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Rev. bras. alerg. imunopatol.


Copyright © 2004 by SBAI

RELATO DE CASO

Imunodeficiência comum variável associada a drusas de papila

Common variable immunodeficiency syndrome


associated with optic disc drusen
Roberta M. S. Costa1 , Pérsio Roxo Jr2 , Virgínia P. L. Ferriani2 , Laudo S. Costa1

Resumo Abstract
Objetivo: Descrever um paciente com imunodefi- Objective: To describe the clinical findings in a
ciência comum variável em associação com drusas de patient with common variable immunodeficiency
papila. syndrome associated with optic disc drusen.
Método: Imunodeficiência comum variável foi Methods: Common variable immunodeficiency
diagnosticada em um menino de doze anos com histó- syndrome was diagnosed in a 12 years-old boy with
ria de infecções recorrentes do trato respiratório supe- recurrent episodes of upper respiratory tract infections
rior e diarréia crônica. Durante exame oftalmológico and chronic diarrhea. In a routine ophthalmologic exa-
de rotina foi detectado borramento de papila bilateral. mination it was found bilateral disc swelling. Neurolo-
O exame neurológico foi normal. gical examinations was normal.
Resultados: A campimetria computadorizada evi- Results: Visual fields showed enlargement of the
denciou aumento da mancha cega nos dois olhos e um blind spot in both eyes and inferior arcuate scotoma in
escotoma arqueado inferior no olho direito. A tomo- the right eye. B-scan ultrasound and computed tomo-
grafia computadorizada de crânio e órbitas revelou graphy of skull and orbits revealed multiple calcifica-
múltiplas calcificações na cabeça do nervo óptico que tions in optic nerve head. Optic disc drusen was diag-
foram posteriormente confirmadas na ultra-sonografia nosed.
ocular. Baseado nestes exames foi diagnosticado dru- Conclusion: This is the first report of a patient with
sas de papila. concomitant optic disc drusen and common variable
Conclusão: Este é o primeiro caso descrito de asso- immunodeficiency.
ciação entre imunodeficiência comum variável e dru-
sas de papila.
Rev. bras. alerg. imunopatol. 2004; 27(1):30-34 Rev. bras. alerg. imunopatol. 2004; 27(1):30-34
imunodeficiência, drusas, anticorpos, nervo óptico, immunodeficiency, drusen, antibodies, optic disc,
corpos hialinos. hyaline bodies.

1 – Departamentos de Oftalmologia da Faculdade de Medi- sintomas se iniciam na segunda ou terceira déca-


cina de Ribeirão Preto – USP; 2 – Puericultura e Pediatria das de vida, com quadros recorrentes de infecções
da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP. do trato respiratório (otites, sinusites bronquites e
pneumonias). Também pode estar freqüentemente
Imunodeficiência comum variável (ICV) é uma associada à doença inflamatória crônica do trato
síndrome caracterizada por uma deficiência glo- gastrointestinal, giardíase crônica de difícil trata-
bal da síntese de anticorpos (hipogamaglobuline- mento, doença granulomatosa com comprometi-
mia). É a causa sintomática mais comum de defi- mento do baço, linfonodos e pulmões e processos
ciência primária de anticorpos, podendo apresen- autoimunes, tais como anemia hemolítica e
tar-se como esporádica ou familiar, com diferen- trombocitopenia1 .
tes modos de herança. Na maioria dos casos, os
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Drusas de papila (DP) é uma condição que en- Relato de caso


volve a presença de corpos hialinos na cabeça do Menino, doze anos de idade, raça branca, foi
nervo óptico. A aperência clássica das DP são: avaliado pela primeira vez em janeiro de 1999,
discos ópticos elevados, com margens irregulares, com queixa de tosse produtiva persistente há três
uma escavação pequena ou ausente (pseudopapi- semanas. O paciente apresentava história pregres-
ledema) e um padrão incomum de bifurcação dos sa de episódios recorrentes de pneumonia, bron-
vasos da retina. A doença geralmente é bilateral quite, sinusite e diarréia desde os dois anos de vi-
(65 a 80% dos casos), podendo manifestar-se de da. Imunização completa, sem relatos de reações
forma assimétrica. Os defeitos no campo visual adversas graves. História familiar negativa para
dos pacientes portadores de DP apresentam evo- infecções recorrentes. Achados importantes do
lução lenta e têm caráter benigno, em geral com exame físico foram amígdalas palatinas e gân-
pouco ou nenhum acometimento da acuidade vi- glios linfáticos hipodesenvolvidos e descarga pós-
sual. Nestes pacientes, um comprometimento im- -nasal amarelada. Com relação à evolução pônde-
portante do campo visual ocorre mais freqüente- ro-estatural, apresentava-se abaixo do percentil 3
mente devido a complicações vasculares como para peso e altura. A radiografia simples do tórax
neuropatia óptica isquêmica anterior2 . foi normal e a de seios da face evidenciou uma
O objetivo deste artigo é descrever um caso de pansinusite. O hemograma revelou apenas anemia
associação entre ICV e DP. hipocrônica e microcítica e trombocitose. Devido
ao histórico de infecções recorrentes, foi submeti-
do à investigação imunológica (tabela 1). Os ní-
veis séricos de imunoglobulinas foram persisten-
temente baixos.

Tabela 1 – Avaliação imunológica

IgG IgA IgM hemaglutininas CD4+ CD8+ CD19+ NBT CH50


44,8* 12,9* 3,6* normais normal normal normal normal normal
(680-1611) (113-254) (46-152)
* Valores expressos em mg/dl

Outros exames laboratoriais realizados foram de infecções e melhora da evolução pôndero-esta-


sorologia para HIV negativa; teste de Mantoux tural.
negativo; protoparasitológicos de fezes seriados, Em junho de 2001, durante um exame oftalmo-
com presença de Giardia lamblia; medida de clo- lógico de rotina, a oftalmoscopia indireta mostrou
ro no suor, pesquisa de ácidos graxos nas fezes, borramento de papila bilateral. A acuidade visual
teste da d-xilose e serigrafia esôfago-estômago- com correção era de 20/20 no olho direito e 20/25
-duodeno normais. no esquerdo. O exame neurológico estava normal.
Uma vez estabelecido o diagnóstico de imuno- A campimetria computadorizada evidenciou au-
deficiência comum variável, o paciente iniciou mento da mancha cega nos dois olhos e um esco-
tratamento de reposição de imunoglobulina intra- toma arqueado inferior no olho direito (figura 1).
venosa (400mg/kg a cada três semanas), porém A tomografia computadorizada de crânio e órbi-
foram necessários novos ajustes de dose, pois ele tas revelou múltiplas calcificações na cabeça do
continuava a apresentar sinusites e otites médias nervo óptico que foram posteriormente confir-
recorrentes. Com a dose de 700 mg/kg a cada três madas na ultra-sonografia ocular (figura 2). Ba-
semanas houve significativa redução do número seado nestes exames, foi diagnosticado DP.
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Figura 1

Figura 2
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Discussão axonal das fibras do nervo óptico, levando a cal-


Apresentamos o caso de um paciente jovem cificação intracelular das mitocôndrias, com pos-
com ICV, que apresentou pseudopapiledema em terior ruptura neuronal e aumento dos depósitos
um exame oftalmológico de rotina, sendo diag- de cálcio no espaço extracelular, formando as
nosticado DP. A história inicial era de infecções drusas11 . Essas alterações ocorrem em pacientes
recorrentes do trato respiratório, que podem estar que possuem uma displasia hereditária do disco
presentes em até 95% dos pacientes com ICV, óptico e de seu suprimento sanguíneo que tem
geralmente causadas por bactérias encapsuladas, caráter dominante irregular12,13.
principalmente Streptococcus pneumoniae, Hae- Concluímos que, uma vez que DP não é um
mophylus influenzae e Staphylococcus aureus. achado infreqüente na população (3,4 a 24/1000)1
Outro acometimento freqüente que pode ocorrer e parece não ter causa infecciosa nem autoimune,
em até 60% dos casos é diarréia crônica, cujo é provável que a associação entre ICV e DP tenha
principal agente etiológico é a Giardia lamblia3 . sido um achado casual.
O espectro clínico da ICV é muito amplo. A-
proximadamente 20% dos pacientes desenvolvem
uma ou mais doenças autoimunes, indicando uma
possível anormalidade nos mecanismos de regula-
ção imunológica associada ao quadro de imuno-
deficiência. Apesar de incomuns, algumas altera- Referências bibliográficas
ções oftalmológicas já foram descritas em asso-
ciação com ICV, como uveíte granulomatosa bi- 1. Sneller MC. Common variable immunodeficien-
lateral4 , teleangiectasia ocular5 , perfuração cor- cy. Am J Med Sci, 2001;231:42-48.
2. Auw-Haedrich C, Staubach F, Witschel H. Optic
neana bilateral6 e três casos de vasculite, nos DisK Drusen. Surv Ophthalmol, 2002;47:515-532.
quais foi necessário o uso de corticóide e ciclos- 3. Cunningham-Rundles C, Bodian C. Common va-
porina7 . riable immunodeficiency: Clinical and immunolo-
As DP têm início insidioso e evolução lenta, gical features of 248 patients. Clin Immunol,
sendo o paciente em geral assintomático. Na 1999;92:34-48.
maioria das vezes, são diagnosticadas incidental- 4. Cohen VML, Lee JA, Egner W. Bilateral granulo-
mente, quando o paciente é submetido a fundos- matous uveitis in association with common varia -
copia por outras razões. Podem estar presentes ble immunodeficiency. Br J Ophthalmol, 2001;
desde a infância, sendo que nestes casos, são mais 85:630-631.
freqüentes a presença apenas de borramento do 5. Frenkel M, Russe HP. Retinal telangiectasia asso-
disco óptico e anormalidades no padrão de bifur- ciated with hypogammaglobulinemia. Am J Oph-
thalmol, 1967;63:215-220.
cação vascular, raramente com corpos hialinos vi-
6. Akperk EK, Haddad RS, Winkelstein JA, Gottsch
síveis na papila8 . Torna-se portanto, fundamental JD. Bilateral consecutive central corneal perfora-
nestas pacientes o diagnóstico diferencial com pa- tions associated with hypogammaglobulinemia.
piledema, que pode ser causado por diversas do- Ophthalmol, 2000;107:123-126.
enças intracranianas, tais como processo expansi- 7. Meurs JC, Lightman S, Waad PWT, Baarsma GS.
vo, hidrocefalia, meningites, encefalites, hiperten- Retinal vasculitis occurring with common variable
são intracraniana crônica benigna e trauma9 . O immunodeficiency syndrome. Am J Ophthalmol,
nosso paciente era assintomático e apresentava 2000;129:269-270.
exame neurológico e tomografia computadoriza- 8. Erkkila H. Optic Disc Drusen in children. Acta
da de crânio normais e apesar do exame tomográ- Ophthalmol, 1977, 129 suppl:3-44.
fico de órbitas ter evidenciado a presença de ima- 9. Brodsky MC, Baker RS, Hamed LM. Pediatric
neuro-ophthalmology. Editora Springer, 1995;p76.
gens na cabeça do nervo óptico sugestivos de DP,
10. Kurs-Levin MM, Landau K. A comparison of
optou-se por confirmar o diagnóstico pela ultra- imaging techniques for diagnosing drusen of the
sonografia ocular que é o exame mais indicado optic nerve head. Arch Ophthalmol, 1999;117:
nesses casos10 . 1045-1049.
A fisiopatologia das DP ainda não está esclare-
cida. Parece haver uma alteração do metabolismo
34 Rev. bras. alerg. imunopatol. – Vol. 27, Nº 1, 2004 Imunodeficiência... – Costa, RMS

11. Tso MOM. Pathology and pathogenesis of drusen Endereço para correspondência
of the optic nerve head. Ophtalmol, 1981;88: Roberta M. S. Costa
1066-1078. Rua Itararé, 601 – Jardim Paulista
12. Lorentzen SE. Drusen of the optic disc, an irregu- 14090-070 - Ribeirão Preto - SP
larly dominant hereditary affection. Acta Ophthal-
Tel.: 0XX-16-6249579
mol, 1961;39:626-643.
13. Antcliff RJ, Spalton DJ. Are optic disc drusen E-mail: robertamscosta@hotmail.com
inherited? Ophthalmology, 1999;106:1278-1280.

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