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KANT: PREDICAÇÃO E EXISTÊNCIA 1

RAUL LANDIM FILHO

volume 9
número 1
2005
Raul Landim Filho
UFRJ/CNPq

Kant na Crítica da Razão Pura (CRP) 2


afirma, ou ao menos supõe, a verdade
das seguintes proposições:

[1] existência não é um predicado real;


[2] do ponto de vista da Lógica Geral, os juízos categóricos são conexões de
conceitos;
[3] a forma lógica dos juízos de existência não pertence à Tábua Lógica dos
Juízos.

Tendo sido assumidas essas proposições, como é possível que certos juízos
categóricos, que “formam a base de todos os outros juízos”3 , possam desempenhar a
função exercida pelos juízos existenciais que seria a de correlacionar conceitos,
não a outros conceitos, mas a objetos efetivamente dados? Nesse artigo nós pre-
tendemos analisar essa questão.

(1) Tradução com modificações da comunicação originalmente escrita em francês apresentada no X


Congresso Kant Internacional, realizado em São Paulo, USP, setembro de 2005.
(2) Kritik der reinen Vernunft, Hamburgo, Felix Meiner Verlag, 1956.
(3) The Vienna Logic, Of Judgments in Lectures on Logic, [org. Michael Young], The Cambridge Edition
of the Works of Immanuel Kant, Cambridge University Press, Cambridge, 1992, p. 373. 185
KANT: PREDICAÇÃO E EXISTÊNCIA

No opúsculo pré-crítico O Único Argumento Possível para uma Demonstração da


volume 9 Existência de Deus4 , Kant distingue juízos de existência de juízos categóricos
número 1 (predicativos). Ele caracteriza o juízo existencial da seguinte maneira:
2005

“Se eu digo ‘Deus é uma coisa existente’, parece que estou exprimindo a relação de um
predicado com o sujeito. Mas há uma impropriedade nessa expressão. Falando estrita-
mente, ela deveria ser assim formulada: ‘algo de existente é Deus’, isto é, pertencem a uma
coisa existente aqueles predicados que, tomados conjuntamente, nós designamos através
da expressão ‘Deus’. Estes predicados são colocados relativamente ao sujeito, enquanto
que a coisa nela mesma, com todos os seus predicados, é colocada absolutamente”5 .

Juízos predicativos ou categóricos (afirmativos) são conexões de conceitos e


têm a forma S é P6 . Eles significam que a tudo aquilo a que o conceito-sujeito S
convém o conceito-predicado P também convém 7. Dessa maneira, juízos
predicativos conectam conceitos mediante a relação de subordinação: o conceito-
sujeito é totalmente ou parcialmente subordinado ao conceito predicado.

(4) Der Einzig Mögliche Beweisgrund Zu Einer Demonstration des Daseins Gottes, in Kant Werke in zehn
Bänden, org. W. Weischedel, Darmstadt, v. 2, 1983.
(5) Der Einzig...,1ª parte, primeira consideração, 2, p. 634.
(6) Nessa parte do artigo, reproduzimos parcialmente trechos do nosso artigo “Juízos Predicativos e
Juízos de Existência” publicado em Analytica, v. 5, nº 1-2, 2000, p. 83-108.
(7) Essa caracterização de juízos categóricos assume de uma maneira implícita a definição de juízo
como subordinação de conceitos. (Ver Lógica Dohna-Wundlacken, Judgments in Lectures on Logic, p.
495), Juízos categóricos podem também ser definidos a partir de condições que justificariam a atribui-
ção do predicado ao sujeito: se o que permite a atribuição do predicado ao sujeito do juízo é o próprio
conceito-sujeito, o juízo é dito categórico. (Ver Lógica, trad. Guido Antônio de Almeida, Tempo Brasi-
leiro, Rio, 1992, #25). Assim, no juízo categórico “não há condição fixada” (The Vienna Logic in Lectures
on Logic, p. 374). A definição que apresentamos de juízos categóricos mostra que esses juízos subordi-
nam conceitos na medida em que são considerados como conexões de conceitos. Sobre a noção de

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juízo em Kant, ver B. Longuenesse Kant and the Capacity to Judge, trad. C. Wolfe, Princeton. Un. Press,
1998, cap. 4, Logical Definitions of Judgment, p. 81-106.
RAUL LANDIM FILHO

Juízos categóricos têm como matéria o sujeito e o predicado e como forma a


cópula judicativa que conecta o predicado ao sujeito [Lógica, #24]. Ora, sujeito e volume 9
predicado são conceitos. Assim, a matéria dos juízos categóricos seria tanto o con- número 1
2005
ceito-sujeito como o conceito-predicado. É o que é afirmado na Lógica de Viena:

“A matéria do juízo categórico consiste em dois conceitos, a forma consiste na relação


na qual um conceito concerne ao sujeito, o outro, ao predicado”8 .

Juízos hipotéticos e disjuntivos têm como matéria outros juízos9 , o que torna
plausível a tese de que os juízos categóricos, que se decompõem em conceitos,
podem ser definidos como conexões de conceitos, enquanto que os juízos hipoté-
ticos ou disjuntivos, que se decompõem em juízos, seriam ligações de juízos.
Embora a lógica de Kant não apresente um método de decomposição de juízos
complexos em juízos simples10 , parece evidente que os juízos categóricos, por não se-
rem decompostos em outros juízos, mas apenas em conceitos, são os juízos simples
(elementares) da lógica kantiana. Obviamente, o termo “simples” nesse caso não sig-
nifica atômico (no sentido da lógica contemporânea), pois o juízo “Todo homem é
branco” é um juízo categórico e é também um juízo simples no sentido de não poder
ser decomposto em outros juízos. Assim, juízos categóricos conectam o conceito-su-
jeito ao conceito-predicado mediante a cópula judicativa. Eles são ligações de concei-
tos. Juízos hipotéticos ou disjuntivos são ligações de juízos.

(8) The Vienna Logic, Of Judgments, p. 373. Ver também na página 372 da mesma obra a seguinte afir-
mação: “A matéria de todas as proposições categóricas consiste em conceitos nos quais o conceito sujeito perten-
ce ao conceito predicado”.
(9) “Os juízos categóricos constituem, é verdade, a matéria dos demais juízos”, Lógica, #24.
(10) A Lógica Medieval denominava de simples os juízos predicativos e os opunha aos juízos hipoté-
ticos, disjuntivos etc. Segundo N. K. Smith (Commentary to Kant’s “Critique of Pure Reason”, 2ª edição,

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Humanities Paperback Library, 1993, Atlantic, p. 193), Wolff, Meier, Baumgarten, Baumeister e outros
consideravam os juízos categóricos (com um só sujeito lógico) como os juízos simples da Lógica.
KANT: PREDICAÇÃO E EXISTÊNCIA

Os juízos existenciais parecem ter uma função diferente da dos juízos cate-
volume 9 góricos, que são conexões de conceitos. Um juízo existencial exprime que um ob-
número 1 jeto efetivamente existente satisfaz às notas características contidas no conceito
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que no juízo existencial exerce a função de sujeito.
Se essa análise é correta, um juízo existencial não é um juízo categórico, isto
é, não é uma conexão de conceitos. Um juízo categórico pode pressupor um juízo
existencial. Mas uma conexão de conceitos não exprime a posição absoluta de uma
coisa. Essa é a função do juízo existencial que a exerce na medida em que não rela-
ciona conceitos, mas põe o objeto com suas próprias determinações. Assim, o ter-
mo “existência” num juízo existencial não tem função atributiva, isto é, não acres-
centa uma nova determinação aos objetos significados pelo conceito-sujeito.

[II] JUÍZO NA CRP


Na Tábua dos Juízos da CRP, Kant enuncia as diversas formas do juízo. O
juízo é decomposto em sujeito, cópula e predicado. As formas dos juízos são de-
terminadas em razão da quantidade do termo-sujeito, da qualidade da cópula e
das condições de aplicação do predicado ao sujeito (forma do ponto de vista da
Relação). Ao contrário da lógica medieval, que distinguia a forma predicativa
(juízos de inesse) da modalidade, em Kant, um juízo de forma predicativa tem
também uma forma modal. No entanto, se a forma da qualidade, da quantidade e
da relação concernem à estrutura formal do juízo, a modalidade concerne, como
Kant assinalou [CRP, A 74-76; B 99-101], ao modo pelo qual um juízo é tomado
pelo entendimento do ponto de vista da verdade.
A distinção entre a forma do juízo do ponto de vista da relação (categórico,
hipotético, disjuntivo) e a da modalidade (problemático, assertórico, apodítico)
permite distinguir as condições da predicação, fixadas pelas regras de formação
do juízo categórico, das condições de verdade do juízo, estabelecidas pelas mo-
dalidades dos juízos. Assim, a distinção entre a predicação judicativa (síntese do
predicado com o sujeito mediante a cópula verbal) e as condições de verdade de
188 um juízo pode ser induzida da Tábua dos Juízos. Mas, como explicar, segundo a
RAUL LANDIM FILHO

Tábua dos Juízos, a função que fora no opúsculo O Único Argumento...atribuída


aos juízos existenciais? Como exprimir judicativamente, nas palavras de Kant, volume 9
que algo de existente é P? número 1
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Como os juízos categóricos não podem ser decompostos em outros juízos e
são somente eles os constituintes categoremáticos dos juízos hipotéticos ou
disjuntivos, ou bem eles têm uma função existencial, e juízos compostos por eles
poderão exercer também essa função, ou bem eles não a têm, e essa função não
pode ser encontrada em nenhum desses outros juízos. Assim, a pergunta sobre a
função existencial de juízos complexos, hipotéticos ou disjuntivos, pode ser res-
pondida pela análise da função dos juízos categóricos.
Podem os juízos categóricos exercer uma função existencial?
Na CRP, a função lógica dos juízos é definida como a de unificar o múltiplo
das representações dadas (intuições ou conceitos) na unidade da apercepção
[CRP, B, 143, # 20]. Assim, todo juízo envolve [a] uma relação entre conceitos me-
diante subordinação ou exclusão da subordinação de conceitos (todo juízo envol-
ve, portanto, uma conexão de conceitos), [b] a subsunção por conceitos de intui-
ções e [c] a subsunção dessas operações a regras necessárias (unidade objetiva)11 .
No item Do Uso Lógico do Entendimento em Geral da CRP [A, 67-70; B, 92-
94], Kant analisa a função de conceito e de juízo, tomando como modelo o juízo
afirmativo categórico. Juízo é inicialmente12 caracterizado como função de unida-
de, uma “espécie” de conceito complexo, representação de representações (...todos
os juízos são funções de unidade entre (unter) nossas representações...”). De fato, no juízo

(11) Para uma discussão detalhada dessa interpretação, remetemos o leitor ao nosso artigo “Juízo,
Conceito e Existência na Crítica da Razão Pura de Kant” in Cadernos de Filosofia, Publicação Semestral
do Instituto de Filosofia da Linguagem, Edições Colibri, nº 14, 2003, Lisboa, p.7-34.
(12) “Assim, todos os juízos são funções de unidade entre (unter) nossas representações, pois para o conheci-
mento de objetos é usada, ao invés de uma representação imediata, uma mais alta, que compreende sob si (unter)
essa (representação imediata) e muitas outras e através disso muitos possíveis conhecimentos são reunidos num
só”[A, 69; B, 94] 189
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(afirmativo) é efetuada uma unificação conceitual mediante a relação de subordi-


volume 9 nação: uma representação “mais alta” subordina sob si (contém sob si) várias ou-
número 1 tras representações conceituais (... uma mais alta, que compreende sob si (unter) essa (re-
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presentação imediata) e muitas outras...” grifo nosso). Dessa maneira, conceitos são
conectados no juízo afirmativo pela relação de subordinação. Mas, ao subordina-
rem conceitos, juízos subsumem, através do conceito-sujeito, um múltiplo de re-
presentações intuitivas “Em cada juízo está um conceito que é válido para muitos e que
dentre (unter) esses muitos compreende uma representação dada que é relacionada imediata-
mente ao objeto.” [A, 68 ; B 93]
O parágrafo # 19 da Dedução Transcendental da CRP complementa a análise
da função de juízo. Nesse texto, é introduzida, como noção constitutiva de todo
juízo, a noção de unidade objetiva da apercepção. Juízos têm unidade objetiva, isto é,
têm necessariamente relação com objetos, na medida em que satisfazem, além da
relação de subordinação e de subsunção, a regras necessárias do entendimento.
Só assim eles têm uma validade objetiva, isto é, podem concordar ou não com o
objeto representado judicativamente.
Graças à noção de unidade objetiva ou de validade objetiva, nota-se que
juízos não são conceitos complexos, representações de representações, mas se
relacionam com objetos e, por isso, podem concordar com eles, isto é, serem
verdadeiros ou falsos. Assim, a subordinação entre conceitos é apenas um dos
aspectos constitutivos do juízo. Por isso, Kant não pode aceitar a definição habi-
tual dos lógicos antigos que caracterizavam o juízo como “a representação de uma
relação entre dois conceitos” (CRP, # 19). Nem mesmo em relação aos juízos
predicativos ou categóricos, que poderiam, em princípio, ser definidos como
conexões de conceitos, essa explicação é correta. Ela não indica que a conexão
entre conceitos é efetuada mediante a relação de subordinação e ela não assina-
la que a subsunção de representações intuitivas, submetida a regras necessárias
do entendimento, é também uma condição para a pretensão de objetividade de
qualquer juízo. Assim, a caracterização de juízo segundo a CRP significa que

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juízos, ao menos os juízos simples da lógica kantiana (juízos predicativos/cate-
góricos afirmativos), conectam conceitos mediante a relação de subordinação.
RAUL LANDIM FILHO

Através do conceito-sujeito, o conceito predicado se relaciona com as represen-


tações intuitivas que o conceito-sujeito subsume. Juízos que satisfazem às re- volume 9
gras necessárias do entendimento e às condições de subordinação e de número 1
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subsunção têm validade objetiva; eles podem se relacionar com objetos e, por
isso, podem ser considerados, mediante representações conceituais e intuitivas,
como conhecimento mediato de objetos.
Essas análises kantianas explicam duas teses extraídas do exame da função
do juízo:
[a] juízos são conhecimentos mediatos de objetos: o conceito-sujeito
subsume representações intuitivas sensíveis, isto é, subsume representa-
ções imediatas de algo dado, que no juízo, graças a regras necessárias, é
determinado como objeto;
[b] conceitos nos juízos se tornam representações por notas comuns de obje-
tos, pois o conceito-sujeito de um juízo predicativo subsume representa-
ções intuitivas e, graças ao conceito-sujeito, o conceito predicado
subsume também essas intuições.
Na medida em que juízos têm uma unidade objetiva, a noção de objeto faz
parte da forma lógica de qualquer juízo. Mas, a Lógica Geral não “faz abstração de
todo conteúdo cognitivo do entendimento e da diferença de seus objetos”? [CRP, A, 54; B,
78] Como introduzir, do ponto de vista dessa Lógica, a noção de objeto na defini-
ção formal de juízo?
De um lado, nenhum conteúdo determinado, nenhum objeto com identida-
de numérica pertence à forma lógica do juízo. De outro lado, se a subsunção de
intuições por conceitos é uma condição necessária do juízo, segue-se que o juízo
envolve necessariamente uma relação com algo de não conceitual. Como o dado
da intuição sensível e o que é organizado pela imaginação, independentemente
das regras necessárias do entendimento, não podem ser considerados como obje-
to, a referência a algo de não conceitual na forma lógica do juízo é uma referência
a algo de indeterminado. Muitas vezes Kant representa esse indeterminado, que
pertence à forma lógica do juízo, através de uma variável. Por exemplo, na Lógica
191
KANT: PREDICAÇÃO E EXISTÊNCIA

# 36, a forma da proposição analítica é explicada da seguinte maneira: “A todo x,


volume 9 ao qual convenha o conceito de corpo (a + b), também convém a extensão (b)...”.
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Obviamente, introduzir na definição lógica de juízo a noção de objeto não
significa assumir, por exemplo, que juízos, em especial os juízos categóricos, ao
mencionarem algo de indeterminado dado pela intuição sensível, façam algum
tipo de suposição de existência. Significa apenas mostrar que o ato judicativo, re-
alizado pelo entendimento, envolve necessariamente uma relação com funções
não intelectuais. Essa concepção do juízo, formulada pela Lógica Geral, permitirá
à Lógica Transcendental demonstrar a tese de que o conhecimento de objeto só é
possível mediante atos judicativos que envolvam subsunção de intuições. Em
conseqüência, conceitos, só enquanto são predicados de juízos possíveis, podem
ser considerados como representações por notas comuns de objetos.
Retornemos à nossa questão inicial: do ponto de vista da forma lógica,
juízos categóricos podem exercer uma função existencial?
Se existência fosse um predicado real, juízos categóricos poderiam, obvia-
mente, exercer uma função existencial. O juízo existencial S existe poderia ser in-
terpretado como uma mera abreviação dos juízos categóricos da forma S é existen-
te13 . Mas, [i] já que existência não é um predicado real e [ii] já que os juízos mais
simples da lógica kantiana são os juízos categóricos, que são conexões de concei-
tos, nem os juízos da forma S existe nem os da forma S é existente podem ser inter-
pretados como juízos categóricos que exerceriam uma função existencial. Então,
como exprimir judicativamente a função atribuída aos juízos existenciais?

[III] PREDICAÇÃO E EXISTÊNCIA


Correlata à questão que estamos analisando, mas dela diferente, é a questão
do importe existencial (existential import) das lógicas antigas que se apóiam na ló-
gica aristotélica. A lógica aristotélica, analisando as relações entre as formas das

192 (13) Ver A. Arnauld e P. Nicole, La Logique ou L’Art de Penser, Vrin, Paris, 1993, p.109-110 ; 114.
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proposições universais, particulares, afirmativas e negativas, postulou a validade


de certas relações lógicas que depende da suposição de que certos termos gerais, volume 9
que ocorrem nas proposições que exemplificariam aquelas formas, não sejam va- número 1
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zios. A exigência de que certos termos gerais tenham instâncias para que certas
inferências imediatas possam ser consideradas válidas, foi denominada de impor-
te existencial, pois a afirmação de que um termo geral tenha ao menos uma ins-
tância significaria que a instância do termo geral existe14 .
Graças às inúmeras formulações daquilo que os lógicos medievais denomi-
naram de teorias da suposição, foram ampliados os limites dessa questão. As teo-
rias da suposição, entre outras coisas, procuravam determinar, no contexto de
uma proposição predicativa (categórica), que objetos deveriam ser assumidos
como existentes pelo conceito-sujeito ou também pelo conceito predicado para
que a própria proposição predicativa pudesse ser considerada verdadeira. Assim,
a suposição de existência de objetos seria uma condição necessária (não suficien-
te) para a verdade de certas proposições predicativas. Uma das condições neces-
sárias para que uma proposição predicativa afirmativa fosse verdadeira seria, por
exemplo, que o termo-sujeito dessa proposição designasse um objeto existente
segundo as modalidades temporais expressas pelo verbo. Obviamente, o termo-
sujeito poderia não ter suposição. Nesse caso, a proposição categórica afirmativa
seria falsa. No entanto, uma proposição negativa poderia ser verdadeira sem que
o termo-sujeito fizesse suposição de existência.
As teorias medievais da suposição não só justificaram a validade das
inferências imediatas do quadrado lógico aristotélico, como também, de uma ma-
neira indireta, indicaram as condições em que uma proposição categórica poderia
exercer uma função existencial. Mas, a teoria da suposição foi abandonada pelos
lógicos modernos que influenciaram Kant.

(14) Não é evidente que se um conceito não é vazio, a instância desse conceito deva ser considerada
como existente. Para Frege a expressão existe um x tal que Fx significa que o conceito F tem uma
instância. Assim, se o quantificador existencial exprimir a noção de existência, existir é ser instância
de um conceito.
193
KANT: PREDICAÇÃO E EXISTÊNCIA

Ora, a Lógica Geral kantiana assume como válidas as inferências imediatas


volume 9 aristotélicas denominadas de subalternação15, de conversão por acidente16 e a relação
número 1 de contrariedade17, inferências que só são válidas em razão da suposição de exis-
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tência de certas proposições que nelas ocorrem. Dessa maneira, a Lógica Geral
kantiana, como quase todas as lógicas pré-fregeanas, tem um existential import.
Não cabe aqui examinar as diversas interpretações sobre a pressuposição de
existência da Lógica Geral de Kant. P. Strawson num dos seus livros,18 retomando
uma interpretação do lógico e filósofo tomista do século XVII, João de S. Tomás,
reformulou em termos contemporâneos a antiga teoria da suposição medieval e a
aplicou-a à Lógica Clássica e, em particular, à lógica kantiana. A existência de ao
menos um membro da extensão do conceito-sujeito19 das proposições que têm
uma das formas descritas pelo quadrado lógico aristotélico seria, então, pressupos-
ta e a verdade dos enunciados existenciais, que têm como sujeito esses conceitos
não vazios que ocorrem naquelas proposições que pertencem ao quadrado lógi-
co, seria condição necessária, não para que a proposição predicativa (que
exemplificaria uma daquelas formas) fosse considerada verdadeira, mas para que
pudesse ser a ela atribuído um valor de verdade (verdadeiro ou falso). Assim, as
proposições categóricas afirmativas que têm a forma A é B pressuporiam a ver-
dade de enunciados existenciais da forma A existe. Em conseqüência, as
inferências imediatas oriundas do quadrado lógico aristotélico poderiam ser con-
sideradas válidas.

(15) Ver Lógica, #46.


(16) Ver Lógica, #52 e #53.
(17) Ver Lógica, #49.
(18) Introduction to Logic Theory, Methuen, Londres, (reimpressão 1971), cap. 6, Subjects, Predicates
and Existence, p.152-194.
(19) Em certos casos, o conceito-predicado deve também ser não vazio. Por exemplo, a validade da

194 inferência imediata conversão por acidente (Nenhum homem é filósofo segue-se que Algum filósofo não é
homem) supõe não só que o conceito homem, mas também que o conceito filósofo não sejam vazios.
RAUL LANDIM FILHO

Os enunciados existenciais, que são pressupostos pelas proposições


predicativas, não podem ser considerados como proposições predicativas (cate- volume 9
góricas) e, portanto não podem pertencer ao sistema lógico que analisa as rela- número 1
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ções de inferência das proposições predicativas. Se eles pertencessem, eles impli-
cariam o seguinte absurdo: uma proposição existencial para ter o valor de verda-
de falso deveria ser verdadeira.
Essas análises permitem distinguir o que é pressuposto pelas proposições
predicativas daquilo que é asserido por elas. Pressupor a existência não equivale
a afirmá-la. Assim, duas noções devem ser conceitualmente distinguidas: [i] pres-
supor a existência (o que é uma condição para a verdade de certas proposições
categóricas) e [ii] afirmar ou asserir a existência de algo. Mas, qualquer que seja a
interpretação dada às pressuposições existenciais assumidas pela lógica kantiana,
a Tábua de Juízos da CRP distingue a forma lógica dos juízos categóricos da dos
juízos assertóricos. Assim, juízos categóricos podem ser usados sem função (for-
ça) assertórica (como antecedentes, por exemplo, de juízos hipotéticos), como
também com força assertórica. A questão sobre a função existencial dos juízos ca-
tegóricos não concerne às suas eventuais suposições de existência, mas diz res-
peito à função existencial que exerceriam enquanto são asseridos. O que deve, en-
tão, ser explicado é como na lógica kantiana juízos categóricos assertóricos pode-
riam desempenhar a mesma função que é desempenhada, em outros sistemas,
pela asserção de juízos existenciais.
É a Lógica Transcendental, e não a Lógica Geral, que pode responder a
essa questão.
Do ponto de vista da Lógica Transcendental, Kant também classificou os
juízos em juízos analíticos e sintéticos. Segundo o método de verificação das condi-
ções de verdade desses juízos, eles são classificados em juízos a priori e a posteriori.20
Para determinar o valor de verdade de um juízo analítico, basta determinar as notas

(20) Sobre essa questão, ver o nosso artigo citado: “Juízos Predicativos e Juízos de Existência”,
Analytica, vol 5 nº 1-2, 2000, p. 83-108. 195
KANT: PREDICAÇÃO E EXISTÊNCIA

características do conceito-sujeito e verificar se o conceito-predicado nele se encon-


volume 9 tra. A verificação da verdade dos juízos sintéticos a priori não concerne à existência
número 1 efetiva de objetos, pois, em última análise, concerne seja à forma dos objetos
2005
empíricos dada na intuição pura (concerne, portanto, ao conhecimento racional por
construção de conceitos), seja às regras de constituição de objetos e ao conhecimen-
to não empírico que se pode extrair dessas regras. Esses dois “gêneros de juízos”
não envolvem, portanto, questões de existência que não sejam aquelas envolvidas
pela análise da Lógica Geral das proposições predicativas.
Mas, desempenhariam os juízos sintéticos a posteriori uma função existencial
que nem os juízos analíticos nem os juízos sintéticos a priori podem desempenhar?
Juízos sintéticos a posteriori podem “concordar” com os objetos dados
factualmente na experiência. De fato, esses juízos parecem desempenhar uma fun-
ção existencial. Qual seria a relação entre os juízos sintéticos a posteriori e as pro-
posições existenciais?
Do ponto de vista da Lógica Geral todos os juízos da Lógica Transcendental
(juízos analíticos/sintéticos, a priori/a posteriori) exemplificam uma das formas lógicas
indicadas por cada um dos quatro títulos da Tábua dos Juízos (Quantidade, Qualida-
de, Relação, Modalidade). Ora, como já assinalamos, certas formas lógicas impõem
pressuposição de existência a suas instâncias. Assim, do ponto de vista da Lógica Ge-
ral certos juízos sintéticos a posteriori, podem ter pressuposição de existência.
Mas, no 2º Postulado do Pensamento Empírico [CRP, B, 272-274] Kant for-
mulou um critério de existência efetiva: só pode ser considerado como existente o
que é percebido empiricamente ou é conectado ao que é percebido
empiricamente por um sistema de regras. Os juízos sintéticos a posteriori precisam
satisfazer a essa condição para serem considerados verdadeiros21 .

(21) Os juízos sintéticos a priori, que envolvem apenas uma intuição (pura) da forma do objeto, po-
dem ser verdadeiros sem que um objeto empírico seja efetivamente dado ou empiricamente percebido.

196 Os juízos analíticos são verdadeiros em razão do Princípio de Contradição e têm sua verdade
estabelecida através da análise do seu conceito-sujeito.
RAUL LANDIM FILHO

Consequentemente, do ponto de vista da Lógica Geral, os juízos podem ter


pressuposições de existência. Mas do ponto de vista da Lógica Transcendental, volume 9
além das eventuais pressuposições de existência, certos juízos categóricos número 1
2005
assertóricos podem afirmar a existência efetiva dos objetos dados na experiência.
Assim, não seria incorreto afirmar que só os juízos sintéticos a posteriori (em
particular, os juízos sintéticos a posteriori que são juízos categóricos assertóricos)
satisfazem ao critério de existência formulado pelo 2º Postulado do Pensamento
Empírico. Dessa maneira, do ponto de vista da Lógica Transcendental, só eles de-
sempenhariam uma função existencial.
Os juízos sintéticos a posteriori desempenham uma função particular na ex-
plicação kantiana do conhecimento de objetos: enquanto juízos categóricos, eles
são conexões de conceitos e podem ter pressuposição de existência. Não é pelo
fato de serem juízos categóricos, isto é, de conectarem conceitos mediante a rela-
ção de subordinação, que eles podem exprimir conhecimento de objetos existen-
tes; é em razão do seu conceito-sujeito subsumir intuições empíricas, segundo re-
gras necessárias. Assim, se do ponto de vista da Lógica Geral é plausível afirmar
que os juízos categóricos têm pressuposição existencial, do ponto de vista da Ló-
gica Transcendental só os juízos sintéticos a posteriori parecem exercer uma função
atribuída, em outros contextos, aos juízos de existência.

RESUMO
Assumindo a verdade de três afirmações ou suposições kantianas na CRP, a saber, [1] existência não é um
predicado real, [2] do ponto de vista da Lógica Geral, os juízos categóricos são conexões de conceitos; [3] a forma
lógica dos juízos de existência não pertence à Tábua Lógica dos Juízos, o artigo pretende analisar e apresentar uma
solução para a seguinte questão: como é possível que certos juízos categóricos, que “formam a base de todos os
outros juízos”, possam desempenhar a função exercida pelos juízos existenciais que seria a de correlacionar
conceitos, não a outros conceitos, mas a objetos efetivamente dados?
Palavras-chave: Kant, Existência, Juízos Categóricos, Juízos Existenciais. 197
KANT: PREDICAÇÃO E EXISTÊNCIA

ABSTRACT
volume 9 Taking to be true these three Kantian suppositions or claims in CPR: [1] existence is not a real predicate, [2] from
número 1 the General Logic perspective, categorical judgments are connections of concepts; [3] the logical form of judgments
2005 of existence does not belong to the Logical Table of Judgments, in this article I intend to analyze and to present a
solution to the following question: how is it possible that certain categorical judgments, those that “constitute the
basis for all other judgments”, should have the function carried out by the existential judgment which is that of
correlating concepts not to other concepts, but rather to objects actually given.
Keywords: Kant, Existence, Categorical Judgements, Existencial Judgements.

Recebido em 10/2005
Aprovado em 11/2005

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