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3.

1 O MITO – A Morte na Consciência Mítica

Conforme escreveu Arcângelo Buzzi, o cientificismo e o racionalismo extremado


consideram que o mito é uma forma infundada de pensamento, que caracteriza a infância
intelectual dos povos. No entanto, uma reflexão mais ampla considera o mito como uma
forma autônoma de apreensão da realidade, que resiste ao tempo e permanece válida, porque
tem a capacidade de reunir a experiência humana numa unidade dotada de sentido e capaz de
fornecer inteligibilidade ao mundo.

O mito retrata a unidade íntima entre o mundo e o homem, fazendo referência a


acontecimentos que remontam ao início dos tempos, e que fornecem as estruturas últimas do
real, ainda vigentes. Por consequência, o mito se relaciona ao mistério, àquilo que a razão
última não consegue desvendar. Segundo os antropólogo o mito consolida e fundamenta a
convivência humana, reforçando a tradição e enraizando cada acontecimento numa narrativa
primordial que lhe justifica e legitima. As narrativas míticas, relatam a estória de uma
comunidade, seu nascimento, suas tradições, seus costumes.

Nas sociedades antigas, acredita-se que o mito designa uma história verdadeira,
preciosa por seu sentido exemplar e sagrado. Nessas sociedades, ele fornece os modelos para
a ação humana, que se tornam, assim, dotados de sentido. O mito conta uma história sagrada,
descrevendo o início dos tempos e narra como, graças aos deuses ou à entidades
sobrenaturais, a realidade passou a existir, não apenas na sua totalidade, mas em cada
detalhe. Ao invés de ter como sinônimo a fábula ou a ficção, nessas culturas o mito tem um
peso de verdade, se refere à realidades concretas e bem evidentes. O comportamento
humano, nesse contexto, deve se orientar pelas formas de agir que foram definidas pelos
antepassados, pelos ancestrais, até mesmo para as atividades prosaicas e cotidianas podemos
encontrar uma justificação mítica. As estórias ficcionais, nas sociedades arcaicas, podem ser
relatadas a todos, em qualquer momento; já os mitos, somente em determinadas ocasiões, em
certas épocas do ano, e para alguns.

Por que o homem é sexuado, por que precisa trabalhar, por que deve seguir certas
regras, por que morre? A explicação para tudo isso é fornecido por mitos específicos. Há mitos
que explicam de que modo o homem, antes imortal, tornou-se passível de morte. Da mesma
forma que o homem moderno, explica Mircea Eliade (historiador e filósofo da religião), se
considera formado e produzido pela História, e volta-se para o futuro, o homem primitivo
encontra suas explicações no passado remoto do mito. Conhecer o mito a respeito de um
animal, por exemplo, dá ao homem poder sobre ele, tornando possível a sua caça. Ao recitar o
mito, o homem se torna seu contemporâneo, regressa a um tempo original e sagrado; no
mundo do pensamento mítico, o sentido de tudo já está definitivamente dado, não cabendo
ao homem nada a não ser apropriar-se desse sentido pronto, que não deve ser de maneira
alguma desfigurado ou modificado. Por essa razão, a sociedade vez por outra, através dos
ritos, rememora e relembra os mitos, como se fosse sempre preciso retornar à origem, fonte
de toda vida e de onde tudo emanou.

Os mitos costumam remontar à origem, à cosmogonia original. Na cultura arcaica, a


realidade se explica por uma recorrente recuperação do seu sentido original, desde sempre
definido. Se pensarmos na morte, por exemplo, sua explicação não se radica na biologia, mas
em algum relato que a vincule à origem de tudo. Mircea Eliade exemplifica escrevendo que o
povo Santala, por ocasião da morte de um seus membros, assiste à recitação do mito
cosmogônico original, através do qual a alma do falecido é transferida para o Além. No caso de
enfermidades, os mitos buscam recriar a vida, ao invés de reparar as doenças; é que o homem
primitivo experimenta a sensação da unidade de todas as coisas, e adoece quando essa
unidade se enfraquece. Para os antigos, morrer e nascer são eventos que tem uma dimensão
cósmica, já que o homem está firmemente inserido na totalidade unitária das coisas; para eles
a morte não tem um sentido pessoal, da mesma forma que a vida não expressa uma biografia
particular.

De acordo com Adolpho Crippa, o mito não pretende satisfazer uma curiosidade
científica, mas oferecer a satisfação de necessidades religiosas, sociais e morais e fornecer
regras práticas. A Humanidade, ao buscar separar a realidade em aspectos e campos distintos
e produzir a ciência, a filosofia, a arte, cindiu a unidade original que o mito traduzia. Mas a
inteligibilidade produzida é ilusória, porque todos esses campos não se reunificam numa
síntese superior; os conhecimentos permanecem dispersos e separados, não se constituindo
numa verdade cósmica. Já os homens arcaicos sentiam-se integrados numa realidade que era
o mundo, que a tudo e todos incluíam, mesmo aos deuses. A realidade era uma só, e os mitos
exprimem a sua estrutura vital.

O mundo da natureza entendido como campo de estudo para as mais diversas ciências
seria uma realidade incompreensível para o homem da consciência mítica, que vivia numa
natureza solidária, em que todos participam da mesma cena; a natureza não era apenas um
cenário, mas era personagem dos acontecimentos. A vida individual, nesse contexto, vincula-
se necessariamente à totalidade ontológica.

O Homem, nessa perspectiva, só pode ser compreendido numa perspectiva


cosmogônica, pois que sua ordem de existência reproduz a do cosmos.

Em sua obra clássica sobre o tema, o filósofo francês contemporâneo Georges Gusdorf
ensina que, no mundo mítico, o mito, embora reine sem rival, não é reconhecido como tal,
pois que é a razão que o identifica, quando a sociedade não mais se funda na ordenação que
ele, o mito, produz. O mito é a primeira forma pela qual o homem busca compreender o
mundo e encontrar o seu sentido; enquanto o animal sempre adere ao mundo, para o ser
humano o advento da consciência gera indefinidas possibilidades.

O homem pré-categorial não divide o mundo em sujeito e objeto, mesmo porque a


noção do “eu” é uma aquisição tardia. Sua consciência é excêntrica, se dilui na paisagem. Para
nós o corpo é uma evidência imediata, com a qual nos identificamos, porém, para o homem
primitivo o corpo é visto como parte de um território mítico, onde ele se dispersa. Por isso o
homem, na leitura mítica, costuma aparecer identificado ao animal, ao vegetal, a uma ou outra
realidade natural; o ser no mundo é uma existência aberta. Conforme conta Gusdorf, mesmo a
noção de morte, tal como a pensamos, não é encontrada, pois o vivente não se opõe ao
morto; vida e morte se inserem numa mesma perenidade, não havendo entre elas oposição.

É fácil compreender a ausência do sentido da morte, pois não existe um sentido do


corpo próprio; o corpo não se destaca do ambiente; cada vida se dissolve, de modo vago, no
mundo enquanto totalidade. Vivos e mortos, deuses e homens, todos participam de uma
mesma realidade indivisa; da mesma forma, não existe o conceito de alma. Se a alma é
essencialmente imaterial, ela não é pensável ou representável pelo homem arcaico, para
quem tudo é coisa. O homem pré-categorial é pré-reflexivo; ele se coloca para os demais como
objeto, e tudo enxerga nessa perspectiva. Da mesma forma, ele não se separa da sociedade,
não é um indivíduo que dela participa, mas nela se integra e com ela forma uma unidade.
O homem, nesse momento, não se concebe senão como parcela de uma unidade, como
elo de uma corrente; existe somente na medida em que desempenha seu papel no jogo de
suas relações. Cada comportamento já está de antemão definido pelos ritos, pelos mitos e
pelos costumes; morrer, assim, é estar privado de relações sociais, perder suas funções e seu
lugar na ordem social. O morto cumpriu todas as suas obrigações com a sociedade, encontra-
se, portanto, disponível. Cada vivente cumpre um papel já determinado de antemão, como se
tudo se resumisse a um teatro, onde a mesma peça eternamente se repete. O homem arcaico
vive numa espécie de plenitude, pois que ainda não se separou em definitivo da natureza ou
da sociedade. Ainda não vive na História.

Talvez a consciência da morte, de modo pouco claro, possa ter surgido ainda nos
mamíferos mais inteligentes. Observações de chimpanzés em cativeiro relatam que, quando a
velha macaca Pansy começou a respirar com dificuldade, seus colegas de jaula, no parque
zoológico, observados por um sistema de câmeras, se acercaram dela, limparam e acariciaram
seu pelo por diversas vezes. Após a sua morte, os chimpanzés interrompem essa atividade e
inspecionaram o corpo, em busca de sinais de vida. Sua filha, Rosie, passou a noite acordada
ao lado da falecida; na semana seguinte, comeram pouco, tiveram sono mais inquieto e se
recusaram a ir até o local na qual ela morreu. Esse relato, reproduzido na Folha de São Paulo
de 27 de abril de 2010, foi feito por James Anderson e outros pesquisadores da Universidade
de Stirling, Reino Unido, que o publicaram na revista científica “Current Biology”.

Outro relato interessante, também publicado na mesma Folha de São Paulo (6 de agosto
de 2011) conta a respeito da morte do hipopótamo fêmea Tetéia, o animal mais antigo do
zoológico de São Paulo. Ela, aos 53 anos, foi sacrificada já em estado terminal e sua morte foi
acompanhada pela sua filha caçula, Sininho, de dez anos. A intenção dos cuidadores foi de que
a filha presenciasse a morte da mãe, evitando que ela parasse de comer por angústia.
Segundo se informa na matéria, a hipopótamo Tetéia já vinha, nas últimas semanas, deixando
de se alimentar, e tinha diversas doenças, como anemia, artrose, insuficiência renal e
problemas odontológicos. Quatro dias depois, nova reportagem informa que Sininho durante
alguns dias se refugiou na água, se recusando a comer. Conforme o entendimento dos
biólogos do zoológico, ela viveu um período de luto.

BIBLIOGRAFIA

BUZZI, Arcângelo. Introdução ao Pensar. Petrópolis, Editora Vozes, 1984.

CRIPPA, Adolpho. Mito e Cultura. SP, Editora Convívio, 1974.

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. Tradução de Pola Civelli. SP, Editora


Perspectiva, 1972.

GUSDORF, Georges. Mito e Metafísica. Tradução de Hugo di Primio Paz. SP, Editora
Convívio, 1980.

2.2 RITUAIS FUNERÁRIOS


A consciência da morte, principalmente da própria possibilidade pessoal de morrer, é
talvez a característica mais fundamental da espécie humana. Já o Homem de Neanderthal
enterrava seus mortos; há registros de sepultamentos acontecidos há mais de 40 mil anos
atrás, nos quais diferentes tratamentos foram dados aos mortos. Essas sepulturas nada tem de
preocupação higiênica, ao contrário, traduzem uma espécie de obrigação moral e simbólica. A
morte, além de extinguir a vida corporal, destrói o ser social que essa vida suportava, ao qual a
ordem cultural oferecia um papel e uma importância, maior ou menor. Por isso, antes de ser
considerada um evento biológico, a morte, desde o alvorecer da consciência humana, é
essencialmente um fenômeno social, que pode ou não coincidir com a extinção da vida do
organismo, no plano biológico. Assim, morte social e morte biológica não coincidem,
necessariamente.

A morte, de certo modo, conforme ensina o antropólogo José Carlos Rodrigues, torna
necessária a existência de saberes, normas, costumes, regras – a que chamamos cultura –
exatamente porque as gerações se sucedem, sendo necessário manter a continuidade entre os
homens.

Segundo ainda Rodrigues, o absurdo da finitude humana se expressa na impossibilidade


que a consciência tem para pensar o fim; as lembranças dos mortos são uma forma pela qual
eles permanecem presentes. Assim, a morte é mais expressa pelas instituições sociais do que
pelo desaparecimento físico, havendo sociedades em que uma mulher, por exemplo, cujo
marido faleceu, caso venha a ficar grávida depois da morte do mesmo, de outro homem, terá
o morto como pai de seu filho, até que a morte do primeiro marido seja socialmente
determinada em definitivo. Também se acreditava que, do ponto de vista do morto, tal fato
podia acontecer, já que os mortos não costumam perceber sua nova situação, sendo
necessário que a sociedade crie mecanismos para impedir o seu retorno, ou a sua interferência
nos acontecimentos cotidianos.

Muitas culturas dispõem de formas pelos quais os vivos se defendem dos mortos;
informa José Carlos Rodrigues que, na Nova Guiné, viúvos carregam porretes para se
defenderem das sombras de suas mulheres falecidas. Outras culturas amarram os mortos, os
imobilizam, os cobrem de pedras, para que não voltem e procurem retomar suas posições na
sociedade.

Antes que a Humanidade produzisse o conceito de alma, como substância imaterial e


imortal, gregos e romanos pensavam que, ao se sepultar o corpo, também a alma era
encerrada no túmulo. Ritos fúnebres dessas civilizações retratam isso, conforme conta o
historiador Fustel de Coulanges em “A Cidade Antiga”.

Nessa clássica obra, temos excelentes comentários a propósito dos costumes funerários
romanos e gregos, quando se deixava vinho e alimentos para o consumo dos mortos, além de
roupas e armas. As almas, mortas longe do torrão natal, reclamam, junto aos seus parentes
vivos, uma sepultura na pátria de origem; sem sepultura, a alma ficaria errante, tornando-se
perversa ao não receber as oferendas e homenagens necessárias e devidas. Nesse estado,
atormentaria os vivos, provocaria doenças, afetaria as plantações.

Uma das primeiras religiões que a Humanidade produziu foi o culto dos mortos.
Considerados criaturas sagradas, cada antepassado morto convertia-se num deus, cujo templo
era a sua sepultura. Tal como os vivos, os mortos reclamavam alimentos e bebidas;
continuavam fazendo parte de uma família. Em toda casa, grega ou romana, devia existir um
altar, onde ardia um fogo incessantemente, cuja extinção traria desgraça àquela residência.
Madeiras especiais, segundo o costume, deviam alimentar esse fogo, que era continuamente
cultuado. No momento do repasto, ato religioso por excelência, comparecia o antepassado,
que o presidia; ele devia receber uma parte dos alimentos e da bebida. O fogo doméstico
também é uma espécie de ser moral, que protege e vela pelo adequado cumprimento dos
deveres morais de cada cidadão.

Ao invés de se dirigir a todos os homens, o culto doméstico se volta sempre para os


membros de determinada família. Todo estranho é excluído desse culto, e não pode participar
do banquete fúnebre. Assim, o vivo era amparado e orientado pelo morto, seu ascendente;
este, por sua vez, era honrado e alimentado pelos seus descendentes vivos. Toda a religião se
encerrava, originalmente, dentro de uma casa; o fogo sagrado ficava oculto no seu interior,
sem poder ser visto de fora. Cada família tinha suas cerimônias particulares e próprias, cujas
regras não se podiam alterar de nenhuma forma; essa religião era passada de pai para filho,
secretamente.

Nesse contexto, é fácil entender que os mortos não eram sepultados em cemitérios,
mas nos terrenos e campos de cada família. Antes de ser garantida pela lei, a propriedade é
uma instituição religiosa, guardada pelos antepassados de cada família, que nela habitam. Os
terrenos domésticos não podem ser vendidos, não são objeto de transação comercial; o
campo, a terra, é propriedade comunal da família, não podendo ser alienada por seu atual
administrador, pois que nela habitam também os ancestrais.

BIBLIOGRAFIA

BAYARD, Jean-Pierre. Sentido Oculto dos Ritos Funerários. Morrer é morrer?


Tradução de Benôni Ramos. SP, Editora Paulus, 1996.

COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. Tradução de Jonas Camargo Leite e


Eduardo Fonseca. SP, Editora Hemus, 1975.

RODRIGUES, José Carlos. Tabu da Morte. RJ, Editora Achiamé, 1983.

Na coletânea de vídeos funerários disponíveis, sugerimos que assistam aos


seguintes:

- Funeral Tibetano, também chamado Enterro Celestial: os corpos dos mortos são
desmembrados e devolvidos à natureza de onde provieram, sendo consumidos por abutres
que aguardam, em grande quantidade, esse momento. Dessa forma, a alma se liberta e a
matéria retorna ao ciclo da natureza, já que os mortos alimentam os vivos;

- Funeral Hindu: o morto é consumido pelo fogo, que liberta sua alma encerrada
no corpo. As cinzas serão jogadas no Rio Ganges, e tudo retorna à natureza;

- Funeral da Indonésia: diversos animais são imolados no momento do


sepultamento de alguma pessoa da comunidade; assim se expressa a dor da comunidade, ao
mesmo tempo em que a condição de riqueza da família é atestada;

Todos esses rituais funerários estão incluídos no ítem Ásia- Rituais Funerários

3.3 ARS MORIENDI

Ars Moriendi são exercícios espirituais, desenvolvidos por todas as culturas, e em todos
os tempos, para preparar o ser humano para a morte. Um exercício interessante, no qual o ser
humano regressa à unidade original e se prepara para a morte, é a Meditação do Budismo
Tibetano , que está descrita abaixo. Sugerimos que seja feita a leitura e praticado o exercício .

A cultura tibetana produziu um manual destinado a orientar os mortos na sua viagem, o


famoso Livro dos Mortos Tibetano. É possível encontrar, na web, diversas matérias e vídeos
que tratam dessa obra célebre.

s med m t dzo
hunya itação estres extos en gchen inks

Vivendo e morrendo conscientemente


Do livro "O despertar do buda interior"
de Lama Surya Das

Agora que o bardo da morte desponta diante de mim,


Eu vou parar de prender as coisas, de desejar e me apegar,
Vou entrar sem distrações na clara percepção dos
ensinamentos,
E ejetar a minha consciência para a dimensão da percepção
não nascida.
Quando eu deixar este corpo composto de carne e sangue,
Saberei ser ele apenas uma ilusão passageira.

Padma Sambhava em O LIVRO TIBETANO DOS MORTOS

Nos ensinamentos tibetanos, a morte é mais um


momento no qual devemos praticar a atenção plena. Lembrar-
se da inevitabilidade de nossa morte, encarar o fato
inescapável da nossa própria mortalidade e da impermanência
de todas as coisas, pode ser a mais liberadora das meditações,
porque apresentar a realidade das coisas como realmente são,
ajuda a desalojar o egoísmo grosseiro, o apego e a miopia -
colocando nossas vidas na perspectiva correta.

A morte é um espelho, que reflete e ilumina tanto a


vaidade quanto o sentido de nossas vidas. A morte é o
momento da verdade, quando nos encontramos com a
realidade face a face. Para todos nós, é também um momento
de oportunidade, quando podemos atingir nossa natureza
original. A morte é mais certa do que o amor, e com certeza
aguarda a todos nós na doença ou na velhice. A sabedoria
perene nos diz que deveríamos nos preparar para o nosso fim,
o que nos tornará melhor preparados para viver - ou morrer -
de forma iluminada.

Diz-se que na morte apenas duas coisas contam: o que


fizemos em nossas vidas e o estado interior que temos na
hora de morrer. Estes dois fatores determinam o que vem
depois. Buda ensinou que a experiência real do momento de
morrer é crucial para o próximo renascimento, e que no
momento da morte ocorrem experiências espirituais
extraordinárias que oferecem um portal para a grande
liberação. Portanto, a atmosfera física e os estados de espírito
daqueles que estão ao redor do moribundo são extremamente
importantes, e paz, conforto, gentileza, amor, aceitação e
harmonia ajudam a guiar o morto, da melhor maneira
possível, em sua travessia.

Tradicionalmente no Tibet, o Bardo Thodol, conhecido no


ocidente como o livro tibetano dos mortos, é lido na cabeceira
da cama de alguém que está morrendo, tanto na hora da
morte como por vários dias subseqüentes. Ele é uma
meditação guiada, lida em voz alta, normalmente por um
lama, para ajudar a direcionar o morto ou o moribundo
através dos vários estados de transição no bardo. Este
maravilhoso livro antigo é uma escritura de sabedoria que nos
conduz à liberdade e à iluminação através do reconhecimento
da clara luz da realidade na hora da morte, e depois. Ele
também mostra como reconhecer e atingir a clara luz (a
qualidade luminosa inata da mente natural) dentro de cada
um de nós, nesta vida. Apesar de ter sido ostensivamente
escrito para oferecer ao morto ou moribundo conforto,
orientação e libertação pela audição, o Bardo Thodol também
nos mostra como viver, porque cada momento é tanto um
nascimento quanto uma morte.

Bardo1 é uma palavra tibetana que significa "No meio"


ou "Em transição". Ensina-se que existem ao todo seis estados
de bardo, acabam oferecendo suas oportunidades específicas.
Três delas ocorrem quando ainda estamos vivos: o bardo
desta vida cobre o período inteiro desde que nascemos até a
nossa morte; o bardo da meditação se refere ao estado
meditativo quando conseguimos reconhecer nossa natureza
búdica; e o bardo do sonho ocorre quando dormimos, e
também pode ser usado para treinar a mente.

Os outros três estados de bardo cobrem o período entre


a morte e o renascimento, e constituem o foco primário do
Livro Tibetano dos Mortos.

O Bardo da Morte

Este bardo se refere ao processo de morrer em si. No


Tibet, a morte é considerado um processo de purificação,
porque estamos voltando para clara luz, nosso estado natural
intrínseco de luminosidade - estamos nos dissolvendo nele. No
momento da morte, esta clara luz da realidade desponta para
cada um de nós. É a nossa própria natureza radiante, algumas
vezes chamada de Rigpa – o estado desperto e iluminado.
Entretanto, para podermos realmente nos beneficiar deste
"Momento da Verdade" e atingir a libertação, precisamos estar
preparados. Se não, ele vai nos escapar rapidamente. Como a
maioria de nós ainda está ligada aos hábitos e padrões de
comportamento estabelecidos em vida, não reconhecemos a
luminosidade pelo que ela é. Reagimos de forma não
apropriada e inconsciente. Em vez de mergulharmos nela, em
um ato de fé, nos entregando à luminosidade, nos fundindo
nela. E assim o momento passa. As instruções de Kalu
Rinpoche para esse momento de grande luminosidade foram:
"Solte o corpo e a mente, e dissolva-se na clara luz da
luminosidade interior. Reconheça o raiar da clara luz e se
liberte neste instante. Enxergue além das ciladas, do dualismo
da vida e da morte".

O Bardo do Dharmata (Realidade)

Neste segundo estado de bardo, temos outra


oportunidade de atingir a libertação. Kalu Rinpoche dizia que a
coisa mais importante para nos lembrarmos aqui é que, como
nos sonhos, tudo o que veremos aqui é criação de nossas
mentes, e pode ser mudado, da mesma forma que se pode
acordar dentro dos sonhos e alterá-los. Neste estado, é como
se sonhássemos, e nada mais pode realmente nos fazer mal. A
libertação pode ocorrer se conseguirmos apagar a resistência e
as dúvidas, soltar tudo e nos entregarmos à luminosidade
inata da mente natural. Se não pudermos fazer isso, então o
próximo bardo inexoravelmente começará.

O Bardo do Vir-a-Ser

Neste terceiro estado de bardo pós-morte, nossas


percepções estão voltando. Novamente, temos preferências e
aversões, e somos atraídos para lugares e pessoas que nos
são familiares. À medida que nossos apegos, paixões e
propensões cármicas começam a se afirmar, estamos nos
aproximando do renascimento. Nesse momento, faríamos bem
em voltar nossas mentes para as intenções do bodhisativa,
que são beneficiar e servir todos os seres sem exceções.
Livres das ciladas da atração e da repulsão, devemos procurar
o meio ambiente oportuno para exercer o voto de bodhisativa.
Se você achar que está neste estado do bardo, através da
coragem destemida e da visão pura, vá além e abandone sua
atração e seu desejo pelo homem e mulher que se unem em
união sexual. Em vez disso, perceba este casal amoroso, que
serão seus novos pais, como um casal búdico - Sr. e Sra.
Sabedoria e Compaixão. Graciosamente, entre neste templo
humano e encontre sua nova vida.

Vivendo a Morte: Uma Meditação

Todos nós temos que nos defrontar com as questões da


vida e da morte. Quer seja a morte de um familiar idoso ou o
nascimento de um filho, o nascimento e a morte são parte da
vida. A filosofia, a ciência, a religião, as artes lidam com a vida
e a morte, e com a morte ou renascimento. Todos nós nos
perguntamos o que acontece quando morremos. Será que a
morte é o nosso fim? E o que isso significa para nós? Como
podemos dar mais sentido às nossas vidas?

Existem diversas religiões e culturas, mas todas


compartilham de pelo menos um princípio comum: todas têm
ritos, rituais e especialistas para lidar com a morte e o morrer.
Estes ritos nos oferecem conforto e segurança diante da
precariedade e da insegurança da existência. Será que
continuamos? Será que atingimos um fim abrupto? Não existe
mais nada? E o céu? E o inferno? Existe vida depois da morte?
Vamos nos defrontar com Deus ou com o carma? Verdade ou
conseqüência? Como podemos ter certeza de qualquer coisa?
Isso pode ser verificado ou estão nos pedindo para acreditar e
confiar em um mito ou na imaginação? Devemos acreditar nas
pessoas que dizem ter voltado das experiências de quase
morte? Devemos acreditar em Edgar Cayce e nos outros
videntes? Devemos acreditar nos lama encarnados, muitos dos
quais dizem que se lembram de vidas passadas e parecem ter
algum controle consciente sobre o processo - como se
estivessem evoluindo, por escolha, através de diferentes níveis
da escola espiritual? Como podemos saber? Quem sabe?

Os budistas perceberam há muito tempo que contemplar


a própria mortalidade é uma prática que ajuda a ter foco e
estabelecer prioridades. A vida espiritual, a jornada de
despertar e dar sentido às nossas vidas enquanto aprendemos
a amar, é na verdade uma questão tanto de vida quanto de
morte. A precariedade da vida nos ajuda a permanecer
totalmente dispersos no aqui agora.

O que o budismo tibetano nos oferece, juntamente com


seus ensinamentos pragmáticos e éticos, é uma forma de lidar
com a própria experiência da morte - uma forma de encarar a
morte no momento presente. Este treinamento pode nos
ajudar muito a lidar com o momento da morte. Passamos a
apreciar mais, estar mais atentos e mais abertos a cada
momento da vida, que se torna mais pungente devido à sua
absoluta impermanência.

Ao aprender a deixar esta vida ir embora, aprendemos


também a viver cada momento sem arrependimentos.
Aprendemos a tomar decisões sem arrependimentos. Cada
decisão se torna a decisão certa. Quando aprendemos a largar
as coisas em vida, abandonamos nossos rancores, obtemos o
perdão e nos aliviamos do fardo do ressentimento, da
amargura e da hostilidade. Assim, encontramos uma
conclusão e podemos soltar velhas tristezas e antigas queixas,
deixando estes padrões congelados morrerem. É assim que
morremos sem arrependimentos, enquanto aprendemos a
viver de novo. Aqui, neste momento. Respiração por
respiração. Eis aqui uma meditação que nos ajuda a fazer
isso:

Respire profundamente relaxe. Deixe tudo se acomodar.


Esteja totalmente presente, naturalmente presente, sem
esforço. Você está se sentando por um instante, um instante
eterno. Não perca o momento. Só existe este.

Sinta tudo, como é. Esteja presente, alerta, desperto e


relaxado. Abra-se para a presença sem esforço, para a
consciência pura. A presença total. Tenha consciência de estar
consciente, uma percepção luminosa, sem centro, aqui e
agora. Deixe que tudo aconteça sem esforço, de forma
transparente. Abandone o controle, a manipulação e o
julgamento.

A cada respiração, solte um pouco mais. A cada


respiração, solte, relaxe, abra e centre-se cada vez mais
profundamente. Cada expiração é uma pequena morte.
Simplesmente esteja com a expiração, e a cada expiração
solte um pouco mais. Um pouco mais ... solte os nós do seu
psiquismo. Relaxe. Largue tudo. Solte a tensão dos ombros,
expire-a. Expire aquele pensamento, aquela lembrança, solte,
solte, solte...

Solte a expiração. Morra um pouco a cada expiração.


Morra no momento presente. Qualquer sensação sinta, deixe-a
partir. Largue o corpo, largue a mente, largue os pensamentos
e a personalidade. Largue tudo. Solte. Largue sua auto-
imagem, sua casa, suas posses, seus planos, sua carreira.
Solte. Tudo está perfeitamente resolvido na mente natural que
não nasce nem morre.

Abandone as tentativas de controlar a mente. A cada


expiração, solte. Aperte a embreagem do desapego espiritual
e desengrene a marcha. A cada expiração, solte mais alguma
coisa - o que vier à cabeça, uma sensação, uma emoção, um
sentimento, um relacionamento uma pessoa, um medo, uma
posse. Respiração à respiração, momento a momento -
simplesmente solte tudo. Habitue-se a evoluir, a se
transformar, a passar sem resistência, sem se agarrar, sem
apegos. Respiração a respiração, vá soltando. Deixe todos
fenômenos ilusórios irem embora.

A cada respiração, perdoe aos outros. Perdoe às pessoas


de seu passado - aquelas com quem não tem mais contato, e
também as que ainda estão ao seu redor. Perdoe a sí. Aceite
os outros como são. Aceite totalmente a si mesmo. Deixe tudo
ser como é. Isto é a sabedoria em ação. A cada respiração,
abandone o medo, a expectativa, a raiva, o arrependimento, o
desejo, a frustração, a fadiga. Abandone a necessidade de
aprovação. Abandone os velhos julgamentos e as opiniões.
Morra para tudo isto, e voe livremente. Eleve-se na liberdade
da ausência de desejos.

Solte. Deixe. Veja através de tudo seja livre, completo,


luminoso e volte para casa.

Com este tipo de meditação, as camadas sutis que


formam quem nós somos começam a se arrumar, e nós
penetramos mais profundamente no nosso estado natural - o
estado despojado do ser autêntico. Isto é uma transformação
ocorrida aqui e agora. Um renascimento espiritual.

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3.4 FILME A SER DISCUTIDO

No interessante documentário, encontrado na NETFLIX e também na internet, “A


Caverna dos Sonhos Esquecidos”, podemos identificar a presença da consciência humana nos
seus primórdios. Esse documentário relata a descoberta de uma caverna que contém, intactas,
pinturas e desenhos feitos há dezenas de milhares de anos. Os animais ali retratados integram
uma fauna que já não existe, da mesma forma, naquela região da Europa. Os seres humanos
aparecem fundidos com animais, como se fizessem parte de uma mesma realidade.

Apresentamos, abaixo, o link para que vocês possam assistir ao documentário:

Sugerimos que leiam, antes, o interessante comentário de Anlindenor Pedro, a respeito


do documentário.

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