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A Ágata
que resiste
em cada
um de nós
Senhorismo e demais Auto de resistência Múltiplos Olhares com
carregos criminológicos qualificado: uma "nova" Rubens Casara P. 27
na encruza racista face da violência
brasileira P. 9 institucional P. 17
BOLETIM REVISTA DO INSTITUTO
ASSOCIE-SE AO IBADPP
BAIANO DE DIREITO PROCESSUAL PENAL
Ano 2 - N.º 5 | OUTUBRO/2019 O Instituto Baiano de Direito Processu-
al Penal é uma associação civil sem fins
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econômicos que tem entre as finalida-
das Árvores, CEP 41.820-020, Condominio
des defender o respeito incondicional
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aos princípios, direitos e garantias fun-
sala 510, Salvador - Bahia
damentais que estruturam a Constitui-
Periodicidade: Bimestral ção Federal. O IBADPP promove o deba-
Impressão: Impactgraf te científico sobre o Direito Processual
Penal por meio de publicações, cursos,
debates, seminários, etc., que tenham o
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retoria Executiva deliberará e, se for o
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Lucas Carapiá
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Fernanda Ravazzano (Coordenadora-Chefe)
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Luciana Silva (Coordenadora-Chefe).
Coordenadora da Comissão Organizadora publicacoes@ibadpp.com.br
do VIII Seminário Nacional do IBADPP
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Daniela Portugal
Editorial: De Félix a Fênix
5
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Direito e 6
COSTA, Eduardo Alves da. No caminho com Maiako-
Psicanálise: interlocuções a partir da literatura. 2ª Ed. vski: poesia reunida. São Paulo: Geração Editorial,
Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, p. 157-158. 2003, p. 47.
André Dahmer
SUMÁRIO
03 COLUNA PONTO E CONTRAPONTO: EM 17 AUTO DE RESISTÊNCIA QUALIFICADO: UMA
UM PAÍS TÃO DESIGUAL, O QUE ESPERAR “NOVA” FACE DA VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL
DA JUSTIÇA CRIMINAL?
19 MÚLTIPLOS OLHARES COM RUBENS
05 ELAS NO FRONT COM SORAIA MENDES: DO CASARA
INQÚERITO POLICIAL AO FEMINICÍDIO DE
ESTADO AO GENDERCIDE 24 A TODA PROVA
09 ARTIGOS 28 WALKIE-TALKIE
15 O CONTROLE JURISDICIONAL NO
COMPARTILHAMENTO DE DADOS
BANCÁRIOS E FISCAIS ENTRE ÓRGÃOS DE
FISCALIZAÇÃO E CONTROLE E O MINISTÉRIO
PÚBLICO
Coluna
PONTO E
CONTRAPONTO
Rômulo de Andrade Moreira
Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da
Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade
Salvador – UNIFACS.
3
1980”, dando-se “exatamente no momento em E nós, ao invés de procurarmos soluções a
que o país passa pela maior transição demográfi- partir de nossas próprias peculiaridades, e des-
ca de sua história, rumo ao envelhecimento, o que de um ponto de vista de nossa realidade socio-
impõe maior gravidade ao fenômeno.” econômica e latino-americana, vamos à procura
Nesta segunda pesquisa, mereceu desta- — muitas vezes como desvairados — de soluções
que, e não poderia ser de outra maneira, a vio- estrangeiras e, como tais, dissociadas de uma
lência contra os negros, verificando-se “a con- existência toda nossa e muito peculiar, particu-
tinuidade do processo de aprofundamento da larmente em razão de nossas origens escravo-
desigualdade racial nos indicadores de violência cratas, nunca superadas.
letal no Brasil, já apontado em outras edições.” A grande maioria de nossos acadêmicos, ju-
Assim, em 2017, 75,5% das vítimas de homicídio ristas e “atores” jurídicos, especialmente aqueles
foram negros (entre pretos e pardos, conforme que trabalham, teoricamente e na prática, com
critério adotado pelo IBGE), “sendo que a taxa de o direito criminal, ao que parece, vive, trabalha,
não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de estuda e pesquisa a partir de uma abstração da
16,0%.” Assim, ao menos proporcionalmente às realidade brasileira quase que doentia. Freud cer-
respectivas populações, “para cada indivíduo não tamente explicaria este fenômeno, desde uma vi-
negro que sofreu homicídio em 2017, aproximada- são psicanalítica.
mente, 2,7 negros foram mortos.” Constatou-se, Uma pena que seja assim, pois eles esque-
portanto, “a continuidade do processo de profunda cem(?) que “ser internacional não é ser universal,
desigualdade racial no país”, ficando “evidente a e para ser universal não é necessário situar-se
necessidade de que políticas públicas de seguran- nos centros do mundo. Inclusive pode-se ser uni-
ça e garantia de direitos devam, necessariamente, versal ficando confinado à sua própria língua, isto
levar em conta tais adversidades, para que pos- é, sem ser traduzido. Não se trata de dar as costas
sam melhor focalizar seu público-alvo, de forma à realidade do mundo, mas de pensá-la a partir
a promover mais segurança aos grupos mais vul- do que somos, enriquecendo-a universalmente
neráveis.” Este estudo constata que é preciso en- com as nossas ideias; e aceitando ser, desse modo,
frentar com “urgência o legado da escravidão, pois submetidos a uma crítica universalista e não pro-
somos um país extremamente desigual não apenas priamente europeia ou norte-americana.”3
economicamente, mas racialmente”, concluindo, Portanto, que deixemos de fetiches alie-
com absoluto acerto e incontestável correção, nígenas e vejamos, a partir de pesquisas sérias
ser “fundamental investimentos na juventude, por e números, que enquanto mantivermos esta
meio de políticas focalizadas nos territórios mais estrutura social (Rusche e Kirchheimer), racial
vulneráveis socioeconomicamente, de modo a ga- e econômica tão desigual, nada mudará, muito
rantir condições de desenvolvimento infanto-juve- menos com uma política de extermínio, susten-
nil, acesso à educação, cultura e esportes, além de tada pelo poder político, financiada pelo poder
mecanismos para facilitar o ingresso do jovem no econômico e instrumentalizada pelo poder ju-
mercado de trabalho.” rídico.
Entendo que as duas questões — a desi-
gualdade socioeconômica e a violência, urbana e 3
Como escreveu Foucault, “quando fala de invenção, Niet-
zsche tem sempre em mente uma palavra que opõe a inven-
rural — encontram-se intrinsicamente ligadas, e
ção, a palavra origem. Quando diz invenção é para não dizer
ambas ajudam a explicar a extraordinária popu- origem; quando diz Erfindung é para não dizer Ursprung.”
lação carcerária do Brasil, apenas superada, em Assim, por exemplo, dizia o filósofo alemão que a religião
números, pelos Estados Unidos e pela China. não tinha origem, pois ela foi inventada: “em um dado mo-
mento, algo aconteceu que fez aparecer a religião. A religião
E, obviamente, não se trata aqui de uma foi fabricada. Ela não existia anteriormente.” Como a poesia
criminalização da pobreza, muito pelo contrário! também: “um dia alguém teve a ideia bastante curiosa de
Constata-se apenas que, se a seletividade é uma utilizar um certo número de propriedades rítmicas ou mu-
marca característica do próprio sistema penal sicais da linguagem para falar, para impor suas palavras,
para estabelecer através de suas palavras uma certa relação
(desde a sua invenção, como diria Nietzsche2, e de poder sobre os outros. Também a poesia foi inventada ou
em quase todo o lugar), no Brasil ela se mostra fabricada.” (FOUCAULT, Michel, “A verdade e as formas jurí-
ainda mais visível, e com uma clareza absurda, dicas”, Rio de Janeiro, PUC Rio, 3ª. edição, 2ª. reimpressão,
2005, páginas 14 e 15).
evidenciada muito especialmente pelo perfil 3
SANTOS, Milton, “O País Distorcido”, São Paulo: Publifolha,
dos que estão sujeitos à punição e aos suplícios 2002, p. 52. Este texto do grande baiano Milton Santos é de
(Foucault) em nosso país. 02 de maio de 1999.
4
Coluna
ELAS
A
NO FRONT
Do inquérito policial ao feminicídio de estado ao gendercide
Por Soraia Mendes
Um dos mais importantes passos dados sideradas indeterminadas uma vez que encober-
no intuito de incluir a perspectiva de gênero na tos estejam os indícios de violência de gênero.
investigação de casos de feminicídio foi a in- Entretanto, ainda que o tema da investiga-
corporação, em 2016, das chamadas “Diretrizes ção criminal me seja sedutor desde a perspecti-
Nacionais para Investigar, Processar e Julgar va epistemológica que entendo deva orientar um
com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas processo penal feminista , meu objetivo neste
de Mulheres”, por meio das quais foram estabe- artigo não será esta abordagem, pois o que pre-
lecidos protocolos destinados ao trabalho poli- tendo aprofundar aqui são as minhas reflexões
cial e, principalmente, à perícia técnica nestas sobre a responsabilidade estatal com a morte de
situações. mulheres no Brasil, muito especialmente consi-
As Diretrizes configuram um documen- derando a interseccionalidade de raça e classe.
to relevantíssimo pois, como apontam Eugênia Quero falar, então, sobre feminicídio de Estado.
Villa e Bruno Amaral Machado, embora as mor- Em 2019, até o mês de setembro, somen-
tes de mulheres pelas razões e nas condições te na Capital Federal brasileira, dados cataloga-
previstas em lei “sejam identificadas nos laudos dos pelo Fórum de Mulheres do Distrito Federal
depoimentos, declarações e interrogatórios, e Entorno mostram o assustador número de 27
nota-se que o sistema Polícia Civil observa a feminicídios. Mulheres brutalmente assassina-
prática do feminicídio conforme programas pa- das não só por parceiros ou ex-parceiros, mas
dronizados e rotinas cognitivas estabilizadas também em atos de violência misógina propor-
para a investigação dos crimes contra a pessoa, cionada pela inexistência de políticas públicas
de forma generalizada”. Como dizem o autor e de transporte, de iluminação e/ou de segurança
a autora, há espaços de discricionariedade no que deveriam garantir à todas nós (mas muito
campo investigatório não raro povoados por especialmente às mulheres negras, pobres e pe-
mitos que configuram zonas de incerteza pro- riféricas) o elementar direito à cidade.
dutoras de “esquemas organizativos não ofi- No Brasil, incorporamos à nossa legislação
ciais (...)” (VILLA, 2018). o feminicídio como o ato de matar uma mulher
O inquérito policial quando se trata de por razões da condição de sexo feminino em
crimes contra as mulheres em decorrência da contextos de violência doméstica e familiar e/
condição de gênero ainda é, pois, dominado por ou de menosprezo ou discriminação à condição
estereótipos e preconceitos. De modo que as de mulher. De fato, tanto a casa quanto a rua são
Diretrizes representam um avanço fundamental lugares de risco para as mulheres.
não somente para os casos flagrantes de homicí- Vivemos com medo. Com medo de ações
dios de mulheres, mas também para a apuração violentas de companheiros ou ex-companhei-
de supostos suicídios, mortes aparentemente ros. Mas também com medo de que a negligên-
acidentais e outras cujas causas iniciais são con- cia estatal em garantir transporte, iluminação e
segurança nos faça a próxima vítima da letalida-
Neste sentido, ver meu recém-lançado MENDES, Soraia da
1
5
Coluna: Elas no front
Assim foram as mortes de Letícia e Ge- e indígena. Já os indiretos seriam as mortes por
nir. Duas mulheres moradoras de uma região abortos clandestinos ou conduzidos em situa-
administrativa do Distrito Federal que, dada a ções precárias, os decorrentes de mortalidade
ausência de transporte público, obrigaram-se a materna, as mortes ligadas ao tráfico de pesso-
buscar uma condução clandestina para chegar as, ao tráfico de drogas e a atos deliberados ou
ao trabalho. Letícia e Genir foram estupradas e decorrentes de omissão do Estado.
mortas por um homem que não teria encontra- Em meu ponto de vista, o fenômeno do
do melhor hora e oportunidade para a prática do crescimento do número de mortes de mulheres
crime se o Estado tivesse garantido a essas tra- no Brasil demonstra estar em curso em nosso
balhadoras o direito (básico!) de ter ao seu dis- país um verdadeiro feminicídio de Estado me-
por linhas de ônibus que conectem a periferia ao diante uma política, ora subterrânea, ora ple-
coração do Poder em Brasília. namente visível, de extermínio. Um verdadeiro
Tal como já escreveu Marcela Lagarde o Gendercide3.
feminicídio é “uma fratura do Estado de Direito O ódio em relação às mulheres ainda é
que favorece a impunidade”. De modo que, em uma marca indelével em sociedades como a bra-
uma concepção mais alargada, o conceito abar- sileira. E ele prospera na medida em que incenti-
ca o conjunto de fatos que caracterizariam tam- vado pelo discurso que hoje prospera do centro
bém outros crimes contra mulheres e meninas do Planalto até os rincões deste nosso imenso
em casos nos quais a resposta das autoridades é país. Ele ganha folego cada vez que se diz a uma
a omissão, a inércia, o silêncio ou a inatividade. mulher que ela merece ser estuprada. Ele se as-
Ele, o Estado, é cumplice das facadas nas sanha quando se diz que a mulher jamais pode
costas da mulher que buscou uma delegacia estudar mais do que um homem.
da mulher que não existia, daquela que bateu Em “Wars Against Women: Sexual Violen-
à porta da Casa da Mulher Brasileira que per- ce, Sexual Politics and Militarized State” (Guer-
manece fechada, da outra que não encontrou ras contra mulheres: violência sexual, políticas
a casa abrigo para seu refúgio no momento de sexuais e Estado militarizado), publicado há
desespero. Ele, o Estado, disparou o revólver quase vinte anos, Liz Kelly trata da violência
junto com o feminicida que viu facilitado a pos- sexual como estratégia deliberada na guerra e
se de armas pela política do Governo Federal. repressão política de Estado e aponta que este
Ele, o Estado, estuprou e matou a mulher que tipo de violência está conectado às mais varia-
para chegar ou retornar do trabalho precisou das formas de violências e contextos. Para Kelly,
do “transporte pirata”. nós feministas deveríamos questionar o uso que
Ele, o Estado, é feminicida por negligen- nós mesmas fazemos da expressão “guerra às
ciar políticas públicas de proteção e direito à mulheres”, pois, segundo ela, seu uso pode ser
cidade, mas também o é por permitir que se entendido como uma metáfora para violência
dissemine um discurso moral e religioso que contra mulheres, enquanto a realidade seu sig-
impõe às mulheres o lugar da subserviência e nificado denota exata a realidade histórica que
que representa um gatilho para a violência que todas vivenciamos.
sofreu tanto a moradora de rua cujo corpo foi Entendo que, no Brasil, há sim uma guerra
encontrado na sarjeta, quanto da desembarga- contra as mulheres. Estão nos matando. Está na
dora federal cuja vida foi ameaçada dentro de hora de começarmos a denunciar internacional-
um Tribunal Federal. mente isso.
Rashida Manjoo2 nos ensina que as mor- 3
Este termo foi usado pela primeira vez por Mary Anne War-
tes de mulheres baseadas no gênero podem ser ren, em 1985, em seu livro “Gendercide: The Implications of
classificados de maneira direta, com autoria de- Sex Selection”.
finida, ou indireta. Assim, o feminicídio direto
pode ser o resultado da violência de parceiro ín- REFERÊNCIAS
timo, bem como os relacionados à religiosidade,
à orientação sexual ou à identidade de gênero VILLA, Eugênia Nogueira do Rêgo Monteiro. MACHA-
ou mesmo os relacionados à identidade étnica DO, Bruno Amaral. O mapa do feminicídio na Polícia
Civil do Piauí: uma análise organizacional-sistêmica.
2
Rashida Manjoo foi relatora da reunião de peritos sobre as-
sassinatos de mulheres baseados em gênero ao Conselho de R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 16, n. 22, p.86-107, jan./
Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (2012). jun. 2018.
6
Artigos
SORAIA MENDES
Pós-doutora em Teorias Jurídicas Contemporâneas, pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro - UFRJ. Doutora em Direito, Estado e Constituição pela Universidade
de Brasília - UnB. Mestra em Ciência Política, pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul - UFRGS. Professora Associada do PPG Mestrado e Doutorado em
Direito do Centro Unificado de Brasília - UniCeub. Coordenadora Nacional
do Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da
Mulher - CLADEM/Brasil. Autora de diversas obras, dentre as quais
Criminologia Feminista: novos paradigmas e Processo Penal Feminista.
Advogada especialista em direitos humanos e ciências criminais.
7
INSTITUTO BAIANO DE DIREITO PROCESSUAL PENAL
E M F O C O
I S
M U N H A
S T E S T E
P R O V A
Contribuições da epistemologia e da
psicologia da memória ao sistema de
justiça.
Nas encruzilhadas projetadas pelo racismo, O Direito penal do autor, arriado em ter-
colonialismo e necropolítica (que não podem, ja- reiro racista/colonial, é a regra básica de nos-
mais, serem desassociadas), o caminho resultante so sistema punitivo democrático, programando
é a morte negra, uma emboscada que não se res- a periculosidade, a seletividade racial e nossos
tringe ao corpo físico e empurra a maior popula- Direitos penais (dinâmica que se opera ao con-
ção negra fora de África para um sistema punitivo trário também!), facetas “modernas” da colonia-
no qual a violência é sua razão de ser e existir. lidade que traz inexistência e impossibilidade de
Sendo estes os pilares de nossa sociedade, (re)construção do Ser negro diaspórico.
o único arcabouço jurídico que pode ser produzi- O sistema de controle racial, formal e in-
do é racista, programando, pela melaninocracia, formal, que opera sob a legítima defesa da bran-
o reconhecimento e distribuição do direito à vida, quitude, aniquila qualquer insurgência negra
condição constitutiva e existencial da branquitu- cuja pauta traz a demolição de toda estrutura
de que, ao colocar em prática seu projeto-mun- construída e consolidada para seu extermínio,
do, caracterizou seu objeto enquanto pharmakon incluindo a herança cristã “paz e amor” que pre-
(Mbembe, 2017), sempre pronto à destruir a (pós) ga resignação e resiliência como fundamentos
modernidade pela busca à direitos naturais (iden- de uma (sub)alteridade que não alcança a base
tidade e ancestralidade) cuja potência emancipa- racial, mas institui o oferecimento da outra face
tória decorrente de brados libertários insilenci- para a porrada. O problema é que, corpo que
áveis orienta à irresignação às múltiplas prisões toma tiro, inclusive pelas costas, não pode se
projetadas como zonas brancas. dar ao luxo de oferecer o rosto!
A segurança dessa arquitetônica imprescin- Diante da violência racista programática, o
de de um sistema de controle que neutralize os carrego criminológico, não há possibilidades de
riscos e perigos advindos de corpos negros atra- vivência negra em termos de bem viver, alijada
vés da desumanização e naturalização da violên- do direito à coletividade, apenas sobrevivência,
cia e morte, um sistema que reafirma lugares pela por isso o projeto político democrático negro se
manifestação de poder racial que, mesmo ilusório, pauta no paradigma sankofaquiano, enunciando
é a essência de sistema de controle escravagista a ancestralidade (re)negada/roubada. Todos os
que vulgarizou a autodeclaração, e (re)afirmação, objetivos dessa construção coletiva dependem
de “sinhôs” (Fanon, 2008) e sua necessidade de da desconstrução da branquitude e desmas-
objetificar corpos desprovidos de qualquer valor, caramento da branquidade que sustentam sua
mesmo que estes sejam tão semelhantes. hegemonia e monopólio do poder, ser, saber e
Assim, o senhorismo é a manifestação de existir sob discursos inimizantes, que endossam
nosso sistema punitivo, incorporado pelo Direi- o racismo antinegro enquanto falam de “paz so-
to penal do autor racialmente construído por cial”, fundamental para as democracias que “[...]
Lombroso, e traduzido por Nina Rodrigues, não dependem, hoje em dia e para sua sobrevivên-
por acaso no pós-abolição (Góes, 2016), demo- cia, da divisão entre as esferas dos semelhantes
cratizando o senhorismo, massificação objetifi- e as dos não-semelhantes ou, ainda, dos amigos
cante que vincula todo(a)s na cadeia punitivista e ‘aliados’ e dos inimigos da civilização. Sem ini-
desenvolvida nas tramas enredadas pelo país da migos, é lhes difícil sustentarem-se sozinhas”
maravilhas raciais e envolta à periculosidade, (Mbembe, 2017, p. 87).
conceito racista alinhavado a corpos negros1 A condição existencial de uma arquite-
que, por conseguinte, representam o mal que tônica racista, pintada como democrática, é o
gera medo e demanda um controle acautela-
tório/preventivo que define criminalizações, 1
Se não fosse sua confissão (com vistas ao arrepen-
orientadas e definidas, pela programação racista dimento que assegura um cantinho no céu cristão),
que, sob a bandeira do direito à igualdade, sen- quem iria suspeitar que o ex-Procurador-Geral da
tencia vidas negras à pena de morte paralela, República, Rodrigo Janot, seria um assassino em
com fundamento constitucional de uma guerra potencial, um “criminoso nato” no sentido estabe-
racial declarada como “contra às drogas”. lecido pela Criminologia Positivista?
9
Artigos
racismo, já que ordem em sociedades racistas bram no confronto com seu opressor, assimilam
pressupõe a paz racial conseguida somente com golpes e respondem de imediato, sem perder a
o controle e domínio completo do mundo negro, malemolência e o riso gozador do semblante que
para o qual, o mundo branco é extremamente faz a razão branca perder seu chão.
hostil. A liberdade negra pressupõe a restrição Invocar Exu é cantar para que a estratégia
da liberdade branca, ruptura dos seus meios de branca de neutralização de seu potencial suba,
controle e, por fim, demolição do seu mundo. evapore no ar como o processo secular do ra-
Assim, naquela encruzilhada racista, a re- cismo religioso mantido pelo cristianismo, em
sistência negra, debochadamente, se manifesta suas diversas vertentes, que lhe confere a ca-
em posturas que rompem a sistemática colo- riz diabólica da qual resulta medo, inimização
nial/colonialista, chutando sua demanda para e marginalização. Exu e a população negra, que
longe e abrindo “novos” caminhos decoloniais não raramente se entrecruzam no mesmo cor-
que nos levam (de volta) ao início, ao que é pri- po, são alvos do mesmo processo de aniquilação,
mordial, para confrontar o racismo antinegro e já que questionam e desmentem as “verdades”
suas exigências. que sustentam e mantêm o mundo branco e seu
Exu é invocado e incorporado como pos- narcisismo genocida.
sibilidade bem viva de enfrentamento ao ge- A feitura de uma Criminologia malandre-
nocídio e ao epistemicídio, com a produção de ada, despachada nas encruzilhadas do terrei-
instrumentos de combate que projetam medo ro marginal, transgrede as normatizações em
(e com razão), eis que é a partir do mensageiro meio à arerês, expondo todos os instrumentos
entre Orum e Ayê, do dono da comunicação (e de controle racista que estruturam nossa demo-
da encrenca), aquele que nasce antes mesmo da cracia monocromática (mesmo aqueles que apa-
própria existência, que se constrói ao descons- rentam “progressistas”) e, ao derrubar discur-
truir, que se ordena ao desordenar, já que, em sos hegemônicos que tentam anular existências
suas múltiplas faces (Rufino, 2019), rege e repre- vocacionadas à liberdade, saúda presenças que
senta a lei do retorno que estrutura o devir-ne- pulsam resistências, que podem ser lidas como
gro que, ao chamar saberes-poderes racistas ao domesticadas pelas amarras racistas confundi-
meio da roda, malandreando entre o miudinho e das com ternos e gravatas bem alinhadas, mas
o cruzado, na passada pode facilmente, e com o ao pautar um sistema jurídico (anti)racista, mos-
estilo que lhe é peculiar, derrubar a branquitude tra que quem gargalha, ri muito melhor de quem
e sambar em sua cara desconcertada. ri por último!
Manifestando o poder da criação, Exu é for-
ça que ejacula vida, poder e força indestrutíveis, REFERÊNCIAS
batucando pontos cuja potência cria possibilida-
des de resistências e de existências, pelas quais é GÓES, Luciano. A “tradução” de Lombroso na obra de
possível ver, e caminhar, por caminhos invisíveis, Nina Rodrigues: o racismo como base estruturante da
improváveis e impossíveis se mantida a postura Criminologia Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2016.
opressora e violenta racista/colonial/colonialista FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tra-
que caracterizam a base do mundo branco. dução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
Assim, não foi sem propósito que Exu foi MBEMBE, Achille. Políticas da Inimizade. Lisboa: An-
demonizado. Por ser energia viva que enrijece tígona, 2017.
posturas dóceis e manipuláveis, sua natureza RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de
sediciosa e desprendida transfigura corpos que, Janeiro: Mórula Editorial, 2019.
diante dos conflitos, envergam, mas não que-
LUCIANO GÓES
10
Artigos
Já não é possível dizer que justiça restau- Noruega e da Nova Zelândia se desenvolveram
rativa seja algo novo no Brasil. Desde as primei- no contexto da justiça juvenil, sendo que ape-
ras experiências institucionalizadas, lá se vão 14 nas esta última utilizou a conferência de família
anos. É bem verdade que apenas em anos mais (family group conference) como prática restau-
recentes o tema alcançou maior repercussão, rativa. Todas as demais experiências utilizaram a
sobretudo a partir da Resolução n. 225 do CNJ, mediação vítima-ofensor (VOM) e eram voltadas
de maio de 2016. Pode-se dizer que esse instru- para casos envolvendo ofensores adultos2.
mento normativo representa um dos momentos Com o passar das décadas, à mediação ví-
mais importantes do que chamo de “segunda tima-ofensor – prática restaurativa mais comum
onda” da justiça restaurativa no Brasil, marcada e difundida – foram sendo agregadas outras prá-
pela regulação e ampliação do protagonismo do ticas, a exemplo das conferências (inicialmente
Poder Judiciário (Pallamolla, 2017). na Nova Zelândia) e dos círculos restaurativos
O campo da justiça restaurativa no Brasil (primeiramente no Canadá) (Van Ness, Daniel W.
é bastante diversificado e fragmentado. Existem & Strong, Karen Heetderks, 2010, pp. 28-29).
experiências, projetos e programas em curso no É interessante observar que o que hoje se
âmbito do Poder Judiciário, em comunidades, entende por justiça restaurativa – em nível in-
escolas, prisões, etc., e todas se autodenominam ternacional – não estava dado desde o início
como justiça restaurativa. Não se trata, portan- dessa trajetória, tendo o próprio nome – justiça
to, de um campo com desenvolvimento unifor- restaurativa – surgido depois das primeiras ex-
me, até mesmo suas dimensões são difíceis de perimentações. Por isso a insistência em afirmar
precisar, dado o grau de informalidade, a escas- que a justiça restaurativa não está encerrada em
sez de acompanhamento por meio de pesquisas um modelo rígido, mas está em construção.
e a ausência de dados disponíveis sobre as ini- Pode-se dizer que a justiça restaurativa é
ciativas. uma forma de administração de conflitos dis-
Como se pode imaginar, abordar o tema tinta da imposta pelo modelo de justiça crimi-
traz inúmeras dificuldades e de diversas ordens. nal tradicional. Possui uma principiologia pró-
É preciso, por exemplo, enfrentar a desconfiança pria, diferente do modelo tradicional de justiça
e resistência de atores do campo jurídico – qua- – baseado no processo penal e na imposição de
se sempre fruto do desconhecimento do tema; penas – e propõe, dentre outras coisas, a parti-
lidar com as lacunas de um modelo de justiça cipação da vítima e do ofensor na gestão do con-
que está em construção e em constante trans- flito, a reparação do dano decorrente do crime
formação – o que pode levar a distorções na sua e a responsabilização do ofensor por vias não
aplicação; e, ainda, analisar a justiça restaurativa estigmatizantes e excludentes. Sua estratégia,
relatada na literatura especializada internacio- portanto, passa longe de ser soft e não pode ser
nal tendo em mente questões estruturais e cul- confundida com impunidade. Trata-se de outra
turais do Brasil. forma de responsabilização.
Foi diante da insuficiência do modelo ins- Através da utilização de práticas de admi-
titucionalizado de administração de conflitos nistração de conflitos baseadas no diálogo entre
oferecido pela justiça criminal que práticas de aqueles direta e/ou indiretamente implicados no
justiça restaurativa, paulatinamente, foram sen- conflito/crime, busca instituir um diálogo para,
do experimentadas em diversos países a partir quiçá, alcançar um acordo sobre o que deve ser
da década de 1970. As primeiras e mais conhe- feito para reparar a ofensa e o dano causado à
cidas experiências foram realizadas no Canadá
(1974), Estados Unidos da América (1978), Norue-
2
Importante salientar que as primeiras experiências, em
sua grande maioria, foram de iniciativa de agentes da
ga (1981) e Nova Zelândia (1989)1. Destas, as da condicional (probation offices) e de atores da comunidade.
No caso do Canadá e dos EUA, a organização cristã dos
1
Sobre a cronologia dos programas pioneiros de justiça Menonitas desempenhou importante papel. Para mais
restaurativa, conferir: Van Ness, Daniel W. E Strong, Karen detalhes sobre as experiências inicias, conferir: Van Ness,
Heetderks. Restoring Justice: an introduction to Retorative Daniel W. E Strong, Karen Heetderks. Restoring Justice:
Justice. New Providence, NJ: LexisNexis, Anderson an introduction to Retorative Justice. New Providence, NJ:
Publishing, 2010, 4a ed. LexisNexis, Anderson Publishing, 2010, 4a ed.
11
Artigos
vítima. Essa reparação, no mais das vezes, en- cionais envolvidos com a justiça criminal quanto
volve questões simbólicas, não se traduzindo em da própria sociedade civil em geral, nos debates
valores monetários (não se confunde, pois, com sobre os propósitos, as possibilidades e os limi-
a reparação de danos no sentido jurídico do ter- tes da justiça restaurativa no Brasil.
mo). Pode-se ainda dizer que este modelo almeja
a constrição do sistema de justiça criminal tradi- REFERÊNCIAS
cional, sobretudo no que diz respeito à redução
da aplicação de penas (principalmente da pena JACCOUD, Mylène. Princípios, Tendências e Procedi-
privativa de liberdade)3. mentos que cercam a Justiça Restaurativa. In SLAK-
No Brasil, o processo de construção da jus- MON, C., R. DE VITTO, R. GOMES PINTO (org.). Jus-
tiça restaurativa está em curso, mas já é possí- tiça Restaurativa. Brasília/DF: Ministério da Justiça e
vel identificar algumas características do nosso PNUD, 2005, pp. 163-188.
modelo. A que salta aos olhos é a do protagonis- PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça res-
mo do Poder Judiciário, o qual tem centralizado taurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM,
o debate, a formação de facilitadores e a imple- 2009. (Monografias, 52).
mentação da justiça restaurativa. A este prota- PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. A construção
gonismo, somam-se outras características que da justiça restaurativa no Brasil e o protagonismo do
merecem atenção, por exemplo: a reduzida par- Poder Judiciário: permanências e inovações no cam-
ticipação das vítimas nas práticas restaurativas; po da administração de conflitos. Tese de Doutora-
o uso massivo dos círculos de construção de paz do. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais.
e restaurativos e a aplicação reduzida da me- Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
diação vítima-ofensor; imprecisões conceituais Sul, 2017.
quanto à diferenciação entre ‘prática restaurati- ROCHE, Declan. Retribution and restorative justice.
va’ e ‘justiça restaurativa’ (Pallamolla, 2017). In Gerry and VAN NESS, Daniel W (ed.). Handbook of
Não há espaço aqui para desenvolver essas Restorative Justice. Cullompton, UK; Portland, USA:
questões, mas o que se pretende neste pequeno Willan Publishing, 2007
arrazoado é, em síntese, destacar a importância VAN NESS, Daniel W. E Strong, Karen Heetderks.
de se aprofundar os conhecimentos sobre jus- Restoring Justice: an introduction to Retorative Jus-
tiça restaurativa a fim de possibilitar um maior tice. New Providence, NJ: LexisNexis, Anderson Pu-
engajamento, tanto dos diversos atores institu- blishing, 2010, 4a ed.
ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa. São Paulo: Palas
3
Para uma diferenciação aprofundada dos modelos,
conferir: PALLAMOLLA, 2009; ZEHR, 2012; ROCHE, Athena, 2012.
2007; WALGRAVE, 1993, apud JACCOUD, 2005.
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Artigos
Um campo interseccional que não pode ser democraticidade processual penal. Investiga-
desprezado nas investigações que recaem sobre ções sem obediência à legalidade, vazamentos
as formas contemporâneas através das quais seletivos de material à imprensa, prisões-tor-
se apresenta o processo penal é o da constru- tura para a fabricação de condenados, um ator
ção de uma razão normativa (DARDOT; LAVAL, político travestido de juiz, uma corporação em-
2016). Para além do tratamento do neoliberalis- presarial-política responsável pelas acusações
mo como mais uma etapa do sistema de produ- (esta faceta assumida pelo pool acusatório), um
ção capitalista ou ainda, como um determinado Tribunal Constitucional que se absteve de ga-
e específico sistema de acumulação, tem-se o rantir a Constituição nos momentos mais tensos
advento de uma racionalidade. destes processos foram apenas alguns episódios
Efetivamente, o campo processual penal dos quais se pode perceber claramente as rela-
não se subtrai a este atravessamento. A trans- ções simbióticas entre o neoliberalismo autori-
versalidade da razão normativa neoliberal ga- tário e o processo penal brasileiro.
rante pelo menos dois fenômenos contíguos: a O mais gravoso disso tudo é que o neo-
transposição do léxico economicista ao direito liberalismo autoritário (CHAMAYOU, 2018), é
processual penal e, também, a ressignificação de um indexador muito claro do projeto instalado
variegadas categorias processuais penais. Como nesta razão normativa: subverter a democra-
já referenciado em obra anterior (GLOECKNER, cia e acelerar os processos de decomposição
2018), o processo penal brasileiro não se des- do público em proveito dos grandes fluxos de
piu – mesmo com o advento da Constituição de capital, valendo-se, como instrumento de des-
1988 – dos elementos fundamentais que sincro- possessão, do judiciário (o lawfare é garantido
nizaram a estrutura do código de 1941 ao Codice pelas instituições judiciárias) e de seus agentes
Rocco italiano de 1930. Antes houve uma reorga- “em uma luta patriótica contra a corrupção”.
nização das finalidades políticas do processo ao Nem que o resultado seja a precarização de múl-
campo discursivo da Escola Superior de Guerra, tiplas empresas e a concessão de fonte enorme
mediante o construto antidemocrático denomi- de petróleo (o pré-sal) para o capital estrangeiro.
nado “instrumentalidade do processo”. Como governamentalidade – a arte de conduzir
O segundo fenômeno a ser explorado já condutas, (como diria FOUCAULT, 2008), o ne-
não se esgota nesta ressignificação do velho oliberalismo alavanca em sua narrativa transis-
autoritarismo. Trata-se da performatividade da tórica e falsificacionista, a relação entre a inter-
razão normativa em sua capacidade de articu- venção econômica e governo totalitário. E, neste
lar e mais especialmente, de gerar novos ape- sentido, os seus ilustres arautos defendem que a
los políticos ao processo penal. Em realidade, intervenção no campo econômico acarreta, no
consumam-se uma série de alterações sistêmi- futuro, a cada vez maior subtração de liberdades
cas no corpo do processo penal, reunindo não até o Estado agigantar-se e reproduzir o fenô-
apenas elementos de alta densidade normativa, meno do nacional-socialismo. Isso tudo torna
mas também a conformação de subjetividades invisível que a garantia da liberdade econômica
– o neoliberalismo corresponde, neste sentido, depende de um Estado forte, literalmente auto-
à produção de modos de subjetivação – que de ritário no tolhimento de direitos e garantias fun-
uma maneira muito sincrética, se apresentam damentais.
como antidemocráticas. O processo penal brasileiro, consideran-
A operação Lava-Jato, sabe-se, foi uma das do estes elementos, mobiliza velhas categorias
estruturas principais que permitiu o floresci- como “liberdade das provas”, “livre convenci-
mento do bolsonarismo, que se apresentava – mento”, etc e se vale de outros arroubos teó-
mormente como os neoliberais – antipolíticos. ricos, como a redução do nível dos standards
Mais bem, o bolsonarismo corresponde ao modo probatórios, membros do Ministério Público e
de subjetivação política em tempos neoliberais, do Judiciário engajados em think thanks rea-
isto é, como “antipolítica”. E, especificamente no cionários, verdadeiras anedotas epistêmicas
campo do processo penal, o processo Lava-Ja- como “garantismo integral ou positivo”, pro-
to é a caracterização da negação sintomática da duto de um orwelliano “duplipensar”, repro-
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Artigos
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Artigos
No próximo dia 21 de novembro o Plenário ção. O mesmo não ocorre com relação ao indiví-
Supremo Tribunal Federal apreciará o Tema 990 duo, porque o sigilo é regra em garantia de sua
da Repercussão Geral (Recurso Extraordinário privacidade, admitindo-se, excepcionalmente, a
n. 1.055.941/SP), o qual ganhou amplo desta- publicidade, quando em conflito interesses indi-
que no cenário jurídico após a determinação do viduais com individual ou social, em garantia do
Ministro Presidente Dias Toffoli de suspender, convívio e da segurança coletiva.
em 16.7.19, o trâmite de todos os processos ju- Nesta seara em que a privacidade e a pu-
diciais, inquéritos e procedimentos de investi- blicidade parecem colidir, o conflito é requisi-
gação criminal em curso no território nacional, tado para que a ideia de democracia prevaleça,
“que foram instaurados à míngua de supervisão com tutela das liberdades públicas e individuais
do Poder Judiciário e de sua prévia autorização e inter-relacionamento entre os diversos direi-
sobre os dados compartilhados pelos órgãos de tos contemplados pelo sistema de normas. So-
fiscalização e controle (Fisco, COAF e BACEN), bre o assunto, Mariana Stuart Nogueira:
que vão além da identificação dos titulares das
operações bancárias e dos montantes globais”. Verificada a linha de abordagem do pro-
A decisão está lastreada no que decidido cesso penal constitucional, o sigilo pode
anteriormente pelo Supremo, no julgamento ser visto como fator de análise dos ele-
conjunto das Ações Diretas de Constitucionali- mentos autoritários e democráticos de
dade n. 2.386, 2.390, 2.397 e 2.859, em 24.2.16, que um Estado [...]. O sigilo deve permanecer
tratavam da impugnação de normas relativas ao em um equilíbrio, uma vez que, em extre-
fornecimento, pelas instituições financeiras, de mos, demonstra Estados não Democráti-
informações bancárias de contribuintes à admi- cos. A saber, o sigilo, em seu extremo, em
nistração tributária, quanto à limitação de aces- que tudo é sigiloso, todos os atos proces-
so a dados alusivos à identificação dos titulares suais e inclusive assegurando os direi-
das operações e dos montantes globais mensal- tos fundamentais, tem-se um Estado não
mente movimentados, ficando vedada a inclusão transparente, que não valoriza o funda-
de qualquer elemento que permita identificar a mento da cidadania. Em outro extremo,
origem ou a natureza dos gastos, nos termos da em que não se preserva o sigilo, em que
própria Lei Complementar 105/2001. tudo é público, a cidadania também so-
Na linha de entendimento que vem sendo fre pela insegurança, pois não tem seus
construída pelo STF, é possível que o Tribunal direitos de personalidade resguardados
autorize apenas o chamado “compartilhamento e sofre com a violação da privacidade.
obrigatório” de informações, permitindo tão-so- [...] Em suma, pode-se dizer que o sigilo
mente a transferência de evidências objetivas – é uma medida processual penal que serve
identificação de titulares e montantes globais como garantia à preservação dos direitos
– entre órgãos administrativos de fiscalização e fundamentais, como a privacidade, ex-
controle e o Ministério Público. cepcionando a regra de publicidade dos
Permite-se a mitigação do direito ao sigilo atos processuais, quando há necessidade
financeiro, previsto como direito de personali- de proteção a bem jurídico maior. (No-
dade nos artigos 5º, incisos X e XII, da Constitui- gueira, 2012, p. 110).
ção Federal, diante da ponderação com direito
fundamental coexistente de maior valor, peran- A privacidade do indivíduo é acobertada
te o qual sofrerá relativização e será amoldado, pela proteção do sigilo, como limite dos direi-
sem que isso implique – porque não se trata de tos individuais contra atuação abusiva do Esta-
regra – a sua exclusão. do, compreendendo o sigilo bancário e fiscal um
A publicidade é regra na atuação do Es- dever jurídico que têm as instituições financei-
tado, admitindo-se, excepcionalmente o sigilo ras, organizações auxiliares e funcionários de
como restrição ao direito individual à informa- não divulgar, salvo por motivo legal, informações
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Artigos
obtidas e que venham a obter em razão das ativi- jurídico pátrio, a imposição de que a limitação
dades econômicas desenvolvidas. de direitos fundamentais apenas se proceda me-
O acesso ao conteúdo das operações finan- diante autorização judicial e com observância
ceiras, no entanto, se submete a imprescindível das garantias processuais do acusado.
reserva jurisdicional. A exigência de autorização Assim, no julgamento do Tema 990 da Re-
judicial para a quebra do sigilo decorre da siste- percussão Geral, o Supremo terá a oportunidade
mática de um processo penal acusatório. Assim, de consagrar a impossibilidade de compartilha-
sendo o Ministério Público o detentor da pre- mento direto de dados bancários e financeiros
tensão acusatória e o acusado a parte contrária, entre órgão administrativos e de controle e o
cabe apenas ao magistrado decidir, de forma im- Ministério Público, que englobem informações
parcial e garantindo a isonomia, o contraditório sobre a origem, a natureza e o destino das ope-
e a ampla defesa, sobre a legalidade e proporcio- rações realizadas pelos investigados, em obser-
nalidade da produção probatória requerida por vância ao direito fundamental à intimidade e em
qualquer das partes. Com isso, apenas o juiz, nos conformidade com as regras do sistema proces-
termos do devido processo legal, possui pode- sual acusatório.
res para restringir os direitos dos acusados e de
terceiros com a finalidade da produção de prova. REFERÊNCIAS
(SCARANCE, 2005, p. 470)
De fato, é impensável imaginar que uma NOGUEIRA, Mariana Stuart. O sigilo no processo pe-
das partes do processo penal tenha legitimi- nal e a efetivação dos direitos fundamentais. Revista
dade para restringir direitos fundamentais da Jurídica, dezembro de 2012, n. 422, p. 110-112.
parte contrária em razão do exercício da titula- SCARANCE, Antonio Fernandes. O sigilo financeiro
ridade exclusiva da pretensão punitiva estatal. e a prova criminal. In: PIZOLO, Reinaldo. GALVADÃO
Decorre do sistema acusatório, fundamento do JR., Jayr Viégas (Coord.). Sigilo fiscal e bancário. São
processo penal constitucional no ordenamento Paulo: Quartier Latin, 2005.
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Varas do Júri de Fortaleza. No ano de 2018, em novidade é que além da fuga do aparelho inves-
um espaço amostral limitado (processos com tigativo estatal - que se reflete nos crescentes
atuação da Defensoria Pública), verificaram-se índices de letalidade nas intervenções policiais
15 casos envolvendo auto de resistência quali- – surge a criminalização da vítima que sobrevi-
ficado. Em todos eles, os réus foram absolvidos ve, como forma de retardar, e até mesmo evitar
no Tribunal do Júri, impronunciados ou tiveram a apuração da conduta do agente de segurança,
a prisão preventiva revogada. pois, ao se tornar vítima, nem mesmo o auto de
Esses casos podem ser assim classifica- resistência é instaurado.
dos quando há as seguintes características: 1) Por isso, ainda que aqui tenha sido descri-
policiais militares sem qualquer lesão (tentati- ta com base em pesquisa num pequeno espaço
va branca); 2) escassez probatória injustificada: amostral, os operadores do Direito precisam
ausência de perícia na viatura para averiguar a ficar atentos a essa nova prática, a fim de coi-
veracidade da versão policial, de testemunhas, bir sua difusão e legitimação pelo sistema de
de perícia nas armas dos policiais e nas armas justiça.
eventualmente apreendidas com os “réus”, de
exame de local de crime; 3) contradição na ver- REFERÊNCIAS
são das “vítimas”; 4) réus lesionados.
A título de exemplo, vale destacar o caso AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e
de G.C.S.L, que, em fevereiro de 2018, foi lesio- a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Hori-
nado por disparo de arma de fogo por parte de zonte: Editora UFMG, 2007.
uma composição da Polícia Militar, em suposto CEARÁ. 2ª Vara do Júri da Comarca de Fortaleza. Pro-
contexto de troca de tiros, e ainda foi atrope- cesso nº 0110022-56.2018.8.06.0001. Partes: Ministé-
lado pela viatura, o que comprometeu sua ca- rio Público do Estado do Ceará e G.C.S.L. Distribuído
pacidade de locomoção. Em contrapartida, não em 01/03/2018.
houve a comprovação da realização de disparos FERNANDES, Lara Teles. Prova testemunhal no pro-
por parte de G.C.S.L contra a polícia. Mesmo cesso penal: uma proposta interdisciplinar de valora-
assim, o MP ofereceu denúncia por tripla ten- ção. Florianópolis: Emais, 2019.
tativa de homicídio, tendo como vítimas os po- FÓRUM NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA. 11º
liciais, e como réu G.C.S.L. Ao final do processo, Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2017.
o réu foi impronunciado, contudo a conduta FÓRUM NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA. 12º
dos agentes que o lesionaram nunca chegou a Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2018.
ser apurada1. FÓRUM NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA. 13º
Prevaleceu, para fins de investigação, por- Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2019.
tanto, somente a versão dos agentes públicos, HUMAN RIGHTS WATCH. Força letal: Violência poli-
a quem se costuma atribuir uma presunção de cial e segurança pública no Rio de Janeiro e São Pau-
veracidade acrítica (FERNANDES, 2019), em de- lo. 2009.
trimento de outros elementos. NÚCLEO DE ESTUDOS DA CIDADANIA, CONFLITO
Essa nova prática mostra que a conclusão E VIOLÊNCIA URBANA DA UNIVERSIDADE FEDERAL
de Zaccone estava certa: a ausência de inves- DO RIO DE JANEIRO. Relatório final de pesquisa co-
tigação só fortalece a necropolítica estatal. A ordenada por Michel Misse – “autos de resistência”:
uma análise dos homicídios cometidos por policiais
1
Tal processo tramitou na 2ª Vara do Júri da Comarca na cidade do Rio de Janeiro (2001 – 2011).
de Fortaleza, Ceará, sob o número 0110022- ZACCONE, Orlando. Indignos de vida – a forma jurí-
56.2018.8.06.0001. Eram partes o Ministério Público
do Estado do Ceará e G.C.S.L Foi distribuído em dica da política de extermínio de inimigos na cidade
01/03/2018 e se encontra atualmente arquivado. do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.
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ENTREVISTA
Múltiplos Olhares
Todavia, esse não me parece o melhor momento
para isso. Não dá para pensar em uma lei
sem considerar o contexto de sua produção.
E, no atual contexto brasileiro, não existem
condições objetivas para a reflexão necessária
que uma legislação que vai tratar de valores
como a “verdade” e a “liberdade” merece. Vive-
se, em todo o mundo, mas no Brasil com uma
maior intensidade, um momento em que tudo e
todos são reduzidos a objetos negociáveis e/ou
descartáveis. Tanto os “direitos fundamentais”
quanto valores democráticos como a “verdade”
e a “liberdade”, hoje, tenderiam a ser tratados
pelo legislador como obstáculos à eficiência do
Estado e do mercado.
Rubens Casara Só há sentido em reformar uma legislação, em
Juiz de direito do TJ/RJ, doutor em direito, especial uma legislação que trate de processual
mestre em ciências penais. Em estágio de pós- penal, se a mudança tiver o objetivo de reforçar
doutorado em Paris-Nanterre (Paris X). Membro limites que impeçam abusos do poder, inclusive
da AJD e do Corpo Freudiano. do poder econômico, ou arbítrios dos agentes
estatais. Entre os atuais detentores do poder
político e do poder econômico, não há essa
EM TERMOS GERAIS, COMO VOCÊ TEM vontade de impor limites ao poder. O projeto
ANALISADO AS DINÂMICAS DE TENTATIVA Moro, por exemplo, vai no sentido contrário.
DE REFORMA DO CÓDIGO DE PROCESSO É preciso tratar com seriedade a reforma
PENAL NO BRASIL? do Código de Processo penal e, para tanto,
seria necessário um grande debate público
RUBENS CASARA É um movimento bem com a sociedade, marcado por informação de
complexo. qualidade e participação popular. E isso não
O Código de Processo Penal em vigor é um me parece possível no momento. Antes de
produto legislativo de inspiração fascista, no qualquer mudança legislativa, os detentores do
qual ainda se fazem sentir as visões de mundo e poder político deveriam providenciar estudos
as ideologias de teóricos autoritários como, por sobre os impactos sociais e econômicos das
exemplo, o italiano Vincenzo Manzini. Apesar das medidas que eles pretendem normatizar, o que
reformas parciais a que foi submetido, o Código me parece impossível em uma quadra histórica
de Processo Penal mantém um conjunto de em que a ignorância, o ridículo, a exploração de
dispositivos que permitem a instrumentalização preconceitos, a distribuição de fake news e a
de pessoas submetidas à atividade estatal de defesa da violência tornaram-se uma espécie de
persecução penal e a gestão das provas nas mãos capital político.
do juiz. Em outras palavras, uma interpretação No Brasil, e os últimos anos deixaram isso claro,
literal do Código de Processo Penal permite vigora um visão de mundo que demoniza as
tanto prisões sem finalidade cautelar quanto pesquisas e os estudos sérios. Há um clima anti-
perversões inquisitoriais de juízes parciais. Trata- intelectual, típico de momentos autoritários,
se, portanto, de uma legislação que precisava que não recomenda mudanças legislativas.
ser revista para excluir o princípio inquisitivo, Como cidadão, eu não gostaria de ver o direito
que dá coerência sistêmica à aplicação das leis à liberdade e o valor “verdade” relativizados ou
processuais penais no Brasil, e afastar todos os distorcidos no Congresso por gente que acredita
resquícios de uma epistemologia autoritária que que a terra é plana, que médicos são agentes
tanto sofrimento desnecessário já causou. disfarçados do comunismo internacional ou por
19
Entrevista: Múltiplos Olhares
parlamentares que têm como guru intelectual destinado à persecução penal em juízo. Na
uma figura como o Olavo de Carvalho, que, medida em que acreditam em uma “parte
além de ser a principal referência intelectual imparcial”, os magistrados passam a se identificar
do Presidente Jair Bolsonaro, acredita na com o Ministério Público. Ambos, então, unidos
possibilidade do filósofo alemão Theodor Adorno pela identidade fornecida pela “imparcialidade”
ter composto as músicas dos Beatles. compartilhada, passam a representar a fantasia
de que são “o Estado” contra o crime e o
NO LIVRO PROCESSO PENAL DO ESPETÁ- criminoso, ao mesmo temo em que reservam ao
CULO, HÁ UMA ABORDAGEM SOBRE A (IM) acusado um natural distanciamento. Ao acreditar
PARCIALIDADE DO ÓRGÃO ACUSATÓRIO na imparcialidade do Ministério Público,
À LUZ DA MITOLOGIA. DE QUE FORMA TAL desaparece a eqüidistância do Magistrado em
CONCEITO INFLUENCIA NA NECESSÁRIA relação às partes e, em conseqüência, a própria
EQUIDISTÂNCIA DO MAGISTRADO EM RE- imparcialidade da Agência Judicial.
LAÇÃO ÀS PARTES PROCESSUAIS?
HÁ RELAÇÃO ENTRE A QUIMERA DA (IM)
RUBENS CASARA A imparcialidade do Ministério PARCIALIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO E
Público é um mito, ou seja, um elemento A FIGURA DO JUIZ-SECRETÁRIO DE SEGU-
discursivo que exerce uma determinada RANÇA PÚBLICA?
funcionalidade a partir de uma crença. O mito
preenche uma espécie de “vazio” que serve RUBENS CASARA Importante lembrar que não
para alcançar um determinado objetivo e/ou há modelo ou epistemologia autoritária em
justificar uma determinada prática. Ao dizer que não ocorra a confusão entre as funções de
que é imparcial, o Ministério Público busca se acusar e de julgar. Dito de outra forma: é uma
aproximar do órgão julgador e permitir a criação característica do pensamento e das instituições
de um espécie de “consórcio imparcial” contra autoritárias a promiscuidade entre as figuras
aquele que se diferencia pela parcialidade, o do acusador e do juiz. O “juiz-secretário de
réu, um estranho que merece ser tratado com Segurança”, na feliz expressão do Professor
desconfiança. Em outras palavras, o discurso Antonio Pedro Melchior, é esse juiz promíscuo.
da imparcialidade do Ministério Público é um Aliás, trata-se de uma relação, em regra,
aceno ao “princípio da identidade”, presente em pornográfica, uma vez que exteriorizada sem
todo movimento autoritário e que se justifica a pudor, de forma grosseira e vulgar, e favorecida
partir do repúdio à alteridade e aos diferentes. pela comunhão de preconceitos, de tendências
Como certa uma vez escreveu o professor inconscientes/reprimidas, de classe e de visões
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “o mito de mundo entre o acusador e o juiz.
pode ser tomado como a palavra que é dita, para É essa atuação “conjunta”, ainda que disfarçada
dar sentido, no lugar daquilo que, em sendo, e “justificada” pela imparcialidade, que permite
não pode ser dito”. O mito é aquilo que só é dito a “vitória” dos preconceitos compartilhados e o
diante da falta de um referencial semântico que atendimento dos interesses em comum. O juiz
atenda a uma necessidade de quem fala. que age como acusador ou em parceria com o
O simbólico que cada mito carrega produz acusador atua em um contexto em que não há
efeitos reais. A força do mito impede, por espaço para dúvidas ou para a realização dos
exemplo, até mesmo reflexões básicas: se o direitos fundamentais, isso porque esses direitos,
Ministério Público, como órgão estatal titular da bem como os limites epistemológicos ligados à
ação penal, foi pensado e criado para assegurar produção e valoração probatória, passam a ser
a imparcialidade do juiz, como então poderia ser vistos como obstáculos ao desejo e à identidade
imparcial? que uniram o órgão julgador e o acusador. Um
Impossível, pois, deixar de perceber que os desejo compartilhado e, vale dizer, perverso, que
efeitos produzidos pelo mito da imparcialidade leva ao gozo pela violação dos limites éticos e
do órgão acusador dependem inteiramente da jurídicos.
crença e da aceitação acrítica que a comunidade Ao assumirem essa relação obscena, o juiz e
jurídica, sobretudo os magistrados, depositam o acusador abandonam qualquer pretensão
sobre o discurso de que o órgão acusador pode de independência e autonomia. A vontade de
atuar imparcialmente durante procedimento acusar e o correlato desejo de ver o réu punido,
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Entrevista: Múltiplos Olhares
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Entrevista: Múltiplos Olhares
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Entrevista: Múltiplos Olhares
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Coluna
1.70
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Coluna: A Toda Prova
gurança máxima, com vistas a compreender a si trabalhou com o jornalista Hannes Råstam na in-
mesmo e a sua sexualidade. Foi lá que um grupo vestigação que levou à anulação das condena-
de psiquiatras e psicoterapeutas pesquisando ções – revelou que os policiais encarregados do
a mente criminosa interessou-se por empre- caso não toleravam objeções às suas conclusões.
gar nele uma terapia Freudiana voltada para o Segundo ela, houve, por exemplo, questiona-
resgatate de memórias reprimidas. No entanto, mentos por parte de alguns agentes em como
sem qualquer história interessante para contar seria possível que Quick tivesse utilizado treze
e motivado pelo desejo de permanecer em tra- maneiras diferentes de matar, algo incomum
tamento com medicações psicotrópicas – afinal, para um serial killer – o que culminou com seus
ele era viciado em drogas – , Quick começou a afastamentos da investigação. Além disso, foi
confessar crimes até então não solucionados descoberto que todas as evidências que colo-
pela polícia com vistas a chamar a atenção dos cavam em xeque a autoria dos assassinatos por
profissionais, valendo-se de detalhes que busca- parte de Quick foram ocultadas sob o pretexto
va em jornais e noticiários. de que poderiam confundir os tribunais. A ver-
Ao relatar as informações como se estives- dade é que os investigadores estavam conven-
se resgatando memórias das quais não se recor- cidos de que Thomas Quick era um serial killer
dava inicialmente, tornou-se motivo de grande e não queriam que nada estragasse essa hipó-
entusiasmo entre os psiquiatras e psicoterapeu- tese. Por outro lado, houve uma grande pressão
tas, vez que representava o êxito de suas pesqui- da imprensa, que ficou satisfeita por se tratar de
sas. Estes profissionais se diziam profundamen- um serial killer e explorou isso. Todos esses me-
te convencidos da veracidade das confissões, canismos se juntaram, conforme relata Küttim. E
influenciando a polícia de que se tratava de um o fato é que, quando Quick confessou ser o autor
caso de memórias reprimidas. Toda essa con- desses assassinatos, a polícia parou de procurar
juntura deu ensejo a um novo rumo nas inves- os verdadeiros culpados.
tigações criminais a partir das informações que O que ocorreu em relação aos investiga-
Quick fornecia, embora sem qualquer sucesso dores e aos tribunais que condenaram Thomas
no encontro de evidências materiais contra ele. Quick pode ser explicado pela psicologia por
Apesar disso, ao final, seis tribunais suecos dis- meio dos chamados vieses cognitivos (cogniti-
tintos o condenaram por oito assassinatos. ve biases), que são distorções comumente ocor-
Em entrevista à BBC (VELASCO, 2019), ridas nos processos de tomada de decisão em
questionada como seria possível que tantos er- condições de incerteza. Essas distorções são
ros tenham sido cometidos pelos terapeutas, causadas, normalmente, pelos atalhos mentais
pela polícia e pelos tribunais, Jenny Küttim – que (heurísticas) aos quais a mente humana recorre
com o fito de simplificar ou facilitar a análise e
processamento de informações complexas.
A ideia é que diante de Estudos nesse sentido se mostraram
bastante relevantes nos Estados Unidos
uma falsa confissão, por com o intuito de buscar explicações
exemplo, todos os elementos para o alto índice de condenações
subsequentes – por mais errôneas revertidas pelo Innocen-
ce Project a partir do recurso ao
frágeis que sejam – passem a exame de DNA. É nesse contexto
ser interpretados como prova que tem lugar o fenômeno que
satisfatória a corroborar a Findley e Scott (2006) denomi-
hipótese de culpa. nam tunnel vision, representado
como um "compêndio de heurís-
ticas comuns e falácias lógicas"
por meio do qual direciona-se o
foco exclusivamente em determi-
nado suspeito, o que leva à seleção
e filtragem das provas que construi-
rão um caso suscetível de conde-
nação, ignorando e suprimindo,
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Coluna: A Toda Prova
por outro lado, as provas capazes de conduzir dados do Innocence Project (2019). O fator mais
a hipóteses e suspeitos alternativos. Por esse comum nas exonerações por DNA são os erros
processo, o foco em uma conclusão em parti- no reconhecimento de pessoas realizados tanto
cular torna-se capaz de determinar que todas por vítimas quanto por testemunhas, presente
as provas de um caso sejam filtradas pelas len- em 69% dos casos, seguida pela má utilização
tes desta mesma conclusão, de modo que os da prova pericial (44%), falsas confissões (28%)
elementos com ela incompatíveis sejam des- e uso de informantes (17%). Paralelamente, ve-
qualificados ou tidos como irrelevantes. rificou-se que 52% das exonerações continham
Segundo os autores, essa tendência é, em mais de um desses quatro fatores. Uma possível
maior medida, produto da condição humana e das explicação para essa confluência de elementos
pressões culturais e institucionais a que os sujei- aparentemente incriminatórios seria a mani-
tos estão submetidos, e não propriamente um festação de vieses cognitivos, conforme West
ato de malícia ou indiferença. É de se considerar, e Meterko (2015, p. 733). A ideia é que diante
entretanto, o potencial de alguns procedimentos de uma falsa confissão, por exemplo, todos os
institucionais no âmbito da justiça criminal em elementos subsequentes – por mais frágeis que
condicionar a manifestação dessas distorções sejam – passem a ser interpretados como pro-
cognitivas (FINDLEY; SCOTT, 2006, p. 292). va satisfatória a corroborar a hipótese de culpa.
No Brasil, essa tendência é especialmen- Um reconhecimento de pessoa em que a vítima
te problemática na fase investigatória, seja pela tenha se mostrado reticente e em dúvida pode
própria autoridade que conduz a investigação ter essa hesitação interpretada como decorren-
sob o manto de uma discricionariedade prescri- te do decurso do tempo, por exemplo, ao invés
ta em lei, seja pelo magistrado que precisa de- de sinalizar para a fragilidade da prova – o que
cidir a respeito da aplicação de medidas caute- seria de se concluir na ausência do efeito nocivo
lares e posteriormente irá decidir os fatos. Na de uma confissão prévia .
medida em que a identificação das primeiras Os riscos epistêmicos do reconhecimento
provas conduza a uma versão explicativa plausí- de pessoas e os problemas relativos à atribuição
vel acerca do caso, a missão de alterar esse juízo de especial valor probatório atribuído à palavra
precipitado se mostra praticamente impossível da vítima já foram muito bem explorados, res-
ao suspeito – especialmente diante do caráter pectivamente, por Antonio Vieira (2019) e Janaina
inquisitivo e unilateral do inquérito policial, no- Matida (2019). Sobre a prova testemunhal, valem
tadamente seletivo e parcial aos interesse da as considerações de Caio Badaró (2019) a partir da
acusação – e das diminutas prerrogativas a uma psicologia do testemunho. Quanto às confissões,
investigação defensiva. é preciso reconhecer o efeito persuasivo que his-
Aliado a isso, não se pode desconsiderar toricamente exercem sobre a formação do juízo,
que os elementos desprovidos de contraditório especialmente quando capazes de fornecer uma
produzidos nesta fase acabam sendo integral- linha narrativa coerente envolvendo detalhes da
mente valorados pelo juiz, como se provas fos- ação criminosa e uma motivação plausível. Nesse
sem. Sobre este ponto, ainda quando a prova é ponto, pesa uma generalização do senso comum
produzida em audiência, é bastante comum a de que pessoas inocentes não confessam crimes
prática de se ler ao depoente o teor do que de- que não cometeram, o que leva à incidência de
clarou em inquérito na espera de uma simples uma aparentemente irrefutável presunção da
ratificação, frustrando-se, por conseguinte, culpa do suspeito entre os agentes de polícia, ju-
toda a expectativa da defesa em estabelecer uma ízes e jurados, além da mídia e o público em geral
linha de inquirição capaz de refutar a hipótese (LEO; DAVIS, 2010, p. 20).
acusatória. A partir de um enfoque da psicologia cog-
Também alguns meios de prova, seja por nitiva, tem-se que o modo habitual pelo qual as
inaugurarem, normalmente, a investigação; seja pessoas raciocinam envolve o recurso às estru-
por seu potencial persuasivo; ou mesmo pelas turas narrativas, que são empregadas a fim de
dificuldades probatórias inerentes a algumas es- estabelecer um sentido e contexto para as di-
pécies de delitos, vêm adquirindo protagonismo versas peças de informação isoladas disponíveis,
como elementos decisivos para condenações e as quais são encadeadas em sequência temporal
muitas vezes são relacionados a um potencial em meio a uma história plausível capaz de expli-
de produzir erros judiciários, como mostram car os fatos incertos. No entanto, considerando
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Coluna: A Toda Prova
que o conjunto de informações disponíveis é in- Tais situações ilustram o que William Wa-
completo e, por vezes, desconexo, é comum que genaar (1995, p. 271-276) considera como ano-
se busque apoio no estoque de conhecimentos malias que incidem nos processos decisórios em
particulares a fim de conectar os pontos e pre- casos de condenações errôneas. A primeira de-
encher as lacunas, o que é feito por meio das las ocorre quando a determinação da hipótese
generalizações da experiência (NARDELLI, 2019, provada se funda apenas na verificação da qua-
p. 157). O problema é que, por vezes, o foco na lidade de uma história em comparação com as
coerência e plausibilidade da narrativa acaba outras possíveis, ao invés de se focar na qualida-
gerando um perigoso efeito persuasivo capaz de de das provas que lhes dão suporte. Pode acon-
ofuscar a sua falta de amparo em provas que a tecer, nesse sentido, que a narrativa tida como
sustentem (TWINING, 2006). As generalizações verdadeira tenha sido falseada por elementos
do senso comum acabam ocupando o espaço probatórios, e ainda assim seja acolhida, sem
devido às provas empíricas dos elementos es- que se procure desqualificar os elementos que a
senciais do crime. Um relato plausível e coeren- refutaram. Esse último problema leva a uma ou-
te, no contexto de uma confissão, acaba se mos- tra distorção muito séria na seara penal, revela-
trando suficientemente capaz de sustentar uma da pela tendência de não se procurar descartar
condenação. os suspeitos alternativos da autoria do crime in-
No texto de apresentação desta coluna vestigado. Deste modo, parece mais convenien-
(VIEIRA; MATIDA; MASSENA; NARDELLI, 2019), te considerar plausível a história que inculpa o
falamos dos casos de Bárbara e Gabriel, os quais ora acusado e não fica claro o motivo pelo qual
foram, assim como Thomas Quick, vítimas de in- os demais suspeitos foram descartados. Em sen-
vestigações e processos contaminados por vieses tido semelhante, também é alarmante o proble-
cognitivos. No caso de Bárbara, as provas robus- ma das investigações criminais tendenciosas, as
tas apresentadas pela defesa (fotografias, víde- quais se dirigem para buscar evidências da par-
os e testemunhos) que demonstravam estar ela ticipação de um suspeito em particular, ao invés
a 90 Km do local dos fatos, foram solenemente de focarem no crime em si, abrindo-se a todos
desprezados em prol de um reconhecimento fo- os possíveis envolvidos. Essa tendência pode le-
tográfico, no qual a vítima a identificou por con- var a distorções importantes e extremamente
siderá-la “bem familiar por causa dos cabelos” prejudiciais, fazendo com que relevantes provas
(SALVADORI, 2018). Quanto a Gabriel, as imagens exculpatórias sejam ignoradas.
periciadas de uma câmera de segurança que mos- É chegado o momento de o direito proba-
traram estar ele em um supermercado no horário tório se render à epistemologia jurídica e, nesse
do delito, a 2,5 Km de distância do local dos fatos, caso, às contribuições da psicologia cognitiva.
foram consideradas imprestáveis e incapazes de Mais do que nunca, é preciso defender, assim
afastar a convicção estabelecida a partir do reco- como o faz Gloeckner (2015), um direito fun-
nhecimento por parte da vítima (ADORNO, 2019). damental à devida cognição, em prol de se as-
Veja-se que, em ambos os casos, não se buscou segurar o valor e a efetividade da presunção de
sequer investigar as hipóteses alternativas apre- inocência.
sentadas pelas defesas de ambos.
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