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OUTUBRO 2019

Boletim Revista do Instituto Baiano de Direito Processual Penal | Ano 2 - Nº 5

Elas no Front com Soraia Mendes:


Do inquérito policial ao feminicídio de estado ao gendercide P. 7

A Ágata
que resiste
em cada
um de nós
Senhorismo e demais Auto de resistência Múltiplos Olhares com
carregos criminológicos qualificado: uma "nova" Rubens Casara P. 27
na encruza racista face da violência
brasileira P. 9 institucional P. 17
BOLETIM REVISTA DO INSTITUTO
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BAIANO DE DIREITO PROCESSUAL PENAL
Ano 2 - N.º 5 | OUTUBRO/2019 O Instituto Baiano de Direito Processu-
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econômicos que tem entre as finalida-
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des defender o respeito incondicional
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aos princípios, direitos e garantias fun-
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Daniela Portugal
Editorial: De Félix a Fênix

E cá estamos nós tratando novamente de país. No sentido oposto, agudizam e incremen-


autoritarismos. Constatando as manifestações tam a violência. Matam.
cada vez mais evidentes e desavergonhadas da Ágatha Félix, 8 anos, morta em decorrência
crueldade humana que, a serviço de uma lógica de um tiro de fuzil aos 20 de setembro de 2019,
neoliberal, avança com o seu projeto de extermí- quando voltava para casa no complexo do Ale-
nio de seres humanos e da democracia. Não por mão. Culpa atribuída à guerra contra o tráfico,
acaso, as vozes perversas e seletivas do Estado como se fosse mero efeito colateral e mais um
Penitência1 continuam se dirigindo contra os capítulo vendido como necessário nessa bizarra
inimigos do mercado e de quem os representa. estória de coletivo contra individual. Naufragou
O que chama atenção, novamente, é a ab- “uma gota de esperança”, como poetizou o amigo
soluta e seletiva incapacidade de empatia, do- Renato4. Mas guerras não se estabelecem contra
tada de uma conveniência própria e observada coisas e sim contra pessoas. Ágata é uma pedra
nos discursos de grande parte das pessoas. Essa preciosa, rocha vulcânica, produto de calor e
seletividade e conivência com a necropolítica2, pressão extremas, que no meio do caos é resis-
ao tempo em que configuram a cegueira de al- tência. Mataram a criança que havia em Ágatha...
guns, constituem álibi postiço para outros. Ao ressurge, incandescente como a lava que produz
tratar da questão criminal, muitos daqueles que ágatas, a criança que existe em cada um de nós.
se enxergam como membros de um grupo social Se o fato sobre Ágatha não convenceria a
hegemônico não se projetam no outro imediata- Hercule Poirot pelo “mero” sentido de humanis-
mente atingido pela violência do Estado e pelo mo, dada a sua personalidade excessivamente
consequente esvaziamento das garantias pro- egocêntrica, talvez a mensagem das Ágathas seja
cessuais. Mas se enxergar como hegemônico é a de que nem todos são Marples, razão pela qual
uma armadilha, por vezes, do próprio mercado, é necessário variar os argumentos para vencer a
produtor de verdades convenientes que, lem- batalha que, em tempos de potencialização das
brando Aldous Huxley3, cria um “sistema de es- verdades de opinião, também se trava no campo
cravatura onde, graças ao consumo e ao diverti- narrativo discursivo.
mento, os escravos terão amor à sua escravidão”. O alheamento perante esse cenário de des-
Nessa toada, lei e ordem, tolerância zero, truição é chocante e perturbador. Para tantos, a
Estado policial, juiz justiceiro, tiro de “sniper” inércia parece incapaz de ser rompida seja pelo
para “alvejar bandido”, são expressões que pene- humanismo, que míngua frente a uma cultura
tram no linguajar cotidiano com a mesma velo- totalitária, ou mesmo pelo egoísmo, talvez pela
cidade em que o propalado “choque de ordem” incapacidade de perceber que a seletividade de
vira ordem de choque. Facetas de um mesmo hoje será o calvário de muitos amanhã, inclusi-
modelo autoritário suportado essencialmente ve da maioria dos seletivos. O que não se pode
na política de extermínio de inimigos, a servi- olvidar é que o inimigo é sempre referencial...
ço da panaceia dos mitos e heróis, em nome da e o paradigma quem constrói é o poder. Pois é,
mágica sensação de segurança para todos. O in- provavelmente você não faz parte do grupo he-
divíduo sucumbe perante a falaciosa proteção gemônico.
do coletivo, e concorda com isso. Os objetivos Assim, aos que rechaçam uma epistemo-
reais, politiqueiros e subservientes ao mercado, logia que tenha a alteridade como pressupos-
passam longe de resolver ou mesmo amenizar to, se o chamado humanitário não significa, que
os gravíssimos quadros de violência pintados no sejamos capazes de enxergar o outro ainda que
pelas perspectivas individualistas de um altere-
1
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da go, na projeção de nós mesmos como vítimas fu-
miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. Trad. turas das nossas próprias escolhas do passado.
Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2003. Serve como luva o alerta feito por Jacinto Cou-
2
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edi-
ções, 2018. 4
SCHINDLER FILHO, Renato. Ágatha morreu. Dispo-
3
HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. Trad. Ser- nível em https://emporiododireito.com.br/leitura/
rano Vidal. São Paulo: Biblioteca Azul, 2014. agatha-morreu
tinho5, lembrando que se o passado “não vem eles levam a flor de maneira furtiva, depois já
como limite, vem como sanção”, pois “sempre há não se escondem mais e pisoteiam o jardim; até
um preço a pagar. Sempre!” que, diante da nossa reiterada passividade, “ar-
Afinal, como destacado na versão de Edu- rancam-nos a voz da garganta e já não podemos
ardo da Costa6 para o poema que, não por aca- dizer nada”. Pelo amor ao contraditório, então,
so, se repete entre povos e gerações: primeiro continuemos trincheira! Sejamos todos Ágatas!

5
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Direito e 6
COSTA, Eduardo Alves da. No caminho com Maiako-
Psicanálise: interlocuções a partir da literatura. 2ª Ed. vski: poesia reunida. São Paulo: Geração Editorial,
Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, p. 157-158. 2003, p. 47.

André Dahmer
SUMÁRIO
03 COLUNA PONTO E CONTRAPONTO: EM 17 AUTO DE RESISTÊNCIA QUALIFICADO: UMA
UM PAÍS TÃO DESIGUAL, O QUE ESPERAR “NOVA” FACE DA VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL
DA JUSTIÇA CRIMINAL?
19 MÚLTIPLOS OLHARES COM RUBENS
05 ELAS NO FRONT COM SORAIA MENDES: DO CASARA
INQÚERITO POLICIAL AO FEMINICÍDIO DE
ESTADO AO GENDERCIDE 24 A TODA PROVA

09 ARTIGOS 28 WALKIE-TALKIE

09 SENHORISMOS E DEMAIS CARREGOS 30 IBADPP REALIZA


CRIMINOLÓGICOS NA ENCRUZA RACISTA
BRASILEIRA 31 MELHORES MOMENTOS| VIII SEMINÁRIO
NACIONAL DO IBADPP - MOMENTOS
11 JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL: DO QUE
ESTAMOS FALANDO?

13 NEOLIBERALISMO E PROCESSO PENAL

15 O CONTROLE JURISDICIONAL NO
COMPARTILHAMENTO DE DADOS
BANCÁRIOS E FISCAIS ENTRE ÓRGÃOS DE
FISCALIZAÇÃO E CONTROLE E O MINISTÉRIO
PÚBLICO
Coluna
PONTO E
CONTRAPONTO
Rômulo de Andrade Moreira
Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da
Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade
Salvador – UNIFACS.

Em um país tão desigual, o que esperar da Justiça


Criminal?
Segundo uma recente pesquisa realizada e mas décadas os gastos com alimentação foram
divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia caindo em relação a outras despesas que cres-
e Estatística, a desigualdade social e econômica ceram, como habitação e transporte.
no Brasil fez com que apenas 2,7% das famílias Estes números foram analisados sob os mais
acumulassem 20% do total da renda. A coleta da variados aspectos, especialmente o econômico e
pesquisa foi realizada nas áreas urbana e rural de o social; todas as análises — ou quase todas — fo-
todo o país no período de junho de 2017 a julho ram importantes e trouxeram conclusões funda-
de 2018. Nossas famílias tiveram uma renda mé- mentais para compreender o Brasil atual e avaliar
dia de R$ 5.426,70. O estudo trouxe informações as perspectivas do nosso país. Nada obstante, ao
sobre a composição orçamentária doméstica e menos que tenha sido publicado até a data em
a respeito das condições de vida da população, que foi escrito este texto, não li, nem sequer ouvi,
incluindo a percepção subjetiva da qualidade de qualquer exame, crítica ou interpretação acerca
vida, apontando-se que apenas 1,8 milhão de fa- da pesquisa, desde um ponto de vista jurídico e,
mílias com renda superior a dez salários míni- mais especialmente, relacionando-a com o nosso
mos em 2017 receberam 19,9% de todo o valor de sistema de justiça criminal.
rendimentos, seja em salários ou variações pa- Ademais, também não tive conhecimento
trimoniais. A renda média foi de R$ 40,4 mil en- de algum estudo comparativo entre esta pesqui-
tre as famílias. Hipoteticamente, e para mostrar sa do IBGE e o Atlas da Violência 2019, divulgado
a desigualdade de renda no país, a pesquisa fez um pouco antes pelo Instituto de Pesquisa Eco-
uma simulação de como seria a renda brasileira nômica Aplicada e pelo Fórum Brasileiro de Se-
se fosse retirado esse grupo do total de renda. gurança Pública. Neste, mostrou-se que em 2017
Neste caso, “se apenas os valores recebidos por houve 65.602 homicídios, equivalendo, aproxi-
este grupo fossem repartidos igualmente por to- madamente, a 31,6 mortes para cada cem mil ha-
das as famílias brasileiras, o valor médio mensal bitantes, tratando-se “do maior nível histórico de
cairia para R$ 2.942,66, o que equivale a pouco letalidade violenta intencional no país.” Estes nú-
mais da metade da média global."1 meros tornam-se ainda mais dramáticos quan-
A pesquisa revelou também que as des- do se leva em conta “que a violência letal aco-
pesas de consumo — alimentação, habitação e mete principalmente a população jovem”, sendo
transporte — comprometeram 72,2% dos gastos que mais da metade (cerca de 59,1%) “do total de
das famílias brasileiras, mostrando que nas últi- óbitos de homens entre 15 a 19 anos são ocasio-
nados por homicídio.” E, ainda mais assustador,
1
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noti-
foi a constatação de que “a morte prematura de
cias/2019/10/04/ibge-27-das-familias-concentram-
-20-de-toda-a-renda-brasileira.htm, acessado em 04 de jovens (15 a 29 anos) por homicídio é um fenôme-
outubro de 2019. no que tem crescido no Brasil desde a década de

3
1980”, dando-se “exatamente no momento em E nós, ao invés de procurarmos soluções a
que o país passa pela maior transição demográfi- partir de nossas próprias peculiaridades, e des-
ca de sua história, rumo ao envelhecimento, o que de um ponto de vista de nossa realidade socio-
impõe maior gravidade ao fenômeno.” econômica e latino-americana, vamos à procura
Nesta segunda pesquisa, mereceu desta- — muitas vezes como desvairados — de soluções
que, e não poderia ser de outra maneira, a vio- estrangeiras e, como tais, dissociadas de uma
lência contra os negros, verificando-se “a con- existência toda nossa e muito peculiar, particu-
tinuidade do processo de aprofundamento da larmente em razão de nossas origens escravo-
desigualdade racial nos indicadores de violência cratas, nunca superadas.
letal no Brasil, já apontado em outras edições.” A grande maioria de nossos acadêmicos, ju-
Assim, em 2017, 75,5% das vítimas de homicídio ristas e “atores” jurídicos, especialmente aqueles
foram negros (entre pretos e pardos, conforme que trabalham, teoricamente e na prática, com
critério adotado pelo IBGE), “sendo que a taxa de o direito criminal, ao que parece, vive, trabalha,
não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de estuda e pesquisa a partir de uma abstração da
16,0%.” Assim, ao menos proporcionalmente às realidade brasileira quase que doentia. Freud cer-
respectivas populações, “para cada indivíduo não tamente explicaria este fenômeno, desde uma vi-
negro que sofreu homicídio em 2017, aproximada- são psicanalítica.
mente, 2,7 negros foram mortos.” Constatou-se, Uma pena que seja assim, pois eles esque-
portanto, “a continuidade do processo de profunda cem(?) que “ser internacional não é ser universal,
desigualdade racial no país”, ficando “evidente a e para ser universal não é necessário situar-se
necessidade de que políticas públicas de seguran- nos centros do mundo. Inclusive pode-se ser uni-
ça e garantia de direitos devam, necessariamente, versal ficando confinado à sua própria língua, isto
levar em conta tais adversidades, para que pos- é, sem ser traduzido. Não se trata de dar as costas
sam melhor focalizar seu público-alvo, de forma à realidade do mundo, mas de pensá-la a partir
a promover mais segurança aos grupos mais vul- do que somos, enriquecendo-a universalmente
neráveis.” Este estudo constata que é preciso en- com as nossas ideias; e aceitando ser, desse modo,
frentar com “urgência o legado da escravidão, pois submetidos a uma crítica universalista e não pro-
somos um país extremamente desigual não apenas priamente europeia ou norte-americana.”3
economicamente, mas racialmente”, concluindo, Portanto, que deixemos de fetiches alie-
com absoluto acerto e incontestável correção, nígenas e vejamos, a partir de pesquisas sérias
ser “fundamental investimentos na juventude, por e números, que enquanto mantivermos esta
meio de políticas focalizadas nos territórios mais estrutura social (Rusche e Kirchheimer), racial
vulneráveis socioeconomicamente, de modo a ga- e econômica tão desigual, nada mudará, muito
rantir condições de desenvolvimento infanto-juve- menos com uma política de extermínio, susten-
nil, acesso à educação, cultura e esportes, além de tada pelo poder político, financiada pelo poder
mecanismos para facilitar o ingresso do jovem no econômico e instrumentalizada pelo poder ju-
mercado de trabalho.” rídico.
Entendo que as duas questões — a desi-
gualdade socioeconômica e a violência, urbana e 3
Como escreveu Foucault, “quando fala de invenção, Niet-
zsche tem sempre em mente uma palavra que opõe a inven-
rural — encontram-se intrinsicamente ligadas, e
ção, a palavra origem. Quando diz invenção é para não dizer
ambas ajudam a explicar a extraordinária popu- origem; quando diz Erfindung é para não dizer Ursprung.”
lação carcerária do Brasil, apenas superada, em Assim, por exemplo, dizia o filósofo alemão que a religião
números, pelos Estados Unidos e pela China. não tinha origem, pois ela foi inventada: “em um dado mo-
mento, algo aconteceu que fez aparecer a religião. A religião
E, obviamente, não se trata aqui de uma foi fabricada. Ela não existia anteriormente.” Como a poesia
criminalização da pobreza, muito pelo contrário! também: “um dia alguém teve a ideia bastante curiosa de
Constata-se apenas que, se a seletividade é uma utilizar um certo número de propriedades rítmicas ou mu-
marca característica do próprio sistema penal sicais da linguagem para falar, para impor suas palavras,
para estabelecer através de suas palavras uma certa relação
(desde a sua invenção, como diria Nietzsche2, e de poder sobre os outros. Também a poesia foi inventada ou
em quase todo o lugar), no Brasil ela se mostra fabricada.” (FOUCAULT, Michel, “A verdade e as formas jurí-
ainda mais visível, e com uma clareza absurda, dicas”, Rio de Janeiro, PUC Rio, 3ª. edição, 2ª. reimpressão,
2005, páginas 14 e 15).
evidenciada muito especialmente pelo perfil 3
SANTOS, Milton, “O País Distorcido”, São Paulo: Publifolha,
dos que estão sujeitos à punição e aos suplícios 2002, p. 52. Este texto do grande baiano Milton Santos é de
(Foucault) em nosso país. 02 de maio de 1999.

4
Coluna

ELAS
A

NO FRONT
Do inquérito policial ao feminicídio de estado ao gendercide
Por Soraia Mendes

Um dos mais importantes passos dados sideradas indeterminadas uma vez que encober-
no intuito de incluir a perspectiva de gênero na tos estejam os indícios de violência de gênero.
investigação de casos de feminicídio foi a in- Entretanto, ainda que o tema da investiga-
corporação, em 2016, das chamadas “Diretrizes ção criminal me seja sedutor desde a perspecti-
Nacionais para Investigar, Processar e Julgar va epistemológica que entendo deva orientar um
com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas processo penal feminista , meu objetivo neste
de Mulheres”, por meio das quais foram estabe- artigo não será esta abordagem, pois o que pre-
lecidos protocolos destinados ao trabalho poli- tendo aprofundar aqui são as minhas reflexões
cial e, principalmente, à perícia técnica nestas sobre a responsabilidade estatal com a morte de
situações. mulheres no Brasil, muito especialmente consi-
As Diretrizes configuram um documen- derando a interseccionalidade de raça e classe.
to relevantíssimo pois, como apontam Eugênia Quero falar, então, sobre feminicídio de Estado.
Villa e Bruno Amaral Machado, embora as mor- Em 2019, até o mês de setembro, somen-
tes de mulheres pelas razões e nas condições te na Capital Federal brasileira, dados cataloga-
previstas em lei “sejam identificadas nos laudos dos pelo Fórum de Mulheres do Distrito Federal
depoimentos, declarações e interrogatórios, e Entorno mostram o assustador número de 27
nota-se que o sistema Polícia Civil observa a feminicídios. Mulheres brutalmente assassina-
prática do feminicídio conforme programas pa- das não só por parceiros ou ex-parceiros, mas
dronizados e rotinas cognitivas estabilizadas também em atos de violência misógina propor-
para a investigação dos crimes contra a pessoa, cionada pela inexistência de políticas públicas
de forma generalizada”. Como dizem o autor e de transporte, de iluminação e/ou de segurança
a autora, há espaços de discricionariedade no que deveriam garantir à todas nós (mas muito
campo investigatório não raro povoados por especialmente às mulheres negras, pobres e pe-
mitos que configuram zonas de incerteza pro- riféricas) o elementar direito à cidade.
dutoras de “esquemas organizativos não ofi- No Brasil, incorporamos à nossa legislação
ciais (...)” (VILLA, 2018). o feminicídio como o ato de matar uma mulher
O inquérito policial quando se trata de por razões da condição de sexo feminino em
crimes contra as mulheres em decorrência da contextos de violência doméstica e familiar e/
condição de gênero ainda é, pois, dominado por ou de menosprezo ou discriminação à condição
estereótipos e preconceitos. De modo que as de mulher. De fato, tanto a casa quanto a rua são
Diretrizes representam um avanço fundamental lugares de risco para as mulheres.
não somente para os casos flagrantes de homicí- Vivemos com medo. Com medo de ações
dios de mulheres, mas também para a apuração violentas de companheiros ou ex-companhei-
de supostos suicídios, mortes aparentemente ros. Mas também com medo de que a negligên-
acidentais e outras cujas causas iniciais são con- cia estatal em garantir transporte, iluminação e
segurança nos faça a próxima vítima da letalida-
Neste sentido, ver meu recém-lançado MENDES, Soraia da
1

Rosa. Processo Penal Feminista. São Paulo: Editora Atlas/ de misógina.


Grupo Gen, 2020.

5
Coluna: Elas no front

Assim foram as mortes de Letícia e Ge- e indígena. Já os indiretos seriam as mortes por
nir. Duas mulheres moradoras de uma região abortos clandestinos ou conduzidos em situa-
administrativa do Distrito Federal que, dada a ções precárias, os decorrentes de mortalidade
ausência de transporte público, obrigaram-se a materna, as mortes ligadas ao tráfico de pesso-
buscar uma condução clandestina para chegar as, ao tráfico de drogas e a atos deliberados ou
ao trabalho. Letícia e Genir foram estupradas e decorrentes de omissão do Estado.
mortas por um homem que não teria encontra- Em meu ponto de vista, o fenômeno do
do melhor hora e oportunidade para a prática do crescimento do número de mortes de mulheres
crime se o Estado tivesse garantido a essas tra- no Brasil demonstra estar em curso em nosso
balhadoras o direito (básico!) de ter ao seu dis- país um verdadeiro feminicídio de Estado me-
por linhas de ônibus que conectem a periferia ao diante uma política, ora subterrânea, ora ple-
coração do Poder em Brasília. namente visível, de extermínio. Um verdadeiro
Tal como já escreveu Marcela Lagarde o Gendercide3.
feminicídio é “uma fratura do Estado de Direito O ódio em relação às mulheres ainda é
que favorece a impunidade”. De modo que, em uma marca indelével em sociedades como a bra-
uma concepção mais alargada, o conceito abar- sileira. E ele prospera na medida em que incenti-
ca o conjunto de fatos que caracterizariam tam- vado pelo discurso que hoje prospera do centro
bém outros crimes contra mulheres e meninas do Planalto até os rincões deste nosso imenso
em casos nos quais a resposta das autoridades é país. Ele ganha folego cada vez que se diz a uma
a omissão, a inércia, o silêncio ou a inatividade. mulher que ela merece ser estuprada. Ele se as-
Ele, o Estado, é cumplice das facadas nas sanha quando se diz que a mulher jamais pode
costas da mulher que buscou uma delegacia estudar mais do que um homem.
da mulher que não existia, daquela que bateu Em “Wars Against Women: Sexual Violen-
à porta da Casa da Mulher Brasileira que per- ce, Sexual Politics and Militarized State” (Guer-
manece fechada, da outra que não encontrou ras contra mulheres: violência sexual, políticas
a casa abrigo para seu refúgio no momento de sexuais e Estado militarizado), publicado há
desespero. Ele, o Estado, disparou o revólver quase vinte anos, Liz Kelly trata da violência
junto com o feminicida que viu facilitado a pos- sexual como estratégia deliberada na guerra e
se de armas pela política do Governo Federal. repressão política de Estado e aponta que este
Ele, o Estado, estuprou e matou a mulher que tipo de violência está conectado às mais varia-
para chegar ou retornar do trabalho precisou das formas de violências e contextos. Para Kelly,
do “transporte pirata”. nós feministas deveríamos questionar o uso que
Ele, o Estado, é feminicida por negligen- nós mesmas fazemos da expressão “guerra às
ciar políticas públicas de proteção e direito à mulheres”, pois, segundo ela, seu uso pode ser
cidade, mas também o é por permitir que se entendido como uma metáfora para violência
dissemine um discurso moral e religioso que contra mulheres, enquanto a realidade seu sig-
impõe às mulheres o lugar da subserviência e nificado denota exata a realidade histórica que
que representa um gatilho para a violência que todas vivenciamos.
sofreu tanto a moradora de rua cujo corpo foi Entendo que, no Brasil, há sim uma guerra
encontrado na sarjeta, quanto da desembarga- contra as mulheres. Estão nos matando. Está na
dora federal cuja vida foi ameaçada dentro de hora de começarmos a denunciar internacional-
um Tribunal Federal. mente isso.
Rashida Manjoo2 nos ensina que as mor- 3
Este termo foi usado pela primeira vez por Mary Anne War-
tes de mulheres baseadas no gênero podem ser ren, em 1985, em seu livro “Gendercide: The Implications of
classificados de maneira direta, com autoria de- Sex Selection”.
finida, ou indireta. Assim, o feminicídio direto
pode ser o resultado da violência de parceiro ín- REFERÊNCIAS
timo, bem como os relacionados à religiosidade,
à orientação sexual ou à identidade de gênero VILLA, Eugênia Nogueira do Rêgo Monteiro. MACHA-
ou mesmo os relacionados à identidade étnica DO, Bruno Amaral. O mapa do feminicídio na Polícia
Civil do Piauí: uma análise organizacional-sistêmica.
2
Rashida Manjoo foi relatora da reunião de peritos sobre as-
sassinatos de mulheres baseados em gênero ao Conselho de R. Opin. Jur., Fortaleza, ano 16, n. 22, p.86-107, jan./
Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (2012). jun. 2018.

6
Artigos

SORAIA MENDES
Pós-doutora em Teorias Jurídicas Contemporâneas, pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro - UFRJ. Doutora em Direito, Estado e Constituição pela Universidade
de Brasília - UnB. Mestra em Ciência Política, pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul - UFRGS. Professora Associada do PPG Mestrado e Doutorado em
Direito do Centro Unificado de Brasília - UniCeub. Coordenadora Nacional
do Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da
Mulher - CLADEM/Brasil. Autora de diversas obras, dentre as quais
Criminologia Feminista: novos paradigmas e Processo Penal Feminista.
Advogada especialista em direitos humanos e ciências criminais.

GRUPO DE ESTUDOS FEMINISMOS E PROCESSO


PENAL GANHA SELO DE PUBLICAÇÃO

Nesta edição do Boletim Trincheira Democrática foi lançado o selo do Grupo


de Estudos Feminismos e Processo Penal, na coluna Elas no Front. O selo irá
aparecer em todas as publicações realizadas pelos participantes do grupo nos
materiais do Instituto.
O Grupo de Estudos Feminismos e Processo Penal do IBADPP foi criado em
2017, com o objetivo de realizar um estudo crítico do processo penal a partir
dos recortes epistemológicos da teoria feminista, com atenção aos marcadores
sociais de gênero, raça e classe. Coordenado pela pesquisadora Charlene
Borges, o grupo lançou o edital de seleção em julho deste ano, no qual foram
selecionadxs 11 participantes.
As participantes se reúnem quinzenalmente para estudos
de textos sobre epistemologia feminista e as ciências criminais,
analisa e produz material acadêmico sobre estes temas. Além
das reuniões, o grupo de estudos tem como objetivo realizar
publicações e participar de projetos interventivos junto à
comunidade relacionados ao enfrentamento à violência
contra a mulher e violação de direitos humanos de mulheres
encarceradas.

7
INSTITUTO BAIANO DE DIREITO PROCESSUAL PENAL

E M F O C O
I S
M U N H A
S T E S T E
P R O V A

Contribuições da epistemologia e da
psicologia da memória ao sistema de
justiça.

Antonio Vieira (BA) Janaina Matida (RJ)

Lilian Stein (RS) Vitor de Paula Ramos (RS)

DEZEMBRO 12, 2019 • 19 PM


WISH HOTEL DA BAHIA
Inscrições gratuitas pelo sympla. Vagas limitadas.
Artigos

SENHORISMO E DEMAIS CARREGOS CRIMINOLÓGICOS


NA ENCRUZA RACISTA BRASILEIRA
Por Luciano Góes

Nas encruzilhadas projetadas pelo racismo, O Direito penal do autor, arriado em ter-
colonialismo e necropolítica (que não podem, ja- reiro racista/colonial, é a regra básica de nos-
mais, serem desassociadas), o caminho resultante so sistema punitivo democrático, programando
é a morte negra, uma emboscada que não se res- a periculosidade, a seletividade racial e nossos
tringe ao corpo físico e empurra a maior popula- Direitos penais (dinâmica que se opera ao con-
ção negra fora de África para um sistema punitivo trário também!), facetas “modernas” da colonia-
no qual a violência é sua razão de ser e existir. lidade que traz inexistência e impossibilidade de
Sendo estes os pilares de nossa sociedade, (re)construção do Ser negro diaspórico.
o único arcabouço jurídico que pode ser produzi- O sistema de controle racial, formal e in-
do é racista, programando, pela melaninocracia, formal, que opera sob a legítima defesa da bran-
o reconhecimento e distribuição do direito à vida, quitude, aniquila qualquer insurgência negra
condição constitutiva e existencial da branquitu- cuja pauta traz a demolição de toda estrutura
de que, ao colocar em prática seu projeto-mun- construída e consolidada para seu extermínio,
do, caracterizou seu objeto enquanto pharmakon incluindo a herança cristã “paz e amor” que pre-
(Mbembe, 2017), sempre pronto à destruir a (pós) ga resignação e resiliência como fundamentos
modernidade pela busca à direitos naturais (iden- de uma (sub)alteridade que não alcança a base
tidade e ancestralidade) cuja potência emancipa- racial, mas institui o oferecimento da outra face
tória decorrente de brados libertários insilenci- para a porrada. O problema é que, corpo que
áveis orienta à irresignação às múltiplas prisões toma tiro, inclusive pelas costas, não pode se
projetadas como zonas brancas. dar ao luxo de oferecer o rosto!
A segurança dessa arquitetônica imprescin- Diante da violência racista programática, o
de de um sistema de controle que neutralize os carrego criminológico, não há possibilidades de
riscos e perigos advindos de corpos negros atra- vivência negra em termos de bem viver, alijada
vés da desumanização e naturalização da violên- do direito à coletividade, apenas sobrevivência,
cia e morte, um sistema que reafirma lugares pela por isso o projeto político democrático negro se
manifestação de poder racial que, mesmo ilusório, pauta no paradigma sankofaquiano, enunciando
é a essência de sistema de controle escravagista a ancestralidade (re)negada/roubada. Todos os
que vulgarizou a autodeclaração, e (re)afirmação, objetivos dessa construção coletiva dependem
de “sinhôs” (Fanon, 2008) e sua necessidade de da desconstrução da branquitude e desmas-
objetificar corpos desprovidos de qualquer valor, caramento da branquidade que sustentam sua
mesmo que estes sejam tão semelhantes. hegemonia e monopólio do poder, ser, saber e
Assim, o senhorismo é a manifestação de existir sob discursos inimizantes, que endossam
nosso sistema punitivo, incorporado pelo Direi- o racismo antinegro enquanto falam de “paz so-
to penal do autor racialmente construído por cial”, fundamental para as democracias que “[...]
Lombroso, e traduzido por Nina Rodrigues, não dependem, hoje em dia e para sua sobrevivên-
por acaso no pós-abolição (Góes, 2016), demo- cia, da divisão entre as esferas dos semelhantes
cratizando o senhorismo, massificação objetifi- e as dos não-semelhantes ou, ainda, dos amigos
cante que vincula todo(a)s na cadeia punitivista e ‘aliados’ e dos inimigos da civilização. Sem ini-
desenvolvida nas tramas enredadas pelo país da migos, é lhes difícil sustentarem-se sozinhas”
maravilhas raciais e envolta à periculosidade, (Mbembe, 2017, p. 87).
conceito racista alinhavado a corpos negros1 A condição existencial de uma arquite-
que, por conseguinte, representam o mal que tônica racista, pintada como democrática, é o
gera medo e demanda um controle acautela-
tório/preventivo que define criminalizações, 1
Se não fosse sua confissão (com vistas ao arrepen-
orientadas e definidas, pela programação racista dimento que assegura um cantinho no céu cristão),
que, sob a bandeira do direito à igualdade, sen- quem iria suspeitar que o ex-Procurador-Geral da
tencia vidas negras à pena de morte paralela, República, Rodrigo Janot, seria um assassino em
com fundamento constitucional de uma guerra potencial, um “criminoso nato” no sentido estabe-
racial declarada como “contra às drogas”. lecido pela Criminologia Positivista?

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Artigos

racismo, já que ordem em sociedades racistas bram no confronto com seu opressor, assimilam
pressupõe a paz racial conseguida somente com golpes e respondem de imediato, sem perder a
o controle e domínio completo do mundo negro, malemolência e o riso gozador do semblante que
para o qual, o mundo branco é extremamente faz a razão branca perder seu chão.
hostil. A liberdade negra pressupõe a restrição Invocar Exu é cantar para que a estratégia
da liberdade branca, ruptura dos seus meios de branca de neutralização de seu potencial suba,
controle e, por fim, demolição do seu mundo. evapore no ar como o processo secular do ra-
Assim, naquela encruzilhada racista, a re- cismo religioso mantido pelo cristianismo, em
sistência negra, debochadamente, se manifesta suas diversas vertentes, que lhe confere a ca-
em posturas que rompem a sistemática colo- riz diabólica da qual resulta medo, inimização
nial/colonialista, chutando sua demanda para e marginalização. Exu e a população negra, que
longe e abrindo “novos” caminhos decoloniais não raramente se entrecruzam no mesmo cor-
que nos levam (de volta) ao início, ao que é pri- po, são alvos do mesmo processo de aniquilação,
mordial, para confrontar o racismo antinegro e já que questionam e desmentem as “verdades”
suas exigências. que sustentam e mantêm o mundo branco e seu
Exu é invocado e incorporado como pos- narcisismo genocida.
sibilidade bem viva de enfrentamento ao ge- A feitura de uma Criminologia malandre-
nocídio e ao epistemicídio, com a produção de ada, despachada nas encruzilhadas do terrei-
instrumentos de combate que projetam medo ro marginal, transgrede as normatizações em
(e com razão), eis que é a partir do mensageiro meio à arerês, expondo todos os instrumentos
entre Orum e Ayê, do dono da comunicação (e de controle racista que estruturam nossa demo-
da encrenca), aquele que nasce antes mesmo da cracia monocromática (mesmo aqueles que apa-
própria existência, que se constrói ao descons- rentam “progressistas”) e, ao derrubar discur-
truir, que se ordena ao desordenar, já que, em sos hegemônicos que tentam anular existências
suas múltiplas faces (Rufino, 2019), rege e repre- vocacionadas à liberdade, saúda presenças que
senta a lei do retorno que estrutura o devir-ne- pulsam resistências, que podem ser lidas como
gro que, ao chamar saberes-poderes racistas ao domesticadas pelas amarras racistas confundi-
meio da roda, malandreando entre o miudinho e das com ternos e gravatas bem alinhadas, mas
o cruzado, na passada pode facilmente, e com o ao pautar um sistema jurídico (anti)racista, mos-
estilo que lhe é peculiar, derrubar a branquitude tra que quem gargalha, ri muito melhor de quem
e sambar em sua cara desconcertada. ri por último!
Manifestando o poder da criação, Exu é for-
ça que ejacula vida, poder e força indestrutíveis, REFERÊNCIAS
batucando pontos cuja potência cria possibilida-
des de resistências e de existências, pelas quais é GÓES, Luciano. A “tradução” de Lombroso na obra de
possível ver, e caminhar, por caminhos invisíveis, Nina Rodrigues: o racismo como base estruturante da
improváveis e impossíveis se mantida a postura Criminologia Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2016.
opressora e violenta racista/colonial/colonialista FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tra-
que caracterizam a base do mundo branco. dução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
Assim, não foi sem propósito que Exu foi MBEMBE, Achille. Políticas da Inimizade. Lisboa: An-
demonizado. Por ser energia viva que enrijece tígona, 2017.
posturas dóceis e manipuláveis, sua natureza RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de
sediciosa e desprendida transfigura corpos que, Janeiro: Mórula Editorial, 2019.
diante dos conflitos, envergam, mas não que-

LUCIANO GÓES

Doutorando em Direito na Universidade de Brasília (UnB). Professor de Pós-


Graduação da Faculdade CESUSC. Integrante do Instituto Brasileiro de
Criminologia Cultural. Advogado Criminal. Prêmio Jabuti (2017) com a obra:
A tradução de Lombroso na obra de Nina Rodrigues: o racismo como base
estruturante da Criminologia brasileira.

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Artigos

JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL: DO QUE ESTAMOS FALANDO?


Por Rafaella da Porciuncula Pallamolla

Já não é possível dizer que justiça restau- Noruega e da Nova Zelândia se desenvolveram
rativa seja algo novo no Brasil. Desde as primei- no contexto da justiça juvenil, sendo que ape-
ras experiências institucionalizadas, lá se vão 14 nas esta última utilizou a conferência de família
anos. É bem verdade que apenas em anos mais (family group conference) como prática restau-
recentes o tema alcançou maior repercussão, rativa. Todas as demais experiências utilizaram a
sobretudo a partir da Resolução n. 225 do CNJ, mediação vítima-ofensor (VOM) e eram voltadas
de maio de 2016. Pode-se dizer que esse instru- para casos envolvendo ofensores adultos2.
mento normativo representa um dos momentos Com o passar das décadas, à mediação ví-
mais importantes do que chamo de “segunda tima-ofensor – prática restaurativa mais comum
onda” da justiça restaurativa no Brasil, marcada e difundida – foram sendo agregadas outras prá-
pela regulação e ampliação do protagonismo do ticas, a exemplo das conferências (inicialmente
Poder Judiciário (Pallamolla, 2017). na Nova Zelândia) e dos círculos restaurativos
O campo da justiça restaurativa no Brasil (primeiramente no Canadá) (Van Ness, Daniel W.
é bastante diversificado e fragmentado. Existem & Strong, Karen Heetderks, 2010, pp. 28-29).
experiências, projetos e programas em curso no É interessante observar que o que hoje se
âmbito do Poder Judiciário, em comunidades, entende por justiça restaurativa – em nível in-
escolas, prisões, etc., e todas se autodenominam ternacional – não estava dado desde o início
como justiça restaurativa. Não se trata, portan- dessa trajetória, tendo o próprio nome – justiça
to, de um campo com desenvolvimento unifor- restaurativa – surgido depois das primeiras ex-
me, até mesmo suas dimensões são difíceis de perimentações. Por isso a insistência em afirmar
precisar, dado o grau de informalidade, a escas- que a justiça restaurativa não está encerrada em
sez de acompanhamento por meio de pesquisas um modelo rígido, mas está em construção.
e a ausência de dados disponíveis sobre as ini- Pode-se dizer que a justiça restaurativa é
ciativas. uma forma de administração de conflitos dis-
Como se pode imaginar, abordar o tema tinta da imposta pelo modelo de justiça crimi-
traz inúmeras dificuldades e de diversas ordens. nal tradicional. Possui uma principiologia pró-
É preciso, por exemplo, enfrentar a desconfiança pria, diferente do modelo tradicional de justiça
e resistência de atores do campo jurídico – qua- – baseado no processo penal e na imposição de
se sempre fruto do desconhecimento do tema; penas – e propõe, dentre outras coisas, a parti-
lidar com as lacunas de um modelo de justiça cipação da vítima e do ofensor na gestão do con-
que está em construção e em constante trans- flito, a reparação do dano decorrente do crime
formação – o que pode levar a distorções na sua e a responsabilização do ofensor por vias não
aplicação; e, ainda, analisar a justiça restaurativa estigmatizantes e excludentes. Sua estratégia,
relatada na literatura especializada internacio- portanto, passa longe de ser soft e não pode ser
nal tendo em mente questões estruturais e cul- confundida com impunidade. Trata-se de outra
turais do Brasil. forma de responsabilização.
Foi diante da insuficiência do modelo ins- Através da utilização de práticas de admi-
titucionalizado de administração de conflitos nistração de conflitos baseadas no diálogo entre
oferecido pela justiça criminal que práticas de aqueles direta e/ou indiretamente implicados no
justiça restaurativa, paulatinamente, foram sen- conflito/crime, busca instituir um diálogo para,
do experimentadas em diversos países a partir quiçá, alcançar um acordo sobre o que deve ser
da década de 1970. As primeiras e mais conhe- feito para reparar a ofensa e o dano causado à
cidas experiências foram realizadas no Canadá
(1974), Estados Unidos da América (1978), Norue-
2
Importante salientar que as primeiras experiências, em
sua grande maioria, foram de iniciativa de agentes da
ga (1981) e Nova Zelândia (1989)1. Destas, as da condicional (probation offices) e de atores da comunidade.
No caso do Canadá e dos EUA, a organização cristã dos
1
Sobre a cronologia dos programas pioneiros de justiça Menonitas desempenhou importante papel. Para mais
restaurativa, conferir: Van Ness, Daniel W. E Strong, Karen detalhes sobre as experiências inicias, conferir: Van Ness,
Heetderks. Restoring Justice: an introduction to Retorative Daniel W. E Strong, Karen Heetderks. Restoring Justice:
Justice. New Providence, NJ: LexisNexis, Anderson an introduction to Retorative Justice. New Providence, NJ:
Publishing, 2010, 4a ed. LexisNexis, Anderson Publishing, 2010, 4a ed.

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Artigos

vítima. Essa reparação, no mais das vezes, en- cionais envolvidos com a justiça criminal quanto
volve questões simbólicas, não se traduzindo em da própria sociedade civil em geral, nos debates
valores monetários (não se confunde, pois, com sobre os propósitos, as possibilidades e os limi-
a reparação de danos no sentido jurídico do ter- tes da justiça restaurativa no Brasil.
mo). Pode-se ainda dizer que este modelo almeja
a constrição do sistema de justiça criminal tradi- REFERÊNCIAS
cional, sobretudo no que diz respeito à redução
da aplicação de penas (principalmente da pena JACCOUD, Mylène. Princípios, Tendências e Procedi-
privativa de liberdade)3. mentos que cercam a Justiça Restaurativa. In SLAK-
No Brasil, o processo de construção da jus- MON, C., R. DE VITTO, R. GOMES PINTO (org.). Jus-
tiça restaurativa está em curso, mas já é possí- tiça Restaurativa. Brasília/DF: Ministério da Justiça e
vel identificar algumas características do nosso PNUD, 2005, pp. 163-188.
modelo. A que salta aos olhos é a do protagonis- PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça res-
mo do Poder Judiciário, o qual tem centralizado taurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM,
o debate, a formação de facilitadores e a imple- 2009. (Monografias, 52).
mentação da justiça restaurativa. A este prota- PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. A construção
gonismo, somam-se outras características que da justiça restaurativa no Brasil e o protagonismo do
merecem atenção, por exemplo: a reduzida par- Poder Judiciário: permanências e inovações no cam-
ticipação das vítimas nas práticas restaurativas; po da administração de conflitos. Tese de Doutora-
o uso massivo dos círculos de construção de paz do. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais.
e restaurativos e a aplicação reduzida da me- Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
diação vítima-ofensor; imprecisões conceituais Sul, 2017.
quanto à diferenciação entre ‘prática restaurati- ROCHE, Declan. Retribution and restorative justice.
va’ e ‘justiça restaurativa’ (Pallamolla, 2017). In Gerry and VAN NESS, Daniel W (ed.). Handbook of
Não há espaço aqui para desenvolver essas Restorative Justice. Cullompton, UK; Portland, USA:
questões, mas o que se pretende neste pequeno Willan Publishing, 2007
arrazoado é, em síntese, destacar a importância VAN NESS, Daniel W. E Strong, Karen Heetderks.
de se aprofundar os conhecimentos sobre jus- Restoring Justice: an introduction to Retorative Jus-
tiça restaurativa a fim de possibilitar um maior tice. New Providence, NJ: LexisNexis, Anderson Pu-
engajamento, tanto dos diversos atores institu- blishing, 2010, 4a ed.
ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa. São Paulo: Palas
3
Para uma diferenciação aprofundada dos modelos,
conferir: PALLAMOLLA, 2009; ZEHR, 2012; ROCHE, Athena, 2012.
2007; WALGRAVE, 1993, apud JACCOUD, 2005.

RAFFAELLA DA PORCIUNCULA PALLAMOLLA

Doutora em Ciências Sociais pela PUCRS. Mestre em Ciências Criminais pela


PUCRS e em Criminologia e Execução Penal pela Universidad Autónoma de
Barcelona (UAB). Professora do curso de Direito da Universidade La Salle. Autora
da monografia vencedora do 13° Concurso de Monografias de Ciências Criminais
do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM. Advogada criminalista.
E-mail: rpallamolla@gmail.com

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Artigos

NEOLIBERALISMO E PROCESSO PENAL


Por Ricardo Jacobsen Gloeckner

Um campo interseccional que não pode ser democraticidade processual penal. Investiga-
desprezado nas investigações que recaem sobre ções sem obediência à legalidade, vazamentos
as formas contemporâneas através das quais seletivos de material à imprensa, prisões-tor-
se apresenta o processo penal é o da constru- tura para a fabricação de condenados, um ator
ção de uma razão normativa (DARDOT; LAVAL, político travestido de juiz, uma corporação em-
2016). Para além do tratamento do neoliberalis- presarial-política responsável pelas acusações
mo como mais uma etapa do sistema de produ- (esta faceta assumida pelo pool acusatório), um
ção capitalista ou ainda, como um determinado Tribunal Constitucional que se absteve de ga-
e específico sistema de acumulação, tem-se o rantir a Constituição nos momentos mais tensos
advento de uma racionalidade. destes processos foram apenas alguns episódios
Efetivamente, o campo processual penal dos quais se pode perceber claramente as rela-
não se subtrai a este atravessamento. A trans- ções simbióticas entre o neoliberalismo autori-
versalidade da razão normativa neoliberal ga- tário e o processo penal brasileiro.
rante pelo menos dois fenômenos contíguos: a O mais gravoso disso tudo é que o neo-
transposição do léxico economicista ao direito liberalismo autoritário (CHAMAYOU, 2018), é
processual penal e, também, a ressignificação de um indexador muito claro do projeto instalado
variegadas categorias processuais penais. Como nesta razão normativa: subverter a democra-
já referenciado em obra anterior (GLOECKNER, cia e acelerar os processos de decomposição
2018), o processo penal brasileiro não se des- do público em proveito dos grandes fluxos de
piu – mesmo com o advento da Constituição de capital, valendo-se, como instrumento de des-
1988 – dos elementos fundamentais que sincro- possessão, do judiciário (o lawfare é garantido
nizaram a estrutura do código de 1941 ao Codice pelas instituições judiciárias) e de seus agentes
Rocco italiano de 1930. Antes houve uma reorga- “em uma luta patriótica contra a corrupção”.
nização das finalidades políticas do processo ao Nem que o resultado seja a precarização de múl-
campo discursivo da Escola Superior de Guerra, tiplas empresas e a concessão de fonte enorme
mediante o construto antidemocrático denomi- de petróleo (o pré-sal) para o capital estrangeiro.
nado “instrumentalidade do processo”. Como governamentalidade – a arte de conduzir
O segundo fenômeno a ser explorado já condutas, (como diria FOUCAULT, 2008), o ne-
não se esgota nesta ressignificação do velho oliberalismo alavanca em sua narrativa transis-
autoritarismo. Trata-se da performatividade da tórica e falsificacionista, a relação entre a inter-
razão normativa em sua capacidade de articu- venção econômica e governo totalitário. E, neste
lar e mais especialmente, de gerar novos ape- sentido, os seus ilustres arautos defendem que a
los políticos ao processo penal. Em realidade, intervenção no campo econômico acarreta, no
consumam-se uma série de alterações sistêmi- futuro, a cada vez maior subtração de liberdades
cas no corpo do processo penal, reunindo não até o Estado agigantar-se e reproduzir o fenô-
apenas elementos de alta densidade normativa, meno do nacional-socialismo. Isso tudo torna
mas também a conformação de subjetividades invisível que a garantia da liberdade econômica
– o neoliberalismo corresponde, neste sentido, depende de um Estado forte, literalmente auto-
à produção de modos de subjetivação – que de ritário no tolhimento de direitos e garantias fun-
uma maneira muito sincrética, se apresentam damentais.
como antidemocráticas. O processo penal brasileiro, consideran-
A operação Lava-Jato, sabe-se, foi uma das do estes elementos, mobiliza velhas categorias
estruturas principais que permitiu o floresci- como “liberdade das provas”, “livre convenci-
mento do bolsonarismo, que se apresentava – mento”, etc e se vale de outros arroubos teó-
mormente como os neoliberais – antipolíticos. ricos, como a redução do nível dos standards
Mais bem, o bolsonarismo corresponde ao modo probatórios, membros do Ministério Público e
de subjetivação política em tempos neoliberais, do Judiciário engajados em think thanks rea-
isto é, como “antipolítica”. E, especificamente no cionários, verdadeiras anedotas epistêmicas
campo do processo penal, o processo Lava-Ja- como “garantismo integral ou positivo”, pro-
to é a caracterização da negação sintomática da duto de um orwelliano “duplipensar”, repro-

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Artigos

dução de um estilo de pensamento milita- de mudança fraco, engessa a promessa sempre


rizado – além da já óbvia licença para matar existente de um governo militar, o baixo nível
concedida aos policiais no Brasil (vide a obra de formação da alta burocracia institucional an-
de ZACCONE, 2015), a proposta de um plea tipática às conquistas democráticas, enfim, um
bargaining à brasileira, como no descabido e quadro cuja tendência é se agravar.
indigente projeto Anticrime, o retorno da tor-
tura como meio de obtenção de confissões (ou REFERÊNCIAS
a prisão preventiva para obtenção de colabo-
radores), o ativismo judiciário e do Ministério CHAMAYOU, Grégoire. La Société Ingouvernable:
Público (com a criação de standards e resolu- une généalogie du libéralisme autoritaire. Paris: La
ções ilegais e inconstitucionais, como os do Fabrique, 2018.
FONAJUD e a Resolução Para o Acordo de Não DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova Razão
Persecução Penal), além da criminalização da do Mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São
advocacia criminal. Estes são apenas alguns Paulo: Boitempo, 2016.
dos mecanismos derivados da razão neoliberal FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, Popula-
no campo processual penal. ção. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
O autoritarismo no processo penal não é GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e Pro-
apenas produto de velhas categorias e de in- cesso Penal: uma genealogia das ideias autoritárias
telectuais orgânicos subservientes à ditadura no direito processual penal brasileiro. Florianópolis:
civil-empresarial-militar. Passa pelas formas Tirant lo Blanch, 2018.
de reconciliação brasileira com estes sujeitos, ZACCONE, Orlando. Indignos de Vida. Rio de Janeiro:
a transição democrática que, como operador Revan, 2015.

RICARDO JACOBSEN GLOECKNER

Graduado em Direito pela Universidade de Passo Fundo (2002). Mestre em Ci-


ências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(2005). Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (2010). Pós-
-Doutor pela Università Degli Studi di Napoli Federico II. Professor do Progra-
ma de Pós-Graduação em Ciências Penais da Pontifícia Universidade Católica.
Coordenador da Especialização em Ciências Penais e da Especialização Direito
Penal e Criminologia, ambas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Gran-
de do Sul. Professor Titular do Programa Maestría en Criminología Aplicada da
Universidad San Carlos da Guatemala.

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O CONTROLE JURISDICIONAL NO COMPARTILHAMENTO DE DADOS


BANCÁRIOS E FISCAIS ENTRE ÓRGÃOS DE FISCALIZAÇÃO
E CONTROLE E O MINISTÉRIO PÚBLICO
Por Mariana Madera Nunes

No próximo dia 21 de novembro o Plenário ção. O mesmo não ocorre com relação ao indiví-
Supremo Tribunal Federal apreciará o Tema 990 duo, porque o sigilo é regra em garantia de sua
da Repercussão Geral (Recurso Extraordinário privacidade, admitindo-se, excepcionalmente, a
n. 1.055.941/SP), o qual ganhou amplo desta- publicidade, quando em conflito interesses indi-
que no cenário jurídico após a determinação do viduais com individual ou social, em garantia do
Ministro Presidente Dias Toffoli de suspender, convívio e da segurança coletiva.
em 16.7.19, o trâmite de todos os processos ju- Nesta seara em que a privacidade e a pu-
diciais, inquéritos e procedimentos de investi- blicidade parecem colidir, o conflito é requisi-
gação criminal em curso no território nacional, tado para que a ideia de democracia prevaleça,
“que foram instaurados à míngua de supervisão com tutela das liberdades públicas e individuais
do Poder Judiciário e de sua prévia autorização e inter-relacionamento entre os diversos direi-
sobre os dados compartilhados pelos órgãos de tos contemplados pelo sistema de normas. So-
fiscalização e controle (Fisco, COAF e BACEN), bre o assunto, Mariana Stuart Nogueira:
que vão além da identificação dos titulares das
operações bancárias e dos montantes globais”. Verificada a linha de abordagem do pro-
A decisão está lastreada no que decidido cesso penal constitucional, o sigilo pode
anteriormente pelo Supremo, no julgamento ser visto como fator de análise dos ele-
conjunto das Ações Diretas de Constitucionali- mentos autoritários e democráticos de
dade n. 2.386, 2.390, 2.397 e 2.859, em 24.2.16, que um Estado [...]. O sigilo deve permanecer
tratavam da impugnação de normas relativas ao em um equilíbrio, uma vez que, em extre-
fornecimento, pelas instituições financeiras, de mos, demonstra Estados não Democráti-
informações bancárias de contribuintes à admi- cos. A saber, o sigilo, em seu extremo, em
nistração tributária, quanto à limitação de aces- que tudo é sigiloso, todos os atos proces-
so a dados alusivos à identificação dos titulares suais e inclusive assegurando os direi-
das operações e dos montantes globais mensal- tos fundamentais, tem-se um Estado não
mente movimentados, ficando vedada a inclusão transparente, que não valoriza o funda-
de qualquer elemento que permita identificar a mento da cidadania. Em outro extremo,
origem ou a natureza dos gastos, nos termos da em que não se preserva o sigilo, em que
própria Lei Complementar 105/2001. tudo é público, a cidadania também so-
Na linha de entendimento que vem sendo fre pela insegurança, pois não tem seus
construída pelo STF, é possível que o Tribunal direitos de personalidade resguardados
autorize apenas o chamado “compartilhamento e sofre com a violação da privacidade.
obrigatório” de informações, permitindo tão-so- [...] Em suma, pode-se dizer que o sigilo
mente a transferência de evidências objetivas – é uma medida processual penal que serve
identificação de titulares e montantes globais como garantia à preservação dos direitos
– entre órgãos administrativos de fiscalização e fundamentais, como a privacidade, ex-
controle e o Ministério Público. cepcionando a regra de publicidade dos
Permite-se a mitigação do direito ao sigilo atos processuais, quando há necessidade
financeiro, previsto como direito de personali- de proteção a bem jurídico maior. (No-
dade nos artigos 5º, incisos X e XII, da Constitui- gueira, 2012, p. 110).
ção Federal, diante da ponderação com direito
fundamental coexistente de maior valor, peran- A privacidade do indivíduo é acobertada
te o qual sofrerá relativização e será amoldado, pela proteção do sigilo, como limite dos direi-
sem que isso implique – porque não se trata de tos individuais contra atuação abusiva do Esta-
regra – a sua exclusão. do, compreendendo o sigilo bancário e fiscal um
A publicidade é regra na atuação do Es- dever jurídico que têm as instituições financei-
tado, admitindo-se, excepcionalmente o sigilo ras, organizações auxiliares e funcionários de
como restrição ao direito individual à informa- não divulgar, salvo por motivo legal, informações

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Artigos

obtidas e que venham a obter em razão das ativi- jurídico pátrio, a imposição de que a limitação
dades econômicas desenvolvidas. de direitos fundamentais apenas se proceda me-
O acesso ao conteúdo das operações finan- diante autorização judicial e com observância
ceiras, no entanto, se submete a imprescindível das garantias processuais do acusado.
reserva jurisdicional. A exigência de autorização Assim, no julgamento do Tema 990 da Re-
judicial para a quebra do sigilo decorre da siste- percussão Geral, o Supremo terá a oportunidade
mática de um processo penal acusatório. Assim, de consagrar a impossibilidade de compartilha-
sendo o Ministério Público o detentor da pre- mento direto de dados bancários e financeiros
tensão acusatória e o acusado a parte contrária, entre órgão administrativos e de controle e o
cabe apenas ao magistrado decidir, de forma im- Ministério Público, que englobem informações
parcial e garantindo a isonomia, o contraditório sobre a origem, a natureza e o destino das ope-
e a ampla defesa, sobre a legalidade e proporcio- rações realizadas pelos investigados, em obser-
nalidade da produção probatória requerida por vância ao direito fundamental à intimidade e em
qualquer das partes. Com isso, apenas o juiz, nos conformidade com as regras do sistema proces-
termos do devido processo legal, possui pode- sual acusatório.
res para restringir os direitos dos acusados e de
terceiros com a finalidade da produção de prova. REFERÊNCIAS
(SCARANCE, 2005, p. 470)
De fato, é impensável imaginar que uma NOGUEIRA, Mariana Stuart. O sigilo no processo pe-
das partes do processo penal tenha legitimi- nal e a efetivação dos direitos fundamentais. Revista
dade para restringir direitos fundamentais da Jurídica, dezembro de 2012, n. 422, p. 110-112.
parte contrária em razão do exercício da titula- SCARANCE, Antonio Fernandes. O sigilo financeiro
ridade exclusiva da pretensão punitiva estatal. e a prova criminal. In: PIZOLO, Reinaldo. GALVADÃO
Decorre do sistema acusatório, fundamento do JR., Jayr Viégas (Coord.). Sigilo fiscal e bancário. São
processo penal constitucional no ordenamento Paulo: Quartier Latin, 2005.

MARIANA MADERA NUNES

Pós-Graduada em Ciências Criminais pela Faculdade Baiana de Direito. Bacharela


em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Ex-Assessora de Ministro no
STF. Advogada. E-mail: mariana_ madera@hotmail.com.

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Artigos

AUTO DE RESISTÊNCIA QUALIFICADO: UMA “NOVA”


FACE DA VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL
Por Lara Teles Fernandes

As execuções extrajudiciais e o excesso nas é mais forte e letal.


ações policiais não são uma novidade. Nesse con- Segundo o 11º Anuário Brasileiro de Segu-
texto, destaca-se a pesquisa de Zaccone (ZACCONE, rança Pública (FÓRUM NACIONAL DE SEGU-
2015), na qual se analisaram mais de 300 procedi- RANÇA PÚBLICA, 2017), publicado pelo Fórum
mentos de autos de resistência, datados de 2003 e Brasileiro de Segurança Pública, em 2016, 4.222
2009, na cidade do Rio de Janeiro, em que houve o pessoas morreram em decorrência de interven-
arquivamento do inquérito policial. ções de policiais civis e militares. No mesmo
Concluiu-se que o reconhecimento in- ano, foram registradas 453 mortes de policiais
distinto da legítima defesa nas ações letais dos civis e militares.
agentes, aliada à omissão estatal na apuração de Na 12ª Edição do Anuário (FÓRUM NACIO-
tais fatos, favorece a perpetração da cultura do NAL DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2018), apurou-
extermínio (ZACCONE, 2015, p.258). -se que, em 2017, em relação ao ano anterior,
Dados do Núcleo de Estudos da Cidadania, houve uma redução de 4,9% no número de poli-
Conflito e Violência Urbana da UFRJ apontam ciais mortos (367 pessoas), ao mesmo tempo em
que o número dos inquéritos policiais arquiva- que cresceu em 21% o índice de pessoas mortas
dos dentre os que investigam os autos de resis- em intervenções de tais agentes (5.159 pessoas).
tência chegou a 99,2% (MISSE, 2011). Ao mesmo Já em 2018, de acordo com o 13º Anuário
tempo, relatório da Human Rights Watch, que (FÓRUM NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA,
estudou parte dos 11 mil autos de resistência 2019), continuou em queda o índice de policiais
registrados pelas polícias do Rio de Janeiro e mortos, reduzindo-se em 8% em relação a 2017,
São Paulo entre 2003 e 2009, concluiu que boa totalizando 343, sendo que 75% deles vieram a
parte de tais autos tratavam-se de execuções, óbito fora de serviço, isto é, fora do contexto das
contexto no qual se estimou que 80% dos casos operações policiais, que é o que justificaria o au-
tinham indícios de abuso policial (HUMAN RI- mento do albergue jurídico da letalidade da polí-
GHTS WATCH, 2011). cia. No mesmo ano, 6.220 pessoas foram mortas
Assim, ao promover o arquivamento em em operações policiais, o que representa um au-
massa dos autos de resistência, quase como po- mento de 19,6% em relação a 2017.
lítica pública, o sistema de justiça legitima ações Dado esse panorama, não se consegue
ilegais. conceber como a ampliação do aparato jurídico
Em geral, as vítimas dos autos de resistên- e político do poder de letalidade da polícia seja
cia são detentoras de vidas matáveis (AGAM- uma solução adequada e proporcional, tendo
BEN, 2007, p.16) e, além da vida, têm sua ima- em vista que a suposta intenção de resguardar a
gem destruída, já que são estereotipadas como proteção pessoal dos agentes de segurança pú-
criminosos. blica pode corroborar para a crescente enxurra-
A legitimação desse processo se agrava da de mortes nas intervenções policiais.
com o crescimento de vozes em defesa da con- Nesse contexto, faz-se urgente atentar para
cessão de plenitude de armas aos agentes de se- uma nova prática existente, que aqui denomino
gurança pública. Um exemplo é a ampliação da de auto de resistência qualificado. Pode-se defi-
excludente de ilicitude da legítima defesa, pre- nir tal fenômeno como a hipótese em que a vítima
tendida pelo pacote anticrime. do auto de resistência sobrevive à ação policial e,
De fato, reconhecem-se as condições pre- em decorrência disso, é criminalizada a partir dos
cárias em que trabalham os policiais, que têm a depoimentos dos policiais militares que a impu-
vida posta em risco em razão de uma ineficien- tam a conduta de tentativa de homicídio.
te política de segurança pública. No entanto, Ou seja, nessa prática, a ação policial não
pesquisas vêm indicando que a diferença dos somente é isenta de investigação, mas também
índices de letalidade dos agentes e de civis no dá ensejo à criminalização da vítima, que senta
contexto de intervenções policiais é bastante no banco dos réus do Tribunal do Júri por ale-
díspar, o que põe à prova o discurso de que há gada tentativa branca contra os policiais mili-
uma guerra urbana em curso, em que o “inimigo” tares.Trata-se de realidade verificada nas cinco

17
Artigos

Varas do Júri de Fortaleza. No ano de 2018, em novidade é que além da fuga do aparelho inves-
um espaço amostral limitado (processos com tigativo estatal - que se reflete nos crescentes
atuação da Defensoria Pública), verificaram-se índices de letalidade nas intervenções policiais
15 casos envolvendo auto de resistência quali- – surge a criminalização da vítima que sobrevi-
ficado. Em todos eles, os réus foram absolvidos ve, como forma de retardar, e até mesmo evitar
no Tribunal do Júri, impronunciados ou tiveram a apuração da conduta do agente de segurança,
a prisão preventiva revogada. pois, ao se tornar vítima, nem mesmo o auto de
Esses casos podem ser assim classifica- resistência é instaurado.
dos quando há as seguintes características: 1) Por isso, ainda que aqui tenha sido descri-
policiais militares sem qualquer lesão (tentati- ta com base em pesquisa num pequeno espaço
va branca); 2) escassez probatória injustificada: amostral, os operadores do Direito precisam
ausência de perícia na viatura para averiguar a ficar atentos a essa nova prática, a fim de coi-
veracidade da versão policial, de testemunhas, bir sua difusão e legitimação pelo sistema de
de perícia nas armas dos policiais e nas armas justiça.
eventualmente apreendidas com os “réus”, de
exame de local de crime; 3) contradição na ver- REFERÊNCIAS
são das “vítimas”; 4) réus lesionados.
A título de exemplo, vale destacar o caso AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e
de G.C.S.L, que, em fevereiro de 2018, foi lesio- a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Hori-
nado por disparo de arma de fogo por parte de zonte: Editora UFMG, 2007.
uma composição da Polícia Militar, em suposto CEARÁ. 2ª Vara do Júri da Comarca de Fortaleza. Pro-
contexto de troca de tiros, e ainda foi atrope- cesso nº 0110022-56.2018.8.06.0001. Partes: Ministé-
lado pela viatura, o que comprometeu sua ca- rio Público do Estado do Ceará e G.C.S.L. Distribuído
pacidade de locomoção. Em contrapartida, não em 01/03/2018.
houve a comprovação da realização de disparos FERNANDES, Lara Teles. Prova testemunhal no pro-
por parte de G.C.S.L contra a polícia. Mesmo cesso penal: uma proposta interdisciplinar de valora-
assim, o MP ofereceu denúncia por tripla ten- ção. Florianópolis: Emais, 2019.
tativa de homicídio, tendo como vítimas os po- FÓRUM NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA. 11º
liciais, e como réu G.C.S.L. Ao final do processo, Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2017.
o réu foi impronunciado, contudo a conduta FÓRUM NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA. 12º
dos agentes que o lesionaram nunca chegou a Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2018.
ser apurada1. FÓRUM NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA. 13º
Prevaleceu, para fins de investigação, por- Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2019.
tanto, somente a versão dos agentes públicos, HUMAN RIGHTS WATCH. Força letal: Violência poli-
a quem se costuma atribuir uma presunção de cial e segurança pública no Rio de Janeiro e São Pau-
veracidade acrítica (FERNANDES, 2019), em de- lo. 2009.
trimento de outros elementos. NÚCLEO DE ESTUDOS DA CIDADANIA, CONFLITO
Essa nova prática mostra que a conclusão E VIOLÊNCIA URBANA DA UNIVERSIDADE FEDERAL
de Zaccone estava certa: a ausência de inves- DO RIO DE JANEIRO. Relatório final de pesquisa co-
tigação só fortalece a necropolítica estatal. A ordenada por Michel Misse – “autos de resistência”:
uma análise dos homicídios cometidos por policiais
1
Tal processo tramitou na 2ª Vara do Júri da Comarca na cidade do Rio de Janeiro (2001 – 2011).
de Fortaleza, Ceará, sob o número 0110022- ZACCONE, Orlando. Indignos de vida – a forma jurí-
56.2018.8.06.0001. Eram partes o Ministério Público
do Estado do Ceará e G.C.S.L Foi distribuído em dica da política de extermínio de inimigos na cidade
01/03/2018 e se encontra atualmente arquivado. do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

LARA TELES FERNANDES

Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Autora da obra


Prova Testemunhal no Processo Penal: uma proposta interdisciplinar de
valoração. (Editora Emais, 2019). Defensora Pública do Estado do Ceará.

18
ENTREVISTA

Múltiplos Olhares
Todavia, esse não me parece o melhor momento
para isso. Não dá para pensar em uma lei
sem considerar o contexto de sua produção.
E, no atual contexto brasileiro, não existem
condições objetivas para a reflexão necessária
que uma legislação que vai tratar de valores
como a “verdade” e a “liberdade” merece. Vive-
se, em todo o mundo, mas no Brasil com uma
maior intensidade, um momento em que tudo e
todos são reduzidos a objetos negociáveis e/ou
descartáveis. Tanto os “direitos fundamentais”
quanto valores democráticos como a “verdade”
e a “liberdade”, hoje, tenderiam a ser tratados
pelo legislador como obstáculos à eficiência do
Estado e do mercado.
Rubens Casara Só há sentido em reformar uma legislação, em
Juiz de direito do TJ/RJ, doutor em direito, especial uma legislação que trate de processual
mestre em ciências penais. Em estágio de pós- penal, se a mudança tiver o objetivo de reforçar
doutorado em Paris-Nanterre (Paris X). Membro limites que impeçam abusos do poder, inclusive
da AJD e do Corpo Freudiano. do poder econômico, ou arbítrios dos agentes
estatais. Entre os atuais detentores do poder
político e do poder econômico, não há essa
EM TERMOS GERAIS, COMO VOCÊ TEM vontade de impor limites ao poder. O projeto
ANALISADO AS DINÂMICAS DE TENTATIVA Moro, por exemplo, vai no sentido contrário.
DE REFORMA DO CÓDIGO DE PROCESSO É preciso tratar com seriedade a reforma
PENAL NO BRASIL? do Código de Processo penal e, para tanto,
seria necessário um grande debate público
RUBENS CASARA É um movimento bem com a sociedade, marcado por informação de
complexo. qualidade e participação popular. E isso não
O Código de Processo Penal em vigor é um me parece possível no momento. Antes de
produto legislativo de inspiração fascista, no qualquer mudança legislativa, os detentores do
qual ainda se fazem sentir as visões de mundo e poder político deveriam providenciar estudos
as ideologias de teóricos autoritários como, por sobre os impactos sociais e econômicos das
exemplo, o italiano Vincenzo Manzini. Apesar das medidas que eles pretendem normatizar, o que
reformas parciais a que foi submetido, o Código me parece impossível em uma quadra histórica
de Processo Penal mantém um conjunto de em que a ignorância, o ridículo, a exploração de
dispositivos que permitem a instrumentalização preconceitos, a distribuição de fake news e a
de pessoas submetidas à atividade estatal de defesa da violência tornaram-se uma espécie de
persecução penal e a gestão das provas nas mãos capital político.
do juiz. Em outras palavras, uma interpretação No Brasil, e os últimos anos deixaram isso claro,
literal do Código de Processo Penal permite vigora um visão de mundo que demoniza as
tanto prisões sem finalidade cautelar quanto pesquisas e os estudos sérios. Há um clima anti-
perversões inquisitoriais de juízes parciais. Trata- intelectual, típico de momentos autoritários,
se, portanto, de uma legislação que precisava que não recomenda mudanças legislativas.
ser revista para excluir o princípio inquisitivo, Como cidadão, eu não gostaria de ver o direito
que dá coerência sistêmica à aplicação das leis à liberdade e o valor “verdade” relativizados ou
processuais penais no Brasil, e afastar todos os distorcidos no Congresso por gente que acredita
resquícios de uma epistemologia autoritária que que a terra é plana, que médicos são agentes
tanto sofrimento desnecessário já causou. disfarçados do comunismo internacional ou por

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Entrevista: Múltiplos Olhares

parlamentares que têm como guru intelectual destinado à persecução penal em juízo. Na
uma figura como o Olavo de Carvalho, que, medida em que acreditam em uma “parte
além de ser a principal referência intelectual imparcial”, os magistrados passam a se identificar
do Presidente Jair Bolsonaro, acredita na com o Ministério Público. Ambos, então, unidos
possibilidade do filósofo alemão Theodor Adorno pela identidade fornecida pela “imparcialidade”
ter composto as músicas dos Beatles. compartilhada, passam a representar a fantasia
de que são “o Estado” contra o crime e o
NO LIVRO PROCESSO PENAL DO ESPETÁ- criminoso, ao mesmo temo em que reservam ao
CULO, HÁ UMA ABORDAGEM SOBRE A (IM) acusado um natural distanciamento. Ao acreditar
PARCIALIDADE DO ÓRGÃO ACUSATÓRIO na imparcialidade do Ministério Público,
À LUZ DA MITOLOGIA. DE QUE FORMA TAL desaparece a eqüidistância do Magistrado em
CONCEITO INFLUENCIA NA NECESSÁRIA relação às partes e, em conseqüência, a própria
EQUIDISTÂNCIA DO MAGISTRADO EM RE- imparcialidade da Agência Judicial.
LAÇÃO ÀS PARTES PROCESSUAIS?
HÁ RELAÇÃO ENTRE A QUIMERA DA (IM)
RUBENS CASARA A imparcialidade do Ministério PARCIALIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO E
Público é um mito, ou seja, um elemento A FIGURA DO JUIZ-SECRETÁRIO DE SEGU-
discursivo que exerce uma determinada RANÇA PÚBLICA?
funcionalidade a partir de uma crença. O mito
preenche uma espécie de “vazio” que serve RUBENS CASARA Importante lembrar que não
para alcançar um determinado objetivo e/ou há modelo ou epistemologia autoritária em
justificar uma determinada prática. Ao dizer que não ocorra a confusão entre as funções de
que é imparcial, o Ministério Público busca se acusar e de julgar. Dito de outra forma: é uma
aproximar do órgão julgador e permitir a criação característica do pensamento e das instituições
de um espécie de “consórcio imparcial” contra autoritárias a promiscuidade entre as figuras
aquele que se diferencia pela parcialidade, o do acusador e do juiz. O “juiz-secretário de
réu, um estranho que merece ser tratado com Segurança”, na feliz expressão do Professor
desconfiança. Em outras palavras, o discurso Antonio Pedro Melchior, é esse juiz promíscuo.
da imparcialidade do Ministério Público é um Aliás, trata-se de uma relação, em regra,
aceno ao “princípio da identidade”, presente em pornográfica, uma vez que exteriorizada sem
todo movimento autoritário e que se justifica a pudor, de forma grosseira e vulgar, e favorecida
partir do repúdio à alteridade e aos diferentes. pela comunhão de preconceitos, de tendências
Como certa uma vez escreveu o professor inconscientes/reprimidas, de classe e de visões
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “o mito de mundo entre o acusador e o juiz.
pode ser tomado como a palavra que é dita, para É essa atuação “conjunta”, ainda que disfarçada
dar sentido, no lugar daquilo que, em sendo, e “justificada” pela imparcialidade, que permite
não pode ser dito”. O mito é aquilo que só é dito a “vitória” dos preconceitos compartilhados e o
diante da falta de um referencial semântico que atendimento dos interesses em comum. O juiz
atenda a uma necessidade de quem fala. que age como acusador ou em parceria com o
O simbólico que cada mito carrega produz acusador atua em um contexto em que não há
efeitos reais. A força do mito impede, por espaço para dúvidas ou para a realização dos
exemplo, até mesmo reflexões básicas: se o direitos fundamentais, isso porque esses direitos,
Ministério Público, como órgão estatal titular da bem como os limites epistemológicos ligados à
ação penal, foi pensado e criado para assegurar produção e valoração probatória, passam a ser
a imparcialidade do juiz, como então poderia ser vistos como obstáculos ao desejo e à identidade
imparcial? que uniram o órgão julgador e o acusador. Um
Impossível, pois, deixar de perceber que os desejo compartilhado e, vale dizer, perverso, que
efeitos produzidos pelo mito da imparcialidade leva ao gozo pela violação dos limites éticos e
do órgão acusador dependem inteiramente da jurídicos.
crença e da aceitação acrítica que a comunidade Ao assumirem essa relação obscena, o juiz e
jurídica, sobretudo os magistrados, depositam o acusador abandonam qualquer pretensão
sobre o discurso de que o órgão acusador pode de independência e autonomia. A vontade de
atuar imparcialmente durante procedimento acusar e o correlato desejo de ver o réu punido,

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Entrevista: Múltiplos Olhares

típicos do acusador, se misturam com a vontade intenção” de “combater a corrupção” do


e o desejo do julgador. Dá-se, então, o que o sistema político, atores jurídicos acabaram por
italiano Franco Cordero chamou de “primado corromper o Sistema de Justiça e mesmo as
da hipótese sobre o fato”, no qual as tentativas bases democráticas. A corrupção tornou-se uma
de reprodução do fato através do procedimento espécie de significante vazio que instaura um
probatório, bem como o compromisso com a “vale tudo” nas instituições e na sociedade.
verdade, desaparecem diante das convicções Esses atores jurídicos que assumiram o
prévias ou das certezas delirantes que tomam protagonismo do “combate à corrupção”, apesar
conta tanto do acusador quando do juiz. de se apresentarem como “novos iluministas” ou
Mais importante do que “descobrir a verdade”, “salvadores da pátria”, ignoravam (ou fingiram
em um procedimento que respeite os limites ignorar) que os mecanismos tradicionais de
éticos e jurídicos, passa a ser a vontade controle e apuração da corrupção não dão mais
de confirmar a hipótese a que os agentes conta de identificar e reagir aos episódios de
“imparciais” aderiram previamente, mesmo que corrupção. Na realidade, a corrupção passa a
para isso seja necessário violar limites jurídicos ter um novo funcionamento e uma nova lógica
ou mesmo a lógica mais elementar. O réu (como em consequência da aproximação entre o
os judeus na Alemanha nazista, por exemplo), que poder político e o poder econômico que leva
figura como um terceiro estranho aos interesses à transformação do interesse privado dos
compartilhados entre o juiz e o acusador, detentores do poder econômico em interesse
passa a enfrentar, em meio às personalidades público.
autoritárias afetadas por preconceitos, projetos Com a mudança da relação entre a esfera
pessoais de poder e desejos parciais, aquilo que pública e a privada, que se dá no momento em
Theodor Adorno chamou de “a paródia de um que o poder político se identifica com o poder
processo”. econômico, ocorre uma mutação no paradigma
da corrupção real. Isso porque desaparece o
COMO O SENHOR AVALIA, NO ÂMBITO DA conflito de interesses entre os projetos do poder
OPERAÇÃO LAVA-JATO, A MANEIRA QUE político e os interesses privados. Desaparece
SE OPERAM AS RELAÇÕES ENTRE O COM- a mediação que existia entre corruptor,
BATE À CORRUPÇÃO ENQUANTO PAUTA corrompido e o objeto da corrupção: o corruptor
POLÍTICO-PARTIDÁRIA E A DEMOCRACIA realiza diretamente o ato corrompido. Não há
REPRESENTATIVA? mais uma relação oculta voltada a produzir
efeitos econômicos a partir do poder político; os
RUBENS CASARA A crise da democracia interesses privados passam a ser tratados, sem
representativa se faz sentir em todo o mundo, em qualquer disfarce, como “interesses públicos”.
especial diante da aproximação antidemocrática Em apertada síntese, os verdadeiros corruptos
entre o poder político e o poder econômico. ficaram protegidos das ações dos atores jurídicos
Contudo, no Brasil e na Itália, mais do que e o discurso de “combate à corrupção” voltou-
em outros países, as agências do Sistema de se para episódios banais ou, o que é pior, para a
Justiça exerceram um papel determinante para manipulação política da população.
transformar a crise da representação em uma Diante da nova configuração e dinâmica da
crise dos próprios valores, princípios e regras corrupção no Estado, o discurso do “combate à
democráticos. Muitos atores jurídicos passaram corrupção” e as ações a ele correlatas passam a
a atuar no sentido de criminalizar a politica, com ser apenas tentativas de moralização do campo
um discurso de justificação recheado de “boas do imaginário relacionado à atividade estatal,
intenções” e “moralismos”, ao mesmo tempo em sem a preocupação com a corrupção produzida
que prometiam resolver os problemas gerados pelo mercado e ineficaz em relação à corrupção
pelas distorções da democracia representativa. real. Em outras palavras, ao lado da ineficácia de
Um engano com consequências desastrosas à se pretender combater a verdadeira corrupção
democracia. através do Sistema de Justiça Criminal, existe a
Basta pensar, por exemplo, no fenômeno funcionalidade real da utilização do significante
da corrupção. Corrupção, por definição, é “corrupção” no intuito de autorizar o afastamento
a violação dos padrões normativos de um de direitos e garantias previstos na legislação
determinado sistema. Não raro, com a “boa brasileira.

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Entrevista: Múltiplos Olhares

Se a sensação de corrupção aumenta no em razão das informações, em regra parciais,


Estado diante da colonização da democracia por vezes deliberadamente equivocadas, que
representativa pela economia, cresce também recebem dos conglomerados empresariais que
o apelo popular por medidas que eliminem produzem o “jornalismo” brasileiro.
a corrupção. É esse apelo popular que acaba Muitos atores jurídicos recorreram
manipulado para permitir o afastamento dos engenhosamente ao discurso do “combate
limites éticos e jurídicos ao exercício do poder à corrupção” com a finalidade política de
penal. autorizar a corrupção do sistema de direitos e
Ao longo da história do Brasil (como acontece garantias fundamentais, vistos como obstáculos
também em diversos países) o discurso de ao mercado e à gestão da pobreza através do
“combate à corrupção” sempre foi utilizado Sistema de Justiça Criminal. Não por acaso,
contra os inimigos dos detentores do poder cada proposta de ampliação do poder penal
econômico. Isso se deu com os ex-presidentes direcionado ao combate à corrupção significa a
brasileiros Getúlio Vargas, João Goulart, Lula e restrição de direitos e de garantias processuais
Dilma. Nas raras vezes em que não houve uma de investigados ou acusados.
plena identificação entre poder político e poder O Estado brasileiro, hoje, revela-se uma forma
econômico, as elites econômicas, amparadas corrompida do Estado Democrático de Direito.
por seus meios de comunicação de massa, No entanto, essa corrupção é vista como
recorreram ao significante “corrupção” a fim de natural. Diante do fracasso ou mesmo da falta de
enfraquecer adversários, pautar governos ou interesse em identificar ou reprimir essas novas
criar condições para golpes de Estado, brandos ou corrupções, utiliza-se o significante “corrupção”
severos. O falso (e seletivo) combate à corrupção, com a função política de justificar o afastamento
como percebeu o cientista social Jessé de Souza, de limites ao poder.
surge no Brasil “como o ‘testa de ferro universal’
de todos os interesses inconfessáveis que não COMO VOCÊ AVALIA, AO LONGO DOS
podem se assumir enquanto tais”. TEMPOS, OS DIVERSOS MODOS COMO O
No Brasil atual, esse processo de utilização PROCESSO PENAL É USADO PARA FINS
política do significante “corrupção”, sempre DE ESPETÁCULO E A FORMA COMO ISSO
atribuída ao outro, torna-se ainda mais CHEGOU AO ESTÁGIO ATUAL?
fácil. Isso se dá através da transformação do
“combate à corrupção” em mercadoria, um RUBENS CASARA Não é possível pensar o
bem que não apresenta contornos rígidos, é exercício do poder e o funcionamento do
maleável e seletiva, mas que acaba vendida processo penal sem atentar para a racionalidade
como de interesse de todos e utilizável contra hegemônica em um determinado tempo.
todos os indesejáveis. A mercadoria “combate Por racionalidade quero dizer o modo de
à corrupção” tem consumidores cativos, um ver, compreender e a atuar no mundo. Hoje,
público formatado para aplaudir qualquer ato o neoliberalismo apresenta-se como essa
que se afirma “contra a corrupção”, mesmo que racionalidade hegemônica, ao mesmo tempo
ineficaz ou draconiano. O “combate à corrupção” em que é também um modo de governar, uma
vendido à população, sempre ao gosto dos ideologia, uma orientação econômica e uma
proprietários dos meios de comunicação de normatividade capaz de alterar o funcionamento
massa, não atinge as elites econômicas e nem do Estado, da sociedade e do indivíduo. Sempre
seus privilégios, mas permite ações, nem sempre que muda a racionalidade hegemônica, mudam
legítimas, contra os indesejáveis, inclusive os também as instituições e, em consequência, o
adversários políticos dos detentores do poder funcionamento concreto do poder penal.
econômico e das agências do Sistema de Justiça. E o que caracteriza a racionalidade neoliberal?
Esse “combate” conta com os ingredientes que Principalmente, duas coisas. Primeiro, a
permitem transformar processos judiciais em transformação de tudo e todos em objetos
espetáculos, políticos amados em odiados, negociáveis; em segundo lugar, a percepção de
inquisidores em heróis, uma vez que essa que o “outro” é um concorrente ou inimigo que
mercadoria possibilita todo tipo de distorção precisa ser derrotado na busca tendencialmente
e manipulação afetiva do público, em especial ilimitada por lucros ou vantagens.
daqueles que se eximem da faculdade de julgar

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Entrevista: Múltiplos Olhares

Em relação ao processo penal, o Sistema de através de cálculos de interesses. Os valores da


Justiça passa a atuar como uma empresa e os jurisdição democrática, a “verdade” e a “liberdade”,
processos se tornam mercadorias. O “processo sofrem um processo de reificação para serem
penal do espetáculo” é uma das mercadorias apresentados como objetos negociáveis a partir
fornecidas pelo Estado-Empresa, na qual a de dispositivos como a “delação premiada”.
dimensão de garantia do processo penal é Cria-se um “mercado Judicial” no qual os
substituída pelo objetivo de entretenimento. julgamentos espetacularizados são apenas uma
das mercadorias a disposição dos consumidores.
A ATUAL ESPETACULARIZAÇÃO DO
PROCESSO PENAL GUARDA SIMBIOSE DA NOSSA TRINCHEIRA DEMOCRÁTICA,
COM O HODIERNO “ESTADO PÓS- AINDA É POSSÍVEL ACREDITAR NO
DEMOCRÁTICO”? PROCESSO PENAL COMO INSTRUMENTO
DE CONTROLE DO PODER PUNITIVO?
RUBENS CASARA O Estado pós-democrático,
entendido como a forma estatal que se caracteriza RUBENS CASARA Não há opção. Estamos diante
pelo desaparecimento dos limites rígidos ao de um desafio ligado à defesa da civilização, do
exercício do poder, e a espetacularização conhecimento, da alteridade e da vida. Então,
do processo penal são consequências da a única ação eticamente possível é no sentido
racionalidade neoliberal. de atuarmos contra o retorno da barbárie que
No neoliberalismo, o Estado está a serviço do se manifesta no sistema de justiça através
mercado. O Mercado precisa do Poder Judiciário dos abusos e do arbítrio que caracterizam o
para estabilizar as suas expectativas e também descontrole do poder penal.
para controlar os que lhe parecem indesejáveis, A racionalidade neoliberal e o autoritarismo,
mais precisamente os pobres e os inimigos que hoje andam juntos, levam ao retrocesso, à
políticos do projeto neoliberal. Mas, não é só. morte e à destruição do planeta em nome de
Sob a égide da racionalidade neoliberal, o uma busca tendencialmente ilimitada por lucros
próprio poder judiciário torna-se uma empresa e vantagens. Diante desse contexto, qual o
e passa a produzir mercadorias que geram lucro sentido eticamente possível do processo penal,
ou permitem posições de vantagem. O processo a não ser o de servir de instrumento de controle
judicial, por exemplo, acaba reduzido a uma do poder? A não ser o de funcionar como limite
mercadoria. Questões como a da produtividades democrático?
dos juízes e a das custas processuais, por Na barbárie, não há necessidade de processo
exemplo, atendem à lógica economista expressa penal.

23
Coluna
1.70

MARCELLA MASCARENHAS NARDELLI

VIESES COGNITIVOS E O PROBLEMA DAS


CONDENAÇÕES ERRÔNEAS:
ou o incrível caso do serial killer que nunca matou ninguém1

Recentemente, a Suécia está revisitando trabalho de investigação do já falecido jornalista


por meio das telas do cinema o que foi consi- sueco Hannes Råstam, com a ajuda de sua assis-
derado como o maior erro judiciário de sua his- tente, Jenny Küttim (VELASCO, 2019).
tória. Lançado em setembro deste ano, o filme Thomas Quick era tido como um menti-
“Quick” retrata o caso do terrível serial killer que roso compulsivo, sofria por não aceitar sua ho-
confessou o assassinato de 39 pessoas – entre mossexualidade e recorreu à criminalidade para
homens, mulheres e crianças – , e foi condena- sustentar o vício em drogas – circunstâncias que
do por 8 desses crimes. Sture Ragnar Bergwall, contribuíram para
que adotou a alcunha de Thomas Quick, chegou o afastamento de
a ser comparado ao personagem Hannibal Lec- amigos e da pró-
ter do filme O Silêncio dos Inocentes, já que as pria família. Após
práticas envolviam atos de canibalismo, além de uma malsucedida
estupros e mutilações. O curioso é que, mais de tentativa de roubo
uma década depois, Quick teve todas as conde- a banco, foi inter-
nações revistas e anuladas graças ao minucioso nado a seu pedi-
do em uma clínica
1
Agradeço à Rachel Herdy, por ter gentilmente enviado à psiquiátrica de se-
coluna a reportagem do caso Thomas Quick, a qual inspirou
as discussões que ora se apresentam. Um agradecimento Cartaz do filme Quick
especial também a Caio Badaró Massena, Janaina Matida e (The Perfect Patiece),
Antonio Vieira, que dividem comigo a coluna, pela leitura e do cineasta sueco
revisão do texto. Mikael Hafstrom.

24
Coluna: A Toda Prova

gurança máxima, com vistas a compreender a si trabalhou com o jornalista Hannes Råstam na in-
mesmo e a sua sexualidade. Foi lá que um grupo vestigação que levou à anulação das condena-
de psiquiatras e psicoterapeutas pesquisando ções – revelou que os policiais encarregados do
a mente criminosa interessou-se por empre- caso não toleravam objeções às suas conclusões.
gar nele uma terapia Freudiana voltada para o Segundo ela, houve, por exemplo, questiona-
resgatate de memórias reprimidas. No entanto, mentos por parte de alguns agentes em como
sem qualquer história interessante para contar seria possível que Quick tivesse utilizado treze
e motivado pelo desejo de permanecer em tra- maneiras diferentes de matar, algo incomum
tamento com medicações psicotrópicas – afinal, para um serial killer – o que culminou com seus
ele era viciado em drogas – , Quick começou a afastamentos da investigação. Além disso, foi
confessar crimes até então não solucionados descoberto que todas as evidências que colo-
pela polícia com vistas a chamar a atenção dos cavam em xeque a autoria dos assassinatos por
profissionais, valendo-se de detalhes que busca- parte de Quick foram ocultadas sob o pretexto
va em jornais e noticiários. de que poderiam confundir os tribunais. A ver-
Ao relatar as informações como se estives- dade é que os investigadores estavam conven-
se resgatando memórias das quais não se recor- cidos de que Thomas Quick era um serial killer
dava inicialmente, tornou-se motivo de grande e não queriam que nada estragasse essa hipó-
entusiasmo entre os psiquiatras e psicoterapeu- tese. Por outro lado, houve uma grande pressão
tas, vez que representava o êxito de suas pesqui- da imprensa, que ficou satisfeita por se tratar de
sas. Estes profissionais se diziam profundamen- um serial killer e explorou isso. Todos esses me-
te convencidos da veracidade das confissões, canismos se juntaram, conforme relata Küttim. E
influenciando a polícia de que se tratava de um o fato é que, quando Quick confessou ser o autor
caso de memórias reprimidas. Toda essa con- desses assassinatos, a polícia parou de procurar
juntura deu ensejo a um novo rumo nas inves- os verdadeiros culpados.
tigações criminais a partir das informações que O que ocorreu em relação aos investiga-
Quick fornecia, embora sem qualquer sucesso dores e aos tribunais que condenaram Thomas
no encontro de evidências materiais contra ele. Quick pode ser explicado pela psicologia por
Apesar disso, ao final, seis tribunais suecos dis- meio dos chamados vieses cognitivos (cogniti-
tintos o condenaram por oito assassinatos. ve biases), que são distorções comumente ocor-
Em entrevista à BBC (VELASCO, 2019), ridas nos processos de tomada de decisão em
questionada como seria possível que tantos er- condições de incerteza. Essas distorções são
ros tenham sido cometidos pelos terapeutas, causadas, normalmente, pelos atalhos mentais
pela polícia e pelos tribunais, Jenny Küttim – que (heurísticas) aos quais a mente humana recorre
com o fito de simplificar ou facilitar a análise e
processamento de informações complexas.
A ideia é que diante de Estudos nesse sentido se mostraram
bastante relevantes nos Estados Unidos
uma falsa confissão, por com o intuito de buscar explicações
exemplo, todos os elementos para o alto índice de condenações
subsequentes – por mais errôneas revertidas pelo Innocen-
ce Project a partir do recurso ao
frágeis que sejam – passem a exame de DNA. É nesse contexto
ser interpretados como prova que tem lugar o fenômeno que
satisfatória a corroborar a Findley e Scott (2006) denomi-
hipótese de culpa. nam tunnel vision, representado
como um "compêndio de heurís-
ticas comuns e falácias lógicas"
por meio do qual direciona-se o
foco exclusivamente em determi-
nado suspeito, o que leva à seleção
e filtragem das provas que construi-
rão um caso suscetível de conde-
nação, ignorando e suprimindo,

25
Coluna: A Toda Prova

por outro lado, as provas capazes de conduzir dados do Innocence Project (2019). O fator mais
a hipóteses e suspeitos alternativos. Por esse comum nas exonerações por DNA são os erros
processo, o foco em uma conclusão em parti- no reconhecimento de pessoas realizados tanto
cular torna-se capaz de determinar que todas por vítimas quanto por testemunhas, presente
as provas de um caso sejam filtradas pelas len- em 69% dos casos, seguida pela má utilização
tes desta mesma conclusão, de modo que os da prova pericial (44%), falsas confissões (28%)
elementos com ela incompatíveis sejam des- e uso de informantes (17%). Paralelamente, ve-
qualificados ou tidos como irrelevantes. rificou-se que 52% das exonerações continham
Segundo os autores, essa tendência é, em mais de um desses quatro fatores. Uma possível
maior medida, produto da condição humana e das explicação para essa confluência de elementos
pressões culturais e institucionais a que os sujei- aparentemente incriminatórios seria a mani-
tos estão submetidos, e não propriamente um festação de vieses cognitivos, conforme West
ato de malícia ou indiferença. É de se considerar, e Meterko (2015, p. 733). A ideia é que diante
entretanto, o potencial de alguns procedimentos de uma falsa confissão, por exemplo, todos os
institucionais no âmbito da justiça criminal em elementos subsequentes – por mais frágeis que
condicionar a manifestação dessas distorções sejam – passem a ser interpretados como pro-
cognitivas (FINDLEY; SCOTT, 2006, p. 292). va satisfatória a corroborar a hipótese de culpa.
No Brasil, essa tendência é especialmen- Um reconhecimento de pessoa em que a vítima
te problemática na fase investigatória, seja pela tenha se mostrado reticente e em dúvida pode
própria autoridade que conduz a investigação ter essa hesitação interpretada como decorren-
sob o manto de uma discricionariedade prescri- te do decurso do tempo, por exemplo, ao invés
ta em lei, seja pelo magistrado que precisa de- de sinalizar para a fragilidade da prova – o que
cidir a respeito da aplicação de medidas caute- seria de se concluir na ausência do efeito nocivo
lares e posteriormente irá decidir os fatos. Na de uma confissão prévia .
medida em que a identificação das primeiras Os riscos epistêmicos do reconhecimento
provas conduza a uma versão explicativa plausí- de pessoas e os problemas relativos à atribuição
vel acerca do caso, a missão de alterar esse juízo de especial valor probatório atribuído à palavra
precipitado se mostra praticamente impossível da vítima já foram muito bem explorados, res-
ao suspeito – especialmente diante do caráter pectivamente, por Antonio Vieira (2019) e Janaina
inquisitivo e unilateral do inquérito policial, no- Matida (2019). Sobre a prova testemunhal, valem
tadamente seletivo e parcial aos interesse da as considerações de Caio Badaró (2019) a partir da
acusação – e das diminutas prerrogativas a uma psicologia do testemunho. Quanto às confissões,
investigação defensiva. é preciso reconhecer o efeito persuasivo que his-
Aliado a isso, não se pode desconsiderar toricamente exercem sobre a formação do juízo,
que os elementos desprovidos de contraditório especialmente quando capazes de fornecer uma
produzidos nesta fase acabam sendo integral- linha narrativa coerente envolvendo detalhes da
mente valorados pelo juiz, como se provas fos- ação criminosa e uma motivação plausível. Nesse
sem. Sobre este ponto, ainda quando a prova é ponto, pesa uma generalização do senso comum
produzida em audiência, é bastante comum a de que pessoas inocentes não confessam crimes
prática de se ler ao depoente o teor do que de- que não cometeram, o que leva à incidência de
clarou em inquérito na espera de uma simples uma aparentemente irrefutável presunção da
ratificação, frustrando-se, por conseguinte, culpa do suspeito entre os agentes de polícia, ju-
toda a expectativa da defesa em estabelecer uma ízes e jurados, além da mídia e o público em geral
linha de inquirição capaz de refutar a hipótese (LEO; DAVIS, 2010, p. 20).
acusatória. A partir de um enfoque da psicologia cog-
Também alguns meios de prova, seja por nitiva, tem-se que o modo habitual pelo qual as
inaugurarem, normalmente, a investigação; seja pessoas raciocinam envolve o recurso às estru-
por seu potencial persuasivo; ou mesmo pelas turas narrativas, que são empregadas a fim de
dificuldades probatórias inerentes a algumas es- estabelecer um sentido e contexto para as di-
pécies de delitos, vêm adquirindo protagonismo versas peças de informação isoladas disponíveis,
como elementos decisivos para condenações e as quais são encadeadas em sequência temporal
muitas vezes são relacionados a um potencial em meio a uma história plausível capaz de expli-
de produzir erros judiciários, como mostram car os fatos incertos. No entanto, considerando

26
Coluna: A Toda Prova

que o conjunto de informações disponíveis é in- Tais situações ilustram o que William Wa-
completo e, por vezes, desconexo, é comum que genaar (1995, p. 271-276) considera como ano-
se busque apoio no estoque de conhecimentos malias que incidem nos processos decisórios em
particulares a fim de conectar os pontos e pre- casos de condenações errôneas. A primeira de-
encher as lacunas, o que é feito por meio das las ocorre quando a determinação da hipótese
generalizações da experiência (NARDELLI, 2019, provada se funda apenas na verificação da qua-
p. 157). O problema é que, por vezes, o foco na lidade de uma história em comparação com as
coerência e plausibilidade da narrativa acaba outras possíveis, ao invés de se focar na qualida-
gerando um perigoso efeito persuasivo capaz de de das provas que lhes dão suporte. Pode acon-
ofuscar a sua falta de amparo em provas que a tecer, nesse sentido, que a narrativa tida como
sustentem (TWINING, 2006). As generalizações verdadeira tenha sido falseada por elementos
do senso comum acabam ocupando o espaço probatórios, e ainda assim seja acolhida, sem
devido às provas empíricas dos elementos es- que se procure desqualificar os elementos que a
senciais do crime. Um relato plausível e coeren- refutaram. Esse último problema leva a uma ou-
te, no contexto de uma confissão, acaba se mos- tra distorção muito séria na seara penal, revela-
trando suficientemente capaz de sustentar uma da pela tendência de não se procurar descartar
condenação. os suspeitos alternativos da autoria do crime in-
No texto de apresentação desta coluna vestigado. Deste modo, parece mais convenien-
(VIEIRA; MATIDA; MASSENA; NARDELLI, 2019), te considerar plausível a história que inculpa o
falamos dos casos de Bárbara e Gabriel, os quais ora acusado e não fica claro o motivo pelo qual
foram, assim como Thomas Quick, vítimas de in- os demais suspeitos foram descartados. Em sen-
vestigações e processos contaminados por vieses tido semelhante, também é alarmante o proble-
cognitivos. No caso de Bárbara, as provas robus- ma das investigações criminais tendenciosas, as
tas apresentadas pela defesa (fotografias, víde- quais se dirigem para buscar evidências da par-
os e testemunhos) que demonstravam estar ela ticipação de um suspeito em particular, ao invés
a 90 Km do local dos fatos, foram solenemente de focarem no crime em si, abrindo-se a todos
desprezados em prol de um reconhecimento fo- os possíveis envolvidos. Essa tendência pode le-
tográfico, no qual a vítima a identificou por con- var a distorções importantes e extremamente
siderá-la “bem familiar por causa dos cabelos” prejudiciais, fazendo com que relevantes provas
(SALVADORI, 2018). Quanto a Gabriel, as imagens exculpatórias sejam ignoradas.
periciadas de uma câmera de segurança que mos- É chegado o momento de o direito proba-
traram estar ele em um supermercado no horário tório se render à epistemologia jurídica e, nesse
do delito, a 2,5 Km de distância do local dos fatos, caso, às contribuições da psicologia cognitiva.
foram consideradas imprestáveis e incapazes de Mais do que nunca, é preciso defender, assim
afastar a convicção estabelecida a partir do reco- como o faz Gloeckner (2015), um direito fun-
nhecimento por parte da vítima (ADORNO, 2019). damental à devida cognição, em prol de se as-
Veja-se que, em ambos os casos, não se buscou segurar o valor e a efetividade da presunção de
sequer investigar as hipóteses alternativas apre- inocência.
sentadas pelas defesas de ambos.

Marcella Mascarenhas Nardelli é Doutora em Direito Processual pela


UERJ, Mestre em Políticas Públicas e Processo pela Faculdade de
Direito de Campos. Professora Adjunta de Direito Processual Penal e
Coordenadora do Curso de Direito Diurno da Universidade Federal de
Juiz de Fora.

27
O QUE REVERBEROU NAS REDES

28
Walkie-Talkie

29
IBADPP realiza

A 1ª edição do Curso Provas-Questões


Fundamentais, promovido pela Defensoria Pública
do Estado da Bahia, conta com apoio institucional do
IBADPP. O curso, coordenado pela professora Doutora
Janaína Matida (@jana_matida), tem por objetivo
prover defensores e defensoras de ferramentas
conceituais úteis à atuação processual da defesa. As
aulas serão ministradas por conceituados professores
e professoras das áreas de Direito Processual Penal
e Epistemologia Jurídica, oferecendo relevante
contribuição ao aperfeiçoamento dos diversos
operadores do sistema de justiça penal.

DIÁLOGOS
DO
IBADPP

E M F O C O
I S
M U N H A
S T E S T E
P R O V A

Contribuições da epistemologia e da psicologia da memória 27/11, às 18:30


ao sistema de justiça. Centro
Universitário do
DEZEMBRO 12, 2019 • 19 PM Instituto Social
WISH HOTEL DA BAHIA
Inscrições gratuitas pelo sympla.
da Bahia - UNISBA
Vagas limitadas.

O IBADPP promove o evento “Provas O próximo “Diálogos com o IBADPP”


testemunhais em foco - Contribuições será realizado no dia 20 de novembro, na
da epistemologia e da psicologia da Unifisba, sobre o tema: Justiça Restaurativa e
memória ao sistema de justiça", no dia 12 Mediação Penal. O evento terá a participação
de dezembro, às 19h. Para assegurar a das palestrantes Rafaela Alban, Thaize de
participação do maior número possível Carvalho e Mônica Antonieta Magalhães da
de congressistas, o local foi alterado para Silva. Participe!
o centro de convenções do Wish Hotel
da Bahia, localizado no Campo Grande.
O evento terá a participação de Antonio
Vieira (BA), Lilian Stein (RS), Janaina Matida
(RJ) e Vitor de Paula Ramos (RS). A inscrição
é gratuita através do Sympla. Não perca!

AS REFORMAS O I Diálogos Digitais Internacional do IBADPP aconteceu no dia 18 de


PROCESSUAIS PENAIS NA
AMÉRICA LATINA
setembro, com a participação dos professores Leonel González (CEJAS -
Argentina) e Luiz Gabriel Batista Neves (IBADPP - Brasil). Na transmissão,
foram debatidas as reformas processuais penais na América Latina. O
projeto Diálogos Digitais é coordenado pelos professores Renato Schindler
e Thiago Vieira e está disponível no canal: youtube.com/ibadpp. Assista!

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IBADPP realiza

Melhores momentos
VIII SEMINÁRIO NACIONAL DO IBADPP

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IBADPP realiza

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http://www.ibadpp.com.br/
publicacoes@ibadpp.com.br
@ibadpp

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