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São Paulo
2021
Introdução
Este relatório tem como objetivo analisar o currículo do Curso Técnico de Nível
Médio em Florestas na Forma Concomitante ofertado ao povo jarawara pelo Instituto Federal
de Educação Ciência e Tecnologia do Amazonas (Ifam), campus Lábrea.
Nosso objetivo inicial era fazer a análise do projeto político-pedagógico (PPP) de uma
escola indígena da rede regular, estadual ou municipal, de ensino público, para que
pudéssemos confrontá-lo com as teorias estudadas na disciplina Avaliação e Currículo do 6º
semestre do curso de Licenciatura em Letras. Porém, nossos contatos com algumas escolas
das redes estaduais de São Paulo e do Mato Grosso não tiveram resposta em tempo hábil para
a realização deste trabalho.
Assim sendo, pegamos o currículo proposto para um curso de Ensino Médio
Concomitante oferecido por um instituto federal como objeto de estudo. Este relatório traz um
breve histórico da legislação que embasa a Educação Indígena no Brasil, analisa a concepção
de currículo e de avaliação que o documento sugere, bem como a sua organização. A análise
documental foi complementada com a entrevista de uma professora da instituição.
Linha do tempo
1988 – Constituição Federal
- rompe com a postura integracionista que havia até então, que considerava os indígenas
uma categoria socialmente transitória, até que fosse “civilizado” – direito de serem
índios e permanecerem assim;
- garante que os povos indígenas podem usar, cada um, a própria língua materna e seus
processos de aprendizagem na educação escolar;
- escola deve contribuir para o processo de reafirmação étnica e cultural.
1996 – LDB
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- consolida o direito à educação diferenciada, pautada na língua e nos costumes de cada
povo, em território indígena – bilinguismo;
- formação dos próprios indígenas para que atuassem como docentes;
- recuperação da memória, reafirmação de identidades e acesso aos conhecimentos
técnicos e científicos da sociedade nacional – interculturalidade.
1999 – Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena + Parecer 14/99
do CNE + Resolução 3/99 do CNE
- autonomia pedagógica e financeira;
- formação específica de indígenas para atuar como docentes nas escolas indígenas;
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Para o autor, o conhecimento sobre raça e etnia incorporado ao currículo não pode ser
separado daquilo que as crianças e os jovens se tornarão como seres sociais. Por essa razão,
com o objetivo de propor um olhar crítico sobre o aspecto racial do currículo, ele faz as
seguintes indagações: “Como desconstruir o texto racial do currículo, como questionar as
narrativas hegemônicas de identidade que constituem o currículo?” (ibidem, 2010, p. 102).
Com o objetivo de responder tal questionamento, Silva propõe a construção de um
currículo multiculturalista que não seja simplesmente folclórico, mas profundamente político.
Para tanto, deveria ser elaborado levando em consideração as seguintes questões:
● Quais são os mecanismos de desconstrução das identidades nacionais, raciais e
étnicas?
● Como a construção da identidade e da diferença está vinculada às relações de poder?
● Como a identidade dominante tornou-se referência invisível através da qual se
constroem outras identidades como subordinadas?
● Quais os mecanismos institucionais responsáveis pela manutenção da posição
subordinada de certos grupos étnicos e raciais?
[...] Isso foi possível devido ao trabalho coletivo dos Jarawara da aldeia Casa
Nova/Nascente no que pode ser categorizado como luta pela educação formal. Esse
processo teve o protagonismo de 15 jovens, que inspiraram o desejo em outros
jovens e adultos a iniciarem sua inserção na escola. Neste contexto, situa-se a busca
pelo ensino médio na aldeia. [..] (MAXIMINIANO, FONSECA, MITIDIERI, 2020,
p. 618)
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enfrentadas por esses grupos, a maior delas se deu por parte do Governo Federal, que
demorou para entender a relevância de um projeto dessa natureza. Tal situação remete a uma
das indagações feitas por Silva (2010) anteriormente e diz respeito aos mecanismos
institucionais responsáveis pela manutenção da posição subordinada de certos grupos étnicos
e raciais. Ou seja, não é do interesse de certos governos que os povos indígenas tenham
acesso a níveis mais altos de educação e, por conseguinte, a uma plena participação social.
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Outra temática abordada pela organização do currículo foi a concepção e construção
de um calendário que respeitasse as atividades e particularidades da comunidade. Priorizando
as condições naturais, as enchentes dos rios, o período de plantio e colheita, as questões
sociais e a organização e o funcionamento da aldeia é possível traçar um paralelo sobre a
concepção de currículo escrita por Silva (2010) e a perspectiva de currículo do Giroux, como
uma noção política cultural:
A escola indígena que estudamos adotou a alternância para organizar o seu tempo
escolar. Segundo Teixeira, Bernartt e Trindade (2008), consiste em uma “metodologia de
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organização do ensino escolar que conjuga diferentes experiências formativas distribuídas ao
longo de tempos e espaços distintos, tendo como finalidade uma formação profissional”.
Os mesmos autores explicam que ela foi criada em 1935, na França, para atender a um
grupo de agricultores insatisfeitos com a educação dos filhos, que nada tinha a ver com a
educação para a vida no campo. Em 1969, a pedagogia da alternância chegou ao Brasil com
uma missão de padres jesuítas que se instalou no Espírito Santo, onde foram abertas três
Escolas Família Agrícola, como são denominadas.
Somente em 1998 essa forma de organização do tempo escolar foi reconhecida pelo
Ministério da Educação e, com base na experiência de quase 30 anos, recomendada para
escolas rurais. A escola da qual estudamos o PPC alterna os turnos entre a escola e a aldeia a
cada sete dias nos períodos de cheia (fevereiro a maio); nos períodos de seca (agosto a
novembro), alunos e professores ficam uma semana na aldeia e 15 dias no campus, pela
dificuldade de deslocamento. Dessa forma, conseguem respeitar o calendário jarawara (veja
imagem a seguir), pois a maioria dos alunos trabalha na coleta da castanha, na pesca do
matrinxã e na preparação e plantio do roçado, assim como na coleta e no preparo do óleo de
andiroba e copaíba e de outros frutos regionais, que marcam os ciclos produtivos da aldeia.
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Fonte: Projeto Pedagógico de Curso Técnico de Nível Médio em Floresta na Forma Concomitante. 2018, p. 34.
1
Portaria Interministerial MJ e MEC no 559, de 16/04/1991. In Legislação Indigenista Brasileira e Normas
Correlatas. Brasília, FUNAI / CGDOC, 2003.
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O Parecer CNE/CEB n° 14/99 orienta os sistemas de ensino quanto às concepções e tratamento a ser
dispensado às escolas indígenas a partir do disposto na LDB.
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A Resolução CNE/CEB no 03, publicada em novembro de 1999, estabelece a estrutura e o funcionamento das
escolas indígenas no âmbito da educação básica.
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Os critérios e instrumentos de avaliação do rendimento acadêmico são estabelecidos
pelos professores yaras, em um constante processo de avaliação em que se destacam,
prioritariamente, o desenvolvimento:
I. do raciocínio;
II. do senso crítico;
III. da capacidade de relacionar conceitos e práticas;
IV. de associar causa e efeito;
V. de analisar e tomar decisões;
VI. o desenvolvimento da escrita Jarawara e em Língua Portuguesa.
Segundo a equipe, a “natureza da avaliação do rendimento acadêmico pode ser teórica,
prática ou a combinação das duas formas, ficando a critério do docente a forma e quantidade a
ser adotada para cada critério” (MAXIMINIANO; FONSECA; MITIDIERE, 2020, p. 636).
Dessa forma, os processos avaliativos vêm sendo definidos e redefinidos pelos
docentes de acordo com o conteúdo ministrado e com a receptividade dos alunos, para que
“busquem sentido, significado e relevância no processo avaliativo que conduzem,
contemplando, preferencialmente, uma avaliação inter/transdisciplinar” (MAXIMINIANO;
FONSECA; MITIDIERI, 2020, p. 637). Essa visão converge com o que diz Hoffman:
“Quando se acompanha para ajudar no trajeto, é necessário percorrê-lo junto, sentindo-lhe as
dificuldades, apoiando, conversando, sugerindo rumos adequados a cada aluno” (HOFFMAN,
2001, p. 62). Contempla, igualmente, a visão dessa autora quando diz que
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Por fim, ao longo do processo de construção das aulas, alunos e professores
construíram um caderno chamado sibani (descobrir/conhecer, no idioma jarawara). Ele é o
espaço para a descrição das descobertas e a síntese das pesquisas e para desenhar o que foi
aprendido, além de ser utilizado como instrumento avaliativo. Vale lembrar que as anotações
são feitas em jarawara e em português, conforme o esperado em um curso bilíngue.
Referências
HOFFMAN, J. Avaliar para promover: as setas do caminho. Porto Alegre: Mediação, 2001.
SILVA, L. G da; ROSA, O.; MATOS, P. F. de. Projeto Político Pedagógico da Escola Estadual
Indígena Cacique José Borges do Povo Tapuia (GO): educação escolar indígena e saberes
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específicos. Revista Geografia em Atos (online), v.5, ano 2021, p.1-19. Disponível em
https://revista.fct.unesp.br/index.php/geografiaematos/article/view/8420. Acesso em 26 nov.
2021.
SILVA, T. T. da. Documentos de identidade: uma introdução à teoria dos currículos. 3. ed.
Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
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