam nada de nós e nos dão tudo o que precisamos (HADOT, 2012).

Em vez de perseguir a companhia daqueles que podem desperdiçar nosso


tempo por causa de status ou suposto avanço, devemos procurar os escritos dos
maiores pensadores da humanidade. “Nada disso vai forçá-lo a morrer”, observa
Sêneca, “mas todos vão te ensinar como morrer. Nenhum deles esgotará seus anos,
mas cada um contribuirá com seus anos para os seus. Com nenhum destes a
conversa será perigosa, ou a sua amizade fatal, ou o atendimento a ele caro. Que
felicidade, que bela velhice aguarda o homem que se fez cliente destes” (SÊNECA,
2015).
CONCLUSÃO

Nos tempos antigos, os filósofos eram verdadeiros curandeiros e "médicos da


alma". A ideia de "terapia da alma" é inerente à tradição da poesia desde Homero: o
mito da cura é realizado pela proposição de poemas "calmantes da alma", e essa
existência é inevitavelmente marcada por contradições, tribulações e destino
fechado. A tragédia de dor e morte. Além da mitologia, os médicos também
adotaram conceitos filosóficos, categorias e métodos razoáveis para a pesquisa e
aplicação da arte terapêutica.

A medicina hipocrática busca metodicamente explicações razoáveis dos


fenômenos naturais e estabelece métodos de diagnóstico, prognóstico e
procedimentos de tratamento a partir de fundamentos e princípios razoáveis. Para
vivermos uma boa vida, devemos focar no que controlamos e aceitar todo o restante
que acontecer. Não podemos mudar o que já ocorreu, mas podemos escolher o que
fazer com as circunstâncias em que nos encontramos.

Chegando à teoria filosófica, primeiro traçamos um desenvolvimento em


direção à articulação abrangente de uma concepção muito ampla de alma, segundo
o qual a alma não é apenas responsável por funções mentais ou psicológicas como
pensamento, percepção e desejo, e é a portadora de qualidades morais, mas de
uma forma ou de outra é responsável por todas as funções vitais que qualquer
organismo vivo desempenha. Essa concepção ampla, que está claramente em
contato próximo com o uso comum do grego naquela época, encontra sua
articulação mais completa na teoria de Aristóteles.
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