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INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................

TEOLOGIA E PSICANÁLISE: PERCURSOS DE UMA RELAÇÃO ....................................................9

1.0 SOBRE A PESSOA E OBRA DE E. DREWERMANN ....................................................................20


1.1 Dados Biográficos ........................................................................................................................20
1.2 A obra de E. Drewermann e sua ressonância ..............................................................................21
a) As Obras ...........................................................................................................................................22
b) A Ressonância ...................................................................................................................................28
2.0 O MÉTODO TEOLÓGICO DE E. DREWERMANN ......................................................................32
2.1 A Questão Antropológica e Dogmática na Obra de Drewermann ............................................................ 34
2.2 A Questão Hermenêutica na Obra de Drewermann ................................................................................. 38
2.3 A Questão da Ética na Obra de Drewermann........................................................................................... 40
2.4 A Crítica de Drewermann à Teologia Cristã Acadêmica Ocidental ........................................................ 42
2.4.1 Estranheza da Teologia cristã em relação ao inconsciente do psiquismo humano ................................... 43
2.4.2. A Parcialidade Racionalista da Teologia ................................................................................................. 46
2.5 Influências e Caracterização do Pensamento Teológico de Drewermann a partir da Teoria
Psicanalítica ....................................................................................................................................................... 47
2.5.1. A Psicologia Profunda de C. G. Jung na Obra de Drewermann .............................................................. 47
2.5.2 A Psicanálise Freudiana no Pensamento de Drewermann ...................................................................... 49
2.5.3 A Compreensão Freudiana e Junguiana do Sonho e sua Relevância na Metodologia de
Drewermann ...................................................................................................................................................... 51
3. 0 - DREWERMANN E A EXEGESE ...................................................................................................55
3.1 A CRÍTICA DE DREWERMANN AO MÉTODO HISTÓRICO-CRÍTICO ...............................................55
3.1.1 Retrospectiva das origens do MHC ......................................................................................................... 57
3.1.2 A Negação do Inconsciente .................................................................................................................... 58
3.1.3 A Contraposição de Deus e Ser Humano ................................................................................................. 59
3.2 DA NECESSIDADE DE UMA HERMENÊUTICA TIPOLÓGICA DA HISTÓRIA .....................................63
3.2.1 A Lei de Identidade na Compreensão Tipológica da História ................................................................. 67
ou A Subjetividade como Fonte de Conhecimento ........................................................................................ 67
3.2.2 Contemporaneidade do Conhecimento ................................................................................................... 69
3.3. A VERDADE DAS FORMAS .................................................................................................76
3.3.1 A Herança (Desprezada) do Romantismo ................................................................................................ 76
3.3.2 Iniciar com Sonho e não a Palavra .......................................................................................................... 78
3.4 O SONHO COMO FUNDAMENTO DE NARRATIVAS ARQUETÍPICAS .............................. 82
3.4.1 O Sonho como Revelação na Bíblia ........................................................................................................ 82
3.4.2 Psicologia do Sonho ................................................................................................................................ 85
3.4.3 Processos de cura e renovação psíquica no sonho ................................................................................... 89
3.4.4 O Significado dos Sonhos na História das Religiões ............................................................................... 91
3.4.5 Magia e Rito, Oráculo, Cura Milagrosa e Animismo .............................................................................. 93
3.4.6 Os Estilos Narrativos na Perspectiva do Sonho ...................................................................................... 96
3.5 O Nascimento Virginal de Jesus: Um Exemplo de Interpretação na Perspectiva da Psicologia
Profunda .......................................................................................................................................................... 101
4.0 DREWERMANN DIANTE DA CRÍTICA TEOLÓGICA ............................................................. 106

5.0 POSICIONAMENTO CRÍTICO ......................................................................................................111

BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................................................118
4 4

ENTRE O SONHO E A PALAVRA

Um estudo sobre a relação da psicanálise e teologia na obra de Eugen

Drewermann

4
5 5

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objeto de estudo a relação entre Teologia e

Psicanálise. Uma dedicação a esse tema nos moldes de uma dissertação de

mestrado requer uma justificativa. Por que ocupar-se com essa relação? Ou,

ainda antes, existe uma relação entre Teologia e Psicanálise? No caso de uma

afirmação positiva, onde procurá-la?

Certamente existem diferentes vias pelas quais se pode identificar uma

proximidade.

Na origem desta busca que culminou nesta pesquisa não havia uma

preocupação acadêmica. O que havia era um fascínio pela capacidade que o

processo analítico tem de desvelar verdades das profundezas da alma através

de manifestações não convencionais como sintomas, sonhos, lapsos etc. Em

outras palavras, a experiência de que formas de manifestações do humano,

consideradas irracionais e sem sentido, são fontes de um saber capaz de curar e

de mostrar um sentido. Este fascínio desencadeou uma busca por maior

conhecimento neste campo do saber. Surgiu aí o primeiro contato com as obras

5
6 6

de E. Drewermann, psicanalista e teólogo. Mais tarde, a própria formação

analítica e prática clínica. Estas experiências e o saber adquirido não podiam

ficar sem repercussão na forma de compreender e exercitar a função pastoral e

teológica.

Compreendendo como teólogo e psicanalista, atuando como pastor e terapeuta

colocamo-nos na interface do religioso com o psíquico. Esta posição

inevitavelmente levou a uma constatação e muitas perguntas.

Constatamos que a Psicanálise pode contribuir para a Teologia bem mais do

que ser apenas - e quando muito - uma disciplina auxiliar da Teologia Prática.

Sentimos que a Psicanálise pode contribuir muito na interpretação de textos

bíblicos; na compreensão da natureza e condição humana, ou seja, na visão

antropológica, com enormes conseqüências para a ética; na compreensão da

busca pelo sagrado, sua linguagem e expressões. Enfim, cremos que o

conhecimento psicanalítico pode ajudar a redescobrir dimensões do religioso

para as quais a Teologia perdeu a sensibilidade em virtude de seu atrelamento

a um tipo de racionalidade que se restringe a entender o religioso numa visão

historicista e sociológica.

Estas questões motivam a presente pesquisa. Entre outras, uma das perguntas

implícitas na motivação para esta pesquisa, é sobre o modo mais apropriado de

se articular um diálogo entre Psicanálise e Teologia de forma que este

proporcione um melhor entendimento da expressão e experiência religiosa.

Também aqui se apresentam diferentes possibilidades.

A leitura das obras de Drewermann sempre me pareceu promissora em vista

destas questões. Essa foi a razão da escolha de sua obra para esta pesquisa, de

modo

6
7 7

que procuro verificar se esta suspeita se confirma.

Pretendendo investigar como a relação entre Psicanálise e Teologia se dá na

obra desse autor. O estudo não considera toda sua obra. Esta seria uma tarefa

que extrapolaria os limites impostos para este trabalho, pois estudar uma obra

que ainda não está concluída e se encontra em constante processo de

desenvolvimento, apesar dos mais de 40 volumes já publicados, apresenta

muitas dificuldades. Não obstante as limitações, creio que o trabalho possa

oferecer uma visão que permite o reconhecimento de sua metodologia, suas

influências e ênfases teológicas que desenvolve.

Num primeiro momento procuro apresentar algumas informações que

descrevam, de forma muito sucinta, a trajetória do relacionamento da Teologia

com a Psicanálise situando Drewermann neste percurso. No momento seguinte

procuro apresentar algumas informações sobre a sua pessoa e uma visão do

conjunto de suas obras, classificando-as em grupos temáticos. Procuro, ainda,

caracterizar a ressonância de sua obra.

No que considero a parte principal deste trabalho, faço uma análise da

metodologia teológica de Drewermann e procuro identificar o desdobramento

desse método no seu trabalho e reflexão exegética. Essa parte terá um caráter

mais expositivo. A seguir apresento algumas posições de outros teólogos a

respeito do trabalho de Drewermann. Por fim, procuro tecer algumas

considerações sobre o que me parece ser a contribuição ou, eventualmente, os

limites da abordagem de Drewermann e quais os desafios que o seu método

teológico apresenta também para outras questões relevantes e motivadoras para

uma maior reflexão acerca da relação entre Psicanálise e Teologia.

7
8 8

Pelo fato da obra de Drewermann ainda ser pouco conhecida no Brasil, toda

pesquisa se concentra basicamente na leitura de literatura em língua alemã,

sendo, portanto, as citações traduções livres do autor.

8
9 9

Teologia e Psicanálise: Percursos de Uma


Relação

O conhecimento de Freud sobre o inconsciente e o psiquismo revolucionou a

compreensão da vida e do ser humano deste século. No entanto, como afirma

P. Ricoeur1, mesmo quase um século depois de Freud, a verdade do

Freudianismo ainda está muito longe de ser assimilada, especialmente pela

religião. O fato, muito difundido, de que o conhecimento de Freud fortaleceu a

posição dos críticos da religião, obscureceu e, por vezes, obstruiu as

possibilidades de um reconhecimento da validade desse mesmo conhecimento

para uma compreensão profunda e esclarecedora de questões relevantes para

o campo religioso. Não obstante ao estranhamento e distanciamento da

Teologia em relação ao saber psicanalítico, pode-se observar algumas

diferentes tentativas de aproximação entre esses dois campos do saber. A

seguir pretendo descrever de forma sucinta alguns momentos que caracterizam

o percurso dessa relação2.

1
Veja: KOCH, Traugott. Freuds Entdeckung und ihre Bedeutung für eine gegenwärtige Theologie. In: A. R.
BODENHEIMER. Freuds Gegenwärtigkeit. Op. Cit. p. 284
2
Para maiores detalhes veja artigo de RAGUSE, H. Themen der Theologie und die Psychoanalyse in:
SCHARFENBERG, J. Religion zwischen Wahn und Wirklichkeit, pp:136 - 150.

9
10 10

O surgimento da Psicanálise ocorre num momento em que a Teologia alemã

está fortemente marcada por uma postura apologética diante da escola da

psicologia da religião, cujas teorias sugerem uma compreensão da religião

como fenômeno biológico3. Nesse contexto apologético da Teologia em

relação à Psicologia, as novas teorias de Freud - um judeu ateu - e suas críticas

à religião são percebidas como uma profunda ameaça aos valores da nação4.

Alguns teólogos procuram provar que a Psicanálise não tem nada a contribuir

para a Teologia e desrecomendam o seu estudo, insistindo na afirmação de que

a própria Bíblia contém uma psicologia muito mais profunda5. É E.

Thurnneysen que, em seu livro “A doutrina da cura d’almas”6 de 1948, faz

uma primeira aproximação com a teoria psicanalítica reconhecendo o valor de

elementos isolados dessa teoria. Dá, assim, à Psicanálise o atributo de uma

ciência auxiliar da Teologia Prática. Esse atributo vai marcar a relação entre

essas duas áreas por muitas décadas. Na mesma medida em que significou um

avanço na relação, também implicou numa limitação das reais possibilidades

de enriquecimento mútuo, pois a Psicanálise passou a ter seu lugar restrito à

ante-sala da Teologia sem que fosse levada a sério na reflexão de questões

teológicas fundamentais.

Outro aspecto importante na difícil relação entre Psicanálise e Teologia

residiu, talvez ainda seja um fator importante, no fato de que a linguagem ou

terminologia da Psicanálise tem forte vinculação com o mundo da mitologia.

3
idem p. 136
4
Essa posição pode ser observada especialmente em textos de E. Brunner e H. Thielecke.
5
Raguse, Themen... op. Cit. p.137
6
‘ Die Lehre der Seelsorge’.

10
11 11

Essa linguagem sugere uma proximidade à irracionalidade, da qual a Teologia

se pretendia distante7.

Uma rara exceção neste percurso é a relação do teólogo e pastor protestante

Oskar Pfister com o próprio Freud e a Psicanálise8. Nenhum outro teólogo

participou tão intensivamente do processo de elaboração do saber psicanalítico

quanto Pfister. Em diálogo com a Psicanálise Pfister produziu uma vasta obra

que testemunha o quanto este diálogo pode ser frutífero. Infelizmente o

trabalho de Pfister não conseguiu mudar a postura de distanciamento,

predominante, dos teólogos com a Psicanálise.

Mais recentemente pode-se observar uma aproximação entre Psicanálise e

Teologia mediada pela Filosofia, mais especificamente pela Hermenêutica. A

questão e a pergunta em torno dos processos de compreensão e interpretação

têm levado muitos filósofos - e , de “carona” com estes - muitos teólogos a

perguntarem pela contribuição da Psicanálise para esta área do saber.

Provavelmente o maior expoente desta tendência seja Paul Ricoeur.

Na obra de Ricoeur encontramos, basicamente, dois momentos em que ele trata

da Psicanálise. A perspectiva e o propósito com que aborda a Psicanálise nesses

dois momentos é distinta.

Em “da interpretação”9 ele se apresenta como expositor, como quem lê a obra

de Freud. Sua apresentação segue a sistemática própria da Psicanálise. Ricoeur

está interessado no discurso da Psicanálise porque esta, com sua maneira

própria de entender a fala humana e os seus símbolos, propõe questões

7
Raguse, Themen... op. Cit. p.138.
8
Veja E. L. Freud e H. Meng, Cartas. Entre Freud & Pfidster. op. cit.

11
12 12

relevantes para a Filosofia. À primeira destas questões relevantes Ricoeur

chega pela reflexão a cerca das duas ordens presentes no discurso da

Psicanálise. Essas duas ordens são condições de possibilidade para se

compreender o fenômeno psíquico. Elas se referem à compreensão do

fenômeno psíquico enquanto linguagem da força e linguagem do sentido. A

partir delas decorre a nova visão antropológica para a qual a Psicanálise

contribui.

A linguagem da força refere-se a uma abordagem do fenômeno psíquico a

partir da relação de forças decorrentes da natureza pulsional do ser humano. A

linguagem do sentido refere-se à dimensão da busca de sentido das

significações ocultas que caracteriza a Psicanálise. Portanto, aspecto

hermenêutico implícito na sua abordagem.

Para Ricoeur a distinção entre as duas ordens de linguagem - força e sentido -

reflete a distinção entre ciências naturais e ciências humanas, na medida em

que compreende uma como que relacionada à explicação de causas e a outra

como relativa à compreensão, ou, em outras palavras, uma relativa à natureza e

outra à cultura.

No discurso da Psicanálise a separação decorrente desta distinção é superada.

Para a Psicanálise o ser humano “se situa em um espaço intermediário, entre

causalidade e a motivação, entre explicação de causas e a compreensão de

motivos. Em outras palavras, o ser humano se move por desejo e por

9
Ricoeur, Paul. Da Interpretação. op. cit.

12
13 13

necessidade.”10 O ser humano, portanto, “...é um misto de busca de sentido e

constrangimento de forças.”11

A relevância da Psicanálise para a hermenêutica de Ricoeur reside no fato

desta recusar uma interpretação do ser humano por apenas uma destas

linguagens.

Em “O conflito das interpretações”12 a reflexão de Ricoeur sobre a

Psicanálise alcança um outro nível. Já não procura apenas descrever a

Psicanálise segundo a lógica de seu próprio discurso, mas colocá-la em relação

com a Filosofia.

Ricoeur reflete a importância da Psicanálise para a Filosofia apresentando

Freud em paralelo com Marx e Nietszche. Todos estes, enquanto protagonistas

da suspeita, levantam a suspeita em relação ao que para a fenomenologia é o

fundamento e origem de toda significação: a consciência.

A contribuição de Freud para a destituição da consciência deste seu lugar

privilegiado é elaborada, sobretudo, em seu artigo de metapsicologia O

Inconsciente. Nele, a partir de uma abordagem sob o ponto de vista tópico e

econômico do funcionamento psíquico, Freud elabora a impossibilidade da

consciência de compreender o inconsciente e a si mesma.

Dessa posição decorrem para Ricoeur algumas questões relevantes para a

Filosofia, especialmente para a fenomenologia. A primeira refere-se à

necessidade de refundir o conceito de consciência; a segunda refere-se à

necessidade de refletir a epistemologia da Psicanálise. Pois, a partir dela não é

10
Franco,Sérgio G. Hermenêutica e ..., p.171
11
idem, p.169
12
Ricoeur, Paul. O Conflito... op. cit.

13
14 14

mais possível distinguir método e doutrina. Na Psicanálise a doutrina é o

método. A teoria é a constituição do objeto mesmo. A terceira questão

relevante é relativa à pergunta pela visão de mundo e do ser humano que esse

saber implica.

A crise da noção de consciência se dá em virtude do fato de que, apesar de se

poder afirmar uma certeza imediata da consciência - penso, logo sou - , essa

certeza não é um saber verdadeiro, pois essa certeza pode ter outros sentidos

que o sentido imediato”13, mesmo que a consciência tenha a pretensão de

“igualar-se a seus próprios conteúdos”14. A Psicanálise ao analisar as

expressões da fala humana vai evidenciar o duplo sentido dessa fala. Ela

aponta para o fato de que todo dizer ao mesmo tempo revela e oculta. Neste

sentido a linguagem humana é simbólica. Aqui reside outro aspecto que torna a

Psicanálise relevante para a hermenêutica de Ricoeur: se não é possível aceder

ao significado múltiplo da fala humana pela via reflexiva, impõe-se a

necessidade de uma nova arte de interpretar. É aqui que reside a contribuição

da Psicanálise para a reflexão hermenêutica de Ricoeur em torno do símbolo.

Por sua vez a importância da reflexão de Ricoeur sobre a Psicanálise reside no

fato de Ricoeur ser também um pensador da questão religiosa e ter forte

ascendência no meio teológico.

Por parte dos teólogos, excetuando-se E. Drewermann, Paul Tillich parece-me

ser o teólogo que mais tem procurado dialogar no seu trabalho teológico com

a Psicanálise. Também Tillich se aproxima da Psicanálise pela Filosofia. Ao

perguntar por uma possibilidade de aproximação entre Teologia e Psicanálise

13
Ricoeur, Paul. O Conflito... p. 89
14
idem, ibidem

14
15 15

Tillich encontra na relação de ambas com o movimento existencialista uma

convergência.15 Tillich situa a Psicanálise no contexto e compreensão ampla

do movimento existencialista, identificando suas raízes e objetivos comuns no

protesto contra a unilateralidade da Filosofia da razão ou consciência em

detrimento do inconsciente e da vontade irracional.16 Conforme Tillich essa é

uma questão que há séculos tem marcado a história da Teologia e da Filosofia.

Os resultados da Psicanálise estariam, assim, ancorados em precursores como

Nietszche, Kierkegaard, Schopenhauer, Schelling, Pascal e outros. A teoria do

inconsciente de Freud forneceu a essas posições um estatuto metodológico-

científico. A questão comum a todas essas manifestações seria o conflito em

torno da primazia da razão ou da vontade irracional. Em outras palavras, no

protesto contra a Filosofia da consciência e na afirmação da condição humana

com suas contingências limitações. Conforme Tillich, esse conflito também se

encontra na história da Teologia, com enormes conseqüências para a

compreensão do ser humano e de Deus. Nesse sentido, a Teologia teria com a

Psicanálise a mesma relação que tem com o movimento existencialista.

Qual seria a relação da Teologia com o movimento existencialista?

Tanto o existencialismo quanto a Psicanálise têm como objeto de sua atenção a

situação existencial do ser humano, marcada pela finitude e alienação.

Portanto, seu interesse não reside em caracterizar a condição essencial do ser

humano.

15
Veja “Die theologische Bedeutung von Existencialismus und Psychoanalyse. In: Allmanach 3 für Literatur und
Theolgie. op. cit. p. 139
16
Isso propõe P. Tillich. Veja : “Die theologische Bedeutung von Existencialismus und Psychoanalyse. In:
Allmanach 3 für Literatur und Theolgie. op. cit. p. 139

15
16 16

Relacionando-se a Teologia com a Psicanálise impõe-se à primeira a

necessidade de refletir sobre a relação de seus pressupostos, pelos quais define

a natureza essencial do ser humano, com os resultados de uma análise

existencial da condição humana. Para a Teologia, pertence ao âmbito da

natureza essencial do ser humano a afirmação de que este, enquanto ser, é

bom. A dimensão da pulsionalidade e a incapacidade de sua satisfação seria

expressão de sua alienação, expressa no mito da queda. Essa condição

supostamente existencial estaria em contraposição à natureza essencial,

implicando na necessidade ( e possibilidade ) de uma superação, caracterizada

pela noção de salvação. Esses três momentos caracterizam, segundo Tillich, o

esquema básico de toda Teologia cristã: a) momento essencial; b) condição

existencial (alienação); c) “telos” ou momento de superação dos anteriores

(satisfação/salvação).

Diferente da Teologia, o campo da Psicanálise é a condição existencial do ser

humano. Neste campo impera o saber da impossibilidade de superação dessa

mesma condição. A superação da condição existencial humano não é objeto do

esforço psicanalítico. Conforme Tillich esse seria o esforço pelo impossível,

pois aí não ajuda nenhuma técnica. Somente a redenção pode fazer isso. Para

isso é necessário buscar ajuda em outra fonte: a Religião.

Não obstante a essa crítica do limite da Psicanálise, Tillich enfatiza a

contribuição da Psicanálise para a Teologia nas seguintes questões17: a) a

compreensão de pecado como a expressão da trágica alienação do ser humano

de sua realidade essencial; b) na redescoberta das estruturas demoníacas que

determinam a consciência e o agir humano; c) na superação do moralismo e

16
17 17

compreensão profunda do sentido da graça; d) ao lembrar a Teologia que os

símbolos religiosos respondem à situação existencial humana descrita pela

Psicanálise.

Embora não tenha estudado a obra de Tillich de forma profunda e exaustiva,

parece-me possível afirmar que para Tillich a importância da relação entre

Psicanálise e Teologia reside no fato de que a Psicanálise fornece, com sua

descrição da condição humana, uma melhor compreensão do sentido dos temas

da Religião ou Teologia para esta mesma realidade, de tal forma que estes

mesmos temas sejam percebidos naquilo que ultrapassam os limites e alcances

da própria Psicanálise.

Muitos outros teólogos também têm se ocupado com a Psicanálise. Porém

nesta pesquisa ocupo-me especialmente com a obra de Eugen Drewermann.

Pela sua envergadura e ressonância, a obra desse psicanalista e teólogo católico

se apresenta como modelo atraente para o estudo da relação entre Psicanálise e

Teologia. Nenhum outro teólogo tem sido tão controverso quanto ele em

função desse seu esforço de fazer Teologia em diálogo com a Psicanálise.

Nesse seu esforço não se restringe a certas áreas da Teologia, mas procura

refletir as conseqüências deste diálogo em áreas diversas como a exegese, a

ética e a dogmática.

De forma semelhante a Tillich, a aproximação de Drewermann com a

Psicanálise é mediada pelo existencialismo. Desde muito cedo a vida de

Drewermann está marcada por uma inquietação muito grande com a questão

do mal, respectivamente com a maldade humana18. Essas questões são

17
idem p. 149 -150
18
Drewermann Was. Ich denke . op. cit... p.11

17
18 18

articuladas, especialmente, em torno da experiência da guerra. Drewermann

assume uma posição anti-militarista e pacifista e procura descobrir as razões

psicológicas e sociais da guerra, como da violência em si19. Nesse percurso é

profundamente marcado pelas leituras de Kierkegaard. É a descrição da

condição humana na visão existencialista que o aproxima da Psicanálise. Nela

encontra ajuda para compreender esse mesmo humano. É com essa

compreensão do humano que Drewermann interpreta e reinterpreta os temas e

conteúdos da religião, encontrando neles o que afirma ser a resposta, ou

melhor, a alternativa capaz de proporcionar uma superação dessa mesma

condição.

Nesse sentido a proposta de Drewermann se assemelha a ao trabalho de

Tillich. Porém o que o diferencia deste e de outros teólogos que dialogam com

a Psicanálise é o fato de que Drewermann reflete as implicações deste diálogo

em diferentes áreas da Teologia. Assim, a obra de Drewermann se diferencia

por sua dimensão hermenêutica, manifesta no esforço de elaboração de uma

metodologia exegética que possa facilitar uma compreensão do significado dos

temas e conteúdos religiosos, na sua dimensão ética e dogmática, de forma que

essa interpretação possa ser considerada uma interpretação religiosa do

religioso. Por essa razão pode-se dizer que a Psicanálise se torna para

Drewermann não apenas uma mediação mas a mediação hermenêutica do

religioso.

No aspecto exegético, o que diferencia Drewermann de outros teólogos que

refletiram sobre a relação da Psicanálise e a interpretação de textos bíblicos é,

provavelmente, o fato de que Drewermann compreenda o saber psicanalítico

19
idem p.31

18
19 19

como um meio de fundamentar sua Teologia, ou seja, a convicção de que em

camadas profundas da alma se encontrem imagens divinas, as quais podem ser

despertadas através de textos religiosos. Para ele o saber psicanalítico não é

apenas uma forma de conhecer estruturas de um texto ou personalidades de

autores.20

Assim, é o fato de que a obra de Drewermann e sua relação com a Psicanálise

tem uma dimensão hermenêutica e antropológica que torna o estudo dessa obra

muito desafiador. Igualmente, para além do que apresenta de novo, o que torna

a metodologia de Drewermann interessante é o fato de conter uma série de

elementos de crítica à metodologia teológica predominante na Teologia

acadêmica.

20
RAGUSSE, H. Op. Cit. P. 18

19
20 20

1.0 Sobre a Pessoa e Obra de E. Drewermann

1.1 - Dados Biográficos

Eugen Drewermann nasceu em 20 de junho de 1940 em Bergkamen,

Alemanha. Estudou Filosofia, Teologia e Psicanálise. Foi ordenado sacerdote

em 1966. A partir de 1977 passou a ser professor de Teologia Dogmática na

Faculdade de Teologia Católica de Paderborn. Paralelamente atuou como

padre, professor e psicoterapeuta.

Suas posições teológicas renderam-lhe um conflito com a hierarquia da Igreja

Católica, em conseqüência do qual foi-lhe tirado, já em 1982, o direito de

ensinar na formação de professores de ensino religioso. Com a publicação de

“Tiefenpsyschologie und Exegese”( 1984) e “Kleriker” (1989), como também

em virtude de uma entrevista publicada pela revista Der Spiegel, o conflito se

acentuou ainda mais, culminando, em finais de 1991, com a proibição de atuar

como professor de Teologia na Universidade de Paderborn e, no início de

1992, com a cassação de seus direitos de pregação. Desde então passou a

20
21 21

lecionar Antropologia Cultural na Faculdade de Sociologia da mesma

universidade.

O longo processo conflituoso com a Igreja, e as conseqüentes restrições que

dele decorreram, mobilizaram a mídia e a opinião popular. Convidado para

palestras em grandes eventos, participações em programas de televisão e

entrevistas em uma infinidade de revistas e jornais, Drewermann tornou-se

tema nos mais diferentes círculos da sociedade. Por alguns Drewermann é

criticado pelo caráter enfático com que defende suas posições, por outros é

aplaudido como o “porta-voz dos pequenos” diante dos “grandes” que estão

“lá em cima”21 em alusão à hierarquia da Igreja Católica.

1.2 - A obra de E. Drewermann e sua ressonância

Muitos autores quando se referem a Drewermann e sua obra o caracterizam

como um fenômeno.22 Nos países de língua alemã Drewermann é o teólogo

que mais tem publicado e vendido livros nos últimos anos. Suas publicações

tem alcançado diversas reedições e a tiragem já ultrapassou a cifra de um

milhão. Afirma-se que já tem escrito mais de 20.000 páginas. Sua produção é

incessante. Isso torna difícil a tentativa de apresentar adequadamente o

conjunto de sua obra. Sua posições teológicas e seu conflito com a hierarquia

da Igreja Católica tem mobilizado um grande interesse e divulgação pela

mídia.

21
Veja von Schönborn, p. 15
22
veja por exemplo: von Schönborn. op. cit. p. 7

21
22 22

A seguir farei uma apresentação panorâmica de sua obra agrupando-a por

ordem temática.23

a) As Obras
I. Os fundamentos.

“Strukturen des Bösen” (Estruturas do Mal) é a primeira grande obra do

autor. Trata-se de sua tese de doutoramento e habilitação (livre-docência) na

qual faz um estudo do mito da queda na tradição javista (Gn 2-11) numa

perspectiva exegética, psicanalítica e filosófica, onde relaciona a questão da

culpa humana com a incapacidade para a prática do bem. No primeiro volume

interpreta a descrição javista da condição humana como uma caracterização da

vida sob a pressão do medo, no qual se perde o sentimento de acolhimento

(Geborgenheit) em Deus, o que leva a um processo de alienação do ser

humano em relação a si mesmo, a Deus e ao próprio mundo. Na tentativa de

compensar a própria nulidade, o ser humano afunda-se cada vez mais em culpa

e medo de forma que “ Aus einem Dasein, das als Segen gemeint ist, wird ein

gottverfluchtes Leben, aus einer Welt, die in Gott ein Paradies sein könnte, ein

feindselige Wüstenei.”24 No segundo volume faz uma leitura desta realidade a

partir da Psicanálise (Jung e Freud), onde constata uma correspondência dos

temas abordados no texto do javista com a teoria psicanalítica do

desenvolvimento. O terceiro volume trata da pergunta de como a concepção de

um ‘Ser-aí’ (Dasein) que adoece em si mesmo, em conseqüência da culpa

humana, pode ser compreendido teologicamente. Em diálogo com a filosofia,

23
Baseio-me nessa apresentação em SOBEL, Alfred. Die Werke Drewermanns: Ein Literaturbericht. In Der Streit
um... op. Cit. P. 9-15.

22
23 23

especialmente Kannt, Hegel e Kierkegaard, mostra que “...o mal, na bíblia, não

é compreendido como situação natural nem como deficiência moral...”25.

Nestes três volumes encontramos os fundamentos exegéticos, psicanalíticos e

filosóficos de toda sua obra.

II. Críticas sociais e políticas ao Cristianismo

Estes temas foram os primeiros abordados por Drewermann após a publicação

de “Strukturen”. Em “Der Tödliche Fortschritt” (O Progresso Mortal) o

autor descreve o fato da destruição da natureza como conseqüência do

antropocentrismo da “herança espiritual do cristianismo”26. Em 1982 publica

“Der Krieg und das Christentum” (A Guerra e o Cristianismo) no qual

estuda o aspecto psíquico da agressividade e da guerra e relaciona este

fenômeno com formas de religião que favorecem à agressividade. Este mesmo

livro foi reeditado com pronunciamentos de Drewermann no período da

guerra do Golfo, com o título: “Die Spirale der Angst” (O Espiral do Medo).

Sobre o mesmo tema ainda publicou “Reden gegen den Krieg” (Discursos

contra a Guerra) com artigos e prédicas sobre a mesma guerra.

III. A Critica Ético-individual de Drewermann

Numa edição de três volumes, “Psychoanalyse und Moraltheologie”

(Psicanálise e Teologia Moral), o autor defende a tese de que a Teologia moral

24
Strukturen I, p. XCI.
25
Strukturen I, p. XCI
26
A. Sobel, Die Werke ..., in Der Streit um ... op. cit. p. 10

23
24 24

só pode fazer jus à complexidade da vida humana em cooperação com as

ciências humanas.

A partir de um estudo, mediado pela Psicanálise, sobre o medo e a impotência

da boa vontade, aponta para a necessidade da experiência da graça e da fé

pelas quais o ser humano aprende a integrar suas diferentes dimensões e entrar

em harmonia consigo mesmo para, então, poder atender à reivindicações

morais e superar sua incapacidade para amar. Esse processo exige a percepção

e a integração da realidade do inconsciente pela e na Teologia.

IV. Interpretações de Contos e Textos Bíblicos para Edificação Pessoal

Drewermann publicou um grande número de interpretações psicanalíticas de

contos, especialmente dos irmãos Grimm mas também lendas bíblicas como

por ex.: A lenda de Tobit em “Voller Erbarmen rettet Er uns” ( Cheio de

Misericórdia Ele nos Salva). Segundo Drewermann os contos contêm verdades

profundas sobre a experiência da vida humana que precisam ser decifradas.

Através deles a pessoa pode descobrir e reconhecer caminhos e descaminhos

de seu próprio processo de amadurecimento.

Nesse mesmo grupo incluo “Dein Name ist wie der Geschmack des Lebens”

(Teu Nome é como o Gosto da Vida), uma interpretação da história de Natal

sob o pano de fundo de mitos da antigüidade egípcia e grega, e “Ich steige

hinab in die Barke der Sonne” (Eu desço para dentro do Barco do Sol),

meditações sobre a morte, nas quais relaciona os símbolos morte e ressurreição

com concepções do antigo Egito, sugerindo que a crença cristã na imortalidade

da vida é uma radicalização dessa concepção.

24
25 25

Em “Die Unsterblichkeit der Tiere” (A Imortalidade dos Animais) defende a

partir da teoria da evolução e da pesquisa comportamental a tese de que “o

cristão não tem direito de negar a imortalidade aos animais”27.

V. Obras Exegéticas

A obra que teve maior repercussão no meio acadêmico é, a meu ver,

“Tiefenpsychologie und Exegese” (Psicologia Profunda e Exegese), uma

publicação em dois volumes, na qual Drewermann, juntamente com uma

crítica ao método histórico-crítico, apresenta seus fundamentos metodológicos

para uma interpretação psicanalítica de textos bíblicos. Defende nesta obra a

tese de que, para que um texto bíblico possa ser interpretado de forma

relevante do ponto de vista existencial para a vida do ser humano, é necessário

considerar a realidade do inconsciente, sua dinâmica e relação com estilos

narrativos. Conforme o autor, uma metodologia que se prende à palavra e à

história não pode fazer jus à realidade do inconsciente, por isso, é necessário

redescobrir uma hermenêutica das imagens e dos símbolos.

Devido às críticas e ataques que esta obra desencadeou, Drewermann escreveu

“An Ihren Früchten sollt Ihr sie erkennen” (Em seus frutos vocês devem

reconhecê-los). Trata-se de um livro no qual o autor procura defender-se

diante de seus críticos que o acusam de desenvolver uma a-histórica gnose da

palavra.

Drewermann publicou ainda comentários em dois volumes sobre o

“Evangelho de Marcos” e “O Evangelho de Mateus” (“Das Markus-

Evangelium” e “Das Mathäus-Evangelium”) nos quais procura fazer uma

27
A. Sobel, Die Werke..., in Der Streit um ... op. cit. p. 13

25
26 26

interpretação que proporcione uma “simultaneidade do(a) leitor(a) com o

caminho de Jesus e abre perspectivas para a cura de si mesmo [Selbst]”28.

Destes dois evangelhos Drewermann publicou também uma tradução do texto

grego: “Das Markus-Evangelium. In der Übersetzung von E.

Drewermann” ( O Evangelho de Marcos. Na tradução de E. Drewermann) e

“Das Mathäus-Evangelium. In der Übersetzung von E. Drewermann” (O

Evangelho de Mateus. Na tradução de E. Drewermann).

VI. Crítica aos Ministérios Eclesiásticos

A obra de Drewermann que, possivelmente, mais causou polêmica e gerou

conflitos com as autoridades eclesiásticas de sua Igreja foi “Kleriker.

Psychogram eines Ideals” (Clérigos. Psicograma de um Ideal). É uma obra

de 900 páginas que permaneceu durante semanas na lista de mais vendidos na

Alemanha, tendo diversas reedições.

A partir da Psicanálise freudiana o autor estuda as conseqüências psíquicas da

identificação dos funcionários eclesiásticos com as funções que recebem

dentro da estrutura da Igreja Católica. Afirma que esta identificação tem uma

conseqüência negativa na medida em que a Igreja passa a funcionar como um

superego a partir do qual a existência da pessoa é regulada e passa a ter sua

legitimidade, causando um empobrecimento da própria existência. Conforme o

autor, é uma “insegurança ontológica”29 que influencia a decisão para tornar-se

clérigo. Acusa a Igreja Católica de, através de suas estruturas e seus ideais,

aproveitar-se disso para a realização de seus objetivos supostamente sagrados.

28
A. Sobel, Die Werke..., in Der Streit um ... op. Cit. p. 13
29
Kleriker, p. 76

26
27 27

Em relação a esse fato, Drewermann propõe uma série de medidas terapêuticas

e sugere que os votos monásticos sejam redefinidos de forma existencial e

psicológica, para possibilitar que o clérigo, enquanto indivíduo, dê a esse ideal

um sentido que não implique na alienação de si mesmo.

VII. Sermões e Textos de Entrevistas

Devido à grande receptividade e sucesso de tiragem que o pensamento de

Drewermann tem também fora do meio acadêmico e eclesiástico, são

publicados muitos livros contendo entrevistas, sermões e seleções de textos de

outras obras em edições especiais e temáticas. Assim, dentre os livros de

prédicas mencionamos: “Der Offene Himmel” (O Céu Aberto); “Leben das

dem Tod entwächst”( Vida que brota da Morte); “Zwischen Staub und

Sterne” ( Entre Pó e Estrelas); “Daß alle Eins seien”( Para que Todos sejam

Um); “Und legte ihnen die Hände auf”( E lhes impôs as mãos); “Ich lasse

dich nicht, Du segnest mich denn” (Não te largarei, se não me abençoares).

Das publicações contendo entrevistas e seleções de textos, destacamos as

seguintes: “Wort des Heils, Wort der Heilung” (Palavra da Salvação, Palavra

da Cura); “Gespräche über die Angst” (Conversas sobre o Medo); “Sind

Propfeten dieser Kirche ein Ärgernis?” (São Profetas desta Igreja um

incômodo?); “Was uns Zukunft gibt” ( O que nos dá futuro ); “Zeiten der

Liebe” ( Tempos do Amor); “Worte für ein Unendecktes Land” (Palavras

para uma Terra Desconhecida).

VIII. Publicações sobre o Conflito com Autoridades Eclesiásticas

27
28 28

Em “Worum es eigentlich geht” ( Do que se trata mesmo ) Drewermann

apresenta seu ponto de vista sobre seu conflito com as instâncias eclesiásticas a

partir de cartas e relatos de diálogos e em “Was ich denke” ( O que eu penso)

descreve aspectos de suas experiências biográficas que influenciaram o

desenvolvimento de suas posições teológicas.

b) A Ressonância
A obra de Drewermann teve e continua tendo uma grande ressonância no meio

acadêmico e eclesial, mas sobretudo uma grande aceitação no meio popular.

Esse fato é um indicativo de que o autor consegue, apesar da profundidade de

seus pensamentos teológicos, aproximar-se da experiência de vida e

religiosidade do público leigo. Provavelmente porque sua metodologia na

abordagem das questões religiosas é articulada com experiências humanas bem

elementares e conhecidas, como por exemplo, o medo. Igualmente a reserva ou

criticidade com que é assimilado no meio acadêmico pode ser compreendida

como evidência de que se trata de um fazer teológico com aspectos não

convencionais. Da mesma maneira a censura a ele imposta pela hierarquia da

Igreja Católica pode ser um sinal de que seu pensamento teológico implica um

questionamento de questões fundamentais da Teologia e estrutura da Igreja.

Quais seriam, dentro dos respectivos níveis, os aspectos que caracterizam a

Teologia de Drewermann? No plano popular o grande interesse e procura que

as obras e pensamento de Drewermann têm, são um indicativo para o fato de

que elas abordam questões relevantes para a vida das pessoas da atualidade.

Questões essas para as quais as pessoas esperam que estas sejam refletidas.

28
29 29

Essa procura sinaliza, por outro lado, que essas questões e temas não estão

sendo abordado a contento nos espaços em que isso deveria acontecer30.

Certamente não se trata apenas de questões mas, sobretudo, de metodologias

de abordagem. Neste sentido impõe-se a pergunta: No que consiste então o

novo que caracteriza a Teologia de Drewermann e que se apresenta como uma

resposta a uma certa demanda religiosa? Certamente encontraremos aqui

razões diversas. No entanto, parece-nos que uma das razões do caráter atrativo

de sua Teologia reside no fato de apresentar uma interpretação da condição

humana, uma Antropologia influenciada pela Psicanálise, que resulta, para

Drewermann, na promessa da possibilidade de integração e harmonização de

dimensões conflitivas do ser humano. Nessa sua abordagem descreve o ser

humano procurando compreendê-lo em suas vicissitudes. Sua abordagem e sua

linguagem têm caráter afetuoso, compreensivo, porque não é marcada e

definida a partir de pressupostos morais e dogmáticos, atingindo, assim, as

pessoas em sua existência, seus sentimentos e experiências. Além dessa sua

compreensão do ser humano Drewermann ainda apresenta uma eloquência

convincente em relação às possibilidades do ser humano de superar essas

vicissitudes a partir de uma postura de fé. Seus sermões e suas interpretações

de textos bíblicos culminam num apelo para que as pessoas ousem assumir

uma postura afirmativa em relação a si mesmas e à sua vida. Igualmente as

críticas de Drewermann em relação à estrutura burocrática da Igreja enquanto

instituição, com sua rigidez dogmática e clericalismo, encontram eco em

grande parte da população que, apesar de não ser a-religiosa, não consegue se

identificar com esta instituição.

30
Esta, aliás, uma das principais acusasões de Drewermann à Teologia cristã européia.

29
30 30

Essa forma de pensar o religioso e fazer Teologia vem acompanhada de uma

forte crítica a outros métodos teológicos, especialmente o método da exegese

histórico-crítica, que Drewermann não se cansa de apontar como a causa da

suposta incapacidade da Teologia de interpretar o significado religioso e a

relevância existencial de textos bíblicos. Em virtude dessa posição

Drewermann tem recebido fortes críticas da Teologia acadêmica. Porém, essa

não é a única causa da polêmica em torno de Drewermann. A questão que mais

tem recebido atenção de outros/as teólogos/as é o próprio método usado por

Drewermann, ou seja, a tentativa de relacionar Psicanálise e Teologia. Não se

trata de uma oposição a essa tentativa em si, mas, entre outras, à pretensão de

usar a interpretação psicanalítica do sonho e do mito como chave metodológica

para a totalidade da exegese31.

Em relação à hierarquia da Igreja Católica o pensamento de Drewermann,

especialmente suas posições em relação ao aborto, ao nascimento virginal de

Jesus, ao Jesus histórico e a origem e fundação do ministério sacerdotal,

suscitou fortes reações que culminaram em um longo processo pelo qual foram

suspensos seus direitos de cátedra e de sacerdócio.

31
Blank, J. Die Angst vor dem Sturz ins Bodenlose. In Der Strei um... op. cit. p. 21

30
31 31

31
32 32

2.0 O Método Teológico de E. Drewermann

Drewermann é o teólogo da atualidade mais conhecido na Alemanha. Também

o mais lido. Ao ler suas obras seus leitores são confrontados com uma forma

de articulação teológica que os cativa e os atrai os leitores. Sua forma de

abordar as questões religiosas é de alguém que está profundamente convicto da

importância das posições que quer e precisa defender. Esse jeito apaixonado

provoca entusiasmo e, também, muitas irritações e polêmicas.

Perguntar pelo método teológico de Drewermann é perguntar por esse jeito de

fazer Teologia. Como ele se constrói? Quais as convicções básicas que

funcionam como fundamento dessa construção? Qual sua intencionalidade? A

essas questões quero, a seguir, propor algumas respostas.

Não é necessário ter lido muitos textos de Drewermann para perceber seu

empenho por uma articulação da Teologia em vista das condições e estruturas

da existência humana, de forma que a Teologia possa ser experimentada pelo

ser humano de hoje como relevante para sua existência. Esse é seu propósito.

Drewermann insiste na afirmação de que o discurso teológico da atualidade

carece de um sentido experimentável, vivo, ao ser humano da atualidade. Por

32
33 33

isso, a obra de Drewermann pode ser definida como uma tentativa de recuperar

para o fazer teológico uma qualidade que não reconhece no que considera a

Teologia acadêmica e eclesial da tradição cristã ocidental. Ao mesmo tempo

em que procura elaborar uma metodologia teológica com a qual pretende

reabilitá-la para que possa realizar o que considera sua tarefa, Drewermann

também apresenta o que considera os limites e deficiências dessa Teologia.

Nesse sentido, pode-se reconhecer em sua obra um esquema que consiste em

três momentos: 1. a caracterização do que considera a condição existencial

humana e as estruturas que a determinam (aspecto antropológico); 2. a

reflexão em torno da pergunta pela forma como o discurso teológico pode ser

experimentado ( aspecto metodológico da Teologia ); 3. a descrição do que

consiste a relevância do teológico (aspecto do conteúdo do teológico). Esse

esquema perpassa quase que toda sua obra, variando apenas a ênfase que dá a

um ou outro destes momentos.

Constata-se que o pensamento de Drewermann se construiu ao longo de um

processo de questionamentos e conflitos com questões religiosas e teológicas

no decorrer de sua vida. Na medida em que foi trabalhando essas questões

foram se delineando as características e posições que determinaram seu

método teológico. Para trabalhar essas questões encontrou em outras áreas do

saber os elementos que lhe proporcionaram as categorias com as quais

desenvolveu seu método. Dentre essas destacam-se a Filosofia Existencialista,

a Psicanálise Freudiana e Psicologia Analítica de C. G. Jung e o Estudo

Comparativo das Religiões.

33
34 34

A seguir apresento tópicos que constituem os eixos fundamentais do

pensamento de Drewermann, procurando evidenciar a contribuição de aspectos

dessas outras áreas do saber no conjunto do pensamento.

2.1 - A Questão Antropológica e Dogmática na Obra de Drewermann

Em seu livro “Was ich denke”32 (O que eu penso) Drewermann descreve

aspectos que caracterizam o percurso e a evolução de seu pensamento. Um

destes aspectos se refere à questão da guerra, diante do qual revela inquietação

e inconformismo levando-o a procura pela compreensão do fenômeno. Ao

longo de seu processo de estudo da Teologia e durante seu ministério

sacerdotal, desenvolve uma argumentação com a qual contesta os argumentos

teológicos e eclesiásticos que justificam a guerra e procura defender o direito

de liberdade de consciência como prioritário à obediência a verdades

institucionais. Diante do fato de que o ser humano se deixa arrastar para dentro

da lógica da violência - o que denomina de princípio político33, e da restrita

eficiência dos esforços pacifistas, Drewermann constata que o ser humano

“simplesmente é assim”.34 Com essa percepção pessimista, passa a procurar

pelas razões teológicas, psicológicas e sociais dessa postura e,

simultaneamente, pelas possibilidades religiosas de quebrar essa compulsão.

Numa longa procura através de leituras de textos sagrados e filosóficos, vai

encontrar na Filosofia existencialista de Kierkegarrd e na leitura dos romances

32
Drewermann, E. Op. Cit.
33
idem, p. 31.

34
35 35

de Dostojewski a categoria medo que lhe permite entender esse aspecto do ser

humano. A partir dela consegue compreender o ser humano em sua angústia,

seu desespero. O mal, os descaminhos e as vissicitudes do comportamento,

têm sua origem no medo. Afirma que essa mesma categoria é desconhecida na

Teologia, mas que é a fundamental de sua hermenêutica. É essa mesma

categoria que lhe permite desenvolver outro pressuposto constitutivo de sua

metodologia: para que um texto religioso se torne relevante, a sua

interpretação deve ser existencial, isto é, deve proporcionar uma imediatez ou

contemporaneidade (Gleichzeitigkeit ) do leitor com o texto. Com essa

categoria Drewermann se propõe a reler as escrituras sagradas. Desse

empreendimento resulta sua obra mais importante “As estruturas do Mal”35.

Trata-se de um estudo do relato javista ( Gn 2 - 11) a partir do qual desenvolve

os fundamentos de sua reflexão dogmática. Numa perspectiva exegética,

psicanalítica e filosófica reflete sobre a condição humana descrita nesse relato.

Pela pesquisa exegética entende o relato como “...a reconstrução da escalação

total do mal”36. Segundo Drewermann, o relato descreve como, de forma

crescente, o mal perpassa todos os níveis da existência humana. Na origem

desse mal estaria a percepção da contingência e finitude humana que instala

um sentimento de inferioridade e repugnância pela própria existência. O

desamparo que o ser humano experimenta é, para Drewermann, fonte de

dúvida e desespero. O esforço desesperado de superar essa condição com as

próprias forças só leva a uma escalação desse sentimento. A condição humana

34
“Wann endlich wird man begreifen, dass Menschen allerorten so sind und sein können?” Drewermann, E. Was
ich denke. Op. Cit. P. 36
35
“Strukturen des Bösen” . op. cit.

35
36 36

sob o domínio do medo como o estar afastado de Deus, portanto, como o

pecado, e o esforço inútil de superar esse estado como o desejo de ser igual a

Deus.

Uma leitura psicanalítica do relato javista permite a constatação de que há uma

proximidade muito grande entre a descrição do relato com as fases do

desenvolvimento do indivíduo. Os diferentes momentos do relato

correspondem a diferentes psicopatologias que podem se desenvolver no

percurso do desenvolvimento humano. Numa perspectiva psicanalítica os

transtornos causados pelo medo e o esforço de ser igual a Deus podem ser

compreendidos como doença neurótica. No sentido teológico as formas de

neurose são neuroses diante de Deus. Sob o domínio do medo, compreendido

como o pecado do distanciamento de Deus, o ser humano não pode “arruinar-

se mais do que quando procura revestir seu supérfluo, desamparado e

injustiçado ‘Ser-aí’ sem Deus a partir de seu próprio esforço, com o brilho de

uma razão e justificativa”37. Afirma que a existência de fé em Deus altera

quadros psicopatológicos. Com isso quer mostrar que se, sob o ponto de vista

cintífico/acadêmico, dogmática e Psicanálise são campos distintos, sob a

perspectiva existencial tratam da mesma experiência.

Nessa aproximação entre essas duas áreas procura mostrar que a categoria

teológica pecado. pode ser relevante para a compreensão de fenômenos

psicológicos e, simultaneamente, o conhecimento da dinâmica psicológica

36
Martin, G. Marcel. Eugen Drewermanns “Struktur des Bösen”... in: Theologische Literaturzeitung, pp321. Op.
cit.
37
Drewermann sugere que sem Deus a existência do ser humano carece de um ‘porquê’, uma razão
(Notwendigkeit) que justifique (Berechtigung) sua existência. O esforço de dar sentido e razãoà própria
existência a partir de si mesmo, necessáriamente, culmina num fracasso trágico ou, numa psicopatologia. Veja:
Drewermann,E. “Strukturen des Bösen”. Vol. II, p. XVI

36
37 37

pode proporcionar o entendimento da mecânica da autodestruição posta em

movimento pelo pecado. Nessa sua abordagem fica evidente que a Psicanálise

freudiana permite a Drewermann mostrar como “... o ser humano, em sua vida

sem e contra Deus, se destrói em sua totalidade”38.

Enquanto encontra na Psicanálise freudiana a descrição dos mecanismos pelos

quais explica o processo de adoecimento do ser humano sob o domínio do

pecado, na Psicologia profunda de C. G. Jung, Drewermann encontra os

subsídios para sua teoria de que no próprio psiquismo se encontram as imagens

que Deus colocou na alma humana, para através delas se revelar. Os dogmas e

doutrinas cristãos estão ancorados nos desejos e esperanças da psique humana,

pela qual foram preparados. No entanto, enquanto Jung se restringe a afirmar

que as imagens arquetípicas são expressão de uma realidade subjetiva, mesmo

portadoras de um sentido e intencionalidade, Drewermann afirma que à essas

percepções subjetivas corresponde uma realidade objetiva. Pela fé a realidade

objetiva dessas imagens subjetivas pode ser apreendida e, assim, o medo pode

ser superado. Deus não é, portanto, uma realidade subjetiva, uma projeção,

mas uma “pessoa absoluta”39 com a qual o ser humano está em relação. Nessa

relação encontra o remédio capaz de curar o seu medo da liberdade. Essa

relação se expressa na confiança de que para além de todas ambivalências do

que é humano, existe uma vontade, um desejo e uma força que quer que se

esteja aí. Essa vontade, Drewermann denomina Deus.

Assim, para Drewermann a função da religião é realizada quando consegue

superar o medo pela confiança em Deus.

38
idem p. XXI
39
Drewermann, TuEx, p. 43.

37
38 38

2.2. A Questão Hermenêutica na Obra de Drewermann

Na introdução à Tiefenspsychologie und Exegese vol. I, Drewermann faz sua

a afirmação do diretor I. Bergmann a respeito de seu filme “Sonata de

Outono”, na qual este refere-se à superação do medo humano, como o tema

essencial da religião.40

No conjunto de sua obra, Drewermann procura caraterizar e redescobrir esta

dimensão da religião. Sua obra esta marcada pela tentativa de descrever uma

hermenêutica que possibilite uma abordagem da religião de forma que esta não

seja um impecilho mas que permita ao ser humano da atualidade experimentar

sua dimensão41.

Neste sentido, fica evidente sua proximidade com Kierkegaard quando

enfatiza que ao interpretar textos religiosos o leitor deve tornar-se um

contemporâneo deste no sentido existencial. Por isso afirma que, para atender

essa exigência pela contemporaneidade do compreender de Kierkegaard, o

ponto de partida para uma interpretação do sentido de textos bíblicos não deve

ser procurado no mundo dos fatos exteriores mas “...no interior do espaço das

experiências de estados da alma (seelische)”42. Ao contrário, uma

interpretação baseada na preservação de uma distância histórica, mediada pelo

conhecimento e pelas informações não alcança seu objetivo. Para Drewermann

uma interpretação de textos religiosos só é religiosa quando é interior.

40
Veja: Tiefenpsychologie und ... , VOL I, p. 12
41
Ibidem p. 15
42
Ibidem p. 14 “...im inneren Erfahrungsraum seelische Zustände”

38
39 39

Neste propósito Drewermann vai encontrar na Psicologia Profunda um

instrumento para elaboração de sua metodologia. Ao descobrir e interpretar o

passado que se manifesta nos sonhos como expressão simbólica da

personalidade, a Psicologia profunda abriu caminhos para a compreensão da

atemporalidade das tradições religiosas43. O caminho da Psicanálise freudiana

até a complexa psicologia de C. G. Jung mostrou que aquilo que acontece

numa terapia individual - onde as imagens oníricas de medos neuróticos,

graças a um crescimento de confiança são substituídas por símbolos que

possibilitam e expressam o processo de cura - reflete o processo de cura que,

de modo arquetípico, também se constata na vida dos povos. Por isso, afirma

Drewermann, as imagens dos sonhos têm uma “qualidade religiosa”44.

Salienta, portanto, que as imagens e sentimentos são mais importantes que

palavras e ações, que a religião é anterior a fala: “ A imaginação onírica e não

o pensamento conceitual é que determina a experiência fundamental do

religioso, e sempre o pensamento é posterior e superficial em relação à

imagem”45.

Assim, como veremos mais detalhadamente no próximo capítulo deste

trabalho, a hermenêutica de Drewermann apresenta as seguintes ênfases: a) a

busca pela contemporaneidade do leitor com o texto; b) a descoberta de uma

constante antropológica - o medo; c) a existência de algo com valor

permanente (Ewig-Gültige”) para todas épocas e lugares; d) uma interpretação

tipológica e simbólica dos conteúdos dos textos.

43
“Tradição” no sentido dos contéudos que foram transmitido.
44
Tiefenpsyschologie Vol I , p16
45
Ibidem p. 16-17. “Die träumende Imagination, nicht das begriffliche Denken bestimmt die Grunderfahrung des
Religiösen, und stets ist der Gedanke später und oberflächlicher als das Bild”.

39
40 40

Drewermann encontra no pensamento existencialista de Kierkegaard, na

Psicologia profunda de Jung e na Psicanálise freudiana e, ainda, no estudo

comparativo das religiões as referências teóricas para desenvolver essa sua

hermenêutica.

Para desenvolver essa hermenêutica, entendida como uma interpretação

religiosa do religioso, Drewermann afirma que a hermenêutica teológica do

religioso, para além de dialogar com os métodos da pesquisa filológica,

sociológica ou histórica, precisa dialogar com outras ciências e metodologias

de pesquisa como a Psicologia, Filosofia e a Medicina, pois não é suficiente

interpretar textos sem desenvolver uma compreensão do humano. Esta

compreensão do humano possibilitará o reconhecimento das peculiaridades e

características de estilos narrativos próprios da experiência religiosa como

pressuposto para uma interpretação religiosa do religioso. Sem esses

pressupostos a interpretação se concentrará em questões de outra ordem

(históricas, sociológicas etc.).

2.3 A Questão da Ética na Obra de Drewermann

A reflexão de Drewermann a respeito da ética está primordialmente

influenciada pelas experiências, em sua trajetória pessoal, com a pergunta

pelas razões do mal. Novamente em seu livro “Was ich denke”46 Drewermann

relata suas experiências diante do confronto com a realidade ambígua,

contraditória da vida humana, de tal forma que se sentia incapaz de, com seus

46
op. cit.

40
41 41

recursos teológicos e pastorais, responder de forma justa e adequada - sem ferir

a humanidade - às questões com as quais as pessoas se debatem. É essa

frustração que o leva à Psicanálise na tentativa de encontrar maiores subsídios

para a compreensão do humano. Afirma Drewermann: “ Na escolha entre

julgar ou compreender essas pessoas, eu optei por entendê-las....”47 e,

continuando, “Pelos próprios seres humanos que não se acertam com sua vida,

eu me propus a trabalhar uma síntese a partir da exegese bíblica, Psicanálise e

dogmática, que permitisse usar o conceito de pecado para a compreensão do

desespero e falta de alternativa do ser humano, ao invés de ver nele apenas

uma alavanca de acusações de culpa e disciplina eclesiástica”48.

AQUI “FUNCIONÁRIOS DE DEUS” ↓


Assim, a tese fundamental que Drewermann defende em sua abordagem das

questões éticas é que no campo do religioso deve haver uma suspensão do

ético. Elabora essa posição a partir da perspectiva do processo terapêutico, no

qual, para que haja cura, se impõe a necessidade da suspensão de exigências

morais. Antes de poder corresponder à exigências morais, o ser humano

precisa experimentar a possibilidade de poder ser, existir. Para Drewermann

isso significa que o ser humano precisa saber que é absolutamente desejado e

reconhecido por Deus. Para se tratar de questões éticas, não é possível ater-se

à lógica do pensamento legal, sendo necessário penetrar no âmbito da

47
Drewermann, “Was ich denke” op. Cit. p. 62
48
Idem p. 66 “Schon um der Menschen willen, die mit ihrem Leben nicht zurecht kammen, nahm ich mir vor,
eine Synthese aus Bibelexegese, Psychoanalyse und Dogmatik zu erarbeiten, die es erlaubte, den Begriff der
‘Sünde’ zum Verständnis der Not und der Ausweglosigkeit der Menschen zu verwenden, statt darin weiter nur
einen Hebel zu Schuldvorwürfen und Kirchenzucht zu erblicken”.

41
42 42

ontologia do religioso49. Influenciado por Kierkegaard50, Drewermann

reivindica a primazia da fé sobre a ética. Enfatiza, assim, que para além da

necessária ordem no campo das relações sociais, a relação com Deus é

decisiva. Fundamenta sua reflexão a partir da noção do trágico, que só pode ser

compreendido na concretude de uma situação e não na visão abstrata da lógica.

O conhecimento da realidade pulsional e da psicodinâmica do

desenvolvimento humano relativa o pressuposto da autonomia da consciência

e vontade humana. Os fracassos morais ou éticos seriam

decorrentes do conflito entre a condição individual e as

exigências coletivas. Segundo Drewermann, existem

posturas determinadas pelo inconsciente que tornam

alguém culpado inocentemente. Nesse fato Drewermann justifica

uma compreensão dogmática e não ética do pecado original.

2.4 A Crítica de Drewermann à Teologia Cristã Acadêmica


Ocidental

É possível reconhecer que o pensamento de Drewermann na mesma medida

em que se apresenta como a tentativa de elaboração de uma nova metodologia

teológica, também se constrói a partir de algumas críticas à Teologia cristã

acadêmica européia. Essa críticas esboçam hipóteses e questões que

alicerceiam toda sua obra. Essas hipótese referem-se a certos temas

49
Drewermann. PuM, vol I, p. 79
50
Especialmente no livro “Temor e Tremor”.

42
43 43

sobre os quais afirma que, pelo fato de não terem sido assimilados

adequadamente ou, por terem sido rejeitados, ao longo da história

do Cristianismo - mas especialmente pela Teologia acadêmica

européia - tornaram-se as razões pelas quais a Teologia acadêmica

transformou o falar religioso numa fala estéril. Esses temas

cristalizam as questões que se colocam na pergunta pela relação

entre Teologia e Psicanálise. Para Drewermann, somente a

articulação e elaboração dessas questões pela Teologia vai permitir

que se abram portas para a superação da “...infeliz divisão no falar

de Deus e no falar do humano, o abismo entre razão e sentimento e

o dualismo do querer e do dever na teoria e na prática... ”51.

A seguir apresento algumas dessas questões.

2.4.1 Estranheza da Teologia cristã em relação ao inconsciente do


psiquismo humano

Para abordar a questão da realidade do inconsciente em sua relação com a

Teologia, Drewermann reflete a respeito do esforço da Teologia cristã em

definir sua diferença em relação com às outras religiões, especialmente as

chamadas religiões pagãs. Esse esforço por diferenciação pode ser identificado

já nos primeiros séculos do Cristianismo, quando os apologetas cristãos

propõem que tudo aquilo que “... nas religiões de todos outros povos se

51
Drewermann, PuM, I, p. 9. “...unheilvolle Zerrissenheit im Sprechem von Gott und im Sprechen vom
Menschen, die Kluft zwischen Verstand und Gefühl und der Dualismus von Wollen und Sollen in
Theorie und Praxis...”

43
44 44

expressa como desejo, sonho, saudade ou projeção, tornou-se realidade e

verdade em “Cristo”...”52. Ao constatar as profundas semelhanças entre os

temas das religiões de outros povos e os dogmas e temas cristãos, teólogos

cristãos explicaram essa proximidade descrevendo as compreensões, imagens e

mitos desses povos como criações do diabo para obscurecer o caminho da

verdade quando da vinda do verdadeiro filho de Deus.53

Conforme Drewermann esse esforço resultou, sobretudo, numa falsa

historização do mito; numa demonização do psiquismo humano e na

transformação da pregação de Jesus acerca do Reino de Deus em ideologia da

Igreja.

Para a Teologia cristã estava dada a tarefa de explicitar que tudo aquilo que

fazia parte do imaginário mitológico dos povos se realizou, de fato e

historicamente, em Jesus Cristo, cabendo aos teólogos a tarefa de provar que a

Bíblia se fundamenta em verdades históricas. Assim, perdeu-se a compreensão

do mito enquanto explicação da história e se contrapôs a relação de mito e

história como a relação de ficção e fato. O mistério do divino passou a ser

objeto de pesquisa histórica. Porém, afirma Drewermann, “... desse Deus que é

sujeito absoluto, que nunca pode ser transformado em objeto...não é possível

falar a não ser que se sirva da linguagem simbólica do mito...”54. A verdade do

mito consiste, para Drewermann, na explicação, ou seja, no fato de dar sentido

à experiência humana. Assim, por exemplo, menciona que a afirmação de que

Jesus ressurgiu dos mortos não quer informar o que aconteceu com o corpo de

52
Drewermann, E. Das seelenlose Sprechen von Gott. P. 25 In: Publik -Forum, Nr.8, 24. April 1998.
53
Idem, p. 26.
54
idem p. 26

44
45 45

Jesus, mas motivar para uma fé na vida eterna contra a realidade da morte.

Toda mensagem do Jesus de Nazaré só pode ter sua validade para todos os

tempos e lugares quando compreendida e comunicada na forma de imagem e

símbolo, portanto de mito. Por isso é necessária uma nova aprendizagem da

linguagem poética do mito e da experiência simbólica para que a Teologia

possa ser uma comunicação existencial e não comunicação de fórmulas de

saber catedráticas.

Drewermann sugere que a assimilação cultural teria menos conseqüências

negativas se as imagens mitológicas não fossem compreendidas como manobra

diabólica mas como sendo imagens que fazem parte do próprio ser humano.

Por isso não é possível fazer Teologia sem Antropologia e Psicologia. Ao

demonisar o mito demonisaram-se também as forças que criam imagens

mitológicas na alma humana alienando, assim, o ser humano e seu psiquismo.

Para Drewermann essas imagens não se confundem com o próprio Deus, de

forma que Ele se torne um produto do psiquismo, mas apontam um caminho

na direção a Deus onde a atormentada criatura humana encontraria a

possibilidade de se transformar de apenas um produto da natureza numa

criatura de Deus. Porém, com a negação de todos símbolos religiosos nas

camadas profundas da psique humana qualificou-se também o mundo dos

contos, sonhos, mitos como algo contrário a Deus, alienando o religioso da

psique e fomentando a fé na reconciliação do homem em Cristo sob o

fundamento de uma luta constante contra si próprio, contra tudo que é gentio

na psique humana.

45
46 46

2.4.2. A Parcialidade Racionalista da Teologia

Paralelamente à recusa aos elementos míticos, Drewermann constata na

Teologia cristã dos primeiros séculos uma aproximação da Teologia ao

racionalismo da Filosofia grega. Assim, junta-se ao antimiticismo o

racionalismo grego, ambos provenientes de uma estrutura fortemente

patriarcal. Com seu desejo racionalista a Teologia acabou, por fim, reprimindo

a própria racionalidade tanto como com sua racionalidade religiosa depreciou

o sentimento humano. Tanto que no Iluminismo este se voltou contra a

religião.

Para Drewermann isso é lamentável, pois assim como um simples sonho é

mais eficiente para dar um diagnóstico da situação da pessoa - muito mais

exato do que muitos argumentos e exposições racionais - assim também pode-

se afirmar que os símbolos e conteúdos da religião são, de uma forma

inconsciente, visionária, uma diagnose da vida humana. Mais importante que

as palavras são as imagens e, mais ainda os sentimentos que a religião evoca.

Assim, sugere que a doutrina do pecado original apresenta um diagnóstico

fundamental da condição existencial humana. Pois ela se aproxima da opinião

da Psicanálise a respeito do medo como origem dos desencaminhamentos do

coração humano. Essa imagem é um modelo para aproximar Teologia e

Psicologia profunda.

Infelizmente, em vez de fazer dessa imagem um instrumento que facilitasse

compreender o ser humano em sua impotência e exposição (Ausgeliefertheit)

ao medo, a Teologia tornou essa imagem um elemento de auto opressão e

divisão da personalidade.

46
47 47

Também a Psicologia profunda pode aprender desta imagem a mudar seu

conceito antropológico de que o medo não tem sua origem primeiramente

exterior e depois interiorizado, mas que ele é essencial ao ser humano

decorrente de sua liberdade. 55

2.5 Influências e Caracterização do Pensamento Teológico de

Drewermann a partir da Teoria Psicanalítica

Drewermann usa o conceito ”Tiefenpsychologie” (Psicologia

Profunda) como um conceito abrangente sob o qual compreende a

Psicanálise de Freud, a Psicologia Analítica de C. G. Jung e o

método fenomenológico da hermenêutica do ‘ser aí’ (Dasein)

assim como foi desenvolvido pela escola analítica do ‘‘Ser-aí’’ de

M. Boss.

Segundo Drewermann esses métodos se complementam no esforço para a

compreensão de narrativas bíblicas e temas religiosos. A seguir procura

descrever de forma sucinta alguns aspectos, sem esgotá-los, das referidas

concepções psicanalíticas que são sua referências.

A Psicologia Profunda de C. G. Jung na Obra de


2.5.1.
Drewermann

55
Veja Drewermann. PuM, I, p. 12.

47
48 48

A Psicologia Profunda de C. G. Jung afirma que no seu inconsciente o ser

humano interpreta a si e sua existência de forma religiosa. Aceitando-se essa

afirmação como verdadeira ela terá conseqüências para a compreensão de

textos religiosos. Por isso Drewermann encontra nela subsídios para

desenvolver uma hermenêutica teológica que propicie uma compreensão

religiosa do humano e uma compreensão imediata das expressões mitológicas

da religião, sem que seja necessário uma re-interpretação (Umdeutung) para

que o ser humano hodierno compreenda o significado das expressões

religiosas. Fica evidente aqui o pressuposto, importante para a Teologia de

Drewermann, de que expressões religiosas têm uma verdade com validade

permanente.

Em termos metodológicos Drewermann situa as formas míticas das

manifestações religiosas em correlação com a realidade psíquica do ser

humano. A forma mítica não é considerada como algo que apenas descreve

verdades que se encontram por trás da forma, devendo por isso ser superada no

sentido de uma demitologização, mas como um meio que expressa essa mesma

verdade da realidade humana. A compreensão junguiana do inconsciente e a

teoria dos arquétipos que o habitam, permitem que não se distinga entre mito e

querigma. Cada mito é querigmático e todo querigma se serve da linguagem da

religião, portanto, do mito.

A Psicologia Profunda de C.G. Jung compreende o inconsciente e seus

arquétipos como um material a partir do qual o ser humano pode encontrar

forças que permitem sua integração e o processo de sua individuação. Quando

48
49 49

Drewermann procura descrever e desenvolver uma hermenêutica que permita a

redescoberta do significado do religioso para a condição existencial humana,

este significado se expressa numa experiência de bem estar (gestimmtheit) do

ser humano consigo mesmo, que não tem origem nele próprio, mas é resultado

de uma relação com algo exterior, ou seja, Deus. O significado do religioso,

em resumo, da salvação, seria este bem estar pleno a partir da relação com

Deus.

A partir do exposto acima podemos constatar uma proximidade entre a

compreensão de salvação em Drewermann e de cura em Jung. A teoria

junguiana, porém, sugere uma compreensão da religião como fenômeno intra-

psíquico, enquanto que para Drewermann, Deus existe e permanece alguém

absolutamente outro.

2.5.2 A Psicanálise Freudiana no Pensamento de

Drewermann

Ao longo da obra de Drewermann podemos constatar que diferentes aspectos

do pensamento psicanalítico são priorizados de forma diferenciada. Em “Was

ich denke”56 Drewermann afirma que chega à Psicanálise após constatar o

completo desconhecimento e desconsideração da realidade psíquica na

compreensão das atitudes do sujeito, tematizado na reflexões éticas e morais

da Teologia. É para tentar entender o ser humano ao invés de julgá-lo, que

56
op. Cit p.62

49
50 50

Drewermann recorre à Psicanálise e encontra na noção fundamental dessa

teoria, ou seja, na noção do inconsciente, o conceito que lhe permite uma

compreensão do ser humano, enquanto sujeito dividido entre sua vontade

racional e as forças pulsionais que nele agem. O ser humano passa a ser visto

como um sujeito em conflito. É esse conflito que estrutura o sujeito e o

determina em suas angústias, sua capacidade de amar, de confiar e, enfim, em

toda sua qualidade de vida.

A teoria psicanalítica se constitui como uma teoria que descreve as diferentes

conseqüências desse conflito, referindo-se a elas como psicopatologias, e

propõe intervenções - terapias - com a finalidade de capacitar o sujeito a lidar

com elas de forma que causem o menor sofrimento possível.

Nesse sentido, a Psicanálise é uma prática de escuta do processo conflitivo no

psiquismo humano que resulta na construção de hipóteses sobre os

mecanismos atuantes nesse processo, cujo conhecimento permite intervenções

que alterem esse mesmo processo.

Para compreender e descrever o ser humano em sua dimensão religiosa e ao

interpretar textos religiosos, Drewermann se apoia nesse conhecimento. Assim,

por exemplo, a compreensão da função do sonho, a noção das fases do

desenvolvimento infantil ( oral, anal, genital), a concepção do complexo de

Édipo; a noção do aparato psíquico constituído por Id, Ego e Superego, como

também partes da crítica da religião de Freud, são assimiladas por

Drewermann e refletidas em relação às experiências e manifestações religiosas

do ser humano. Para Drewermann os textos religiosos apresentam questões nas

e pelas quais se manifestam os mesmos mecanismos observados pela

Psicanálise, porém expressos de forma simbólica. Mais ainda: Drewermann

50
51 51

entende que textos religiosos são produzidos e determinados por esse

processo. Porém, afirma que na mesma medida em que textos sagrados são a

expressão simbólica dos conflitos psíquicos e suas conseqüências prejudiciais,

eles contém também uma sabedoria que indica possibilidades de superação

desse conflito. Essa possibilidade de superação de um estado ou condição

patológica encontra na fé religiosa, testemunhada nos mesmos textos, o

‘remédio’ para tal situação. Assim, por exemplo, como já mencionado, o

relato javista é interpretado por Drewermann como a descrição das

conseqüências do medo e considerado, numa perspectiva psicanalítica, como

uma tentativa de compensação de um sentimento de inferioridade que se

apresenta como manifestação neurótica. Drewermann faz uma leitura de

textos bíblicos na perspectiva dos conflitos psíquicos e seus mecanismos,

colocando aspectos da teoria psicanalítica como a chave hermenêutica.57

No entanto, alguns elementos da teoria psicanalítica, como por exemplo a

compreensão do sonho, são complementados por Drewermann.

2.5.3 A Compreensão Freudiana e Junguiana do Sonho e sua


Relevância na Metodologia de Drewermann

Drewermann enfatiza que apesar de S. Freud reconhecer a linguagem

simbólica do sonho como “bem geral da humanidade”58 e qualificá-lo como a

via regia para o inconsciente, ao identificar o inconsciente com o material

psíquico recalcado compreendeu o sonho e seus elementos como um material

57
Assim, por exemplo, todo Vol II de “Strukturen des Bösen”( Estruturas do Mal) op. cit. é uma interpretação do
relato javista numa perspectiva psicanalítica.
58
TuEx. P. 156

51
52 52

que em si é impróprio e precisa ser interpretado para que se chegue aos

“estímulos pulsionais originais”59 O material simbólico do sonho estaria a

serviço da censura do superego com a função de encobrir estímulos pulsionais

diante da consciência. O significado do sonho enquanto sintoma neurótico

pode ser compreendido quando o trabalho do sonho é dispensado pela

descoberta das determinantes causais das imagens oníricas.

Drewermann vê aí um reducionismo do simbolismo onírico a certos desejos

infantis ou primitivos.

De acordo com esta compreensão e metodologia é inevitável que, pelas

relações que o sonho tem com fenômenos religiosos, Freud compreendesse a

religião em seu conjunto como expressão de uma satisfação simbólica dos

desejos, imposta pela cultura. Assim, afirma Drewermann, essa metodologia

reducionista de interpretação dos sonhos, embora muito eficiente para tornar

consciente a formação de sintomas neuróticos na vida de indivíduos e na

sociedade, implicou numa compreensão da religião como patologia social.

Embora reconhecesse a linguagem simbólica do sonho como um modo arcaico

de expressão, não criado pela cultura mas um bem comum da humanidade,

esse aspecto não mereceu a maior atenção de Freud em seu trabalho sobre o

sonho. Ao contrário de Freud, para Jung é esse aspecto que dá ao sonho sua

relevância em sua psicologia. Pois esse fato é uma indicação de que o

conteúdo dos símbolos oníricos não consiste apenas em material reprimido da

patogênese individual, de forma que grande parte do inconsciente não é

conteúdo recalcado mas um conteúdo que ainda não chegou à consciência.

Esse isolamento e não integração poderia se manifestar como neurose.

59
TuEx p. 155

52
53 53

Não tendo sua origem nas contradições entre a cultura e necessidades

pulsionais humanas, Drewermann descreve a compreensão junguiana dos

símbolos oníricos como “... expressão de conteúdos transcendentes nunca

plenamente acessíveis pela consciência e, por isso, por princípio apenas

manifestáveis no símbolo” 60.

A conseqüência dessa compreensão é que tanto a religião como o simbolismo

do sonho não é compreendido como satisfação substitutiva de desejos

pulsionais mas, antes, uma mediação para o inconsciente do indivíduo e da

sociedade, para a superação da parcialidade da consciência e o conhecimento

de si mesmo.

As diferenças na compreensão do sonho em Freud e Jung não implicam numa

exclusão de uma ou outra no trabalho hermenêutico de Drewermann.

Drewermann usa essas compreensões de forma complementar. A

compreensão freudiana revela sua importância especialmente quando se trata

de descobrir certos aspectos neuróticos, doentios do psiquismo, quando, por

exemplo certas manifestações ou fenômenos da religião são usados como

construção racional para encobrir pulsões reprimidas. A compreensão

Junguiana revela sua importância justamente quando se trata de descobrir o

valor terapêutico de certos símbolos no processo de renovação e cura.

60
TuEx p.157

53
54 54

54
55 55

3.0 - Drewermann e a Exegese

3.1. A Crítica de Drewermann ao Método Histórico-


Crítico

Entre outras razões, que analisaremos adiante, Drewermann considera o

método exegético denominado de Método Histórico Crítico61 (MHC), que se

impôs durante os últimos cem anos na Teologia acadêmica européia como

forma de lidar com textos bíblicos, uma das causas da perda de capacidade da

Teologia de responder adequadamente à sua função e, por isso, precisa de uma

revisão62.

Segundo Drewermann este método é expressão da racionalidade típica do séc.

XIX, no sentido de considerar apenas o mundo dos fatos objetivos como reais

“Em sua separação do sentimento, em seu isolamento do sujeito, em sua

incapacidade de considerar a realidade interior, psíquica, como infinitamente

mais real que o nível dos ‘fatos’ exteriores, essa forma de ‘exegese’ é, por

princípio, atéia...”63. Por se concentrar nos fatos históricos (externos) e por seu

logocentrismo esta abordagem de textos bíblicos está impossibilitada de

expressar de forma adequada o mundo das imagens e sonhos que são, segundo

Drewermann, efetivamente, a origem de toda palavra religiosa. Esta

constatação parece ser a maior crítica de Drewermann ao MHC. É em relação a

61
Quando me refiro ao Método Histórico-Crítico faço-o com a abreviatura MHC.
62
Veja Drewermann, TuEx I p. 23

55
56 56

esse tipo de leitura inadequada para a religião que Drewermann propõe um

revisão do MHC e elabora o seu método a partir de uma leitura de

Kierkegaard, Nietszche e sobretudo da psicologia profunda.

É em sua crítica ao MHC que Drewermann vai delineando os conceitos e

compreensões que norteiam seu pensamento. A seguir apresentamos alguns

aspectos desta crítica.

Segundo Drewermann, a pergunta que norteou a interpretação bíblica dos

últimos cem anos foi sempre a pergunta pela realidade histórica que se

expressa por trás de cada camada da tradição e pelas condições históricas que

condicionaram tais afirmações. Apesar das compreensões a respeito de Deus se

alterarem conforme as condições culturais e, por isso, ser importante que se

estude e se conheça essas condições, fixar-se no estudo dessas relatividades

culturais e históricas limita o sentido de um texto do passado e não permite

uma compreensão do significado permanente do texto na atualidade. A

pergunta por expressões de fé de determinado tempo, portanto, o que foi e não

o que é diante de Deus, condiciona o exegeta a esconder sua condição

existencial diante da objetividade de suas hipotéticas reconstruções históricas.

No sentido religioso o resultado desse procedimento é uma “monstruosa falta

de conteúdo”64. Uma tal forma de lidar com textos religiosos não conduz nem

ao conhecimento de Deus nem da própria pessoa. Como se poderia

compreender a Bíblia como mensagem se o seu receptor não pode ser

procurado na atualidade? “ Como é possível encontrar um método de

63
Ibidem p. 12 “In ihrer Abgetrentheit vom Gefühl, in ihre Isolation vom Subjekt, in ihrer Unfähigkeit,
die innere, psychische Relalität für unendlich wirklicher zu nehmen als die Ebene der äußeren
“Tatsachen”, ist diese Form von “Exegese” prinzipiell gottlos...”
64
Ibidem p.24

56
57 57

interpretação da escritura que, após garantir a necessária historicidade,

fundamenta e determina a interpretação teológica propriamente dita? Como é

possível, sem ‘subjetivismo’ inserir o sujeito, o leitor, de forma comprometida

na leitura das escrituras?”65. Não se trata portanto de uma proposta anti-

científica, que desconsidera a importância das questões históricas, mas de uma

hermenêutica que procura inserir o sujeito da leitura na leitura para que a

sagrada escritura, ou seja, o texto, possa mediar o acontecimento do sagrado e

não apenas falar sobre ele.

3.1.1 Retrospectiva das origens do MHC

Conforme Drewermann o MHC se fundamenta em três princípios

epistemológicos que, por sua vez, se apoiam na epistemologia de I. Kannt.

São eles: a) a lei da restrição histórica de todo conhecimento (todo

conhecimento científico só pode ser reconhecido enquanto for histórico); b) a

lei da redução causal ou coerência evolutiva da história (pressupõe uma

linearidade); c) a lei da racionalidade e objetividade, segundo a qual todo

conhecimento é passível de uma fundamentação racional pela qual se torna

objeto verificável (redução do conhecimento à realidade exterior que se

manifesta no tempo e espaço)66.

Esses princípios, originalmente restritos às ciências naturais, passaram a ser

aplicados às ciências humanas (ou do espírito). Para Drewermann o uso desses

65
Ibidem p. 27 “Wie lässt sich eine Methode der Schriftauslegung finden, die nach der notwendigen
historischen Absicherung die eingentlich theologische Auslegung begründet und bestimmt? Wie läßt
sich ohne “Subjektivismus” das Subjekt, der Leser, wieder verbindlich in die Schriftlektüre
einbeziehen?”
66
Ibidem p. 29

57
58 58

princípios nas ciências humanas, especialmente na Teologia, é inadequado

porque implicou na exclusão, ou, no mínimo, na desqualificação das formas

de expressão e conteúdos que têm sua origem no inconsciente (sonhos,

intuição, sentimentos, mitos) preservando como objeto de estudo apenas o que

pertence ao domínio da razão.

Como veremos mais adiante, Drewermann procura desenvolver uma

hermenêutica que possibilite uma compreensão da manifestação religiosa sem

se restringir a esses princípios epistemológicos e suas reduções. Propõe uma

hermenêutica que dispense a mediação histórica e, assim, supere a divisão

entre o consciente- inconsciente, o falar humano e o falar de Deus, através de

uma reabilitação das formas e estilos narrativos que não se sujeitam a lei da

casualidade e linearidade histórica, objetivante e racional.

3.1.2. A Negação do Inconsciente

O próprio Cristianismo, em sua luta contra o mito pagão, impôs uma postura

epistemológica que reconhece apenas as forças da consciência (razão e

vontade) e nega as forças pulsionais do psiquismo (sonho, fantasia, intuição,

sentimento) dos quais se originaram os mitos dos povos. Na medida em que

estas forças psíquicas foram negligenciadas, apenas a realidade exterior,

acessível à consciência passou a ser considerada real e, conseqüentemente,

somente nela Deus poderia ser experimentado pelo ser humano.

No Iluminismo essa posição chega a um dilema: a fé, até então considerada um

ato da vontade, portanto da consciência, passou a ser desprezada pela razão.

Toda realidade exterior passou a ser questionada enquanto lugar da

58
59 59

manifestação de Deus. Deus só pôde, como expressou I. Kannt, ser

compreendido como “postulado subjetivo da vontade da moral”67 . O resultado

foi a prevalência de uma razão iluminada em oposição a tudo irracional,

inconsciente, e que, por isso, combatia a qualquer tipo de fé e uma vontade

compreendida como um último metafísico e irredutível; mais ainda, o que

sobrou foi “... um psiquismo demonisado e espantado que, em sempre novas

convulsões, procurou libertar-se das amaras de sua secular opressão e negação

hipócrita”68. Assim, o ser humano ficou alienado de si mesmo e forçado a

procurar a verdade sobre si fora de si.

Na medida em que a exegese fez sua a negação do inconsciente e a fixação na

realidade exterior e histórica, não pode deixar de corresponder ao programa

kanntiano de redução do religioso ao moral e, na medida em que todos os

traços míticos, legendários da sagrada escritura foram eliminados como a-

históricos fez com que no lugar de conteúdos dogmáticos da fé só restassem

imitações de exemplos morais.

Neste sentido, a ruptura entre dogmática e exegese é resultado do profundo

desequilíbrio que separa a dimensão da consciência da realidade do

inconsciente.

3.1.3 A Contraposição de Deus e Ser Humano

67
Ibidem p. 30
68
ibidem p. 30 “...eine dämonisierte und verschreckte Psyche, die in immer neuen Konvulsionen sich der
Fesseln ihrer jahrhundertlangen Unterdrückung und heuchleriscchen Verleugnung zu entledigen
suchte”

59
60 60

Outro pressuposto do MHC é mais acentuadamente protestante. Drewermann

afirma que no catolicismo e protestantismo há uma diferença em relação à

compreensão da história. Enquanto que o protestantismo procurou eliminar

tudo o que era estranho, não-divino, o catolicismo, apesar da negação dos

mitos e das forças do inconsciente que os formam, devido à riqueza de seus

símbolos rituais e dogmáticos, permaneceu em certo sentido ligado a eles.

Por isso, especialmente no protestantismo, só podia ser considerado divino, ou

revelação, o que o ser humano por si só não podia descobrir e que lhe parecia

se contrapor a toda sua natureza. Estava posta, assim, a absoluta contraposição

entre Deus e ser humano. Dela derivou-se, por um lado, a suspeita de que toda

doutrina cristã fosse uma falsificação da verdade no mitológico, pré-cristão69 e,

por outro, a necessidade de identificar-se em algum ponto da história uma

revelação pura, imediata, não deturpada em sua verdade pelo ser humano. Por

isso se impunha à exegese a necessidade de ser “histórico-crítica” e seu critério

fundamental para encontrar essa originalidade da revelação foi a contradição

desta com o humano. Com isso, afirma Drewermann citando C. G. Jung, o

protestantismo sucumbiu a um historicismo racionalista e perdeu a

sensibilidade para com “o desenvolvimento arquetípico na alma das pessoas

como das massas e com todos os símbolos...”70.

Com o fracasso da tentativa de encontrar em algum lugar a revelação pura,

impôs-se uma postura positivista ao estudo da Palavra de Deus, no sentido de

atribuir-lhe verdade enquanto “livro da Igreja”71. Porém, para a exegese

69
ibidem p. 32
70
C. G. Jung. Citado por Drewermann em TuEx I. p. 33
71
TuEx. V. I p.34 “...Buch der Kirche selbst Wahrheit zuzuerkennen”

60
61 61

permaneceu a suposição fundamental de que a compreensão só é possível

através de uma redução histórica e de uma reconstrução da história, assim que

se torna necessário encontrar um fato único acontecido no tempo e no espaço,

o que fez com que tudo o que não foi narrado como história fosse entendido

como deturpação desta. Tudo o que tinha um caráter de divino, sobrenatural

foi negado ou remetido para os tempos pré-bíblicos. Com essa reconstrução da

história segundo o princípio da historicidade dos acontecimento no tempo e

espaço, a própria história já não podia ter mais nada de divino, de tal forma

que apenas em nome de uma piedade e de uma origem podia ser considerada

divina.

A história assim compreendida pelo ser humano só poderia ter algo de Deus se

compreendida na sua totalidade como obra de Deus. O resultado foi uma

relativização das escrituras sagradas e, portanto, das concepções de Deus

contidas nela, pois com os meios da história não era possível provar seu

significado absoluto. O caráter de uma verdade absoluta que a história não

pôde fornecer foi, então, formulada pela Teologia na medida em que esta,

baseada no suposto personalismo, no elemento profético e transcendente da

religião Bíblica, formulou o caracter absoluto da mesma, distinguindo-a assim

de todas as outras formas de religião.

Drewermann enfatiza, porém, que as compreensões de Deus na bíblia são

muito diversificadas e não formam uma unidade. Como poderia, então, haver

uma verdade teológica? Nesse sentido o historicismo leva a uma desilusão dos

símbolos da fé e, por conseqüência, a uma contraposição entre a exegese

histórico-científica e a dogmática.

61
62 62

Sua pergunta é, então, pela possibilidade de se devolver à narrativa bíblica sua

verdade viva e religiosa, que consiste justamente em compreender história não

numa distância objetivante, mas “ ... descrevê-la de forma (Gestallt) mítica ou

como narrativas próximas ao mito, como algo em repetição constante e

humanamente atual”72. Do contrário, a redução do mito à história destruirá as

raízes da própria religião. Por isso Drewermann julga necessário elaborar uma

hermenêutica que, para além da mediação histórica, traga para dentro da

interpretação das sagradas escrituras uma nova imediatez (Unmittelbarkeit).

Seria uma hermenêutica que valoriza o a-histórico, o divino, o mítico e, a

partir daí “...faz uma ponte para a compreensão para a prática sacramental e

ritual da Igreja como também para os inúmeros símbolos de sua dogmática”.73

Em vista da possibilidade de que a exegese enquanto ciência da história, em

função do dilema de seu historismo e relativismo, se torne apenas um saber

irrelevante a respeito do passado, Drewermann aponta para o papel que a

Sociologia pode ter, no sentido de oferecer possibilidades de superar o

relativismo decorrente do historicismo.

Drewermann descreve diferentes concepções teórico-metodológicas da

Sociologia, como por exemplo de K. Marx, M. Weber, E. Bloch, a partir das

quais é possível pensar e compreender as diferentes formas e conteúdos,

portanto, manifestações históricas da religião, respectivamente da Bíblia,

dentro de um processo histórico onde essas manifestações são compreendidas

como reflexo e fator desencadeador de certas circunstâncias sociais. Assim, é

72
Drewermann. TuEx. p. 36 “...sie in Gestalt mythischer und mythennaher Erzählungen als etwas sich
stets Wiederholendes und menschheitlich Gegenwärtiges zu schildern”
73
ibidem p. 37 “...eine Brücke auch zum Verständnis der Sakramentalen und rituellen Praxis der Kirche
sowie der zahlreichen Symbole ihrer Dogmatik schlägt”.

62
63 63

preservado o princípio de explicação causal-racional. Porém, essa contribuição

que permite à exegese mostrar a relevância de certas afirmações e posições

religiosas do passado no contexto da sociedade da época que podem se tornar

parâmetros ou critérios para uma ação hoje, não deixa de transformar a

exegese numa Sociologia da Religião. Drewermann sugere que ao priorizar o

diálogo com a Sociologia esta passa a ter a função de “...ciência antropológica

substituta com a correspondente reivindicação de um monopólio total”74 e,

assim, permanece a negação do inconsciente, do irracional e dos sentidos,

enfim, da Antropologia.

3.2 Da Necessidade de uma Hermenêutica Tipológica da História

Em relação ao fato de se constatar que as diferentes expressões religiosas

estão relacionadas às condições geográficas e sociais de um determinado povo

e que estas compreensões religiosas têm um papel e efeito na história e

organização deste povo, Drewermann afirma que isto é apenas uma parte da

verdade, pois religião nunca aparece de forma pura. Nisso consiste a

legitimidade e a necessidade de uma pesquisa sociológica.75.

Portanto, não se trata de uma negação da influência de determinantes sociais -

históricos, externos, na forma como a religião se apresenta. O estudo destas

características, a eventual semelhança de condições e leis sociais que agem

74
Ibidem p. 43 “...einer antropologischen Ersatzwissenschaft mit dem entsprechenden Monopol- und
Totalanspruch”
75
ibidem p. 49

63
64 64

sobre a religião, pode ser útil para explicá-la enquanto fenômeno, enquanto

produto, porém não está em condições de reconhecer a sua verdade como

implícita nela mesma. Baseando-se em M. Eliade, Drewermann afirma que

apesar das diferenças e alterações que a religião experimenta em vista das

condições da respectiva sociedade, em todos os lugares, com a descoberta do

sagrado, a religião toca vida em todas suas dimensões e lhe acrescenta os

mesmos temas, sentimentos e percepções com as quais introduz aquelas

questões que transcendem as que surgem dentro dos limites dados pelas

condições sociais e históricas abordando o ser humano para as “eternas

perguntas relativas à origem e fim, ao nascimento e morte, ao medo e a

confiança, do sentido e frustração, de desespero e esperança, de culpa e

perdão”76. De M. Eliade Drewermann ainda assume a noção da necessidade da

existência de uma “realidade indissolúvel”77 sem a qual o espírito humano não

funcionaria e a partir da qual se desenvolve a consciência de um sentido para

as experiências humanas. Eliade denomina esta realidade indissolúvel de o

sagrado e o compreende como um elemento constitutivo na estrutura da

consciência, e não um produto desta.

Assim, Drewermann enfatiza que para se compreender a dimensão religiosa da

religião, ou seja, para se explicar teologicamente uma religião é necessário

descobrir os aspectos atemporais, o que têm validade permanente (Ewig-

Gültige). Isso significaria refletir e expor os elementos e dimensões da religião

que dão resposta às perguntas fundamentais da vida humana e, por isso, de

relevância teológica. Essas questões seriam aquelas que se encontram para

76
ibidem p.49

64
65 65

além das peculiaridades histórico-sociais nas quais a religião se expressa.

Ater-se a estas seria um impecilho para a descoberta das questões essenciais e

implicaria na compreensão da religião como um “objeto parcial” de uma “

visão sociológica totalizante”78.

Ao perguntar-se pelas dimensões da religião para além das diferenças e

características socio-culturais enfatizar-se-á a reflexão acerca da experiência

existencial da contingência humana. Drewermann vê nesta passagem um risco

de se abstrair a religião de seus conteúdos concretos e considerá-los apenas

como expressão do religioso. Não é essa sua posição. Drewermann sugere que

a forma, “Gestalt”, que cada religião adquire não é mero produto ou fenômeno

socialmente determinado, mas que “ ...nela se expressa algo que, em sua

forma específica já está fundamentado respectivamente, posto, no ser humano,

assim que apenas é despertado pelos componentes sociais de determinada

cultura e sociedade, mas não causado por ela.”79 Assim, Drewermann afirma

que uma respectiva religião apresenta também em sua forma específica

elementos que expressam “constantes antropológicas do sentir e

imaginar...”80. Por isso reivindica um método interpretativo no qual os

aspectos causais e essenciais não sejam separados. Isso significa reconhecer

que uma expressão religiosa limitada por condicionamentos histórico-sociais

tem nessa mesma expressão única um sentido não condicionado, assim que

expressa uma verdade constante na irrepetibilidade de sua forma. Isso para

77
Drewermann se refere a obra de M. Eliade: Die Sehnsucht nach dem Ursprung p. 9 e Kosmos und Geschichte, p.
130. Também Nietszche (veja p. 10) menciona a necessidade da possibilidadede se crer num “volkommenen”.
78
TuEx. P.51 “soziologischen Totalanschauung”.
79
Ibidem p. 53 “... sich in ihm etwas ausdrückt, das in seiner besonderen Gestalt im Menschen selbst
grundgelegt ist bzw. angelegt ist, so daß es von den sozialen Komponenten einer bestimmte Kultur
und Geselschaft auf den Plan gerufen, nicht aber “verursacht” wird.”

65
66 66

Drewermann só pode ser compreendido como tipo, imagem (Bild) de uma

verdade que se encontra fundamentada no próprio ser humano. Por isso afirma:

“ Para se compreender a validade permanente de uma

religião é necessária uma interpretação tipológica,

nem puramente casual tampouco puramente

essencialista, nem puramente explicativa como

tampouco especulativa, mas uma perspectiva

compreensiva e comparativa cujo interesse está

voltado justamente àquelas características que em sua

particularidade expressam algo exemplar

(Vorbildhaft), típico do próprio ser humano e

permitem a conclusão de que em sua determinada

“Gestalt” estão ancoradas no próprio ser humano.”81

80
ibidem p.53 “antropologischen Konstanten des Empfindens und Vorstellens...”
81
ididem p. 54. “Um die bleibende Gültigkeit einer Religion zu verstehen, bedarf es mithin einer
typologischen, weder rein kausalen noch rein essentiellen, weder rein erklärenden noch rein
spekulativen, sondern einer verstehenden und vergleichenden Betrachtungsweise, deren Interesse
gerade denjenigen Merkmale gewidmet ist, die in ihrer Besonderheit etwas Vorbildhaftes, Typisches
über den Menschem selbst aussagen und den Schluß zulassen, daß sie in ihrer bestimmten Gestalt im
Menschem selbst verankert sind.” Drewermann sugere aqui e com isso reflete sua concepção de que certas
condições externas ( hist. Cultu. Sociais) evocam, resp. despertam imagens latentes que, porém não são produto
destas condições. Semelhante a concepçõa do édipo em Freud que, diferentemente em Lacam se constitui pela
estrutura que se estabelecea. Em Freud o édipo já está sempre ‘latente’ e só espera pelas condições para se
manifestar.
Talvez esta comparação seja uma pista para situar Drewermann....

66
67 67

3.2.1 A Lei de Identidade na Compreensão Tipológica da História

ou A Subjetividade como Fonte de Conhecimento

A concepção de uma compreensão tipológica da histórica já foi desenvolvida

por filósofos do século passado que se ocuparam com o problema do

relativismo histórico. Dentre estes W. Dilthey foi o primeiro a compreender as

diferentes expressões culturais ao longo da história como expressões da única

essência humana, comum a todos. As diferentes expressões seriam limitações

das “diferenças individuais dentro da natureza humana comum82 ”. Segundo

Dilthey essas expressões podem ser interpretadas a partir da experiência

interior da vivência própria, o “Erlebnis” de cada pessoa, considerado

expressão de uma estrutura humana comum, permite que estas expressões

sejam intercambiáveis. Afirma Drewermann: “ A vivência das relações

internas, da estrutura, do conjunto vital de uma cultura histórica possibilita,

conforme Dilthey a, necessária para todo conhecimento, identidade de

consciência e objeto para além de toda distância histórica”83. Neste sentido

qualquer indivíduo pode se redescobrir em outra cultura.

82
Veja W. Dilthey: Ideen über eine beschreibende und zergliedende Psychologie, in: Ges. Schriften, V 236 .
Citado por TuEx. p.54
83
TuEx. P.54-55. “ Das Erlebnis der inneren Beziehungen, der Struktur, des Lebenszusammenhang einer
geschichtlichen Kultur ermöglicht nach DILTHEY die zu jeder Erkenntnis notwendige Identität von
Bewußtsein und Gegenstand über den historischen Abstand der Zeit hinnweg”. Essa proposição de
Dilthey, assumida por Drewermann, implica na compreensão de que significado e significante são ‘ligados’ e
não como Lacam segundo qual o significante sempre prevalece ao significado, não se esgotando nunca este
úlltimo.

67
68 68

Também em J. Burckhardt84 Drewermann encontra a compreensão de que a

tarefa de interpretar a história é buscar por aquilo que nela é constante, típico,

não obstante as determinações de lugar e tempo. Existe algo de constante e

constituinte no humano que permite que, a partir destes elementos, um

fenômeno historicamente inacessível seja compreensível. Baseando-se na

compreensão/premissa de A. Heuss85 sobre a “dimensionalidade do sentido”

como elemento que constitui o humano, em semelhança aos instintos dos

animais, Drewermann afirma que esta dimensionalidade de sentido permite

que um indivíduo se reconheça a si e se redescubra nos acontecimentos da

história:

“ Faz parte disso (o fato de) que as singulares culturas e épocas históricas aparecem

como facetas de uma e mesma essência humana, que nelas se explica, e apenas nelas

podem tornar visíveis a si próprias, assim que o auto-conhecimento deve ser

compreendido como parte do compreender histórico e a hermenêutica histórica (deve


86
ser compreendida) como parte do auto-conhecimento.”

Com a ênfase na procura pelo típico, pelas imagens do que permanece sempre

igual, de uma determinada época ou manifestação histórica, seguindo Dilthey e

Burkhardt, Drewermann se diferencia do modelo hegeliano - que procura

justamente descobrir a necessidade (Notwendigkeit) desta, pela qual esta se

caracteriza como estágio anterior a atual.

84
Ver J. Burckhardt: Weltgeschichte und Betrachtungen. P. 26. Citado por Drewermann em TuEx. p56.
85
TuEx p.57
86
TuEx. P. 57 “Dazu gehört, daß die einzelnen geschichtlichen Kulturen und Epochen als Facceten ein und
desselben menschlichen Wesens erscheinen, das sich in ihnen auslegt und nur in ihnen seiner selbst ansichtig
werden kann, so daß die Selbsterkenntnis als Teil geschichtlichen Verstehens und die geschichtliche
Hermeneutik als Teil der Selbsterkenntnis begriffen werden muß”

68
69 69

3.2.2 A Contemporaneidade do Conhecimento

“ Em outras palavras, a gente só compreende o histórico quando se mostra

seu retorno na atualidade, juntamente com sua relevância para a atualidade

e, de forma inversa: a gente só compreende o histórico, se agente se

reconheceu nas figuras do passado.”87.

Assim, ao compreender a história esta se torna contemporânea à atualidade e

aquele que compreende se torna contemporâneo ao passado. Isto só é possível

seguindo-se o pensamento de Dilthey que afirma a existência de uma

identidade, de algo comum. Esta contemporaneidade é, segundo Drewermann,

a categoria que Kierkegaard definiu como categoria da fé mas que tem

validade para todo conhecimento de um acontecimento da história.

A categoria da contemporaneidade, quando aplicada à Bíblia, exige que sua

interpretação não seja somente histórica, mas que o sujeito da interpretação

encontre nela uma nova compreensão de si mesmo.

Em relação a uma hermenêutica tipológica elaborada a partir dos princípios da

identidade (Dilthey) e contemporaneidade (Kierkegaard) Drewermann aponta

para algumas objeções as quais pretende superar a partir de um

aprofundamento do próprio princípio tipológico. Dentre essas objeções esta a

questão levantada por M. Horkheimer relativa a dificuldade de uma

reconstrução ideal típica da história, questionando, assim, justamente a

premissa de Dilthey de que aos sistemas culturais de uma época subjaz uma

conexão anímica que esta conexão apresenta algo da totalidade da essência

87
TuEx p. 58 “Man versteht m.a.W. das Historische nur, wenn man seine Wiederkehr in der Gegenwart,
mithin seine Relevanz für die Gegenwart aufweist, und umgekehrt: man versteht das Historische nur,
wenn man sich selbst in den Gestaltungen der Vergangenheit wiederentdeckt.”

69
70 70

humana.88 Horkheimer questiona nessa premissa a confusão entre ser e

consciência, apontando para a não-identidade entre o que um indivíduo é e a

consciência que tem de si. Isso tornaria muito difícil compreender, a partir da

unidade espiritual, uma natureza humana geral.

Drewermann reconhece a dificuldade apresentada por Horkheimer no sentido

de um indivíduo poder representar, nas peculiaridades de seu caracter, a

estrutura básica de uma época. Porém, afirma que com o instrumental teórico

que se dispõe hoje, as teorias psicológicas da socialização, o propósito de

Dilthey não definitivamente incorreto. Refere-se aos estudos de A. Kardiner89

que demonstram a inter-relação entre os sistemas institucionais de uma cultura

e a estrutura psíquica de um indivíduo. Kardiner atribuiu à inter-relação pais-

filhos uma dimensão mais ampla, no sentido de compreender os pais como

mediadores e sustentadores de uma estrutura de personalidade sócio-cultural.

Diferencia entre instituições primárias (relações de parentesco) e secundárias

(religião, rituais, sistemas de pensamento). Compreende as instituições

secundárias como conseqüência das primeiras e as considera “... um conjunto

de projeções e objetivações da estrutura de personalidade básica que, de forma

ilusionária compensam as frustrações vitais e deveriam preencher uma

necessidade de segurança.”90 Com isso Drewermann pretende mostrar que é

possível desenvolver uma Psicologia para compreensão da cultura, contanto

que ela não seja arbitrariamente fixada no Ego e sua auto compreensão, mas

88
M. Horkheimer: Geschichte und Psychologie, in: Kritische Teorie, I 28. Citado por Drewermann em: TuEx. p.61
89
A. Kardiner: The individual and his society, 345. Citado em Drewermann, TuEx. P. 62. Drewermann afirma que
Kardiner parte da comprensão do simbólico em Freud, segundo o qual o simbólico deve ser compreendido
como o ‘Uneigentliche’, o que encobre e que deve ser compreendido como sintomático.
90
TuEx. P.62 “... ein Ensemble von Projektionen und Objektivationen der basalen
Persönlichkeitsstruktur, die auf illusionäre Weise die Frustrationen des Vitalbereiches kompensieren
und ein fundamentales Sicherheitsbedürfnis erfüllen sollten”.

70
71 71

nos conteúdos sócio-culturais, geralmente inconscientes, daquilo que Freud

denominou de Superego. A questão que se apresenta então para Drewermann

é: “... de onde se originam os conteúdos culturais específicos da estrutura da

personalidade ”91.

Para esta questão encontra respostas diferentes a partir das quais se delineiam

as diferenças e características fundamentais em relação ao método proposto

por Drewermann e sua compreensão antropológica. Partindo-se de um

instrumental e método sociológico, também presente na teoria da socialização

psicológica, se chegará a conclusão de “... como a essência do ser humano é

determinada por condições sociais”92 a essência do ser humano não será mais

do que o resultado das relações sociais variando sempre de sociedade para

sociedade. Isso pressupõe um antropologia de Tábula-rasa do psiquismo.

No entanto, afirma Drewermann, para se compreender a influência de certas

relações sociais sobre o psiquismo é necessário ter um conhecimento prévio da

natureza humana interior “... no sentido de determinadas constantes biológicas

e psicológicas”93, assim como o procurou mostrar S. Freud com sua teoria das

pulsões. Esse conhecimento é um pressuposto para se entender o significado

da religião. Nesse sentido, quando Kardiner afirma que as instituições

secundárias recebem a função de satisfazer uma necessidade de segurança, há

que se perguntar pelas expectativas que “pré-formam” essa necessidade de

segurança. Essa questão já não pode ser respondida pela Sociologia, pois,

segundo Drewermann, o medo e a necessidade de segurança

91
TuEx. p.63
92
A. Lorenzer: Die Wahrheit der psychoanalytischen Erkenntnis, 229. Citado por Drewermann in: TuEx. P.63 “...
wie das Wesen des Menschen von Gesellschaftlichen Verhältnissen bestimmt ist”
93
TuEx. P. 63 “im Sinne bestimmter biologischer und psychologischer Konstanten...”

71
72 72

“... não procedem dessas situações externas, mas se originam a partir da

própria consciência humana. A necessidade de uma segurança absoluta em

vista da nulidade e contingência do ‘Ser-aí’ é evidentemente essencial ao

pensar e sentir do ser humano; ela não é produzida por determinadas

condições de uma sociedade, com as quais simultaneamente poderia

desaparecer, mas apenas se serve das condições sociais para de forma

condicionada dar uma resposta incondicional ao total questionamento do ser

humano. Justamente essa resposta incondicional à radical contingência (e

medo) do ‘Ser-aí’ humano é a religião, e justamente assim ela precisa ser

entendida para além da Sociologia.”94

Religião não é resultado das relações, mas uma resposta a partir de perguntas

que são anteriores à essas relações e fazem parte da condição da existência.

Drewermann descreve a relação entre as condições sociais e a questão do medo

e necessidade de segurança do ser humano em vista de sua contingência, de

forma análoga a compreensão, na Psicanálise, da angústia e seus sintomas.

Assim como na angústia - sentimento vago de ameaça - o ser humano para

suportá-la se serve de certas condições para se expressar, desenvolve sintomas

(p. ex. fobias) nos quais, porém, não se esgota e que podem variar

constantemente. Ater-se ao sintoma não permite uma verdadeira compreensão

do que acontece à pessoa. No entanto, não há que se desconsiderá-lo, pois,

pelo sintoma pode-se chegar ao que está para além dele.

94
TuEx. P. 64. “nicht von diesen äußeren Situationen herrührt, sondern dem menschlichen Bewußtsein
selbst entstammt. Das Bedürfnis nach einer absoluten Sicherheit angesichts der Nichtigkeit und
Kontingenz des Daseins ist offensichtlich dem Demken und Empfinden des Menschen wesenseigen;
es wird nicht von bestimmten Bedingungen einer Geselchaft hervorgebracht, mit denen zugleich es
zugrunde gehen könnte, sondern es bedient sich lediglich der geselschaftlichen Bedingungen, um in
bedingter Form eine unbedingte Antwort auf die totale Infragestellung des Menschen selbst zu geben.
Eben diese unbedingte Antwort auf die radikale Kontingenz (und Angst) des menschlichen Daseins
ist die Religion, und gerade so muß sie jenseist der Soziologie verstanden werden ”.

72
73 73

Assim também a religião se serve de condições que a sociedade oferece para,

através delas expressar de maneira limitada algo que não se esgota nelas e que

permanece mesmo que estas deixem de existir.

Assim, diante das alternativas, ou o ser humano e sua religiosidade é apenas

conjunto de relações sociais e a fé em Deus como pessoa absoluta uma “

passageira forma de auto-reflexão da consciência humana”95 ou “...o ser

humano está ante- e sobreposto à sua história...” e a fé na “inalienável

dignidade de cada indivíduo expressa uma verdade” 96.

No primeiro caso, o indivíduo como portador de liberdade, responsabilidade e

história, seria suprimido pelo coletivo enquanto portador da razão objetiva e

administrador do status quo. No segundo caso, impõe-se a pergunta pela

verdade que é própria ao indivíduo e em que situações ou condições de uma

estrutura social e suas modificações esta verdade fica evidente.

Seguindo-se a compreensão de Dilthey de que é possível reconhecer na

interpretação da história algo da essência humana, então deve haver algo que

permanece constante apesar de todas modificações sociais e culturais.97

Esse algo são estruturas psíquicas diferentes daquelas consideradas numa

teoria psicológica da socialização como modos de reação aos estímulos

exteriores. Conforme Drewermann, elas devem ser compreendidas num

sentido estrito como anteriores à qualquer condição social.98 Isto significa: “...

uma hermenêutica tipológica da história exige uma hermenêutica arquetípica

95
TuEx. p.65
96
Ibidem
97
Ibidem p.66
98
Ibidem p. 66

73
74 74

do psiquismo humano”99. Somente na medida em que antes da ação histórica

do ser humano houverem estruturas de vivência e imaginação pelas quais este

percebe a si e ao mundo é possível que certas estruturas (Gestalten) da história

apareçam como expressão de sua essência. Pressupõe-se a existência de uma

tipologia do psiquismo apriori.100

Para se identificar essas concepções101, Drewermann menciona alguns

pressupostos:

Como estruturas psíquicas universais, os arquétipos não devem ser

compreendidos como pertencentes à psique individual, mas deve-

se supor uma psique coletiva, que se manifesta na forma desses

arquétipos102. Drewermann vê como resultado da negação do

inconsciente, do irracional, promovida especialmente pelo

Cristianismo, o desenvolvimento de um tipo humano que precisa

ser superado em sua racionalidade unilateral. Compara esse sujeito

humano com um doente que em seu desequilíbrio e medo precisa da

Psicanálise, mas simultaneamente resiste a ela enquanto pode, focalizando sua

atenção para o mundo exterior, o que implica em mais racionalização.

99
Ibidem p. 66-67 “eine typologische Hermeneutik der Geschichte verlangt eine archetypische
Hermeneutik der menschlichen Psyche”
100
Drewermann refere-se a este apriorismo da tipologia do psiquismo como semelhante na forma ao apriorismo da
razão sobre o pensamento no idealismo alemão.
101
“Typen der Vorstlleung”
102
Drewermann refere-se aqui a resistência por parte da Psicanálise em relação à tentativa de se supor uma
antropologia da psicologia profunda. No entanto o único método hermenêutico que poderia proporcionar uma
compreensão dos arquétipos é a Psicanálise. Drewermann afirma que pela influência da sociologia e da teoria da
aprendizagem de Skinners a Psicanálise sofreu uma redução das “großen Einsichten und die innere Entwicklung
der tiefenpsychologischen Theoriebildungen S. Freuds...” ao esquema filho-pais-sociedade. Drewermann sugere
que a mudança de ênfase na Psicanálise, no sentido dela ter se direcionado para a pesquisa a respeito da
socialização e dos conflitos está relacionada com o fato de que nas atuais circunstâncias as “ biológicas forças
fndamentais do ser humano: fome (oralidade), Agressão (analidade) e sexualidade (genitalidade)” serem
consideradas um perigo ao progresso. Ver TuEx p.67-69

74
75 75

Uma hermenêutica arquetípica do humano (e da história humana) pressupõe a

redescoberta das camadas profundas da psique humana. Pois “...somente nos

arquétipos e nos sentimentos está o que se une e se liga entre as culturas e

religiões de todos os tempos e regiões...”103. Ao contrário, a fala e a razão se

manifestam como categorias ligadas a uma temporalidade e causadoras de

separação. “Também a religião, formulada em pensamentos, é diferente de

acordo com o povo e o círculo cultural, mas sua verdade exposta e apresentada

em seus ritos e símbolos, igualmente ocultadores, é a mesma em todos os

lugares. Em todas pessoas vive um saber inconsciente de um

absoluto que está presente em todas pessoas e a partir do qual toda

consciência se origina,...”104.

Assim, como vemos, Drewermann afirma que enquanto os

conceitos separam e distinguem, as imagens arquetípicas revelam a

verdade comum subjacente a todas manifestações religiosas, como

sendo o saber da existência de um absoluto, e funcionam como

uma língua franca pela qual se expressam os sentimentos comuns

a todos humanos e todas culturas.

103
TuEx p70-71 “nur in den Archetypen und in den Gefühlen liegt das Einende und Verbindende
zwischen den Kulturen und Religionen aller Zeiten und Zonne...”.
104
TuEx. p.71“Auch die Religion, in Gedanken gefaßt, ist je nach Volk und Kulturkreis verschieden,
aber ihre Wahrheit, niedergelegt und dargestellt in ihren ebenso verhüllenden Riten und Symbolen,
ist überall die gleiche. In allen Menschen lebt ein unbewußtes wissen um ein Absolutes, das in allen
Menschen gegenwärtig ist und aus dem alles Bewußte hervorgeht,...”.

75
76 76

3.3. A VERDADE DAS FORMAS

3.3.1 A Herança (Desprezada) do Romantismo

Em sua postura de atenção ao sentimento, à imaginação, às manifestações

poéticas, às tradições populares e à religiosidade nas camadas mais profundas

da psique humana e em protesto à unilateralidade racionalista do idealismo

alemão, o Romantismo, afirma Drewermann, ofereceu uma possibilidade e

uma chave para o desenvolvimento de uma hermenêutica arquetípica que,

porém, foi negligenciada pelo MHC.

Segundo Drewermann, apoiado pela compreensão de religião de Novalis e

Schleiermacher, o Romantismo reconheceu que é possível e necessário

compreender e reconstruir as manifestações poéticas populares a partir da

interioridade105 como algo que, semelhante à religião, deve ser concebido

como que fazendo parte da própria alma, do próprio sujeito. “ Não a referência

histórica para o passado, mas a referência psíquica na origem essencial da alma

humana constitui nessa concepção o princípio fundamental de toda

hermenêutica compreensiva”106

Conforme Drewermann, o Romantismo teve uma influência muito limitada

sobre a Teologia e a interpretação bíblica. Ao invés de assumir a descoberta da

105
“von innen her nachzuempfinden...”TuEx p. 73
106
TuEx p.74 “ Nicht der historische Rekurs in die Vergangenheit, sondern der psychische Rekurs in den
wesentlichen Ursprung der menschlichen Seele bildete nach dieser Auffassung des fundamentale
Prinzip jeder verstehenden Hermeneutik”.

76
77 77

multiplicidade das formas da poesia popular que o Romantismo proporcionou

e, com uma nova valorização da verdade psíquica, relacioná-la com as

respectivas formas de narrativas - mito, saga, lenda, contos - que unicamente,

em sua especificidade formal, estão em condições de expressar as imagens e

símbolos que o imaginário e as percepções da psique humana exigem, a

exegese acadêmica se ocupou com a tradição oral sob o aspecto da pesquisa

histórico-crítica.107

A não assimilação da descoberta do Romantismo reside, conforme

Drewermann, no temor pela perda da objetividade de seu conhecimento

científico. A razão desse temor se fundamenta no preconceito já difundido

pelos apologetas do segundo século de que “apenas a realidade histórica

poderia formar a base da fé cristã...”108 juntamente com a super-valorização da

razão, profundamente difundida na Teologia cristã.

Assim, e apesar de L. Feuerbach, F. Nietzsche e A. Schopenhauer, os exegetas

acadêmicos permaneceram intocados “...de todos os problemas da divisão

(Zerspaltenheit), do medo e da tragédia, mas também dos sentimentos de

felicidade do êxtase, da musicalidade e do êxtase da psique humana...”109 e

incapazes de reconhecer a verdade expressa em formas como mitos, contos,

sagas e lendas, compreendendo-as num sentido pejorativo como desvios da

única verdade capaz de ser reconhecida: a verdade dos fatos históricos.

Drewermann, porém, afirma que a verdade, não enquanto fato histórico mas

enquanto experiência, necessariamente se comunica nas narrativas simbólicas

107
Veja TuEx p.74-75
108
TuEx p. 74 “... nur die historische Realität die Grundlage des christlichen Glaubens bilden könne...”.
109
TuEx p.75 * Rauchhaftigkeit refere-se à experiência de se estar dopado.

77
78 78

como uma forma de dizer o que o mundo dos fatos exteriores significa para a

interioridade. Essa imagens simbólicas surgem de forma espontânea para

“refletir a realidade psíquica dos fatos exteriores”110. Elas são reais na medida

em que mediam de forma imediata experiências religiosas.

3.3.2 Iniciar com Sonho e não a Palavra

A partir de “Die Formgeschichte des Evangeliums”111 (1919) de M. Dibelius,

Drewermann procura descrever a caracterização que as diferentes formas

narrativas não-históricas receberam por parte da historiografia das formas de

proveniência do MHC. A partir dela, procura mostrar a necessidade de uma

interpretação psicológica.

Como regra, o sistema de classificação de Dibelius tem a premissa de que

quanto mais a forma narrativa de distancia dos ditos, tanto mais perde em

credibilidade histórica.112 Assim sua seqüência apresenta a seguinte ordem:

dito(pregação), paradigma, novela, lenda, mito.

A crítica de Drewermann a Dibelius reside no fato de apesar de ter constatado

que “... o desenvolvimento do cristianismo estava e está essencialmente ligado

ao mito cristológico”113 não reconhece e valoriza em sua verdade teológica a

síntese de mito e história, passando imediatamente a ver no mito uma

profanação da única tradição de Jesus historicamente confiável. Assim, em sua

110
TuEx p.77
111
‘A História das Formas do Evangelho”. Segundo Drewermann essa obra clássica é considerada, ainda hoje,
referência nesta área.
112
TuEx p. 79
113
TuEx p. 89 “die Entwicklung des Christentums wesentlich an den Christusmythos
gebunden war und ist”.

78
79 79

critica a Dibelius, Drewermann afirma que este “...interpreta o NT contra seu

processo de desenvolvimento, já que é no mito cristológico (como divindade

pré-existente que morre - ressuscita) que cresce (e) se fundamenta a maior

parte das Teologias do NT”114.

O estudo de Dibelius conclui que um estilo narrativo se distancia da

historicidade quanto mais distante estiver da Palavra, dos ditos. Isso implica

numa predominância da palavra sobre a imagem, do logos sobre o mito.

Drewermann afirma que tanto no Novo Testamento quanto no Antigo

Testamento existem inúmeras narrativas que, em função de sua forma, são

historicamente suspeitas de serem mitos, lendas ou novelas e apresentam um

material que permite analogias com outras religiões. Isso relativiza a

possibilidade de que desta maneira possam estar relatando um acontecimento

histórico real.115 Na antigüidade esse tipo de narrativa pode ter sido apropriado

para fundamentar a fé, mas para o ser humano contemporâneo, marcado por

uma compreensão exterior da realidade, perde em credibilidade. Por essa

razão, afirma Drewermann, histórias desse tipo foram consideradas não em si

mesmas, mas como meios pelos quais se apontava para o que se entedia ser

propriamente a mensagem ou o evangelho. A forma não seria nada mais do

que uma roupagem historicamente determinada que facilitava a comunicação

do evangelho aos povos de culturas gentílicas. Para fins de estudo, essas

características servem apenas como fonte de conhecimento das condições

sociológicas do ambiente no qual o Cristianismo surgiu.

114
Paulo Nogueira. Texto apresentado em seminário, não publicado.
115
TuEx p. 94

79
80 80

Em contrapartida a essa tendência, Drewermann sugere que se estude pela

perspectiva psicológica a “realidade interior”116 das narrativas a-históricas,

míticas e lendárias e seja perguntado em que medida, na psique humana, em

todos os tempos, existem verdades que só podem ser comunicadas na forma de

mitos, lendas, contos ou sagas. Só então se compreenderá que essas formas

narrativas não são apenas um indicador de significados, necessárias em uma

determinada época histórica, mas que em função do psiquismo humano sempre

são necessárias e têm em si mesmas um significado permanente. Neste sentido,

a compreensão da realidade deve incluir a realidade do psiquismo e não apenas

a exterioridade dos fatos históricos.

Drewermann afirma que os autores bíblicos recorrem ao material mítico, a-

histórico justamente nas questões que lhes parecem ser as mais importantes.

Isso significa que eles não apenas se servem desse tipo de narrativas, mas que

vivem nelas, isto é, elas fazem parte de sua forma de ver a realidade. Através

delas podem dizer o que na linguagem dos fatos e conceitos não pode ser dito.

Drewermann cita a respeito desta questão a afirmação de Wittgenstein

“Daquilo que não se pode falar, sobre isso deve-se silenciar”117 lembrando que

Wittgenstein afirmou existirem coisas que são indizíveis e que esta ‘coisa’

seria o místico. O místico, segundo Drewermann, se mostraria nas imagens

arquetípicas e nos símbolos. Por isso em todos os tempos e lugares a religião

se serve delas para, no lugar dos conceitos, expressar a “comoção”118 através

dos símbolos.

116
TuEx p. 95
117
Citado em TuEx p. 99 “Wovom man nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen”.
118
“Ergriffenheit” significa específicamente ser tomado por algo.

80
81 81

Por isso, a questão fundamental para Drewermann é a pergunta se a Teologia

consegue fundamentar psicologicamente, no ser humano, as imagens e

símbolos de sua dogmática. Aos olhos de Drewermann esta tarefa parece ser

especialmente difícil para o protestantismo em virtude de sua posição contrária

à relação entre revelação de Deus e os pressupostos antropológicos, de modo

que “... todas as imagens pré-formadas da salvação no ser humano devem ser

postas de lado aparentemente em nome de uma verdade de um Deus sem

imagem...”119.

Em vista do acima exposto, Drewermann insiste na necessidade de uma

revisão da compreensão de realidade da psique humana e afirma que só se

pode compreender um texto “... quando se extrai [ do texto] o que o texto

mesmo tem a dizer e não o confronta com questionamentos que são estranhos

a todo seu gênero.”120 Drewermann propõe que se inicie, portanto, não com a

palavra mas com a imagem, no sentido oposto à ordem proposta por Dibelius.

O ponto de partida para a compreensão de uma tradição religiosa seria a

pergunta pelo sonho que se traduz em mito e este, por sua vez, em outras

formas de narrativas. O sonho seria, portanto, a origem de toda vivência

simbólica121.

119
TuEx p. 96 “... all die präformierten

Bilder der Erlösung im Menschen angeblich um der Wahrheit eines bilderlosen Gottes willen
beiseitegetan werden müssen...”
120
“...wenn man herausarbeitet, was der Text selbst zu sagen hat, und ihn nicht mit Fragestellungen
konfrontiert, die ihm seiner ganzen Art fremd sind.” Essa citação me parece importante porque deixa
entender que Drewermann supõe um jeito adequado (certo) de se entender um texto e, com esse mesmo jeito,
vai revelar o significado do mesmo. O significado já esta dado antes, trata-se de revelá-lo...
121
TuEx p. 100

81
82 82

3.4 O SONHO COMO FUNDAMENTO DE NARRATIVAS

ARQUETÍPICAS

3.4.1. O Sonho como Revelação na Bíblia

“ Deus fala de um modo, sim de dois modos,

mas o homem não atenta para isso.

Em sonho ou em visão de noite,

quando cai sono profundo sobre os homens,

quando adormecem na cama,

então lhes abre os ouvidos, e lhes sela a sua instrução.”

( Cf. Jó 33.14-16)

Com este texto Drewermann lembra que como em todos povos antigos,

também no Antigo Testamento se encontra a crença de que o sonho é uma

forma essencial da revelação de Deus. Ao mesmo tempo destaca que o próprio

texto aponta para o fato de que esse tipo de revelação não recebe a devida

atenção.

fato de referir-se ao “abrir os ouvidos” e não aos olhos, Drewermann

compreende como um ato de dar atenção, de observar para dimensões que se

mostram para além da racionalidade nas profundezas do inconsciente.

Descreve este ato como:

“... um ver na profundeza das forças inconscientes da alma, e o que ali, muito

abaixo da atividade racional consciente, se comunica ao sonhador, o conduz,

82
83 83

quando este o aceita, a uma “obediência” e “compreensão” mais profunda de

sua vida, como jamais lhe seria possível em uma reflexão consciente.”122

Igualmente as palavras do profeta Joel “ vossos velhos sonharão, e vossos

jovens terão visões” Drewermann interpreta como expressão do fato de que faz

parte da esperança de Israel para o final dos tempos a possibilidade da

imediatez de uma experiência onírica religiosa, acessível a todas pessoas.

Sugere que se compreenda o final dos tempos como o lugar da proximidade de

Deus com o ser humano - e entende essa proximidade como o lugar onde

“...pessoas estão em acordo consigo mesmas e com sua origem”123. Neste

lugar, afirma, as pessoas vivem profundamente a partir de seus sonhos.124

Igualmente no Novo Testamento a proximidade da chegada do salvador é

preparada por aparições e sonhos125 que são caracterizadas por Drewermann

como a possibilidade de “experimentar Deus no vaticínio da própria alma ”126.

Além destes exemplos citados, muitos outros textos/episódios bíblicos

ressaltam a importância teológica do sonho.

Para Drewermann existem três tipos de sonhos que ele assim caracteriza:

- Sonhos ‘puros’, assim denominados porque não contém nada que eles

mesmos não explicitem.

122
TuEx p. 101 “ ...ein Sehen in der Tiefe der unbewussten Seelenkräfte, und was sich dort, weit
unterhalb der bewußten Verstandestätigkeit, dem Träumenden mitteilt, führt ihn, wenn er es annimmt,
zu einem tieferen “Gehorsam” und “Begreifen” seines Lebens, als es ihm in bewußter Reflexion
jemals vergönnt sein würde. Nicht das worthafte, verbale Vernehmen, sondern das “Schauen”gilt hier
als eigentliches Hören Gottes. - Höher läßt sich der Traum religiös nichteinschätzen.”
123
TuEx p. 102 “Menschen mit sich selbst und ihrem Ursprung einig sind”
124
TuEx p. 102
125
Em algumas prédicas sobre textos de aparições Drewermann descreve estas como manifestação que tem sua
origem no desejo mais profundo, mais interior da pessoa.
126
TuEx p. 102

83
84 84

- Sonhos alegóricos que não são evidentes em si mesmos, carecendo de uma

explicação alegórica - geralmente por especialista. Em relação a estes,

Drewermann constata que sempre se desenrolam junto a povos estrangeiros, o

que significaria que sua existência em Israel se deve a influências do exterior.

- Sonhos de incubação, isto é, sonhos que ocorrem quando uma pessoa se põe

a dormir tendo elaborado uma pergunta que dirige a Deus, esperando que Ele a

responda no sonho. Esse tipo de sonho, muitas vezes, implicava na

necessidade de sacrifício para motivar Deus (ou a divindade) a responder ao

pedido. Neste sentido o sonhar é compreendido “como um acontecimento

absoluto diante de Deus, num lugar no qual nada pode ter interferência sobre a

pessoa a não ser aquilo que vive e quer viver na sua alma”127. Em alguns textos

essa prática é descrita referindo-se a personagens pagãos, o que pode ser um

indício de que a mesma tenha uma procedência de povos estrangeiros.

Não obstante, essa importância atribuída ao sonho na Bíblia, constata-se uma

tendência de colocar sobre seu colorido pagão uma sombra monoteísta128.

Existe um cuidado para que a idéia da revelação de Deus no sonho não

obscureça a fé na exclusividade de Javé. Por essa razão, os sonhos narrados na

Bíblia são literariamente trabalhados. Alguns, porém, preservam suas

características psicológicas puras. Isso se constata onde a Bíblia assume

tradições de religiões estrangeiras sem alterá-las. Por exemplo, o sonho de Jacó

em Betel ( Gn 28, 10-22) que, provavelmente, tem uma origem cananéia.129

127
TuEx p. 105
128
TuEx p.105
129
TuEx p. 106

84
85 85

De uma modo geral, pode-se afirmar que a Bíblia preserva a convicção da

importância do sonho, porém, pela articulação literária, essa convicção perde

em sua dimensão de concretude do sonho enquanto experiência.

Por esta razão, Drewermann sugere que para se compreender o significado que

o sonho tem ou pode ter para a compreensão das narrativas não-históricas,

míticas da Bíblia é necessário que não se limite ao estudo da importância que o

sonho recebe na própria bíblia, mas que se busque conhecer seu significado a

partir da função psico-religiosa do sonho no “pensamento mitológico das

religiões da humanidade”130. Apenas a partir deste horizonte pode-se

compreender os fragmentos desta tradição na Bíblia.

Para esse propósito é fundamental que, para além do estudo da história das

religiões, se dialogue especialmente com a Psicanálise. Segundo Drewermann,

ela é o único método que possibilita reconhecer a regularidade da psicologia do

sonho.131

3.4.2 - Psicologia do Sonho


A posição psicanalítica em relação ao sonho diverge da interpretação religiosa

da antigüidade, porém, e não obstante, é possível a partir da Psicanálise

constatar o quanto se justifica a visão dos antigos no sentido de pensarem que

no sonho “ ... os poderes divinos estariam especialmente próximos das pessoas

e lhes indicariam, admoestando e advertindo, curando e ajudando, o seu

caminho para o futuro”132. Drewermann vê a relação entre a interpretação

130
TuEx p. 106
131
TuEx p. 107
132
TuEx p. 107

85
86 86

psicanalítica do sonho e a interpretação do mesmo na antigüidade, de forma

semelhante à relação entre a ciência natural moderna e a concepção do ser

humano da antigüidade que identificava a natureza e seus fenômenos com a

divindade. Por um lado a ciência destruiu essa crença e essa identificação, mas,

por outro lado, na mesma medida, provocou um sentimento de “gratidão e

respeito humilde diante da sabedoria da organização da natureza exterior”133.

Assim, também o conhecimento mais detalhado das leis e mecanismos do

inconsciente no sonho eliminou a crença na presença imediata de demônios e

espíritos, ou na transcendência de certas experiências oníricas. Por outro lado,

o conhecimento da Psicanálise permite compreender e justificar o respeito e

valorização dos antigos em relação ao sonho num nível mais profundo.

Drewermann lembra que foram os gregos os primeiros a proporem um

interpretação do sonho não como intervenção de deuses e demônios, mas

enquanto fenômeno psicológico. Cita a afirmação de Aristóteles mencionada

por Freud em A Interpretação dos Sonhos : “O sonhar é evidentemente a vida

da alma durante o sono”134. Porém, junto com esta constatação veio, por uma

lado, a negação da significação religiosa do sonho e, por outro lado, não

forneceu o instrumental que permitisse compreender as imagens oníricas em

seu significado psicológico. Isso implicou uma relação com o sonho como algo

que está fora do alcance da razão e que, por isso, não pode ser levado muito a

sério.

133
TuEx p. 107
134
Citado em TuEx p.108

86
87 87

Drewermann sugere que o empobrecimento do significado do sonho na

religião é um indicativo para o enfraquecimento da intensidade da experiência

religiosa mesmo.135

Assim, coube à Psicanálise, depois de séculos, redescobrir um conhecimento

acerca do ser humano que na religião da antigüidade era vivo e, em grande

parte, foi perdido .

A perda da relação com o sonho implicou um pensar a religiosidade humana

voltado e orientado a partir da exterioridade. O sonho é, para Drewermann, um

caminho para se redescobrir o significado da religião a partir da interioridade.

Porém, para se recuperar este caminho para a Teologia faz-se necessário ouvir

a psicologia.

No que segue, Drewermann procura descrever alguns aspectos que

caracterizam a dinâmica e o significado do sonho↓.

a) as funções do sono

Durante o sono o corpo humano produz diferentes hormônios que aumentam e

diminuem em determinadas fases. Estes hormônios tem a finalidade de

proteger o organismo de estímulos internos e externos visando garantir uma

regeneração do mesmo. Quando esta regeneração atinge um grau aceitável, a

produção destes hormônios diminui e a pessoa é gradativamente exposta aos

estímulos. É nas últimas horas de sono que os sonhos ocorrem e, assim,

representam um estado psíquico intermediário no qual o mundo exterior ainda

não é percebido em plena consciência mas no qual o trabalho psíquico já está

135
TuEx p. 109

87
88 88

funcionando.136 É desta posição intermediária que deriva a tarefa do sonho:

proteger o sono por meios psíquicos contra estímulos externos e internos para

garantir a regeneração do organismo. Do ponto de vista psíquico o caracter

regenerativo do sono se baseia no fenômeno da regressão. O sono, via de regra,

se dá em condições muito semelhantes ao estado de aconchego pré-natal.

Nesse estado o sonho se equipara à uma regressão ao estado emocional que

um bebe sente quando adormece junto ao seio da mãe.137

b) a psicodinâmica do inconsciente

Com sua descontinuidade lógica, associações superficiais e expressões

irracionais, o caracter regressivo da atividade onírica implica numa perda do

controle da consciência pelo Ego. É um processo autônomo no qual o eu é

espectador e as forças do inconsciente representam um poder sobre o qual o eu

da consciência não tem controle. Nesse processo regressivo, além do

rebaixamento da consciência, é ativado um nível da atividade psíquica que

pode ser filo- e ontogeneticamente considerado arcaico. 138

Enquanto que o pensamento da consciência está vinculado à palavra, a

experiência onírica é essencialmente visual. Em termos de história do

desenvolvimento ela é anterior à palavra e, por isso, nela predominam as

imagens ao invés dos pensamentos. Isso implica em outra estrutura.139

O aspecto regressivo ao mundo das representações pelas imagens determina,

em parte, o conteúdos do sonho. Experiências de vivências atuais são, por

136
TuEx p. 110
137
TuEx p. 111
138
TuEx p. 112
139
Representações de causalide, por exemplo, são apresentadas em sequência.

88
89 89

associações, desencadeadoras de experiências anteriores, geralmente da

infância. Ocorre assim, no sonho, uma condensação e sobredeterminação de

vivências. A experiência anterior pode, assim, servir de modelo para a

experiência atual.

Drewermann afirma que “O tipo da experiência individual é pré-caracterizada

pelas cenas arquetípicas a partir da lembrança da história do desenvolvimento

coletivo da humanidade e as imagens nas quais o indivíduo sonha sua própria

história são as mesmas nas quais os mitos e sagas dos povos procuram

demonstrar seu percurso e destino.”140 Drewermann assume a compreensão de

C.G. Jung de que no sonho ocorre uma fusão do inconsciente individual com

as reservas de experiências coletivas da psique humana e que entre esses dois

níveis há um constante intercâmbio.141 Assim, certos elementos da natureza

que impregnaram no inconsciente uma inter-relação com certos impulsos e

necessidades tornam-se símbolos arquetípicos para experiências psíquicas.

A possibilidade de fusão de experiências individuais e coletivas é determinada

pela atemporalidade que caracteriza o sonho. Nenhum conteúdo inconsciente

está sujeito à temporalidade.

3.4.3 Processos de Cura e Renovação Psíquica no Sonho

140
TuEx p. 112-113
141
TuEx p. 113

89
90 90

O fato da regressão possibilita uma economia de forças e energias. Porém o

seu significado não se restringe ao aspecto energético. Muito mais, ele reside

no processo de ativar conteúdos inconscientes.

Enquanto que no processo regressivo durante o sono, respectivamente o sonho,

a realidade do mundo exterior é suspensa, o trabalho com a superação de

conflitos do cotidiano é continuado no inconsciente. Ali, em função da

atemporalidade do inconsciente, podem aparecer conexões da experiência do

cotidiano e suas dificuldades com determinantes originais destas dificuldades

que foram recalcadas no plano da consciência e, pelo sonho, são trazidas

diante do ‘eu’ do sujeito que dorme.

O sonho, enquanto regressão, favorece a percepção da parcialidade da

consciência e pode complementar essa percepção pelo reavivamento de

camadas da psique até então não utilizadas, proporcionando, assim, um

enriquecimento e um processo de cura ou superação de dificuldades com

meios que a consciência não dispõe.

Drewermann afirma que “... de forma semelhante ao organismo físico que

dispõe de uma variedade de possibilidades de cura que escapam ao

conhecimento da razão, assim também a psique possui, a partir da memória

coletiva da espécie, um tesouro de experiências da arte de viver e sabedoria

que é muito superior ao juízo da razão”142.

O material dos sonhos permite reconhecer a psicodinâmica da pessoa que

sonha, na medida em que evidencia influências inconscientes que desde a

infância condicionam a forma como a pessoa se posiciona diante das situações

142
TuEx p. 115

90
91 91

que experimenta. Por outro lado também permite reconhecer possibilidades de

encaminhamento e soluções que o inconsciente oferece.

3.4.4 - O Significado dos Sonhos na História das Religiões

Para Drewermann é a partir do significado psicológico dos sonhos que se pode


143
compreender o valor de “revelação de forças divinas” atribuído a ele nas

religiões da antigüidade como também nas, assim chamadas, religiões tribais

primitivas.

A experiência onírica permite encontrar não apenas a explicação de inúmeras

noções acerca de demônios, espíritos, profecias, magias e rituais, mas também

os seus estilos narrativos, como o mito, os contos, sagas, lendas, histórias de

milagres, visões etc.

“ Muito longe de ser testemunha de simples «fantasia», essas narrativas

apresentam um testemunho para a realidade e eficiência das forças psíquicas

nas camadas profundas da psique humana”. 144

É a partir da compreensão do sonho que se pode perceber a unidade e

proximidade entre estes estilos narrativos.

Drewermann lembra que F. Nietzsche mencionou o sonho como lugar de

nascimento dos deuses e de todas grandes idéias filosóficas.145

O mais importante fenômeno da história das religiões que basicamente pode

ser compreendido a partir do sonho, segundo Drewermann, é a crença em

143
TuEx p. 116
144
TuEx p.116 “Weit davon entfernt, das Zeugnis bloßer » Phantasie « zu sein, legen gerade diese
Erzählungen ein Zuegnis für die Wirklichkeit und Wirksamkeit der seelischen Kräften in den
Tiefenschichten der menschlichen Psyche ab”.

91
92 92

espíritos e almas. Assim como o sonho, também ela, é rechaçada em nome da

fé monoteísta. Porém, apesar de ser de origem pagã, também encontra sua

expressão no contexto bíblico (Cf.1 Sm 28, 1-25).

Drewermann lembra que na teoria do sonho ‘pré-aristotélica’ imperava a

noção metafísica, no sentido de reconhecer o que foi vivido no sonho como um

realidade em si, objetiva.

A compreensão aristotélica do sonho como atividade psíquica destruiu tal

metafísica.

Drewermann afirma que os pré-aristotélicos ao supor a existência de uma

realidade subjetiva independente da vontade do ‘eu’ consciente, enganaram-se

apenas ao atribuir-lhe um caracter metafísico ao invés de psíquico.

Para se entender a experiência que está por trás deste fenômeno é preciso

considerar que para a experiência das religiões antigas os mortos não podem

estar mortos se aprecem nos sonhos da noite. Geralmente estes aparecem nos

sonhos oferecendo ajuda, reivindicando ou questionando. A necessidade de

proteger-se dos mortos ou buscar a sua ajuda fez com que se desenvolvesse

uma técnica de, através de determinadas práticas, invocá-los para se

manifestarem de forma visível a partir do sub-mundo. Drewermann afirma

que, do ponto de vista da psicologia da religião, estes rituais correspondem a

um rebaixamento da consciência, assim como acontece naturalmente durante o

sono. O sub-mundo no qual estariam os mortos seria o equivalente ao

inconsciente da pessoa que pratica o ritual. A ‘imago’ dos familiares se

apresentaria como uma entidade autônoma diante do ‘eu’.

145
TuEx p. 116

92
93 93

Assim, como os mortos continuam vivos, deriva-se a conseqüência que

também os vivos não morrerão de fato. Em função da atemporalidade e

inespacialidade do inconsciente, que permite a presença em espaços e tempos

remotos, supõe-se a existência dos mortos como um espírito ou alma não

atrelada aos limites da corporalidade.

No sonho a própria alma aparece como uma entidade própria que transcende os

limites de tempo e espaço, os personagens (Gestalten), introjetados, das

relações da infância aparecem como que materialmente presentes e, sobretudo,

aquelas partes da própria psique que foram excluídas, características do

psicótico, aparecem em forma de anjos e demônios, de bruxas e fadas.

Sob os pressupostos da compreensão metafísica do sonho, afirma

Drewermann, é evidente que as aparições oníricas e visões psicóticas fornam o

fundamento para a fé em espíritos e demônios e fazem com que estas forças do

inconsciente sejam concebidas como seres divinos passivos de evocação

através de certas práticas que implicam num rebaixamento da consciência.

3.4.5 Magia e Rito, Oráculo, Cura Milagrosa e Animismo

A partir do sonho apresenta-se a possibilidade de compreensão de narrativas

de fenômenos extraordinários como magia, rito, oráculo e curas milagrosas.

Nestes casos trata-se, segundo Drewermann, de uma “demonstração do agir e

das ações de certas forças do psiquismo que até então estavam ocultas à

93
94 94

consciência e passaram a se manifestar em forma de certos sintomas e

formações sintomáticas para a cura ou prejuízo de pessoas isoladas”146.

A relação de compreensão deste tipo de narrativa, seja no contexto da tradição

bíblica ou fora dela, com a experiência onírica dá-se devido ao fato de que o

pensamento simbólico que se manifesta no sonho afeta toda a relação da

experiência psíquica com a vida na sociedade, no sentido de fornecer

esquemas de interpretação.

Drewermann relaciona o animismo enquanto expressão da crença de que todas

as coisas possuem alma e tem uma comunhão essencial com a faculdade do

psiquismo de projetar atributos humanos sobre todos os seres e, ao contrário

desse movimento, pela identificação, equiparar-se com as coisas à sua volta.147

O animismo caracterizaria, segundo Drewermann, uma posição que

corresponde à experiência onírica ou situações semelhantes a do sonho.

No sonho, como também na psicose, ocorre uma supressão dos limites da

consciência individual com o mundo exterior e supõe-se nestes estados que

dos elementos da natureza possam vir as respostas para o sentido do ‘Ser-aí’.

“Especialmente as imagens arquetípicas do psiquismo humano sugerem,

sempre de novo, o sentimento de um parentesco interior e comunhão essencial

de sujeito e objeto, de dentro e fora, de experiência consigo mesmo e

experiência com o mundo, pois seu simbolismo formou-se a partir da memória

146
TuEx p. 122
147
TuEx p. 123 Dewermann lembra que para muitos pesquisadores da história da religião este fenômeno é
considerado a origem de toda religião.

94
95 95

da evolução no trato com as forças da natureza e apresenta, de certa forma, um

pedaço do mundo exterior introjetado no interior do sujeito.”148

Neste sentido Drewermann afirma uma correspondência dos conteúdos

profundos da psique humana com as experiências do ser humano com o mundo

exterior no processo da evolução. Sugere que essa correspondência, via

introjeção e identificação, é a base para a compreensão da harmonia entre a

psique e o cosmos, assim como é pressuposto em algumas expressões da

religiosidade, por exemplo do Pytagoreus. Essa correspondência facilita a

compreensão de que no sonho poderiam se encontrar prenúncios de

acontecimentos futuros, relativos à natureza.

A tradição dos oráculo e magia estão diretamente relacionados à essa

compreensão da harmonia entre psiquismo e cosmos. A tradição dos oráculos

representa a tentativa de, sob certas condições de espaço e conduta

(isolamento, jejum etc.) que favorecem um rebaixamento da consciência,

através de sonhos, obter visões que contenham respostas à questões que se

apresentam em certas ocasiões.

Da mesma forma, os rituais de magia tem sua base nesta mesma compreensão

de harmonia. Porém, no ritual de magia o propósito não seria o de obter

conhecimento, mas de provocar um acontecimento no mundo exterior, pela

representação de imagens analógicas. Assim, por exemplo, lágrimas

equivaleriam à chuva, um sopro ao vento. Pressupõe-se nestes casos que pela

associação o semelhante pode provocar algo semelhante. Pressuposto típico

148
TuEx p. 124. “Besonders die Archetypischen Bilder der menschliche Psyche legen immer wieder das
Gefühl einer inneren Verwandschaft und Wesenseinheit von Subjekt und Objekt, vom Innen und
Außen, von Selbsterfahrung und Welterfahrung nahe, denn ihre Symbolik hat sich selbst aus dem
Gedächtnis der Evolution im Umgang mit den Mächten der Natur gebildet und stellt gewissermaßen
ein Stück verinnerter Außenwelt im Inneren des Subjekts dar.”

95
96 96

para o sonho e a experiência do psicótico. O símbólico pode provocar/ causar o

real.149

Porém, é nas curas milagrosas que percebemos a importância do sonho, dos

oráculos e rituais de magia. Nelas se expressa o conhecimento pela relação

entre processos psíquicos e somáticos.

A prática da medicina schamanística se baseia e tem sua autorização numa

convocação e conhecimento mediado pelo sonho. Pelos rituais o doente é

‘trazido’ para dentro do “poder das imagens do próprio sonho”150, sendo que a

tarefa do schamã consiste em orientar para que o doente encontre o caminho

“para o sonhar correto, proporcionador de unidade, para uma volta ao centro

do ‘Ser-aí’.”151 O sonho seria, assim, o lugar de contato com as forças

(demoníacas) que causam a doença.

Drewermann ressalta que esta compreensão corresponde à noção da

Psicanálise ao entender os conflitos recalcados da psique como os ‘demônios’

do inconsciente que encontram na formação de sintomas e doenças o seu

caminho para a consciência.

3.4.6 Os Estilos Narrativos na Perspectiva do Sonho

149
TuEx p. 128
150
TuEx p. 130
151
TuEx p. 130 “zum richtigem, einheitsstiftenden Träumen, zu einer Rückkehr in die Mitte des
Daseins”

96
97 97

As narrativas de mitos, contos, sagas e lendas são compreensíveis apenas em

sua referência coletiva. Afirma Drewermann que estes estilos surgem em

virtude da “... projeção de determinadas imagens oníricas na vida e vivência,

na experiência e acontecimentos de grupos sociais maiores”152. Através do

oráculo, da visão e da magia, o sonho de um indivíduo torna-se a base de

decisões coletivas.

a) Do Sonho ao Mito

Drewermann situa o mito no limite entre o sonho individual e a história grupal

(tribal), entre simbolismo individual e coletivo.

O mito se dá quando a linguagem simbólica do sonho de um indivíduo não

reflete apenas a sedimentação de experiências individuais mas,

simultaneamente, condensa, explica e performa as vivências de um grupo

humano maior.

“ Na medida em que no sonho impressões infantis primárias se

condensam em imagens atemporais da essência da personalidade do

sonhador, fazendo com que dessa forma o passado se una ao presente,

surge no individual uma estrutura simbólica na qual diacronia e

sincronia se fundem de uma maneira válida. E, é esta a mesma estrutura

que caracteriza o mito.”153

O fato de que os símbolos tem a capacidade de expressar aquilo que

arquetipicamente se encontra em cada ser humano possibilita que o sonho

individual e o coletivo se unam. Quanto mais fundamental e profunda uma

152
TuEx p. 132
153
TuEx p. 133

97
98 98

certa temática se apresenta no sonho de um indivíduo, tanto mais universal é

sua validade e o interesse humano por ela. Por isso os temas mais freqüentes

nos mitos das narrativas primordiais refletem conflitos que fazem parte da

condição existencial humana , o que dá a esses mitos uma validade

permanente.

A dimensão de atemporalidade e densidade do mito implica numa relação de

suspensão ( schwebendes) com a história. Os fatos históricos são menos

relevantes.

Na medida em que o mito tenta articular as forças e conflitos que estão no

“pano de fundo” da história, ele toma certas lembranças encobridoras

(fragmentos históricos), da formação mítica de um indivíduo que, em

conseqüência de sua densidade afetiva e simbólica, impregnam a atividade

fantasiosa coletiva, condensando esses fragmentos em imagens atemporais

referentes à caracterização da essência dessa tribo ou em imagens que

explicam a condição da existência humana.

A atualidade atemporal do mito se expressa na compreensão cíclica do tempo

que o caracteriza. Assim como o sonho se equipara à repetição simbólica de

uma experiência infantil, assim também o mito é uma repetição simbólica ou

regressão a determinados fatos originais154. Da mesma forma, assim como o

sonho visa, pelo regresso, pela volta ao anterior ou mais antigo, complementar

ou renovar uma experiência atual, assim também o mito, sujeito à lei da

regressão cíclica, retoma experiências arcaicas da humanidade ou do grupo

154
TuEx p. 135 Na Psicanálise a noção da experiência cíclica costuma ser explicada pela obsessão à repetição: As
impressões inconscientes da infância pressionam para se manifestarem simbolicamente no sonho e também
determinam certas atitudes nas quais as cenas da infância se repetem quase que de forma ritual.

98
99 99

para, na atualização deste passado, mostrar sua força renovadora. O meio desta

atualização é o ritual.

O mito costuma apresentar situações nas quais a história dos humanos, dos

deuses e natureza, de forma simbólica, se cruzam e confundem. Por isso o

mito, para além de conectar e fundir a experiência de um indivíduo com a

história de sua tribo, em seu simbolismo também funde história e natureza.

Assim, pode-se caracterizar o mito como uma sociologia, por possibilitar uma

ligação do indivíduo com a comunidade; uma filosofia da história, por

possibilitar uma ligação do passado com o presente; uma psicologia, por

possibilitar uma ligação do ser humano com sua natureza interior; uma

cosmologia ou ciência natural, por possibilitar uma ligação do ser humano com

a natureza exterior.155

Em todos os momento ele apresenta uma espécie de ‘Teologia de imagens’

pela qual oferece ao ser humano uma relação com o tempo e o espaço e para

com a sociedade e a psique.

Afirma Drewermann “... o mito (...) apesar de toda a ambivalência a que está

preso o pensar em símbolos (...) procura fazer de forma exemplar, o que cada

religião empreende à sua maneira: conduzir o ser humano ao centro da

realidade e conectá-lo com as forças da natureza interior e exterior ...”156.

Conforme Drewermann o que separa a Teologia Bíblica do mito é a descoberta

da individualidade e personalidade do divino e de cada pessoa. Porém, afirma

“ somente se essa descoberta integra e não recalca o mundo das imagens

155
TuEx p. 137
156
TuEx p. 138

99
100 100

arquetípicas nas camadas profundas da psique humana, [ela] preserva sua

humanidade e verdade”157.

A cultura moderna com sua fragmentação tem dificuldade de entender a

unidade que o mito proporciona. Neste sentido Drewermann também critica a

Psicanálise quando esta interpreta o mito apenas no seu sentido psíquico,

mesmo que tenha sido ela quem possibilitou a redescoberta da compreensão do

mito como expressão da relação do ser humano com a natureza que o cerca.158

Segundo Drewermann, no que se refere a interpretação dos símbolos oníricos,

a Psicanálise terá chegado a seu objetivo quando possibilitar à pessoa

reconhecer-se na natureza e reconhecer a natureza em si mesma.159

Drewermann afirma que o estilo narrativo do conto está intimamente ligado ao

mito, porém, apresenta em relação a este algumas diferenças.

Enquanto o mito tem uma relação com seu ambiente socio-cultural e apresenta

temáticas cuja verdade transcende o tempo e o espaço, o conto perde esta

vinculação contextual e adquire uma universalidade e liberdade que o mito não

apresenta. “Contos surgem imediatamente quando os mitos são despidos de

sua roupagem religiosa”160. Neste sentido o conto é a continuidade de

fragmentos do mito.

Os personagens do conto tem uma caracterização tipológica que consiste num

simbolismo de elementos humanos essenciais, arquetípicos, não determinados

social- e historicamente. Essa tipologia é psicológica “Nicht

157
TuEx p. 138
158
Relação que se dá pela projeção e identificação introjetiva.
159
Drewermann entende que o ser humano formou suas imagens a respeito de si mesmo pela observação da
natureza, introjetando essa percepção ao longo do processo evolutivo e, posteriormente, reprojetou essas
imagens sobre a natureza.
160
TuEx p. 141

100
101 101

Menschheitsschicksale, nur charaktere, nicht Zeit und Ewigkeit, nur seelische

Entwicklungen sind Gegenstand des Märchens”161. Por isso os contos não

apresentam as ambivalências e polaridades que caracterizam a dimensão da

tragédia mas, antes, mostra como contradições insuperáveis na natureza podem

ter um bom desfecho no “coração de uma pessoa”162. As contradições da

natureza podem ser psicologicamente integradas.

3. 5 O Nascimento Virginal de Jesus: Um Exemplo de


Interpretação na Perspectiva da Psicologia Profunda

O que apresentei nesse capítulo III é uma pequena parte do que constitui o

pensamento e metodologia que Drewermann expõe na sua obra

“Tifenpsychologie und Exegese”163. Nessa mesma obra Drewermann apresenta

alguns exemplos de interpretação de textos bíblicos nos quais exercita seus

pressupostos hermenêuticos. Com a finalidade de ilustração apresento a seguir,

de forma sucinta, alguns aspectos que Drewermann ressalta em um desses

exemplos.164 A escolha do relato do nascimento de Jesus se deve ao fato de

que seu gênero literário, conforme Drewermann, não permite que se distinga

claramente entre mito, saga, lenda e conto. Trata-se de um conjunto de estilos

narrativos que, numa perspectiva psicológica, se juntam num todo de sentido

cujo significado vale para todas as épocas e lugares.

161
TuEx p. 145
162
TuEx p. 146
163
op. Cit.
164
Toda exposição que segue é uma reprodução resumida do que Drewermann apresenta em TuEx. pp 502 - 512.

101
102 102

No início da interpretação Drewermann ressalta que, com exceção de um rei

como Herodes, os elementos da narrativa - estrela que guia, anjos, magos que

adoram, são elementos que não fazem parte da realidade dos fatos exteriores,

do mundo que conhecemos. Para Drewermann são, antes, elementos de uma

“visão do coração”, da mesma forma que o “ ‘nascimento virginal’, enquanto

símbolo mítico [é] um milagre da alma, não do corpo, uma mudança e

renovação da consciência, e não um fato externo”.165

a) O nascimento virginal

De forma semelhante aos mitos de heróis e salvadores, nos quais o nascimento

do salvador é virginal e ocorre sob fortes resistências e dificuldades, também

pessoas quando sonham de sua própria ‘redenção’166 esboçam em seu

inconsciente a imagem da criança divina nascida virginalmente. Drewermann

afirma que o símbolo da criança, enquanto representação da vida, se impõe

quando a pessoa procura se libertar justamente da obsessão de querer ser

‘grande’, de pensar que só pode ser, quando for madura, perfeita. Sob a

pressão dessa exigência esboça-se o desejo de que ‘tudo passe de uma vez’ ou,

de poder começar tudo de novo. Porém, desta vez de forma mais verdadeira,

mais generosa, podendo permitir-se ser independente de seus atributos e

méritos. Assim como uma criança que, pelo simples fato de estar aí merece o

direito de ser amada. Poder pensar assim a respeito de si mesmo seria a

libertação. Perceber a própria existência como um ‘‘Ser-aí’’ justificado, dando

ouvidos e legitimidade àquilo que se manifesta dentro do sujeito mesmo, sua

espontaneidade, seus sentimentos e desejos.

165
TuEx. p. 503
166
O termo alemão ‘Erlösung’ refere-se tanto a libertação quanto à redenção.

102
103 103

Para a própria razão e vontade um ‘‘Ser-aí’’ assim parece inconcebível e

ilegítimo, de forma que os desejos que nele se manifestam são concebidos

como imorais e desprezíveis, evocando uma enorme resistência.

O símbolo da criança nascida virginalmente não afirma algo da ordem do

‘infantil’ mas uma postura que, contra todo medo existencial e sentimento de

não ser justificada, não precisa ser ‘adulta’ ou ‘madura’ para poder ser. Antes,

afirma a possibilidade de ser não perfeita, inacabada, espontânea. Diz o

Evangelho que essa criança sempre vem ao mundo através de um nascimento

virginal: trata-se de algo que não é produzido, que nasce em nós mesmos sem

que nós o tenhamos feito.

O símbolo mítico para esta ‘gestallt’ não produzida, não feita, portanto,

virginal, apresenta-se nos sonhos e nos mitos como criança divina. A ela

sempre se contrapõe, nos mitos e sonhos, a figura do ‘homem’, de ‘José’ como

representante da esfera da consciência e da razão. Sempre quando esta criança

está se desenvolvendo no inconsciente surge na consciência, representada por

José, o medo da vergonha e desejo de abandonar a ‘mulher’ que está gestando

o que poderia nos salvar. Na ‘criança’ nascida virginalmente reside tudo pelo

que se sente saudade mas, ao mesmo tempo se teme. Assim, “... a «mulher» é

simultaneamente a representante da humanidade caída e a mãe de nosso

salvador, uma segunda Eva e ao mesmo tempo uma Madona”.167 O conflito de

«José» é, para Drewermann, o conflito do Ego diante daquilo que é seu mas

não pode ser reconhecido como seu porque procede de uma camada mais

profunda de seu psiquismo e lhe aparece como perturbador e estranho, de

forma que precisa proteger-se disso. Por isso afirma Drewermann: “O

103
104 104

Evangelho de Mateus têm toda razão: sem a aparição de um «anjo» no sonho (

Mt. 1,20) o «homem» da «virgem» nunca assumirá uma postura de

reconhecimento para sua «criança».”168

b) A mensagem do anjo e dos sonhos

Nos mitos, contos e outras narrativas dos antigos, a figura do anjo ou do

espírito aparece, na perspectiva psicológica, sempre como a ‘Gestallt’

primordial da própria pessoa. Teologicamente, afirma Drewermann, na figura

do anjo Deus fala ao ser humano na ‘gestallt” da própria essência desse

humano. Essa figura se manifesta apenas na profundeza da alma, nos sonhos

inconscientes, nunca no estado de vigília, na consciência. Ali admoesta,

orienta, revela e protege. Nesse sentido sonho não significa fantasiar de forma

arbitrária mas voltar-se silenciosamente para seu próprio interior e escutar a

própria essência antes do abrir-se para a realidade exterior.

O homem «José», ele mesmo uma figura simbólica da consciência, só

consegue compreender o que está acontecendo através do sonho, da linguagem

de suas imagens. E isso não porque essas imagens sejam apenas ‘sonhos’, mas

porque elas descrevem aquilo que “Deus colocou no coração de cada pessoa e

quer trazer para a libertação”.169 Por isso a consciência ( José) deve obedecer e

aceitar a mãe e a criança, aquilo que iniciou sem seu querer e que ele não pode

entender, aquilo que Deus colocou em sua alma, aquela ‘virgem’ que Deus

colocou a seu lado. Como a ‘Jesus’- o ‘salvador’, como aquilo que a partir de

Deus quer viver nele, José deve compreender a ‘criança’ que vai nascer.

167
TuEx. Op. Cit. p.508
168
TuEx. p. 508
169
TuEx. p. 510

104
105 105

Não é mero acaso que o anjo fundamenta sua missão numa palavra da tradição:

a ‘criança’, o novo, surge de uma maneira completamente inesperada. No

entanto, quando se ouve o ‘anjo’, ouve-se em si mesmo “textos” muito antigos

nos quais isso há muito tempo já estava prenunciado. Justamente no momento

em que se está mais inseguro e amedrontado, quando, por medo, se está

inclinado a jogar fora aquilo que na verdade poderia salvar, o anjo lembra

aquelas ‘palavras’ que se conhece há tempo, mas que por medo nunca se pôs

em relação a própria vida, i. é. a si mesmo.

“Libertação dos pecados” é uma expressão vinculada ao nascimento virginal

da criança. Drewermann afirma que toda obsessão por ser perfeito, ‘grande’ se

origina e fundamenta no sentimento de culpa. Pela sensação de ter que

justificar e defender-se constantemente impõe o desejo de ser maior do que se

é, em outras palavras, de ser outro em relação àquilo que em verdade se é. Na

imagem da criança divina soa algo como uma nova auto-compreensão, algo

“do sentimento de poder ser simplesmente pela graça. Se algo pode salvar,

então é isso.”170

Receber essa criança enquanto expressão de uma possibilidade de ser

incondicional provoca uma enorme resistência na pessoa mesmo, quando está

vive sob o imperativo do medo. Mas, mais ainda, esta criança encontra

resistências no mundo das relações externas, habitados por reis como Herodes

e muitos outros. O Evangelho do nascimento de Cristo nos conta como essa

‘história’ continua... Porém, interpreta-la aqui ultrapassaria os limites do que

esse trabalho propõe.

170
TuEx. p. 511

105
106 106

4.0 - DREWERMANN DIANTE DA CRÍTICA TEOLÓGICA

Junto ao público leigo o pensamento de Drewermann goza de uma enorme

receptividade e prestígio. O mesmo não se pode dizer de sua receptividade

junto a seus colegas teólogos e acadêmicos. Nesse meio percebe-se uma certa

reserva e muitos questionamentos.

Embora não seja minha intenção especial fazer um estudo da receptividade e

das críticas de outros teólogos à obra de Drewermann, procuro a seguir

apresentar algumas das questões que mereceram críticas sem, contudo, discutir

o seu mérito. No capítulo seguinte procuro esboçar e formular minhas próprias

críticas onde procurarei retomar e ampliar algumas delas.

A fim de facilitar a apresentação dessas críticas procura agrupá-las em torno de

temas específicos.

106
107 107

Posição de Drewermann frente ao Método Histórico Critico

Esse é um dos pontos mencionados com muita freqüência pelos críticos.

Refere-se ao fato que Drewermann desqualifica o MHC com muita aspereza,

negando-lhe a legitimidade teológica por não propiciar uma mediação do texto

sagrado com o leitor de forma que este seja implicado existencialmente.

Atribui isso ao fato de que o MHC se concentra em fatos exteriores, aos

aspectos de informação histórica que o texto contém. Para os críticos isso

significa que Drewermann considera apenas a realidade psíquica de relevância

teológica.

Drewermann afirma ainda que o MHC é expressão de um reducionismo

racionalista da teologia cristã. Por isso responsabiliza esse método pela

destruição dos fundamentos da fé171 e de aumentar o sofrimento humano por

mostrar-se passivo diante dele.172 Em contrapartida, os críticos173 afirmam que

Drewermann desconhece o MHC, pois a afirmação de que o MHC se ocupou

ou ocupa exclusivamente da história é uma simplificação e reducionismo,

tendo em vista que também entre os exegetas do campo do MHC muitos têm

se ocupado com questões da Psicologia Profunda no trabalho exegético,

embora Drewermann aparente desconhecê-los. Por outro lado Drewermann

realmente sugere trocar um, suposto, monopólio da interpretação por outro, i.

é. do MHC pela Psicologia Profunda, ignorando o fato de que o sob o MHC

estão subsumidos muitos diferentes métodos de interpretação( da lingüística,

da sociologia, da Crítica da Religião e outros). Com esse reducionismo

171
LOHFINK, G. & PESCH, R. Op. Cit. p.11
172
Idem, p. 13
173
Venet, Herrmann-J. “Mit dem Traum, nicht mit dem Wort ist zu beginnen” Tiefenpsychologie als
Herausforderung für die Exege? In: Der Streit um Drewermann. Op. Cit. 30

107
108 108

Drewermann força a opção em favor de um monismo metodológico que não é

necessário.

De uma forma geral à critica à Drewermann não se refere tanto aos limites que

ele aponta no MHC, mas ao fato de pretender apresentar um novo paradigma

teológico, com o qual sugere a superação de todos outros.

A Psicologia Profunda como Metateoria da Religião

Drewermann apresenta a Psicologia Profunda como único saber capaz de

propiciar uma hermenêutica adequada para a interpretação religiosa de textos

religiosos. Os dispositivos oferecidos pela Psicologia Profunda são a

interpretação dos sonhos e psicologia dos arquétipos. Na medida em que, para

Drewermann, o sonho é “ ... o pai de todas as coisas relevantes para a

religião...”174 a Psicologia Profunda se torna a chave hermenêutica de toda

hermenêutica de textos religiosos e aos arquétipos é atribuída a única forma

pela qual Deus fala ao ser humano.175

A essa posição é contraposta a afirmação de que “... a tradição bíblica

conhece outras formas do falar de Deus, por exemplo seu falar através de

acontecimentos históricos e através da palavra profética.”176 Afirmam ainda

que decorre dessa posição de Drewermann um deslocamento do fundamento

da Igreja e da fé em fatos históricos e únicos para o semper et ubique dos

arquétipos da psique humana.

174
TuEx I, p. 155
175
Lohfink & Pesch, op. Cit. P. 22
176
Idem p. 22

108
109 109

A contemporaneidade de leitor e texto na interpretação corre o risco de não

superar apenas a distância mas de apagar aquilo que é único e irrepetível, a

diferença. Por isso a interpretação de um texto antigo requer que não se

pergunte apenas ao interlocutor mas também a outros métodos e saberes. Isso

fica ainda mais evidente quando Drewermann atribui a teoria arquétipos uma

validade universal, na qual processos históricos são descartados177.

Equiparação de Religião com Revelação

G. Lohfink e R. Pesch afirmam que Drewermann, por não reconhecer a marca

da inconfundibilidade que personagens bíblicos têm em função da história da

revelação, sugere serem também eles figuras de expressão de manifestações da

psique humana que se apresentam em todos lugares e, ao compará-los com

outros personagens dos mitos, contos e lendas178 qualifica o cristianismo de

religião. Em contrapartida, para eles “Revelação está vinculada à história, à

constelação concreta de pessoas e sua liberdade, em tempos e lugares; religião,

ao contrário, não está assim vinculada”179. A valorização das imagens

arquetípicas como verdades absolutas, infalíveis, faz com que sua concepção

se aproxime de uma “...gnosis cristã, uma nova - cunhada pela Psicologia

Profunda - velha religião.”180 Isso sugere a dissolução da dimensão única e

nova da igreja cristã, enfim da história da salvação, e pressupõe uma

similaridade entre o cristianismo e outras religiões. Essa similaridade é

177
Veja: Funke,D. EwigeUrbilder? Einige Anmerkungen zu Drewermanns tiefenpsychologischer Hermeneutik.
In: Der Strei um Drewermann, op. Cit. 53
178
Idem p. 28
179
Idem, p. 29
180
Idem, p. 32

109
110 110

baseada nas imagens arquetípicas e na compreensão de que encontrar a Deus é

idêntico ao encontrar a si mesmo.181

A superação do medo como tema central da religião

Com auxílio da Psicologia Profunda Drewermann atribui à categoria medo o

tema central da religião. Compreende a superação do estado de medo e o

estabelecimento de um estado de confiança coma a tarefa essencial da religião,

entendendo esse salto qualitativo na vida do ser humano como a salvação182.

Com isso transforma a categoria medo na constante antropológica que

funciona como a experiência humana que proporciona a contemporaneidade do

leitor com o texto bíblico ou, do presente com o passado.

Para Lohfink e Pesch a alternativa medo - confiança não é a verdadeira

alternativa na teologia cristã. Esta é, antes falta de fé - fé. Para M. Kassel183

uma hermenêutica cuja mediação é a experiência do medo é muito estreita e

unilateral, pois leva a uma “patologização” da religião. De outra forma, definir

a experiência religiosa enquanto superação do medo faz com que Drewermann

não reconheça outras dimensões relevantes em temas como, por exemplo,

ressurreição e imortalidade, pois a religião não se esgota em oferecer cura de

doenças de angústia neurótica. Porém, também essa experiência de superação

do medo pode ser uma experiência comunitária e não apenas individual.

O Cristianismo como Religião do Indivíduo

181
Idem p. 34
182
TuEx. II, p. 34

Veja: KASSEL, Maria. Durchgeisternde Angst. in: LUTHERISCHE


183

MONATSHEFT, Hannover. Lutherisches Verlagshaus. Heft 6. Pp 93ss.

110
111 111

Especialmente Lohfink e Pesch184 criticam em Drewermann o fato de acentuar

o papel do indivíduo na questão religiosa, em detrimento da noção da ekklesia

e suas comunidades, enquanto povo de Deus, e justificar essa valorização a

partir do cristianismo, na medida em que afirma ter ele reintroduzido temas

mitológicos que o reaproximam da mitologia pagã . Os autores insistem na

afirmação de que o endereçado da mensagem de textos bíblicos é a

comunidade e não o indivíduo.

5. POSICIONAMENTO CRÍTICO

111
112 112

No início desta pesquisa havia uma motivação especial. Procurava conhecer as

possibilidades de relação entre Psicanálise e Teologia e perguntava por um

modo apropriado de pensar e articular essa relação. Em virtude de um contato

prévio e parcial com a obra de Eugen Drewermann, surgiu um desejo de maior

conhecimento da mesma, na medida em que vislumbrava encontrar nela

algumas pistas para minhas questões a respeito da relação entre Teologia e

Psicanálise.

No que segue procuro apresentar algumas questões que refletem meu

posicionamento frente ao pensamento de Drewermann, suas contribuições e

seus limites, e apontar para algumas perspectivas que se esboçaram como

relevantes no diálogo entre essas duas áreas.

É certo que nesse espaço não é possível fazer jus a todos méritos da obra de

Drewermann. No entanto, quero mencionar aqueles que mais chamaram minha

atenção no decorrer desta pesquisa. Tendo-se em vista o conjunto da obra,

parece-me que um dos aspectos mais importantes é o fato de ter recolocado na

discussão teológica a dimensão do psiquismo humano, especialmente do

Inconsciente. Esta noção foi negligenciada, senão reprimida ao longo da

história da teologia com a conseqüente redução da fé cristão ao âmbito de uma

racionalidade objetivante. Creio que depois da obra de Drewermann não é

mais possível pensar a Psicanálise ou, respectivamente, a Psicologia Profunda,

apenas como uma disciplina auxiliar da Teologia Prática.

184
Veja: Tiefenpsychologie und keine Exegese. Op. Ci. pp. 42ss

112
113 113

Porém, o aspecto mais interessante, a meu ver, reside no projeto metodológico

que Drewermann propõe, porém, infelizmente não sustenta. Drewermann se

propõe a elaborar uma metodologia de interpretação de textos bíblicos na qual

o sujeito da leitura esteja implicado existencialmente, de forma que, pela

proximidade estabelecida entre ambos, o leitor possa fazer uma experiência

com o sagrado. Com essa proposta Drewermann sugere uma superação da

dicotomia entre sujeito e objeto, expressão do pensamento representacional,

moderno. No pensamento representacional o conhecimento se dá ao se

estabelecer uma representação do objeto no mundo mental do sujeito, a partir

da qual o sujeito cria uma teoria sobre esse objeto, através da qual pode

exercer sobre ele uma interferência. Nesse processo o sujeito não sofre

nenhuma influência do objeto. Em contrapartida, no pensamento não

representacional, essa distinção asséptica é abandonada, pois o objeto a ser

observado produz algo, interfere no sujeito de tal forma que esta intervenção

vai influenciar como o objeto será observado. Nesse caso, o conhecimento se

constitui no processo e não está definido apriori. Embora possam existir, no

sujeito, teorias sobre o objeto, elas não necessariamente servirão para a

apreensão da verdade do objeto. Na clínica psicanalítica essa influência do

‘objeto’ observado, paciente, sobre o analista é denominada de contra-

transferência. Nesse dispositivo, o que será observado é o que o paciente

produz no analista. Nessa relação são produzidas construções teóricas que

podem, ou não, fazer sentido para o paciente. Portanto, não existe uma

compreensão pronta, apriori, que só precisa ser comunicada ao paciente e para

a qual só existe uma chave.

113
114 114

Quando Drewermann se propõe a elaborar uma metodologia de interpretação

na qual, pela contemporaneidade, o sujeito dessa interpretação esteja

implicado, ele insinua uma modalidade de lidar com textos sagrados que esteja

aberta e, assim, abandone o marco da modernidade, do pensamento

representacional.

Ao esboçar sua metodologia de interpretação, Drewermann propõe que os

textos bíblicos foram elaborados assim como propõe que sejam interpretados:

como relatos de sonhos. Propõe dois dispositivos, chaves, diferentes para a

tarefa de interpretação, ou seja, a teoria psicanalítica da interpretação dos

sonhos e a psicologia dos arquétipos. É justamente ao propor a teoria das

arquétipos que Drewermann retrocede ao marco do pensamento

representacional, pois compreende estes como a chave pela qual pode-se

chegar ao lugar onde estão as verdades do sujeito. Essas verdades já estão

aprioristicamente dadas e tem valor universal, são consideradas essências de

validade eterna (Ewig-Gültige). Por isso o caminho para o encontro com o

sagrado, pelos arquétipos, pressupõe que o sagrado tenha o mesmo rosto e faça

sentido para todos da mesma forma. Justamente ao afirmar a existência

desse alvo a que se deve chegar, já definido apriori, Drewermann

frustra em relação ao propósito que anuncia. Com isso perde-se o

aspecto da alteridade. Compreendo os arquétipos como um meio útil no

caminho, porém não como apriori absoluto onde se deva chegar. Nesse sentido

parece-me desafiador pensar, a partir do dispositivo psicanalítico, a

possibilidade de compreender o encontro com o sagrado como um caminho a

ser construído durante o processo de busca. A psicanálise não pode ser

114
115 115

compreendida como portadora de conteúdos que devem ser comunicados, mas

um saber, talvez uma arte, que procura descrever como se dão as construções e

o funcionamento do psiquismo.

Da compreensão e forma como Drewermann trabalha com a teoria dos

arquétipos deriva-se, a meu ver, outra limitação de seu pensamento. Na medida

que, como já mencionado na crítica de outros teólogos, parte do princípio de

que “as estruturas da psique humana precedem todo condicionalismo

social”185, Drewermann reforça uma compreensão da realidade enquanto

construção subjetiva, de forma que apenas a realidade psíquica passa a ter

relevância teológica. Nesse caso transforma os arquétipos na única

possibilidade pela qual Deus se revela ao ser humano e a Psicologia Profunda

na única chave hermenêutica de textos religiosos.

Embora reconheça a grande importância da obra de Drewermann na

redescoberta da dimensão do psiquismo e, portanto, da subjetividade, para a

teologia, parece-me necessário dialogar com uma Psicologia Profunda que

também seja crítica consigo mesma, isto é, aberta. Os mais recentes estudos

sobre mudanças na psicopatologias revelam que estas mudaram junto com as

mudanças da sociedade. Por isso é importante que a teologia ao dialogar com a

Psicologia Profunda se reporte a abordagens que reconheçam esses aspectos

sociais da formação do psiquismo.

Nesse sentido, considero muito importante a contribuição do pensamento de

Winnicot que sugere uma compreensão da realidade nem como mera

construção subjetiva, nem tampouco, como dado absoluto fora do sujeito, mas

185
Funke, D. “Ewige Urbilder? Einige Anmerkungen zu Drewermanns tiefenpsychologischer Hermeneutik”. In:
Der Streit um Drewermann. Op. Cit. 54

115
116 116

, antes, como o espaço de transição entre ambos. É nesse espaço de transição,

na ambigüidade do dentro e fora que o dado religioso tem o seu lugar e melhor

pode ser pensado na relação entre Teologia e Psicanálise. Essa perspectiva

parece-me desafiadora para esse propósito, pois nesse lugar é preservado o

espaço da alteridade. Deus não é só o que já desde sempre estava em mim e

apenas aguardava para ser descoberto, mas também o que é absolutamente

diferente. Pois, do contrário, como Drewermann permite seja entendido, não

haveria mais revelação fora de mim mesmo. Não seria possível pensar ou

acreditar que Deus também fala a mim pelo que está fora de mim mesmo, não

apenas fora do meu Ego, da minha consciência. Na compreensão de

Drewermann parece-me que a alteridade de Deus se restringe à alteridade entre

as diferentes instâncias do psiquismo. E não poderíamos pensar, como

aprendemos de outras teologias, que Deus nos fala também a partir de outros,

por exemplo, do grito dos pobres e excluídos?

Certamente uma obra da envergadura da de Drewermann permite ainda muitas

outras considerações sobre seus méritos e limites. Dentre esse considero

importante o fato de Drewermann conseguir comunicar com grande

conhecimento, também para leitores não especializados, uma enormidade de

material informativo. Com sua abordagem da religião Drewermann conseguiu

abrir para muitas pessoas um novo acesso para a fé. Também recolocou o

desafio e a possibilidade de se pensar a relação do Cristianismo com outras

manifestações religiosas, tanto do passado como da presente. Além disso

recuperou, através da Psicologia Profunda, a validade e o sentido de símbolos

da fé, esquecidos e desqualificados por sua não-historicidade. Porém, não é

116
117 117

possível fazer jus a todos estes, e outros, aspectos neste trabalho. Por isso vale

recomendar sua leitura...

117
118 118

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