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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO

RIO GRANDE DO SUL


DHE – DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO
CURSO DE PSICOLOGIA

O MODELO DO CÉREBRO TRIÚNICO EM INTERFACE COM


A PSICANÁLISE E OUTRAS TEORIAS TRIPARTITES DA MENTE

DORIVAL GARBINATO JUNIOR

Ijuí – RS
2018
2

DORIVAL GARBINATO JUNIOR

O MODELO DO CÉREBRO TRIÚNICO EM INTERFACE COM


A PSICANÁLISE E OUTRAS TEORIAS TRIPARTITES DA MENTE

Trabalho de Conclusão do Curso de


Psicologia – Departamento de
Humanidades e Educação – Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul – UNIJUÍ, apresentado
como requisito parcial para a obtenção do
título de Psicólogo.

Orientadora: Professora Mestre Ana Maria de Souza Dias

Ijuí – RS
2018
3

AGRADECIMENTO E DEDICATÓRIA

Agradeço o apoio e a atitude de meus pais Dorival Garbinato e


Vera (Friedrich) Garbinato, sempre presentes ao longo de
minha vida, competentes e hábeis em equilibrar seus sistemas
instintivo, emocional e lógico-racional (e espiritual) em seu
casamento de 52 anos, nas relações profissionais e sociais e
na família. A eles dedico este trabalho.
4

At any time in the past people have had views of


how the universe works which was for them
definitive, whether it was based on myths or
research, and at any time those views they held
were altered by changes in the body of knowledge.
(In: “The Day the Universe Changed”,
documentary by James Burke, 1985).

(...) dentre as referências mais recorrentes a


Freud, estão a Bíblia, Goethe e Shakespeare. (In:
“Psicanálise e literatura: fundação e função,
Eduardo Melo França, 2014, p. 266).

O ser humano é muito complexo para que uma


única teoria possa explicá-lo por inteiro. (In:
“Psicopatologia do comportamento organizacional:
organizações desorganizadas, mas produtivas”, de
Cecília Whitaker Bergamini e Rafael Tassinari,
2008, p. 39).

(...) a mente não é uma coisa simples; ao


contrário, é uma hierarquia de instâncias
superiores e subordinadas, um labirinto de
impulsos que se esforçam, independentemente
um do outro, no sentido da ação, correspondentes
à multiplicidade de instintos e de relações com o
mundo externo, muitos dos quais antagônicos e
incompatíveis (...) para ter um funcionamento
adequado é necessário que a mais elevada
dessas instâncias tenha conhecimento de tudo o
que está acontecendo e que sua vontade penetre
em tudo, de modo que possa exercer sua
influência. (In: “Uma dificuldade no caminho da
psicanálise”, Sigmund Freud, 1996 [1917], p. 151).
5

RESUMO

A temática deste trabalho focaliza “O modelo do cérebro triúnico em interface com a


psicanálise e outras teorias tripartites da mente”. A questão fundamental que orienta
a investigação é: “Afinal, o que querem os humanos?” Trata-se de uma pesquisa
bibliográfica sobre a etiologia dos conflitos internos que acometem os humanos e
que nos levam a tomarmos decisões irracionais sem sabermos o motivo.
Descrevemos conceitos da Teoria do Cérebro Triúnico (1990 [1970]), de Paul D.
MacLean, e da teoria psicanalítica (mais especificamente freudiana e lacaniana),
com ênfase no estudo de artigos sobre a aplicação do modelo macleaniano à
psicologia infantil, sobre as hierarquias neurais e mentais e sobre uma outra
proposta de integração entre a psicanálise e a neurologia. Investigamos a
possibilidade da integração da Triune Brain Theory (1990 [1970]) com a psicanálise
e com outras teorias triárquicas da mente localizadas nas psicologias, nas
literaturas, nas mitologias, nas filosofias e nas religiões. Com o auxílio da ferramenta
hermenêutica, abordamos mais detidamente o novo rumo integrativo que
vislumbramos no horizonte das diferentes teorias, que pode ajudar homens e
mulheres (e até crianças) a lidar melhor com seus conflitos intrapsíquicos inerentes a
todos nós, humanos. A título de exemplo dessa visão conciliadora, apresentamos a
perspectiva de um psicoterapeuta brasileiro sobre o tratamento das fobias e dos
medos. A resposta parece estar na própria pergunta – como sempre – porque
sabemos que não sabemos bem ao certo o que queremos. Agora (após Freud e
MacLean) sabemos ao menos que há razões bem reais para essas flagrantes
contradições, incoerências e incongruências internas que carregamos conosco na
condição de seres mortais (onto e filogeneticamente). De posse dessas informações
privilegiadas, cabe a nós valorizarmos muito mais em nossas decisões essa
instância racional de que somos dotados e que ainda é muito influenciável por drives
de nossos centros cerebrais mais antigos e voltados aos instintos básicos e às
emoções mamíferas.

Palavras-chave: Cérebro Humano. Evolução. Mitologia. Literatura. Religião.


Filosofia. Neurologia. Psicologia. Psicanálise. Cérebro triúnico. Teorias tripartites da
mente.

RESUMEN

La temática de este trabajo enfoca "El modelo del cerebro triuno en interfaz con el
psicoanálisis y otras teorías triárquicas de la mente". La cuestión fundamental que
orienta la investigación es: "Después de todo, ¿qué quieren los humanos?" Se trata
de una investigación bibliográfica sobre la etiología de los conflictos internos que
acometem los humanos y que nos llevan a tomar decisiones irracionales sin saber el
motivo. Describimos conceptos de la Teoría del Cerebro Triuno (1990 [1970]), de
Paul D. MacLean, y de la teoría psicoanalítica (más específicamente freudiana y
lacaniana), con énfasis en el estudio de los artículos sobre la aplicación del modelo
macleaniano a la psicología infantil, sobre las jerarquías neurales y mentales y sobre
otra propuesta de integración entre la psicoanálisis y la neurología. Investigamos la
posibilidad de la integración de la Triune Brain Theory (1990 [1970]) con el
psicoanálisis y con otras teorías triárquicas de la mente localizadas en las
psicologías, las literaturas, las mitologías, las filosofías y las religiones. Con el auxilio
6

de la herramienta hermenéutica, abordamos más detenidamente el nuevo rumbo


integrativo que vislumbramos en el horizonte de las diferentes teorías, que puede
ayudar a hombres y mujeres (y hasta niños) a lidiar mejor con sus conflictos
intrapsíquicos inherentes a todos nosotros, humanos. A modo de ejemplo de esta
visión conciliadora, presentamos la perspectiva de un psicoterapeuta brasileño sobre
el tratamiento de las fobias y los miedos. La respuesta parece estar en la propia
pregunta - como siempre - porque sabemos que no sabemos bien lo que queremos.
Ahora (después de Freud y MacLean) sabemos al menos que hay razones bien
reales para esas flagrantes contradicciones, incoherencias e incongruencias internas
que cargamos con nosotros en la condición de seres mortales (onto y
filogeneticamente). Ante esas informaciones privilegiadas, nos corresponde a
nosotros valorar mucho más em nuestras decisiones esa instancia racional de que
somos dotados y que aún es muy influenciable por “drives” de nuestros centros
cerebrales más antiguos y orientados a los instintos básicos y las emociones
mamíferas.

Palabras clave: Cerebro Humano. Evolución. Mitología. Literatura. Religión.


Filosofía. Neurología. Psicología. Psicoanálisis. Cerebro triuno. Teorías tripartitas de
la mente.

ABSTRACT

The theme of this work focuses on "The triune brain model in interface with
psychoanalysis and other triarchic theories of the mind". The key question guiding
research is: "What do humans want after all?" It is a bibliographic research about the
etiology of the internal conflicts that affect humans and that lead us to make irrational
decisions without knowing the reason. We describe concepts of Paul MacLean’s
Triune Brain Theory and psychoanalytic theory (more specifically Freudian and
Lacanian), with emphasis on the study of articles on the application of the MacLean
model to child psychology, on neural and mental hierarchies, and on another
proposal of integration between psychoanalysis and neurology. We investigated the
possibility of integrating the Triune Brain Theory (1990 [1970]) with psychoanalysis
and other triarchic theories found in psychologies, literatures, mythologies,
philosophies, and religions. With the help of the hermeneutic tool, we are taking a
closer look at the new integrative path that we glimpse at the horizon of different
theories, which can help men and women (and even children) better cope with their
intrapsychic conflicts inherent in all of us humans. As an example of this conciliatory
view, we present the perspective of a brazilian psychotherapist on the treatment of
phobias and fears. The answer seems to be in the question itself – as always –
because we know that we do not know for sure what we want. Now (after Freud and
MacLean) we know at least that there are very real reasons for these blatant
contradictions, inconsistencies and internal incongruities that we carry with us as
mortal beings (onto and phylogenetically). In the face of this privileged information, it
is up to us to value much more in our decisions that rational instance of which we are
endowed and that is still very much influenced by drives of our older brain centers
and directed to the basic instincts and the mammalian emotions.

Keywords: Human Brain. Evolution. Mythology. Literature. Religion. Philosophy.


Neurology. Psychology. Psychoanalysis. Triune brain. Triarchic theories of the mind.
7

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – O modelo do cérebro triúnico de Paul MacLean (1990 [1970]) ....... 13


Figura 2 – Paul MacLean e o seu modelo do cérebro triúnico (1990 [1970]) ... 23
Figura 3 – Primeiro quadro esquemático do aparelho psíquico freudiano e seus
sistemas- ....................................................................................... 40
Figura 4 – Quadro esquemático do aparelho psíquico freudiano – A segunda
tópica: Id, Ego, Superego ............................................................... 41
Figura 5 – Os três registros da teoria de Lacan: Real, Imaginário e Simbólico.
A cadeia borromeana ou o nó borromeano ..................................... 48
Figura 6 – O Dr. Paul D. MacLean em idade avançada ................................... 66
Figura 7 – “A mente é como um iceberg que flutua com um sétimo de seu volu-
me acima da superfície” ................................................................... 87
Figura 8 – Desenho do Modelo do Cérebro Triúnico (1990 [1970]) .................. 92
Figura 9 – “Animais míticos. CENTAURO. Intelecto versus instinto” ................ 115
Figura 10 – The Triune Brain Model by Paul MacLean (1990 [1970]) ................ 125
Figura 11 – Sereia de gravura francesa (1573) .................................................. 145
Figura 12 – O poço dos desejos ......................................................................... 148
Figura 13 – Símbolo de três pernas da Sicília e da Ilha de Man ........................ 154
Figura 14 – Estátua e Balança da Justiça .......................................................... 159
Figura 15 – Símbolos alquímicos do fogo e da água, a Estrela de Davi e o Selo
de Salomão ...................................................................................... 163
Figura 16 – Interação entre os domínios de aprendizagem ................................ 179
Figura 17 – Gráfico freudiano sobre a formação dos sintomas .......................... 182
Figura 18 – Escudo da Trindade ou diagrama tradicional Scutum Fidei do
simbolismo medieval cristão ocidental, desde o século XII ............ 195
Figura 19 – O tridente dos deuses Netuno (romano), Posêidon (grego) e Shiva
(hindu) ............................................................................................. 200
Figura 20 – O caduceu e o esculápio ................................................................. 202
Figura 21 – Símbolo Yin e Yang – Chinês .......................................................... 204
Figura 22 – “Esquema de um átomo. A liberação de sua energia revolucionou
a história humana” ........................................................................... 224
8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 9
1 O MODELO DO CÉREBRO TRIÚNICO, A PSICANÁLISE E OS CONFLITOS
INTERNOS DO SER HUMANO .................................................................... 10
1.1 As bases neurobiológicas da conduta humana, o jogo entre o cérebro instin-
tivo – emocional e o cérebro racional ........................................................... 11
1.2 O estudo sobre as hierarquias neurais e mentais ....................................... 21
1.3 Uma proposta integrativa para a psicanálise e a neurofisiologia .................. 23
1.4 A psicanálise segundo Freud e Lacan: três instâncias e três registros ........ 37
1.5 O projeto de Freud para uma Psicologia Científica ...................................... 59
1.6 Outros artigos localizados nas bases da dados PubMed, BVS e Scielo ...... 66
2 O MODELO DO CÉREBRO TRIÚNICO EM INTERFACE COM A PSICANÁ-
LISE E OUTRAS TEORIAS TRIPARTITES DA MENTE .............................. 83
2.1 Princípios norteadores de Freud e do evento “Nós Outros Gaúchos” .......... 83
2.2 Breve articulação entre as teorias de MacLean e de Freud (psicanálise) .... 85
2.3 Os efeitos dessa integração nos adultos ...................................................... 116
2.4 O exemplo do tratamento das fobias e dos medos ...................................... 121
2.5 Outras conexões teóricas possíveis ............................................................. 132
2.6 A visão judaico-cristã da saúde mental e dos conflitos humanos ................ 180
3 CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS ................................................................ 197
CONCLUSÃO ...................................................................................................... 222
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 228
APÊNDICE A – VESTÍGIOS DO TRIUNE BRAIN EM “HOMEM DOS RATOS”.. 241
APÊNDICE B – A TERCEIRA LÂMINA (ZÉ RAMALHO) .................................... 245
9

INTRODUÇÃO

A temática deste trabalho focaliza “O modelo do cérebro triúnico em


interface com a psicanálise e outras teorias tripartites (triárquicas) da mente”. A
questão fundamental que orienta a investigação é: “Afinal, o que querem os
humanos?” Trata-se de uma pesquisa sobre a etiologia dos conflitos internos que
nos acometem e que nos levam a tomarmos decisões irracionais sem sabermos o
motivo (inconsciente)1.
No primeiro capítulo, descrevemos conceitos da Teoria do Cérebro Triúnico
(1990 [1970]), de Paul D. MacLean, e da teoria psicanalítica (mais especificamente
freudiana e lacaniana), com ênfase no estudo dos artigos sobre a aplicação do
modelo macleaniano à psicologia infantil, sobre as hierarquias neurais e mentais e
sobre uma outra proposta de integração entre a psicanálise e a neorologia.
No segundo capítulo, investigamos a possibilidade da integração da Triune
Brain Theory (1990 [1970]) com a psicanálise e com outras teorias tripartites das
psicologias, das literaturas, das mitologias, das filosofias e das religiões.
Com o auxílio da ferramenta hermenêutica, abordamos mais detidamente
esse novo rumo integrativo que vislumbramos no horizonte dessas diferentes
teorias, que pode ajudar homens e mulheres (e até crianças) a lidar melhor com
seus conflitos intrapsíquicos. Há um subcapítulo específico sobre o tratamento das
fobias e dos medos, escrito para exemplificar nossa perspectiva.
As “Considerações adicionais” do terceiro capítulo trazem outras reflexões
nossas acerca da temática deste trabalho.
Tínhamos preparado a inclusão (em apêndices) de pesquisas que
realizamos sobre a existência de vestígios “arqueológicos” da Triune Brain Theory
em duas obras psicanalíticas do Doutor Freud, segundo a nossa interpretação: a
história clínica do “Homem dos Ratos” e “O mal-estar na civilização”. Abandonamos
a ideia (que fica para futuro trabalho), em razão do grande volume de páginas que
esses adendos requereriam.
Foi mantido o apêndice (de uma só página) que traz letra de música de
artista nacional para livre análise do leitor.

1 Com base em nosso “Projeto do trabalho de conclusão do curso de psicologia”, disciplina


“Seminário de pesquisa em psicologia”, 2018/1, Curso de Psicologia, UNIJUÍ.
10

1 O MODELO DO CÉREBRO TRIÚNICO, A PSICANÁLISE E OS CONFLITOS


INTERNOS DO SER HUMANO

Desejamos começar nosso estudo pela pergunta que fizemos constar na


Introdução sobre nossa definição do problema de pesquisa.
Afinal o que querem os humanos?
Ela inspira-se em citação atribuída a Sigmund Freud, como consta em nota
do editor inglês do livro “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica
entre os sexos”, com o registro de Ernest Jones:

Pouca dúvida existe de que Freud julgava a psicologia das mulheres


mais enigmática que a dos homens. Disse uma vez ele a Maria
Bonaparte: ‘A grande questão que jamais foi respondida e que ainda não fui
capaz de responder, apesar de meus trinta anos de pesquisa da alma
feminina, é: ‘O que quer uma mulher?’. [grifo nosso]. (FREUD, 1996
[1923], p. 274).

Nessa dúvida que externou, Freud referia-se, no entanto, talvez mais à vida
sexual das mulheres adultas (vista por ele como um “continente negro”, em sua obra
“A questão da análise leiga”) do que propriamente à psicologia e à alma femininas.
(FREUD, 1996 [1926], p. 205-206).
Outra questão, além das que embasam nosso tema central de pesquisa é a
seguinte: por que um ser humano, mesmo sabendo ser má escolha para seu jeito de
ser, sente atração por outro ser humano com perfil mais para cafajeste 2 do que para
confiável com o objetivo de manter um relacionamento estável de longo prazo?
Buscando explicar esse comportamento humano incoerente e incongruente,
o psiquiatra, psicoterapeuta e escritor paulista (falecido em 2016) Flávio Gikovate3
teoriza sobre a associação entre sexo e agressividade, em seu livro “A libertação
sexual: rompendo o elo entre o sexo, o poder e a agressividade” (2001):

Ao sermos capazes de entender a importância da associação entre o sexo e


as manifestações agressivas, podemos passar a olhar – sem pena nem
compaixão – para uma mulher de ótimo caráter, gentil, generosa, meiga e
dedicada a um marido cafajeste, boêmio, infiel, displicente. Ela é fascinada

2 Cafajeste: ou, nos termos da teoria gikovateana, o perfil psicológico mais conhecido como “egoísta”
(referência à obra de Flávio Gikovate: “O mal, o bem e mais além: egoístas, generosos e justos”.
São Paulo: MG Editores, 2005).
3 Flávio Gikovate: médico, psiquiatra e psicoterapeuta paulista, formado pela USP em 1966, autor e
conferencista consagrado, com várias obras publicadas – inclusive no exterior – que somam mais
de um milhão de livros vendidos, lamentavelmente falecido em 2016, cuja teoria audaciosa foi
pouco valorizada pelos seus pares brasileiros que atuam na área da saúde mental. Prestamos aqui
nossa sincera homenagen à sua obra (in memorian).
11

pela ousadia dele: tem grande inveja de sua capacidade de ser desleal,
raiva por ser traída e, por outro lado, se sente muito atraída sexualmente.
Por intermédio dele, exerce uma faceta de sua personalidade que ela
talvez nem sequer se permita saber da existência. Ao mesmo tempo,
pode se achar explorada e um tanto mártir, o que determina certo tipo de
excitação sexual relacionado com o masoquismo essencial ao qual já me
referi. A mulher inteligente e bem formada poderá preferir um
companheiro desleal – e por isso mesmo atraente – em vez de alguém de
caráter similar ao seu, mas que não lhe seja sexualmente excitante. (...)
Não devemos nos surpreender com o inverso. Muitos homens se excitam
demais por terem parceiras exuberantes e nada leais. [grifo nosso].
(GIKOVATE, 2001, p. 143-144).

Bem, a Teoria do Cérebro Triúnico (do Cérebro Trino, do Cérebro Triuno ou


dos Três Cérebros), originalmente denominada em língua inglesa The Triune Brain
Theory, de Paul Maclean, (1990 [1970]), aliada a outras teorias que serão citadas
no presente trabalho, pode ajudar a esclarecer esses aparentes mistérios.
Resumidamente: nosso cérebro é composto por três camadas que foram
sobrepostas ao longo de uma demorada evolução sobre a Terra: o cérebro reptiliano
(físico, ou reptilian brain – R-Complex), o cérebro mamífero (emocional, ou
paleomammalian brain – lymbic system), o cérebro lógico-racional (neocórtex, ou
neomammalian brain).

1.1 As bases neurobiológicas da conduta humana, o jogo entre o cérebro


instintivo-emocional e o cérebro racional

Há uns nove anos tomamos contato com a teoria do cérebro triúnico4 (ou
trino), de Paul MacLean (1990 [1970]), que fala sobre a evolução, no estilo
darwiniano, de três cérebros que foram sobrepondo-se uns aos outros, a partir do
mais primitivo: o reptiliano (instintivo, físico), incluídos nele o cerebelo, o tronco
encefálico e o sistema reticular.
Na origem, o modelo da serpente5 (espinha dorsal e um micro cérebro, útil
mais para a luta/fuga, sobrevivência, alimentação, procriação/sexualidade). Ele lida
com as funções (conhecidas das neurociências) do cerebelo e adjacências: muitas
delas do sistema nervoso autônomo parassimpático (respiração, frequência

4
Referência à obra de MACLEAN, P. D. The triune brain in evolution: role in paleocerebral functions.
New York: Plenum Press, 1990.
5 Aliás, curiosamente, na Bíblia Sagrada (Gênesis 3,15), há menção a Maria pisando sobre a
serpente (talvez no sentido da espiritualidade e da racionalidade imperando sobre a
irracionalidade?); serpente essa que, portanto, já consta da história bíblica sobre o paraíso e a
origem do homem e da mulher. (BÍBLIA, 2001).
12

cardíaca, etc.), como escreve a pediatra Inés Merino Villenueve6 (2016), em seu
artigo “Una nueva vacuna: la vacuna del autoconocimiento. Bases neurobiologicas
de la conducta humana. El juego entre el cerebro instintivo-emocional y el cerebro
racional”.
Diz Robert Lent em seu livro “Cem Bilhões de Neurônios”:

Finalmente, outras regiões [...] sabidamente participam de diferentes


aspectos da memória implícita: o cerebelo parece relevante para os
comportamentos associativos de condicionamento clássico, e o corpo
estriado participa da aprendizagem motora de hábitos comportamentais.
(LENT, 2001, p. 675).

O cerebelo [...] ocupa cerca de um quarto do volume craniano no homem, e


contém cerca de 80% do total de neurônios do cérebro, o que dá uma ideia
de sua importância funcional. Tudo indica que a evolução brindou o
cerebelo com a maior taxa de crescimento dentre as regiões cerebrais:
embora seja o córtex cerebral a região que mais cresceu em volume, é o
cerebelo o que mais cresceu em número de neurônios. (LENT, 2001, p.
452).

Após esse “cérebro” primitivo originário, o segundo desenvolveu-se como


um cérebro emocional (o sistema límbico): do qual fazem parte a amígdala, o
hipocampo, o tálamo, o hipotálamo, entre outros componentes. É o cérebro dos
mamíferos, que permite a formação de grupos (estabelecimento de vínculos), dada a
emotividade requerida para esse tipo de aglomerado animal, como é o caso dos
mamíferos inferiores, por exemplo, e de vários outros bandos de animais. Ele ajuda
a trabalhar e a mediar o que se passa no meio exterior com o que se passa no
interior do organismo (permite socialização). (VILLENEUVE, 2016).
Escreveram sobre o tema, em 2002, os autores Bear, Connors e Paradiso
na obra “Neurociências: desvendando o sistema nervoso”:

O termo sistema límbico foi popularizado em 1952 pelo fisiologista


americano Paul MacLean. De acordo com MacLean, a evolução de um
sistema límbico permitiu aos animais experimentarem e exprimirem
emoções, além de tê-los emancipado do comportamento estereotipado
ditado pelo tronco encefálico. (BEAR, 2002, p. 587).

Esses dois “cérebros” formam um sistema instintivo-emocional e ajudam a


garantir a sobrevivência (VILLENEUVE, 2016).

6 Inés Merino Villeneuve: Pediatra. CS Colmenar de Oreja. Madrid. España.


13

Preferimos, particularmente, manter a quantidade de três cérebros, como


consta nos títulos das obras de Paul MacLean e como ele demonstrou em sua teoria
(1990 [1970]).

Figura 1 – O modelo do cérebro triúnico de Paul MacLean (1990 [1970]).

Fonte: “Neural and mental hierarchies” (WIEST, 2012). Image courtesy of Springer Verlag.

Recobrindo esse cérebro emocional, desenvolveu-se o terceiro cérebro, o


lógico-racional (o cérebro executivo, o neocórtex): essa área que nos permite o
pensamento, a razão, a decisão, o controle dos impulsos, as estratégias e táticas, a
linguagem, a motivação. (VILLENEUVE, 2016).
Controlar os impulsos do sistema formado pelos dois cérebros mais
primitivos (o sistema instintivo-emocional) é função do cérebro lógico-racional, típico
dos mamíferos superiores. Essa área, mais ligada à racionalidade, faz os humanos
diferentes das demais espécies (lobos pré-frontais). Daí viria nossa inteligência
emocional. (VILLENEUVE, 2016).
Viria mesmo daí, ou viria da mediação feita pela razão a partir dos
comandos emocionais-instintivos? Os cérebros ancestrais (mais inconscientes) tem
grande peso e influência em nossos pensamentos e nosso cérebro lógico-racional
ajuda nas decisões que temperam as emoções e os instintos com a inteligência.
O neocórtex é encontrado apenas em mamíferos e muito mais desenvolvido
nos humanos: “NEOCÓRTEX: tipo de córtex cerebral de aparecimento recente na
14

evolução, característico dos mamíferos. Apresenta um número maior de camadas do


que os tipos corticais mais antigos.” (LENT, 2001, p. 364).
Segundo Bear, Connors e Paradiso (2002):

Diferentemente do hipocampo e do córtex olfativo, o neocórtex é encontrado


somente em mamíferos. Assim, quando dizíamos, anteriormente, que o
córtex cerebral expandiu-se ao longo do curso da evolução humana,
estávamos realmente querendo significar que o neocórtex sofreu essa
expansão. De maneira semelhante, quando mencionamos que o tálamo é
como um portal de entrada para o córtex, queríamos dizer um portal de
entrada para o neocórtex. A maioria dos neurocientistas (nós próprios
incluídos) é tão chauvinista do neocórtex que, quando emprega o termo
córtex sem adjetivos qualificativos, geralmente está se referindo ao
neocórtex cerebral. (BEAR, 2002, p. 195).

Ainda segundo Oliver Sacks, em sua obra “Um antropólogo em Marte”:

Uma das mais impressionantes peculiaridades do cérebro humano é o


grande desenvolvimento dos lobos frontais – são muito menos
desenvolvidos em outros primatas e apenas visíveis em todos os demais
mamíferos. São a parte do cérebro que mais cresce e se desenvolve após o
nascimento (e seu desenvolvimento não se completa até por volta dos sete
anos). Mas nossas ideias sobre a função do lobo frontal, e seu papel,
tiveram uma história tortuosa e ambígua, e ainda estão longe de serem
esclarecidas. Essas dúvidas foram bem exemplificadas pelo célebre caso
de Phineas Gage e pelas interpretações e equívocos por ele
desencadeados, de 1848 até o presente. (SACKS, 2000, p. 75).

Embora este cérebro de produção mais recente ocupe o volume de 85% do


total encefálico, os pequenos cérebros ancestrais (reptiliano e emocional) dominam
o racional nos momentos (críticos da vida e) das decisões – por uma questão óbvia
de serem capazes de fazer escolhas rápidas para a garantia da sobrevivência do
organismo e da perpetuação da espécie. (VILLENEUVE, 2016).
O cérebro reptiliano visa necessidades básicas: fome, frio, medo, sexo. O
emocional busca afeto, ausência e presença (Fort Da)7, aprovação, segurança. A
função executiva requer “una maduración del lóbulo prefrontal y sus múltiples
conexiones corticosubcorticales” – diz a pediatra Inés Merino Villeneuve (2016, p.
87).
Ao comentar o franco desenvolvimento desses três cérebros evolutivos nas
crianças: até o primeiro ano de vida (o reptiliano), a partir do primeiro ano (o
emocional-mamífero) e por volta dos três anos de vida (o lógico-racional),
respectivamente.

7 Fort Da – conceito psicanalítico que refere-se aos jogos de ausência e presença (brincadeira infantil
de aparecer/desaparecer) entre mãe e bebê (FREUD, 1996 [1920]).
15

A ontogênese, repete a filogênese:

This means that the vanishing of primitive reflexes is closely related with the
maturation of the nervous system, in particular the frontal cortex, which
obviously exerts an inhibitory effect on these instinctual reflexes. The
gradual replacement of inherited and automatic movements by intentional
and goal-directed movements reminds one of Haeckel’s proposal that in
human development ontogeny recapitulates phylogeny, at least to some
extent (Haeckel, 1866, 1874). This developmental peculiarity confirms, on
the other hand, that motor development and motor organization obeys
hierarchical principles, i.e., that higher or mature motor systems control or
inhibit lower and automatic ones. (WIEST, 2012, p. 2).

Por isso, a presença “do outro”8 é muito importante na infância: o cérebro


executivo não está bem fortalecido ainda. Um adulto ensina e ajuda a controlar
instintos, impulsos e emoções. Na nossa (cada vez mais) complexa sociedade
moderna (que pretendemos chamar “civilização”), essas presença e auxílio têm sido
cada vez mais necessárias e, com isso, temos visto estender-se cada vez mais no
tempo o período da adolescência, por exemplo. (VILLENEUVE, 2016).
Fomos criados para sobreviver e procriar, basicamente. Atualmente, como
bem refere Villeneuve (repetindo outros pensadores anteriores e ao mesmo tempo
criando inovação aplicável às suas pacientes crianças, com muita propriedade), não
temos mais leões andando pelas cidades. No entanto, nosso sistema instintivo-
emocional reage como se houvesse esse tipo de perigo ancestral, mesmo em
situações não tão estressantes assim, gerando reações de luta e fuga (inclusive o
pânico) em situações inofensivas. (VILLENEUVE, 2016).
Assim, nós, os humanos, somos muitas vezes agressivos indevidamente,
nos envolvemos com o perfil cafajeste9 do sexo oposto (fêmea mais atraente ou
mais exuberante, macho mais forte ou mais indiferente) mesmo sabendo
racionalmente que é má escolha para uma relação afetiva de longo prazo, tememos
falar em público, temos “brancos” durante testes escolares, praticamos bullying,
assassinato, maus-tratos, traições, gritamos com outros humanos, por exemplo, sem
ao menos sabermos o porquê – agir e depois não saber o porquê é a ideia base
do inconsciente.

8 Referência que lembra o termo criado pela releitura da teoria freudiana feita pelo psicanalista
francês Jacques Lacan – “O inconsciente é o discurso do Outro” (LACAN apud COLLIN et. al., 2012,
p. 123) e também as ideias do psicólogo russo Lev Vygotsky (para o qual nossas experiências
formativas são sociais: “Construímos nossa identidade pela relação com os outros” (VYGOTSKY
apud COLLIN et. al., 2012, p. 270).
9 Como referimos em nota anterior.
16

E no caso oposto aos desprazeres também há esse conflito, diz Villenueve


(2016): os prazeres ativam outras determinadas áreas cerebrais, liberam dopamina
(desejo e motivação) e isso nos faz querer repetir a conduta inicial – como na
compulsão por comer doces, por exemplo10.
Uma passagem do livro da jornalista Sônia Hirsch, “Sem açúcar, com afeto”
ilustra o conflito intrapsíquico envolvido no que ela denomina o “doce vício”:

Tenho um amigo que come muito açúcar. Um dia perguntei a ele se já tinha
ouvido falar no Sugar Blues, do William Dufty, um livro sobre açúcar
completamente radical. Ele disse que já. “Mas não quero ler, não”, explicou.
“É uma porrada muito forte. Eu adoro tudo que é doce, bala, porcaria. No
cinema gasto mais com os bombons do que com a entrada. Em casa,
quando não tem um doce na geladeira eu fico louco. Já saí altas
madrugadas rodando pela cidade atrás de um pudim de leite. Agora: se eu
leio um livro desse, tô perdido. Porque eu vou ficar sabendo que faz um mal
danado, vou me sentir obrigado a tentar parar e a minha vida vai virar um
inferno porque eu não vou conseguir. Pode crer. Não vou conseguir viver
sem açúcar”. (HIRSCH, 2009 [1984], p. 18-19).

Quem é esse “eu” que adora tudo que é doce, que não quer ler o livro, que
fica louco quando não tem um doce na geladeira, que sái dirigindo alucinado pela
cidade atrás de um pudim de leite e que não vai conseguir viver sem açúcar?
E isso explica, de maneira singela, a (vista como) eterna dúvida freudiana
ainda não respondida pela psicanálise desde o mestre: “Afinal, o que querem as
mulheres?” – pergunta que deveria ser reescrita, talvez, como segue: “Afinal, o que
querem os humanos?”. Freud percebe, ao registrar essa sua famosa frase, os
diferentes projetos evolutivos desses núcleos neurológicos em conflito?
Simples: esses cérebros estão servindo a dois senhores (de novo a letra
da Bíblia Sagrada, livro dos mais antigos da história da humanidade). Estão agindo a
partir de centros cerebrais descoordenados entre si e com agendas diferentes. E
“quem manda” são os dois mais antigos. Fica difícil explicar certas condutas e ações
humanas racionalmente, de fato. Não sabem, pois, os humanos, bem ao certo o que
querem, agem contra seus próprios interesses, por não saberem integrar esses três
cérebros (curiosamente, de modo contrário ao que ensinam as ciências orientais da
Yôga e da Meditação Chinesa, por exemplo, sobre o alinhamento dos chacras ou
centros de energia corpo-mente).

10 Novamente, mesmo sabendo ser tal conduta prejudicial ao nosso organismo (que se mantém
mesmo em casos severos como o de pessoas com câncer de pulmão que seguem fumando).
17

Assim registrou o Apóstolo Mateus 6,24: “Ninguém pode servir a dois


senhores, porque ou odiará a um e amará o outro, ou dedicar-se-á a um e
desprezará o outro.” (BÍBLIA, 2001).
Robert Zajonc, polonês, doutor em psicologia pela Universidade de
Michigan, investigou a relação entre sentimento e pensamento – a intersecção entre
emoção e cognição – e descobriu que as preferências dos humanos não são
racionais:

Em um artigo intitulado “Feeling and thinking”, de 1980, Zajonc argumenta


que os sentimentos e os pensamentos são totalmente independentes um do
outro. Os sentimentos não só precedem os pensamentos na complexa
operação de resposta a um estímulo, como são, também o fator
determinante mais significativo para a tomada de atitudes e decisões do
indivíduo. (...) Ele sugere que, ao contrário do que se acredita, não é a
razão ou a lógica que pautam as nossas decisões; na verdade, tomamos
decisões rápidas, instintivas e baseadas em emoção antes de termos a
chance de usar a cognição – julgamos sem ter informações. (COLLIN et. al.,
2012, p. 232-234).

A autora Villeneuve (2016, p. 88) fala de um “intérprete” que temos no


hemisfério esquerdo do cérebro, com redes neuronais capazes de “dotar de sentido
y coherencia a las condutas insconscientes y automáticas del sistema instintivo-
emocional”. Tal intérprete “es capaz de justificar cualquier tipo de conducta, incluso a
custa de inventar parte de la historia” – seria, este, nosso conhecido mecanismo
(apontado pela psicanálise) da racionalização?

Racionalização: o indivíduo constrói uma argumentação intelectualmente


convincente e aceitável, que justifica os estados “deformados” da
consciência. Isto é, uma defesa que justifica as outras. Portanto, na
racionalização, o ego coloca a razão a serviço do irracional e utiliza para
isso o material fornecido pela cultura ou mesmo pelo saber científico. Dois
exemplos: o pudor excessivo (formação reativa), justificado com
argumentos morais; e as justificativas ideológicas para os impulsos
destrutivos que eclodem na guerra, no preconceito e na defesa da pena de
morte. (BOCK, 1999, p. 53).

Para a pediatra Inés, a inteligência emocional11, já muito estudada na


literatura científica (GOLEMAN, 2001), vem da função (a mais humana de todas) dos
nossos lobos pré-frontais, que têm a habilidade de avaliar e ponderar todos esses
dados que nos chegam do ambiente e de moderar os impulsos emocionais

11 Referência à obra de GOLEMAN, D. Inteligência emocional: a teoria revolucionária que define o


que é ser inteligente. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
18

automáticos (por vezes, prejudiciais) que vêm do sistema instintivo-emocional para


obter respostas conscientes e mais humanizadas. (VILLENEUVE, 2016).
Escreve ainda, a médica pediatra, sobre um “câmbio de paradigma”. De uma
conduta reativa (defensiva), nascida dos dois primeiro cérebros (impulsiva,
automática). De outra mais humana (governada pelo córtex cerebral, pelos lobos
pré-frontais). Diz que predomina em nossa sociedade a primeira conduta, a da
competitividade. E que a educação pode mudar isso: pela capacidade de modular
com a razão as respostas do cérebro instintivo-emocional12. (VILLENEUVE, 2016).
É possível uma psicoeducação?
A médica Villeneuve (2016) pensa ser essencial a disseminação do
conhecime nto em neurociências. Pensa em dotar crianças de ferramentas, como as
do criador da logoterapia13, a “Terceira Escola Vienense de Psicoterapia,” o
psiquiatra e psicoterapeuta Victor Frankl, quando o mesmo diz: “entre el estímulo
externo y nuestra consiguiente reacción hay um espacio en el que podemos elegir
dar la respuesta que más nos favorezca”. Verdade. Trata-se de conteúdo essencial
da grande obra dele: “O homem em busca de sentido” (FRANKL, 2008).
Villeneuve sonha com a passagem de um mundo reativo a um mundo da
razão. A um mundo apoiado sobre um sistema “ganha-ganha”14 (ou win-win, fazendo
uso de linguagem emprestada da Economia e da Administração – de acordo com o
conteúdo do capítulo sobre “Os seis paradigmas da interação humana” – da obra de
COVEY, 2002).
Em seu breve artigo, a médica pediatra conta a história de um lobo bom e
outro mau, a partir de um conto indígena15. A qual deles iremos alimentar? Quem

12 Assim, talvez não seja uma ideia tão boa falar em “ética da psicanálise” no sentido de dar livre
vazão ao “desejo” humano (do inconsciente), que por sinal parece ser uma interpretação
equivocada da ideia lacaniana – LACAN, 2008 [1986]. Os psicanalistas que posicionam-se como
ortodoxos “acreditam no Inconsciente” (e isso aproxima-se muito de uma reverência religiosa;
neste caso, de um sistema neuronal primitivo, voltado à agressividade e ao egoísmo originais). O
inconsciente de fato existe, talvez localizado no sistema instintivo-emocional, mas dar livre vazão
ao “desejo” é dar livre curso ao sexo e à pulsão de morte no nível individual e no social, com as
desastrosas consequências que temos acompanhado atualmente. A propósito, essa é uma
interpretação equivocada da psicanálise autêntica. Por outro lado, equilibrar e integrar os instintos
(ou as pulsões), as emoções e a razão pode ter efeitos, inclusive sociais, mais saudáveis. É o que
pensamos. É o que Freud pensava.
13 Referência à obra de FRANKL, V. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração.
São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 2008.
14 Referência à obra de COVEY, S. R. Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes. São Paulo:
Editora Best Seller, 2002, p. 263-304.
15 Teria isso a ver com a ideia que o nosso imaginário ocidental popular tornou notória: de que temos
no ombro direito um diabinho (o mal) e no esquerdo um anjinho do bem (ou vice-versa) que nos
confundem no momento de fazer escolhas? Ou isso teria relação mais com os hemisférios
19

dirigirá nossas vidas? “El sistema instintivo emocional, o los lobos prefrontales?”.
Cita, então, conhecimento, educação, prática, paciência e perseverança como
armas para ajudar nossas crianças a aprenderem a responder de modo não
automático (tudo aquilo que os antigos filósofos e os grandes e velhos livros da
humanidade sempre disseram e que as tradições racionais e espirituais sempre
apontaram). (VILLENEUVE, 2016).
Achamos interessante transcrever a história do livro de Philip Dunn (2003),
“A arte da paz: equilíbrio e conflito em A arte da guerra, de Sun-Tzu”, de pequeno
capítulo em que trata sobre a consciência, porque a transcrição ipsis litteris preserva
nossa perspectiva e também a intenção dele (na espada, o instintivo-emocional; na
consciência: o instinto, a emoção e a razão integradas):

O que é conhecido não tem valor, o que foi visto não é precioso, o que foi
ouvido não tem relevância – a não ser por meio da consciência e do amor.

Até aprendermos a ter consciência – ou seja, a estarmos conscientes de


nós mesmos – não saberemos, não veremos nem ouviremos nada
verdadeiramente. Quando somos inconscientes, tudo o que sabemos é
aquilo que nos foi ensinado, tudo o que vemos é aquilo com que nos
identificamos, e tudo o que ouvimos é aquilo que selecionamos por meio de
nosso sofrimento. Essas coisas não são relevantes, a não ser no que diz
respeito a nosso sofrimento e a nossos medos. A consciência, algo
verdadeiramente simples, abre o coração para a vida por meio da liberdade,
abre os olhos ao cego e desperta nossos ouvidos. Uma vez conscientes,
sentimos como se tivéssemos sido cegos, surdos e mudos até aquele
momento. É com grande surpresa que percebemos que tudo ficou nítido
pela primeira vez, pois, até então, o ego privado de visão fora nossa única
possibilidade de ver. Eis aqui uma excelente história que nos ajudará a
entender essa verdade. Hakuin, mestre Zen, recebeu um guerreiro samurai
que viera até ele pedir conselhos. Um samurai é um grande soldado, e este,
em particular, era altamente respeitado por todos, inclusive pelo imperador.
Ele perguntou a Hakuin: – Existe inferno? Existe paraíso? E, se o inferno e
o paraíso existem, onde estão seus portões? Onde estão suas entradas?
Como posso evitar o inferno e escolher o paraíso? Ele era um simples
guerreiro e disse: – Sou um samurai, um líder de samurais. Até mesmo o
imperador tem respeito por mim. Hakuin riu e disse: – Você? Um samurai?
Você mais parece um mendigo! O orgulho do samurai ficou ferido, seu ego
ficou arranhado. Esqueceu-se do motivo pelo qual tinha vindo. Tirou a
espada e estava a ponto de matar Hakuin. Esqueceu-se de que viera visitar
o mestre para perguntar onde ficavam os portões do inferno e do paraíso.
Hakuin, então, disse: – Este é o portão do inferno. Nesse espada, nesse
ódio, nesse ego... aqui se abre o portão. Um guerreiro é capaz de entender
esse tipo de raciocínio, e ele o entendeu imediatamente. Aquele era o
portão. Ele recolocou a espada na bainha, e Hakuin disse: – Aqui se abre o
portão do paraíso. (DUNN, 2003, p. 69-70).

esquerdo (mais racional) e direito do cérebro (mais criativo)? – e com a especialização hemisférica
(LENT, 2001, p. 706-707).
20

Para a pesquisadora Villeneuve, as crianças podem ser ensinadas a respeito


desses três cérebros (e dos conflitos entre os objetivos deles) por meio de jogos, e
podem aprender a dar mais valor às decisões mediadas pelo cérebro racional,
deixando aos poucos, por meio da mudança de hábitos, os cérebros instintivo e
emocional em segundo plano, quando estes estiverem se excedendo em suas
funções (essenciais que são, igualmente, para a vida humana na Terra).
(VILLENEUVE, 2016).
Há vários autores na psicanálise que utilizam como técnica terapêutica a
linguagem lúdica dos jogos e do brincar infantil (tais como Melanie Klein: jogo como
uma forma de acting e via régia ao inconsciente, como os sonhos e as associações
livres para os adultos, Françoise Dolto, Donald Winnicott, Maud Mannoni, cada qual
com seus diferentes esquemas referenciais). (ARZENO, 1995, p. 47-48).
Concordamos com a pediatra espanhola. Achamos que a grande descoberta
está mesmo no triune brain de MacLean, no entanto. E com os grandes filósofos,
mestres e livros de todos os tempos.

A excelência moral, então, é uma disposição da alma relacionada à escolha


de ações e emoções, disposição esta consistente num meio termo (o
meio termo relativo a nós) determinado pela razão (a razão graças à qual
um homem dotado de discernimento o determinaria). Trata-se de um estado
intermediário, porque nas várias formas de deficiência moral há falta ou
excesso do que é conveniente tanto nas emoções quanto nas ações,
enquanto a excelência moral encontra e prefere o meio termo. Logo, a
respeito do que ela é, ou seja, a definição que expressa a sua essência, a
excelência moral é um meio termo, mas com relação ao que é melhor e
conforme ao bem ela é um extremo. (ARISTÓTELES, 2001).

O elogio do filósofo à razão humana é muito importante, o que pensamos é


que talvez o contexto dos conflitos internos dos humanos não envolva a excelência
moral ou ética (porém represente, em aparência, questões dessa natureza).
Agora, com certeza, a integração dos extremos está no meio termo.
O trabalho de Inés Merino Villeneuve (2016) produz uma síntese muito bem
feita da teoria macleaniana (voltada para o desenvolvimento infantil) e, por isso, foi
escolhido para auxiliar-nos com a sua singular objetividade no capítulo inicial deste
trabalho de conclusão do curso de psicologia.
Ao longo do processo de criação deste texto, vários outros artigos e teorias
foram pesquisados, de modo que pretendemos abordar muito mais elementos
teóricos, conceituais e práticos, em especial a relação do triune brain com os
21

conceitos psicanalíticos freudianos (Id, Ego e Superego) e lacanianos (Real,


Imaginário e Simbólico) – bem mais conhecidos da academia.

1.2 O estudo sobre as hierarquias neurais e mentais

Gerald Wiest16 escreveu artigo17 em 2012 – “Neural and mental hierarchies”


– sobre a segunda das seguintes tradições que influenciaram a história das ciências
do cérebro humano: uma delas que mantém ainda hoje o estudo das neuroimagens
apoiado nas primeiras teorias da frenologia18; outra abordagem que origina-se das
teorias neurológicas hierárquicas de Hughlings Jackson19 (que foi influenciado por
Herbert Spencer). Ele ainda refere outra marca da tradição hierárquica: a inerente à
metapsicologia psicanalítica, que considera tanto a perspectiva evolucionista
ontogenética quanto a filogenética. (WIEST, 2012).
Não vamos aprofundar muito a pesquisa bibliográfica baseada neste autor.
Somente acrescentar que o modelo de Paul MacLean, segundo Wiest, é uma teoria
mais sofisticada da função cerebral, que incorpora a morfologia neural e os aspectos
evolucionistas do comportamento. (WIEST, 2012).
Os críticos dizem que a abordagem macleaniana é muito simplista ou
incompatível com as atuais teorias evolucionistas. MacLean tem recebido críticas da
perspectiva psicanalista no sentido de que seu modelo utiliza conceitos jaksonianos
para separar razão e emoção e para sugerir que o comportamento racional é
“melhor” do que o comportamento emocional. (WIEST, 2012).
Para Jaak Panksepp (1988), citado por Wiest (2012), o trabalho de MacLean
é baseado em pesquisas experimentais e foi utilizado por Panksepp em sua
proposta de um modelo neuroevolucionista do sistema emocional (autor do livro
“Affective Neuroscience”)20.

16 Gerard Wiest: Department of Neurology, Medical University and Vienna Psychoanalytical Society,
Vienna, Austria.
17 Referência ao artigo de WIEST, G. Neural and mental hierarchies. In: Frontiers in Psychology.
Vienna, Austria. November, 2012, Vol. 3, Article 516.
18 Frenologia. s. f. Estudo do caráter e das funções intelectuais do homem, baseado na conformação
do crânio (doutrina hoje abandonada). (NOVO DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO LUSO-
BRASILEIRO, 1958).
19 Hughlings Jackson: neurologista britânico, um dos pais fundadores da neurologia clínica.
20 Referência à obra de PANKSEPP, J. Affective Neuroscience: The Foundations of Human and
Animal Emotions. New York: Oxford University Press, 70, 1998.
22

Panksepp (2011) apud Wiest (2012) propôs, após estimulação elétrica


cerebral, que comportamentos instintivos-emocionais e sentimentos emanam de
funções cerebrais homólogas em todos os mamíferos, que regulam regiões
cerebrais mais evoluídas. Esses achados sugerem processamento afetivo em
ninhos hierárquicos, sendo que funções emocionais primárias são base para o
processo secundário de aprendizagem e memória que fazem interface com funções
do processo terciário de cognição e pensamento.
Cory and Gardner (2002) apud Wiest (2012) conduziram extenso reexame
da validade das teorias de MacLean em seu livro “The evolutionary neuroethology of
Paul MacLean: convergences and frontiers”.
O artigo pesquisado ainda traz importante observação no sentido de que o
próprio Paul MacLean apontou as analogias entre os recursos comunicativos não
verbais dos cérebros reptiliano e mamífero com o processo primário descoberto por
Freud. (WIEST, 2012).
Além disso, informa que vários autores tem tentado encontrar pontes entre
os princípios hierárquicos da organização cerebral com a metapsicologia
psicanalítica. Cita ainda autores pioneiros21 na combinação das descobertas da
neuroetologia evolucionista com os conceitos psicanalíticos do aparelho psíquico e
com os distúrbios psiquiátricos. (WIEST, 2012).
Após outras importantes correlações (entre as quais, inclusive o mecanismo
de regressão), Wiest conclui que os modelos hierárquicos do cérebro e da mente
podem ser encontrados em várias disciplinas, desde a neurologia, neuropsicologia e
etologia até a psicanálise. (WIEST, 2012).
Seu artigo é uma tentativa de demonstrar que os conceitos hierárquicos de
diferentes disciplinas científicas facilitam uma visão integrativa da relação
mente/corpo e que essas teorias podem representar um denominador comum para

21 Referência aos textos de PRICE, J. The dominance hierarchy and the evolution of mental illness
(1967); e PRICE, J. The triune brain, escalation, de-escalation, strategies, and mood disorders
(2002). Além de outra publicação com outros autores: PRICE et. al. The social competition
hypothesis of depression (1994). E também FEINBERG, T. E. Altered egos: How the brain creates
the self. (2001); FEINBERG, T. E.; ROANE, D. M. Anosognosia, completion and confabulation: the
neutral-personal dichotomy. (1997); FOTOPOULOU, A. The affective neuropsychology of
confabulation and delusion. (2010); KOPELMAN, M. D. Varieties of confabulation and delusion.
(2010); FEINBERG, T. E. From axons to identity: neurological explorations of the nature of the self.
(2009); SOLMS, M. Happy reading for a psychoanalyst. (2010); SALAS, C.; TURNBULL, O. H. In
self-defense: disruptions in the sense of self, lateralization, and primitive defenses. (2010);
FOTOPOULOU, A. et. al. Mirror-view reverses somatoparaphrenia: dissociation between first- and
third-person perspectives on body ownership. (2011).
23

as ciências que lidam com a natureza do cérebro, da mente e do comportamento.


(WIEST, 2012).

Figura 2 – Paul MacLean e o seu modelo do cérebro triúnico (1990 [1970]).

Fonte: http://justwriteonline.typepad.com/.a/6a0120a55c9cd1970c01b8d13eb787970c-pi

A teoria do cérebro triúnico é um modelo teórico e, como tal, tem suas


utilidades e fragilidades. Precisa ser mais estudado. Alterado. Evoluído, se for (e
parece ser) o caso. Substituído, se comprovadamente estiver equivocado. Assim
também os demais modelos teóricos (sempre provisórios que são), inclusive a
psicanálise. Não é uma questão de uma teoria “superar” as demais.

1.3 Uma proposta integrativa para a psicanálise e a neurofisiologia

A professora doutora Andréa Pereira de Lima22 escreveu o artigo intitulado


“O modelo estrutural de Freud e o cérebro: uma proposta de integração entre a
psicanálise e a neurofisiologia” (LIMA, 2010)23.

22 Andréa Pereira de Lima: Universidade Federal de Uberlândia (UFU), União Educacional de Minas
Gerais (Uniminas). Graduação em Ciências Biológicas e em Psicologia, Mestre e Doutora em
ciências – Fisiologia.
23 Localizado com o auxílio da professora doutora Lála C. L. Nodari, que ministrou no primeiro
semestre de 2018 a disciplina “Seminário de pesquisa em psicologia” (Curso de Psicologia,
UNIJUÍ), em que foi elaborado o projeto deste trabalho de conclusão do curso de psicologia.
24

Trata-se de uma pesquisa bibliográfica que cita outros artigos recentes em


língua estrangeira (que corroboram a visão da autora no sentido de que “as visões
psicanalítica e neurocientífica podem ser complementares e mutuamente
enriquecedoras”) e que esclarece que o modelo apresentado em seu estudo não é
algo definitivo, porém “constitui um diálogo fértil entre a psicanálise e a neurociência,
indicando que as clássicas descrições de Freud sobre a mente têm lugar
perfeitamente na neurofisiologia de hoje” (LIMA, 2010, p. 7).
Surpreende-nos que a autora não faz nenhuma menção ao modelo do
cérebro triúnico (MACLEAN, 1990 [1970]) em seu artigo, embora apresente uma
proposta muito semelhante àquela que abordamos neste trabalho de conclusão do
curso de psicologia, no sentido da integração “entre a segunda tópica de Freud e o
encéfalo, na tentativa de estabelecer um diálogo entre a psicanálise e a
neurofisiologia, para melhor compreensão da mente humana.” (LIMA, 2010, p. 3).
A diferença, portanto, em relação à nossa perspectiva (também integrativa) é
que focamos numa visão macro do encéfalo (relacionando, com amparo no modelo
de Paul MacLean, os cérebros instintual-Id, emocional-Ego e racional-Superego),
enquanto que a visão fisiológica da doutora Andréa volta-se para regiões mais
específicas do cérebro que ela relaciona às instâncias freudianas da segunda tópica:
Id, Ego e Superego.
Concordamos com relação ao Id estar relacionado aos circuitos neurais
filogeneticamente mais antigos. Ela, no entanto, relaciona o Ego ao córtex pré-frontal
(que, no modelo do triune brain faz parte do cérebro lógico-racional) e liga o
Superego ao núcleo central da amígdala (e outras estruturas que estariam
relacionados ao sistema límbico – ou cérebro emocional).
Em nossa interpretação (com base em Paul MacLean), na descrição da
chamada instância mediadora do aparelho psíquico psicanalítico, o Ego estaria mais
conectado ao lymbic system (ou cérebro emocional), enquanto que o Superego
estaria relacionado entre as várias funções cognitivas superiores desempenhadas
pelo cérebro lógico-racional que diferencia o Homo Sapiens dos demais mamíferos e
dos primatas (nosso parentes mais próximos na linha evolutiva animal).
Essas distinções não invalidam o excelente estudo da Doutora Andréa, nem
inviabilizam nossa ideia de integração da psicanálise e da teoria macleaniana (e
também das demais psicologias), pois os pontos de concordância são vários.
25

Ela também parece ver como necessário o reconhecimento e o respeito à


importância da teoria comportamental, por exemplo, quando estamos lidando com o
sistema cerebral que denominamos instintivo-afetivo (ou réptil-emocional), se
seguirmos a perspectiva de Villeneuve (2016):

(...) as atividades desses núcleos, com seus produtos neuroquímicos,


corresponderiam aos correlatos neurais de Freud denominados drives ou
pulsões (...) nessas áreas predomina a atividade inata, pré-programada,
involuntária e inconsciente. (LIMA, 2010, p. 284).

O Id, escreve a psicóloga e bióloga Doutora Andréa, tem conteúdos


inconscientes, em parte hereditários e inatos e em parte adquiridos e recalcados:

Foi concebido como um conjunto de conteúdos de natureza pulsional e de


ordem inconsciente, constituindo o polo psicobiológico da personalidade. É
considerado a reserva inconsciente dos desejos e impulsos de origem
genética, voltados para a preservação e propagação da vida.” (LIMA, 2010,
p. 281).

Segundo a autora, a iminência anunciada da morte da psicanálise não se


efetivou, apesar dos tratamentos medicamentosos, das críticas ao método
psicanalítico (por este não ocorrer em ambiente controlado) e da tentativa de
biologização das afecções psíquicas (LIMA, 2010).
Kandel (2000) apud Lima (2010), afirma que a convergência entre a
neurobiologia e a psicanálise é benéfica para o corpo teórico-técnico desta24. Houve
muita evolução nas conquistas daquela (assuntos importantes para os psicanalistas
– a consciência, a memória, a percepção, processos mentais inconscientes, a
pulsão, o desejo, a sexualidade). Para a compreensão profunda da mente,
dependemos desse diálogo.
Lima cita numerosas investigações que confirmam essa associação frutífera.
Soussumi (2006) apud Lima (2010, p. 281), fala da mesma visão integrativa que
sugerimos neste trabalho (mais direcionada às neurociências e à psicanálise)25.
Para ele, a “visão fragmentada conduz à perda da visão do todo”, pois o
encadeamento contínuo das manifestações corporais e psíquicas é indissociável.

24 Referência à obra de KANDEL, E. R. Biology and the future of psychoanalysis: a new intelectual
framework for psychiatry revisited. (2000).
25 Referência à obra de SOUSSUMI Y. Tentativa de integração entre algumas concepções básicas
da psicanálise e da neurociência. (2006).
26

O “vaticínio de Freud de que no futuro as hipóteses psicanalíticas seriam


explicadas pela biologia” poderá tornar-se realidade (SOUSSUMI, 2006 apud LIMA,
2010, p. 281-282).
Schussler (2002)26 e Winograd (2005)27 apud Lima (2010, p. 282) trazem
dados que suportam a teoria freudiana de que “o inconsciente domina a maior parte
dos processos psicofisiológicos.”
Para Winograd (2004) 28 apud Lima (2010, p. 282), por sinal, as experiências
da primeira infância “influenciam o padrão de nossas conexões cerebrais e,
correlativamente, o padrão de nossos comportamentos e pensamentos”.
Outros autores citados, conectam as emoções e seu papel na formação dos
sonhos. Ainda outros, reafirmam pelas suas pesquisas a hipótese de Freud sobre o
processo de “recalque”. (LIMA, 2010).
Interessa-nos citar algumas análises feitas em seu inteligente artigo pela
Doutora Andréa (sempre apoiadas por autores por ela pesquisados), por
sustentarem posição semelhante a que tomamos neste trabalho:

Trazendo as clássicas descrições do Id para o campo neurobiológico,


pode-se considerar que essa instância psíquica estaria voltada basicamente
para os processos vitais mais primitivos, como a conservação da vida
(beber e comer), a defesa da vida ou do território (ataque e agressão), a
propagação da vida (reprodução), e com a obtenção de prazer. (...)
Obviamente, todas essas estruturas não atuam isoladamente, mas sofrem
constantemente influências modulatórias, principalmente por parte do
córtex pré-frontal. Em geral, um aumento da atividade de sinapses
serotonérgicas inibe a agressão. Por essa razão, alguns clínicos têm usado
drogas serotonérgicas para tratar comportamentos violentos em humanos.
Estudos sugeriram que o álcool pode estimular a agressão, interferindo
de forma inibitória na função do córtex pré-frontal que tem função
modulatória sobre o comportamento. (...) Passemos, agora, do controle do
comportamento reprodutivo ao prazer. Ao falar do Id, não se poderia
esquecer que essa instância psíquica é regida pelo princípio do prazer.
(...) Assim, todo comportamento que produz uma resposta emocional
positiva é reforçado, ou seja, ocorrem alterações em determinados
circuitos neurais que promovem a repetição do comportamento. (...) Esse
sistema está relacionado aos estados motivacionais, os quais instigam
comportamentos que visam à satisfação das necessidades biológicas,
como beber, comer e copular. Substâncias estimulantes e que causam
dependência, como cocaína e anfetamina, atuam nesse circuito,
causando um aumento na liberação de dopamina no núcleo acumbens, o
que, por sua vez, leva a uma grande sensação de prazer. (...) o núcleo
acumbens como o sistema de busca de prazer por excelência, em que a

26 Referência à obra de SCHUSSLER G. The current conception of the unconscious – empirical


results of neurobiology, cognitive sciences, social psychology and emotion research. (2002).
27 Referência à obra de WINOGRAD, M. et. al. Resenha: um diálogo entre a psicanálise e a
neurociência. (2005).
28 Referência à obra de WINOGRAD, M. Matéria pensante – a fertilidade do encontro entre
psicanálise e neurociência. (2004).
27

excitação dopaminérgica pode conduzir a quadros de fixação e de adicção,


correspondendo, segundo sua interpretação, ao que Freud denomina
como “sistema de luxúria”. (...). [grifo nosso]. (LIMA, 2010, p. 283-284).

Apenas para esclarecer o termo específico da neurologia utilizado na


citação, núcleo acumbens é um dos circuitos neurais filogeneticamente mais
antigos e uma das estruturas envolvidas no reforço aos comportamentos (repetição)
e nos estados motivacionais (que “instigam comportamentos” que visam à satisfação
de necessidades básicas: beber, comer, copular). (LIMA, 2010). Como veremos
adiante, em nossa perspectiva, copular não é uma “necessidade” do ser humano.
Pode ser que a autora esteja correta nas relações que faz entre partes mais
específicas do encéfalo e as instâncias freudianas. Nossa tentativa de fazer
conexões entre os modelos freudiano e lacaniano (entre outras teorias tripartites que
serão citadas neste trabalho) tem intenção similar à da estudiosa em seu artigo.
Reconhecemos que a versão macleaniana pode não ajustar-se às instâncias de
outras teorias psicológicas exatamente da forma que estamos sugerindo, de modo
que tantas outras ideias semelhantes podem ajudar-nos a pensar essa integração
teórica (inevitável para o futuro da ciências).
Sobre o artigo em tela, ainda temos alguns apontamentos a fazer, como é o
caso da citação que faz de Winograd (2004 apud LIMA 2010, p. 285), no sentido de
que: “Danos na região límbica frontal que produzem confabulações prejudicam os
mecanismos de controle cognitivo – base da monitoração normal da realidade –,
intensificando a influência do desejo na percepção, na memória e no julgamento”. A
autora junta informações de vários pesquisadores para corroborar sua tese de que
“o córtex pré-frontal pode muito bem sediar as funções do ego”.
Em nossa visão, o córtex pré-frontal há de ajudar sim na mediação com o
meio exterior e de integrar os estímulos de todas as demais estruturas cerebrais,
mas está situado no lobo frontal (neocórtex), sendo, portanto, parte do cérebro
lógico-racional (“é a parte mais desenvolvida do cérebro [...] encontra no homem a
sua expressão mais evoluída”, como bem refere a autora – nos animais não
encontramos consciência, nem Ego no sentido humano do termo psicanalítico).
(LIMA, 2010, p. 285).
Percebemos o significado de situações sociais, reagimos emocionalmente a
situações muito complexas envolvendo outras pessoas, sim, como também aponta a
autora, porém essa função está mais ligada, em nossa modesta visão, ao cérebro
28

emocional, ou lymbic system – de modo que, por isso, relacionamos (neste trabalho
de conclusão do curso de psicologia) a função egóica a esse núcleo do modelo
macleaniano. (LIMA, 2010, p. 285).
A doutora Andréa ainda liga o Superego freudiano à estrutura cerebral
denominada núcleo central da amígdala, por que este nos permite aprender que
uma determinada situação é perigosa e pode trazer consequências ruins (LIMA,
2010, p. 285). Neste ponto, também discordamos de sua interpretação, porque a
função do Superego estaria, pensamos, mais conectada às atividades cognitivas
superiores e à capacidade de reflexão crítica executadas pelo cérebro lógico-
racional (a amígdala pode até acionar parte do mecanismo descrito por Freud como
superegóico, de fato o cérebro está interconectado em praticamente todas suas
funções, mas sem a razão tal evolução humana em relação aos animais não seria
possível). Até porque decidir sobre os complexos casos cotidianos que envolvem um
juízo moral dependem da razão e da lógica. O Superego é um “freio inibitório”.
Inibitório do quê? Do livre curso, em sociedade (em relação ao ambiente grupal), dos
primitivos desejos reptilianos e do descontrole emocional.
Acreditamos que é melhor vermos o quadro todo de uma perspectiva mais
ampla, como o modelo do triune brain, de Paul MacLean, e absorvermos o Superego
entre outras tantas importantes funções desempenhadas pelo nosso extraordinário
cérebro lógico-racional (ou sistema, para Villeneuve), do que procurarmos
mecanismos mais específicos para fazermos essa comparação neuropsicanalítica.
Talvez o Superego não seja exatamente um dos três centros de comando do
ser humano, pode ser uma das funções da razão que emerge do fato de termos,
nós, os humanos, um neocórtex poderosíssimo.
Todavia, em respeito ao trabalho aprofundado em fisiologia e psicologia da
professora, psicóloga e bióloga Andréa Pereira de Lima (área em que é mestre e
doutora), temos que reconhecer que ela está em melhores condições do que nós
para posicionar-se com segurança em relação ao conhecimento específico de todas
essas localizações e funções cerebrais, de modo que citamos in verbis um exemplo
que traz em seu artigo sobre sua forma de ver a conexão entre as instâncias
freudianas do aparelho psíquico e a neurociência. Ela pode, com efeito, estar certa
em sua corajosa abordagem:

Consideremos uma situação hipotética. Você deseja comprar um carro, que


é o carro dos seus sonhos. Representando o prazer antecipado da
29

aquisição do carro, há o envolvimento dos sistemas de recompensa


cerebral, como a via mesolímbica-núcleo acumbens, cuja ação é motivadora
e representa muito bem os anseios do Id (Eu quero muito comprar esse
carro!). Por outro lado, analisando o contexto, prevendo as consequências
da compra do carro dos seus sonhos, há a ativação do núcleo central da
amigdala e do córtex da ínsula, que alertam para os possíveis riscos e
prejuízos advindos dessa ação (Não faça isso agora, você pode ficar muito
endividado!). Entre os dois polos, atuando como a parte executiva da
personalidade, entra em ação o córtex pré-frontal, que deverá decidir se o
seu desejo será satisfeito imediatamente (decisão a favor do Id) ou se não
será realizado (decisão a favor do superego). O córtex pré-frontal atuando
como o Ego mediador, poderá decidir pelo adiamento da compra, quando
as circunstâncias econômicas forem mais favoráveis. Na realidade, o córtex
pré-frontal pode ir além disso: ele é capaz de elaborar planos e estratégias
para criar, num futuro não muito distante, essas condições favoráveis.
Assim, numa perspectiva mais otimista, o córtex pré-frontal (Ego) poderá
satisfazer o Id, sem transgredir as limitações impostas pelo Superego e pela
realidade externa. No indivíduo normal, essa função é cumprida a contento.
Nos neuróticos e psicóticos o Ego sucumbe, seja porque o Id ou o Superego
são excessivamente fortes, seja porque o Ego é excessivamente fraco.
(LIMA, 2010, p. 286).

Respeitamos muito a posição da autora do artigo em comento. Em nossa


perspectiva (contando com os suplementos igualmente científicos da Triune Brain
Theory – 1990 [1970]), insistimos em defender a ideia de que o Id (Cérebro Réptil)
quer (deseja) o carro agora – (pois vê o contexto operacional) e nada mais importa.
O Ego (Cérebro Emocional) vê o contexto relacional, o conflito interno e a realidade
externa. O Superego (parte de nossa forte razão humana – o Cérebro Lógico-
Racional) reflete criticamente, pondera (vê o contexto intelectual-pensante) e supre
nossa consciência com as informações adequadas para tomar a decisão mais
adequada no longo prazo. É claro que isso ocorre de forma fluida, não fragmentada.
Poderíamo-nos aventurar a chamar esse mecanismo biopsicossocial de
sistema REL, com os termos macleanianos.
Em resumo, pensamos que o conflito interno poderia ser sintetizado num
diálogo assim, sobre esse mesmo exemplo da compra de um automóvel “desejado”,
agora pela ótica do triune brain (1990 [1970]):
– Quero essa coisa cara agora, e pronto! Minha vaidade, soberba ou orgulho
não podem esperar e isso vai facilitar a sobrevivência e a procriação deste
organismo (diz o réptil cerebral primitivo – e, por que não, infantil e imaturo – ou
reptilian brain, ou R-Complex).
– Sim, nos sentiríamos muito felizes com esse modelo lindo de carro, nossos
amigos e familiares e pretendentes ficariam surpresos com essa compra – todos
30

iriam gostar. A ideia nos agrada muito e votamos pela compra (diz o cérebro
emocional, ou o paleomammalian brain, um pouco mais sofisticado).
– Agora não! Vamos avaliar a situação toda e chegar a um consenso,
colegas. Não podemos comprar meros objetos por impulso. Temos que fazer
cálculos e estudar a hipótese da aquisição desse veículo (censuram e posicionam-
se partes do conciliador cérebro emocional – paleomammalian brain, e do meditativo
cérebro lógico-racional, ou o neoomammalian brain, ou neocórtex encefálico).
“Divertida Mente” (Inside Out, 2015) é o nome de um desenho animado (da
Disney e da Pixar) que surgiu recentemente e que apresenta algo semelhante a
essa ideia do diálogo que criamos a partir da situação hipotética sobre a compra de
um automóvel trazida por Lima (2010) em seu artigo (porém, nesse filme, apenas
quanto ao aspecto emocional) para exemplificar nossa interpretação – grosseira e
superficial – do funcionamento e estrutura da mente humana (com base em Paul
MacLean e no seu modelo neurológico). Esse filme tem sido assistido em sessões
de estudo em universidades, inclusive do Curso de Psicologia da UNIJUÍ. O enredo
desenrola-se dentro da cabeça de uma menina de 11 (onze) anos, na “torre de
comando”, onde cinco emoções (conflitantes e complementares entre si): Alegria,
Medo, Nojo, Raiva e Tristeza são responsáveis por processar as informações,
armazenar as memórias, operar os movimentos, as decisões e reações.
Neurologistas e psicólogos ajudaram o autor Peter Docter na preparação do roteiro.
Já sabemos, hoje, que as lembranças são fixadas no cérebro junto com um estado
de humor: “Todas as recordações que temos, sejam elas boas ou ruins, trazem
consigo sentimentos”, explica a neuropsicóloga Cleide Lopes, do Centro de
Longevidade do Hospital 9 de Julho, de São Paulo, ao comentar o assunto em
entrevista à Revista Saúde. (SAÚDE, 2016).
Sobre o mesmo filme, o psicanalista paulista Christian Dunker escreveu
artigo com o título “A mente da pixar – Divertida Mente nos ensina sobre o valor da
tristeza, mas também ele quer ser uma espécie de manual de neurologia universal
da mente governada por emoções” (2015). O autor escreve que esse desenho
animado transmite didaticamente a ideologia contemporânea a respeito do “mal-
estar com a felicidade” (típica de nossa época consumista), por trazer a Alegria
como protagonista. Pensamos que não necessariamente a presença de alegria e de
otimismo nos humanos pressupõe o comportamento mentiroso e mascarado de
alguns usuários de redes sociais, por exemplo, que tentam sempre mostrar-se
31

sorrindo e na posse de muitos bens de consumo (esses são uma parte da população
seduzida pelo poder das aparências e da superficialidade comum a todas as épocas
da história). O que o filme procura mostrar mais, cremos nós, é uma postura
(otimista) governada por emoções positivas (quando presentes de forma verdadeira)
e pela sua influência equilibrante das ações humanas, reconhecendo, como não
poderia deixar de ser, a existência de momentos de tristeza (raiva, medo, e outros
estados emocionais) – de modo que não seja dada a um estado depressivo a
primazia da condução da vida (como é o caso da opção pessimista típica da obra de
diferentes filósofos e pensadores que foram sucedendo-se ao longo da civilização)29.
Por outro lado, concordamos com o psicanalista brasileiro (e professor da USP),
quando escreve que o filme nos faz pensar nas nossas individualidades a partir da
“gramática básica e universal das emoções”, uma expressão reduzida de uma
“geografia particular”, em que os conflitos nos são internos:

Esta anatomia da mente já é por si reveladora. Não se trata mais de um


conflito entre sensibilidade e intelecto (nos moldes platônico-kantianos), ou
entre senso e sensibilidade (como diria Jane Austen), ou entre inconsciente
e consciência (como argumentou Freud), ou entre razão e emoção (como
tantas vezes insistiu a psicologia popular). (DUNKER, 2015).

Pensamos que esse curioso filme ajuda-nos a termos uma ideia aproximada
da realidade dos nossos conflitos internos, utilizando-se apenas de cinco emoções –
que dizer então da realidade conflituosa de nossa mente que tem que atender em
tempo real aos nossos mais variados sentimentos, pensamentos, raciocínios,
emoções, crenças, moções, impulsos, instintos, pulsões, desejos, necessidades,
reações, comportamentos, censuras, etc.?
E isso nos faz voltarmos a pensar na ética da psicanálise, com a psicanalista
Maria Rita Kehl (2002), que questiona, em seu livro “Sobre ética e psicanálise”, a
“ética tradicional” (da tradição, religiões, educação, mitologias) que tenta garantir
certa estabilidade simbólica. Questiona o “discurso capitalista” para o qual o gozo
ultrapassa o corpo e pela lógica do mercado busca a satisfação nos objetos banais e

29 Sobre o tema, referimo-nos, à obra “Lógica do Pior” (1989), que, apesar do título, aborda essa
questão e os três modos de filosofar, mas coloca o autor e filósofo francês Clément Rosset entre
os pensadores afirmativos que pregam a aceitação alegre e incondicional da realidade. Para ele, a
filosofia só raramente consegue “arrancar o homem das suas manias”, porém tem eficácia ainda
um pouco além dos resultados obtidos até o momento pela medicina, pela psicologia, ou pela
psicanálise. (ROSSET, 1989).
32

mercadorias. Mas nossa realidade humana neste Planeta concreto exige objetos, e
ela é pautada pela lógica econômica (seja ela capitalista ou do bem-estar social).
Claro que o objeto do desejo é “inexistente” (conforme a visão lacaniana de
que está perdido para sempre) e isso gera repetição de comportamentos no
humano. A psicanálise faz função terapêutica de preencher vazios de angústia e
mal-estar (mal-estar, este, que a sociedade quer eliminar). Há um imperativo de
renúncia ao gozo e o gozo pleno é tão impossível de se realizar quanto sua renúncia
absoluta. Tal condição é constitutiva do humano: supor a falta de um objeto
imaginário de que o sujeito se supõe privado (pelo Outro) e que quer recuperar a
qualquer custo. A psicanálise de Freud “revelou ao Século XX” o preço de controlar
excessivamente os impulsos. Desmoralizou tabus e restrições dos “burgueses”. Ela
é a “prática da dúvida” e nada prescreve. Freud propõe tolerar falhas alheias e agir
com humildade, porque para o inconsciente o mal não existe e a moral não importa
(KEHL, 2002, p. 7-38).
Apesar disso, durante a análise, o sujeito é “responsabilizado pelo seu
inconsciente” e percebe que é melhor investigar o seu desejo do que manifestar
sintomas: “quem mais, além de mim, pode se responsabilizar por algo que, embora
eu não controle, não posso deixar de admitir como parte de mim mesmo?” (FREUD
apud KEHL, 2002, p. 32).
Pela palavra, as representações inconscientes ganham acesso (ainda que
precário) à consciência (e isso é efetivo na técnica da terapia psicanalítica, de fato).
(KEHL, 2002, p. 108-109).
Kehl cita Espinoza (2002, p. 127), para quem “é inevitável que as paixões
nos afetem, já que estamos vivos.” Certo. A essência da ética desse filósofo é que “a
passividade que as paixões produzem no sujeito traz escravidão e tristeza, enquanto
a atividade da alma livre das paixões traz alegria e expansão”. Antes de Freud,
Espinoza pergunta o que fazer com o destino das pulsões. Boa pergunta.
Perguntamos se há como integrarmos essas paixões ou pulsões no ser
humano como um todo? É possível a nós, os humanos, integrarmos nossos
aspectos reptilianos (físicos), emocionais (afetivos), racionais (intelectuais) – e, por
que não, espirituais? É possível chegarmos ao meio termo aristotélico, sem o viés
moral que ele dá à sua percepção filosófica do fenômeno humano?
33

Kehl ensina que a análise é novo destino da pulsão (para o sujeito


investigar-se) e que a ética da psicanálise é a ética da clínica psicanalítica (KEHL,
2002, p. 33).
A psicanálise propõe teoricamente, sobre o humano, “um sujeito dividido,
alienado em sua inevitável dependência do outro e da linguagem, movido pelo
desejo.” (KEHL, 2002, p. 37).
A terapia, explica a psicanalista, não satisfaz em ato nem o Supereu
(Superego) nem a demanda pulsional mas produz “atos de linguagem” que dão
conta de “representar a divisão do sujeito, sem negar nenhuma das duas partes em
conflito”. (KEHL, 2002, p. 177).
Para a psicanálise, não há verdade definitiva sobre o humano, e ela não
gera apaziguamento, pois o homem (sobretudo moderno) é vazio de “ser”. Das Ding
(a coisa), para Freud, é o objeto de satisfação da pulsão para o qual aponta o
princípio do prazer (KEHL, 2002, p. 98). A coisa.
Para Freud: “onde estava o eu deve vir o isso” (em análise) – isso ou Id.
(FREUD apud KEHL, 2002, p. 124). Ou o réptil primitivo e inconsciente.
Para Kehl (2002, p. 156), o vazio do objeto não aponta para um objeto mas
para outro desejo (outro vazio). Só o sujeito pode contornar o vazio com sua palavra
e criar algo que o represente (que o inscreva no campo do Outro).
“O sujeito da psicanálise torna-se capaz de assumir o desejo de sustentar
seu desejo” (KEHL, 2002, p. 99) e fazer da potência destruidora uma potência
criadora.
Repetimos o que já registramos em nota de rodapé anterior, no sentido de
que o perigo é quando esse complexo vocabulário da psicanálise (de versão
lacaniana, em particular) não é compreendido adequadamente e o indivíduo (ou o
sujeito), ou o doente mental, ou a pessoa, ou o ser humano, ou o paciente acaba
sendo estimulado (indevidamente) a dar livre vazão aos seus instintos (ou pulsões,
ou impulsos) inconscientes (reptilianos) mais primitivos.
Freud (apud KEHL, 2002, p. 130) sugere levar a vida “um pouco além da
hipocrisia e das inibições” e Lacan (apud KEHL, 2002, p. 130) propõe ao sujeito “não
ceder de seu desejo”, por exemplo.
Esse tipo de afirmação pode levar ao que podemos chamar de “império do
réptil”, em que a prática da sexualidade descontrolada, a violência e a agressividade
(pulsão de morte) passam a ditar o cotidiano caótico dos grandes centros urbanos,
34

por exemplo – império esse já instalado em países subdesenvolvidos como é o caso


do Brasil e da Venezuela. Principalmente quando a verdadeira intenção de seus
autores, muito venerável por sinal, é mal compreendida; ou pior ainda, mal aplicada
em consultórios, cursos, palestras, obras literárias, entrevistas televisivas,
propagandas ideológicas.
O Doutor Flávio Gikovate (1996, p. 19-27) afirmou em “Uma nova visão do
amor” que, antes das regulamentações da vida em grupo, nossa vida primitiva
“caracterizava-se pela livre expressão da nossa natureza animal. Todos os
nossos impulsos estavam livres para tentarem se exercer”. O limite era a natureza e
os rivais. Nosso computador – software – foi-se enchendo de informações e
conhecimentos com a vida em grupo (famílias, tribos, nações), por meio de uma de
suas instâncias chamada razão. Antes gastávamos a maior parte de nossas
energias para resolver necessidades básicas (quando vivíamos quase como
macacos). Quase? A razão passou a interferir “para o domínio de nossas
peculiaridades ‘mamíferas’” e as regras de convivência foram aumentadas, com
várias proibições (como o incesto). Limitações da expressão do desejo (sexo) e da
agressividade – inibição do cérebro réptil-mamífero. Repressão. Gikovate concorda
com Freud no sentido de que “nossa maior dificuldade consiste em equilibrar os
impulsos sexuais” (a psicanálise é ciência pioneira no estudos de nossos desejos e
contradições internas). Mas a questão das necessidades humanas poderá nunca
ficar resolvida satisfatoriamente. A partir dos anos 60, nós, os humanos, começamos
a nos questionar se precisamos mesmo continuar a viver com “a limitação na
expressão de nossas manifestações instintivas” de modo inevitável – essa revolução
dos costumes era de cunho sexual, mesmo antes, com o Rock and Roll dos anos
50, cujo ritmo, para Gikovate, foi o fator desencadeador desse processo que depois
foi estimulado pelas ideologias e pelas novas tecnologias (como a pílula
anticoncepcional). Ele trata essa transição assim: “a vida humana, até então
governada pela resolução das necessidades, agora passa a ser governada pela
maior realização dos nossos desejos.” [grifo nosso].
Segundo Gikovate (1996), nosso cérebro pensa pouco no que de bom já
conquistamos e ocupa-se mais do que nos falta, nos produz dor, nos produz
sofrimento. Assim, vamos em busca dos prazeres da vida (desejos), pela boa
solução dada às necessidades elementares (água, casa, vestuário, luz, comida).
Vivemos uma onda de libertação sexual, nós os tímidos humanos, frutos do
35

ambiente ao qual estávamos expostos antes (durante a severa fase da criação).


Vida sexual mais livre, sem compromissos matrimoniais, parece atrativa: sedução
pela promiscuidade antes proibida. As drogas (como a maconha) ajudaram nessa
empreitada, gerando ousadia, displicência, leveza moral, afrouxamento do senso
ético. O projeto era aqui intelectualmente aceito, mas de difícil execução. Será que a
razão de fato aceitava ou ainda havia inibição lógica? Com a redução da repressão,
a vida erótica tem sido muito mais rica, desde então. O trabalho dignificava, lazer e
repouso eram futilidade. Essa equação inverteu-se. Passamos a desejar realizar
desejos de viajar (com drogas e na realidade física), “curtir”, ouvir música,
contemplar a natureza. O divórcio tornou-se corriqueiro. Não havia treinamento para
essa vida mais individual. Essa aventura da vida sexual livre, das drogas, do
desprezo ao dinheiro, das comunidades jovens, do descompromisso, do não à
monogamia e à fidelidade sexual terminou em dependência química (não há
revolução sem vítimas), pobreza material, nos ciúmes (relacionamentos
possessivos) e no retorno de muitos às regras da vida social anterior. Após 1978,
houve um retorno ao sistema anteriormente vigente (surgimento da AIDS,
preservação da virgindade, competição, consumismo, vida profissional intensa).
Dessa contradição, a droga da vez passou a ser a cocaína para manter o estímulo a
essa vida estressante de noitadas e trabalho diurno. As mulheres mais
emancipadas. Pessoas decidem viver sozinhas. Disso tudo, restou uma vida de
depressão, mesmo para os bem sucedidos profissionalmente. Nas palavras de
Gikovate: “não temos estado bem”. Crescem os anseios místicos. Quem está em
famílias estáveis sente falta de mais liberdade e espaço para exercer sua identidade
pessoal. As drogas (e o álcool) mais presentes. Por fim, o autor demonstra crer que
a humanidade fará mais uma investida rumo a um “modo de vida mais compatível
com nossas aspirações e mais adequada ao meio exterior que nós mesmos
criamos”. Para ele, é necessário “conciliar nossa realidade interna com a nova
ordem externa que aí está”. (GIKOVATE, 1996, p. 27-34).
Esse texto foi escrito em 1996 e continua atual, no Brasil, 22 anos depois.
Evoluímos pouco e lentamente na solução de nossos dilemas e questões humanas.
O autor pensa que “esse novo modo de vida” não será obrigatoriamente “melhor ou
pior do que o antigo”. Em nossa visão, o autor equivocou-se nessa previsão
revolucionária, diante do que temos testemunhado ao longo dessas duas décadas
36

passadas, que só levaram ao desenvolvimento de corrupção generalizada em todos


os setores da civilização humana (aqui e no exterior).
Queremos destacar dessa breve síntese compreensiva do fértil material
gikovateano (inserta neste capítulo) as palavras “livre expressão de nossa natureza
animal” (cérebro réptil), “uma de suas instâncias chamada razão” (cérebro lógico-
racional), que interfere “para o domínio de nossas peculiaridades mamíferas”
(cérebro emocional).
Bem, o método psicanalítico é um meio eficiente para lidarmos com a mente
conflituosa (ou com o “Triune brain in conflict”) 30. O que pensamos é que talvez não
seja o único.
Como podemos exigir do indivíduo que se responsabilize por uma instância
que desconhece (por inconsciente) no interior de seu próprio cérebro? A teoria de
MacLean enriquece as ciências do cérebro, pois introduz o novo campo da
neuroetologia evolucionista e pode ser útil para conectar as neurociências com as
ciências dinâmicas e evolucionistas da mente (metapsicologia, psiquiatria
evolucionista, psicanálise e teorias dinâmicas neuropsicológicas). Nesse livro de
1977, MacLean já enfatizava que a falta de química e anatomia similares entre as
três formações evolutivas intercranianas poderia gerar conflitos de comunicação
entre os três sistemas (WIEST, 2012).
Fazemos essas breves digressões sobre ética e psicanálise (e sobre a teoria
gikovateana), neste capítulo dedicado à teoria de Lima (2010), porque nos parece
necessária para demonstrar que nossa visão (estudantil), apesar de acolher muitos
dos conceitos psicanalíticos tradicionais, tem reservas quanto à ética psicanalítica e
quanto à ideologia transformadora da “nova ordem” (nova era) nesses termos.
Talvez a integração da psicanálise com as demais “psicologias” e com a teoria do
triune brain possa produzir meios mais efetivos de intervenção nessas agendas
conflitantes entre os cérebros réptil, mamífero e intelectual que carregamos dentro
de nossos encéfalos, todos nós humanos (quer queiramos ou não).
Em conclusão ao seu artigo, a doutora Andréa afirma com segurança que
“as clássicas descrições de Freud sobre a mente têm perfeitamente lugar na
neurofisiologia de hoje” (LIMA, 2010, p. 286). Verdade. Concordamos.

30 Referência à obra de MACLEAN, P. D. The triune brain in conflict. (1977).


37

1.4 A psicanálise segundo Freud e Lacan: três instâncias e três registros

As descobertas do médico e neurologista vienense Sigmund Freud dão


centralidade à sexualidade humana na vida psíquica dos indivíduos (inclusive das
crianças). E o que é sexual está intimamente ligado ao biológico, ao orgânico. À
“energia dos instintos sexuais” chamou “libido” (FREUD apud BOCK, 1999, p. 50).
Mais especificamente:

À força pela qual o instinto sexual está representado na mente chamamos


‘libido’ – desejo sexual – e consideramo-la como algo análogo à fome, à
vontade de poder e assim por diante, na medida em que diz respeito aos
instintos do Ego. (FREUD, 1996 [1917], p. 147).

O número três (3) aparece no processo de desenvolvimento do indivíduo:


período do desenvolvimento sexual infantil (também três fases pré-genitais: oral,
anal, fálica ou genital infantil), período de latência e período púbere (adolescente,
fase genital).
Traçar um paralelo entre as influências dos três cérebros macleanianos e
essas fases não parece tarefa tão complexa assim (porém não é nosso intuito neste
trabalho). Interessam-nos tantas coincidências trilógicas.
Nos primeiros tempos de vida (período autoerótico), o prazer é encontrado
no próprio corpo (função sexual ligada à sobrevivência): fase oral erotiza a boca,
fase anal erotiza o ânus e a fase fálica, o órgão sexual (BOCK, 1999) – grande
influência do cérebro primitivo, reptiliano.
No período da latência, reduzem-se as atividades sexuais, há intervalo
(BOCK, 1999).
No período da adolescência (em direção à maturidade do adulto), a fase
genital induz direcionamento a um objeto externo (o outro) – BOCK, 1999.
Períodos autoerótico, narcisista, e de ligação a objeto externo.
Infância, adolescência, maturidade.
Vários processos são identificáveis no decorrer dessas fases (BOCK, 1999).
O complexo de Édipo também tem três (3) períodos (quando ocorre a
estruturação da vida psíquica dos indivíduos, por volta dos 3 a 5 anos): primeiro, a
mãe é objeto do desejo do menino (e o pai é seu rival); depois, ele procura ser o pai
para ter a mãe (e imita o comportamento paterno ao internalizar regras e normas
sociais); por fim, teme a perda do amor paterno e desiste da mãe (ela é substituída
38

pela riqueza do mundo social e cultural do qual a criança irá participar). Processo
similar (edipiano), com inversões das figuras de desejo e identificação, ocorre com
as meninas (BOCK, 1999).
Primeiro, muito colado à mãe, depois iniciando relações com o mundo
externo (via identificação com o pai) e, então, já adaptado ao ambiente sócio-
cultural: réptil, emocional, lógico (os três cérebros e suas influências formadoras
sequenciais).
Mais uma vez, precisamos atentar para a relação triangular (▲) do conflito
edipiano (os três ângulos dessa figura geométrica: filho, mãe, pai podem estar a
representar simbolicamente os períodos evolutivos – filo e ontogenéticos – dos
cérebros reptiliano, mamífero e neocortical).
Em “Sobre o narcisismo: uma introdução” (FREUD, 1996 [1914]), Freud
ensina que há três espécies de “energia psíquica”. Ele destaca a libido nas pulsões
autoeróticas (estado inicial da energia sexual) – o cérebro réptil? Diferencia-as das
pulsões do ego (no narcisismo: conceder ao ego catexia primária da libido) – cérebro
mamífero? E das pulsões dirigidas ao objeto (libido objetal, no narcisismo
secundário) – cérebro lógico-racional? (FREUD, 1996 [1914]).
Assim, o autoerotismo é o estado inicial da libido. As pulsões autoeróticas
estão ali desde o início (réptil?) e é necessário adicionar algo ao autoerotismo (nova
ação psíquica) para provocar o narcisismo. A diferença é que o Ego tem que ser
desenvolvido, não existe no indivíduo desde o começo – cérebro emocional?
(FREUD, 1996 [1914]).
No narcisismo primário, a retirada da libido dos objetos, pessoas e coisas do
mundo externo teria relação com problemas de ordem emocional (cérebro
paleomammalian) – como nos parafrênicos: esquizofrenia, demência precoce,
megalomania?
Nas induções de catexias objetais (do narcisismo secundário) entraria em
funcionamento um cérebro executivo lógico-racional mais bem desenvolvido, porém
em conflito ainda com o sistema instintivo-emocional – como no caso das neuroses
obsessiva e histérica?
Isso explicaria a afirmação psicanalítica – atribuída a Freud – de que somos
“todos” neuróticos? Porque sempre há conflitos no Homo Sapiens. O estado de
“normalidade”, assim, seria, no mínimo, a neurose.
39

Fazemos essa observação, apesar de que, neste estudo, procuramos ver


esses conflitos a partir das perspectivas filo e ontogenéticas com base no triune
brain – ou seja: a partir dos conflitos intracranianos do próprio indivíduo que, depois,
se refletem nos conflitos grupais da espécie humana; diferentemente do que nos
parece ter sido a tentativa do Doutor Freud de transportar para as culturas e
comunidades (sobrepondo o âmbito coletivo e social ao indivíduo) toda a
responsabilidade por essa neurose coletiva, ao afirmar que:

(...) não temos nós justificativa em diagnosticar que, sob a influência de


premências culturais, algumas civilizações, ou algumas épocas da
civilização – possivelmente toda a humanidade – se tornaram neuróticas?
(...). (FREUD, 1997 [1929], p. 110).

Pode ser que a neurose de todos nós, humanos, decorra, então, da própria
constituição triárquica de nossos cérebros evoluídos.
Boas questões, em vocabulário psicanalítico, para a meditação da
comunidade estudiosa do psiquismo humano.
A psicanálise também é uma teoria tripartite da mente.
Resumidamente, Freud apoiou seu aparelho psíquico, na sua versão final,
nos três conceitos: Id, Ego e Superego (lembrando que ele inicialmente escreveu
sobre o inconsciente, o pré-consciente e o consciente, concepções triárquicas muito
semelhantes àquela da perspectiva macleaniana, antes referida) – FREUD, 1996
[1932]).
A primeira concepção freudiana sobre a estrutura e o funcionamento
psíquicos foi apresentada na obra “A interpretação dos sonhos”, em 1900. O
inconsciente é composto por conteúdos ausentes do campo atual da consciência e
reprimidos por censuras internas e tem suas leis próprias de funcionamento (não há,
por exemplo, noções de passado e presente). No pré-consciente estão conteúdos
acessíveis à consciência. Já o consciente, por sua vez, é o sistema que recebe
simultaneamente informações do mundo interior e exterior, destacando-se a
percepção, a atenção e o raciocínio. A maioria dos desejos reprimidos teriam como
origem conflitos de ordem sexual na vida infantil. (BOCK, 1999).
Sigmund escreveu, mantendo o mesmo vocabulário (sistemas ) do seu
“Projeto para uma psicologia científica” (1996 [1895]), em “A interpretação dos
sonhos” (1996 [1900]):
40

Por conseguinte, retrataremos o aparelho psíquico como um instrumento


composto a cujos componentes daremos o nome de “instâncias”, ou (em
prol de uma clareza maior) “sistemas”. (...) talvez mantenham entre si
uma relação espacial constante, do mesmo modo que os vários
sistemas de lentes de um telescópio se dispõem uns atrás dos outros.
(...) a excitação atravessar os sistemas numa dada sequencia temporal. (...)
doravante nos referiremos aos componentes do aparelho como “sistemas-
”. (...) A primeira coisa a nos saltar aos olhos é que esse aparelho,
composto de sistemas-, tem um sentido ou direção. Toda a nossa
atividade psíquica parte de estímulos (internos ou externos) e termina
em inervações. [grifo nosso]. (FREUD, 1996 [1900], p. 567-568).

Em nota de rodapé, acrescentada a esse texto em 1919, Freud registra no


(seu primeiro) quadro esquemático do aparelho psíquico humano que os sistemas
se dispõem em sucessão linear: Ics. – Pcs. – Cs. (ou inconsciente, pré-consciente e
consciente). A primeira tópica freudiana.

Figura 3 – Primeiro quadro esquemático do aparelho psíquico freudiano e seus sistemas-.

Fonte: “A interpretação dos sonhos” (FREUD, 1996 [1900], p. 571).

Depois deste, o próximo quadro esquemático do aparelho psíquico foi


apresentado em “O Ego e o Id” (1996 [1917]), com algumas modificações (dando
mais ênfase à estrutura do que à função).
Foi novamente apresentado, já com os conceitos de Id, Ego e Superego, em
“Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise. Conferência XXXI – A
dissecção da personalidade psíquica” (FREUD, 1996 [1932]). Neste momento, Freud
introduziu a sua segunda tópica, com esses três sistemas da personalidade (BOCK,
1999).
O Id é obscuro e inacessível, é caos e caldeirão de pulsões, inconsciente,
desorganizado, luta para satisfazer necessidades pulsionais, observa o princípio do
prazer, nele há impulsos contrários lado a lado (contradição), é atemporal, não
reconhece julgamento de valores (bem ou mal), ele despreza a qualidade do que é
catexizado (ideias). (FREUD, 1996 [1932]).
41

Figura 4 – Quadro esquemático do aparelho psíquico de freudiano –


A segunda tópica: Id, Ego, Superego.

Fonte: “Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise. Conferência XXXI –


A dissecção da personalidade psíquica” (1996 [1932], p. 83).

“O Ego é, afinal, apenas uma parte do Id, uma parte que foi adequadamente
modificada pela proximidade com o mundo externo, com sua ameaça de perigo.”
(FREUD, 1996 [1932]).
Da percepção do externo surge a consciência (e o Ego age como escudo
protetor contra estímulos do ambiente). Sua função é fazer relação entre o mundo
externo e o Id (para este não se destruir satisfazendo suas pulsões de modo cego).
Tem função de teste da realidade, exclui os excessos das forças internas de
excitação do Id e controla o acesso à motilidade deste. É um mediador entre a
necessidade e a ação, usando a experiência para destronar o princípio do prazer
(que domina o curso dos eventos no Id) e substituí-lo pelo princípio da realidade.
Tem noção de tempo. Combina e unifica processos mentais – o Ego evolui da
percepção dos instintos para o controle deles. Às vezes, o cavaleiro (Ego) só guia
o cavalo31 (Id) por onde este quer ir (“situação não propriamente ideal”, nas
palavras de Freud). O Ego serve a três senhores ao mesmo tempo (severos,
ameaçadores, perigosos): o mundo externo, o Superego e o Id. E tenta
harmonizá-los em seus sempre divergentes reclamos e exigências incompatíveis
(como mediador). Desta pressão, surge ansiedade (moral: do Superego – confinado;
realística: do mundo externo – repelido; ou neurótica: das paixões fortes do Id –

31 Essa referência ao cavalo e seu guia será retomada novamente, mais adiante, neste trabalho, nas
palavras de Platão, de Arthur Koestler e na figura do mítico Centauro.
42

pulsões). O Ego usa em sua mediação a razão e o bom senso 32. O Ego admite sua
fraqueza. (FREUD, 1996 [1932]).
O Superego tem origem na longa dependência dos pais (e em sua influência
moral, severidade) e no Complexo de Édipo (conflito pai, mãe e filho). Tem função
proibidora e punitiva, de consciência (fazer o que dá prazer gera remorsos), de
manter o ideal, de auto-observação (preliminar da atividade de julgar). É uma
instância severa e “observadora” do Ego. Exige deste certos padrões de conduta,
sem importar-se com suas dificuldades em mediar o meio externo e os imperativos
do Id. Se tais padrões não são obedecidos, o Superego 33 pune o Ego com culpa e
sentimentos de inferioridade (FREUD, 1996 [1932]).
São funções do Superego a moral e os ideais, decorrentes da internalização
das proibições, dos limites e da autoridade – essa instância tem como conteúdo
exigências sociais e culturais:

O ego e, posteriormente, o superego são diferenciações do id, o que


demonstra uma interdependência entre esses três sistemas, retirando a
ideia de sistemas separados. O id refere-se ao inconsciente, mas o ego e o
superego tem, também, aspectos ou “partes” inconscientes. [grifo
nosso]. (BOCK, 1999, p. 52).

Ego e Superego são diferenciações do Id e têm partes inconscientes.


Ego e Superego podem ter evoluído a partir do Id? Poderá a instância
denominada por Freud como Superego estar conectada, no ser humano, à presença
do neocórtex (neomammalian brain) – ou ao sistema lógico-racional, na terminologia
adotada por Villeneuve (2016)?
Para Freud, o Superego está atrelado à culpa, e essa instância estaria
presente em todos os seres humanos. Mais adiante neste trabalho, questionamos,
com outros autores, se essa onipresença da culpa na mente dos Homo Sapiens é de
fato universal. Talvez existam gradações de sentimento de culpa (a partir do zero,
por exemplo, em criminosos cruéis e insensíveis à dor alheia). Talvez a formação de
um Superego decorra da constituição do sistema lógico-racional (neocórtex), que em

32 Interessante notar (como abordaremos mais adiante) que Freud vai modificando as “localizações”
dessas instâncias em seu aparelho psíquico ao longo dos anos: em ilustração do modelo mais
recente, ele posiciona o Superego como “lateral” ao Ego e ao Id, invadindo os domínios das outras
duas instâncias. (FREUD 1996 [1932]).
33 Este termo “Super-Ego” também tem curiosa relação com a teoria macleaniana, pois poderia ser
traduzido literalmente como “Sobre-Ego”. Assim, teríamos Id – Ego – Sobre-Ego. Instâncias
sobrepostas umas às outras? Réptil – Mamífero – Intelectual (reptilian brain – paleomammalian
brain – neomammalian brain).
43

nosso cérebro é mais evoluído do que nos demais mamíferos, como já vimos antes.
Talvez ele seja (um pouco) mais evoluído naqueles indivíduos da espécie que, pela
educação (familiar ou formal), apropriaram-se de uma competência intelectual
“superior” (superior apenas no sentido do desenvolvimento de estrito respeito ao
próximo e às regras morais de convivência em sociedade) – naqueles cidadãos que
sofrem ao acreditar que, por seus atos ou omissões, podem eventualmente ter
causado danos aos direitos dos outros; cuja postura é contrária àquela dos
indivíduos que permanecem fixados num estágio evolutivo (egoísta) mais primitivo,
sem sentir culpa (ou sentindo-a em doses ínfimas), e preocupados em “levar
vantagem em tudo”, como sugere a publicamente notória “lei de Gerson” brasileira,
ou seja, a malandragem e o “jeitinho” (DAMATTA, 1991, p. 94-105). Voltaremos ao
tema da “universalidade” do Superego no capítulo seguinte.
Tais conceitos encontramos melhor detalhados na Conferência XXXI, “A
dissecção da personalidade psíquica”, na obra freudiana “Novas conferências
introdutórias sobre psicanálise”. (FREUD, 1996 [1932]).
Jacques Marie Émile Lacan, por sua vez, médico francês, desenvolveu
uma série de conceitos psicanalíticos relevantes: “todavia, foi expulso da Associação
Internacional de Psicanálise, em 1953, após acirradas discussões sobre a sua
‘perversa’ prática de conduzir sessões de terapia mais curtas.” (COLLIN et. al., 2012,
p. 123).
Um desses conceitos foi o do “estádio do espelho” (dividido em três
momentos), que o autor viu como contemporâneo ao prenúncio do período do
complexo de Édipo, no processo de maturação da criança (DOR, 1992).
Esse estádio do espelho está relacionado a um certo tipo de identificação
com base na alienação específica com a mãe. A criança irá conquistar a imagem de
seu corpo e estrutura do “eu” (DOR, 1992).
Tem três tempos: o primeiro, em que a criança confunde-se com o outro
(orienta-se pelo outro, criança assujeitada ao registro imaginário); o segundo tempo,
em que ela descobre que o outro no espelho não é um outro real, mas uma imagem
(distingue a imagem do outro da realidade do outro); e o terceiro tempo, em que fica
convicta de que trata-se de imagem no espelho, e imagem dela mesma (unifica a
dispersão de um corpo esfacelado) – DOR, 1992.
Sim, réptil que crê ser parte do outro; paleoammalian que começa a relação
emocional com o mundo externo ao ver que existe o ambiente externo e a realidade
44

do outro; lógico-racional que fica convicto de ver sua própria imagem nesse
espelho? Talvez.
Essa fase do espelho é identificatória. Segue relação de “indistinção quase
fusional com a mãe, mas se esboça um sujeito.” (DOR, 1992, p. 80-81).
Lacan prossegue com o número três (3), ao retomar os três momentos do
Édipo. No primeiro momento, a criança quer ser o falo da mãe, o objeto de seu
desejo (o que supõe faltar a ela). Criança assujeitada ao desejo materno
(problemática fálica: dialética do ser: “ser ou não ser o falo”). (DOR, 1992, p. 81).
Réptil novamente, fusão indistinta com a mãe.
No segundo momento, há intrusão paterna e o registro da castração (que
interdita, frustra e priva a criança). A lei do pai entra em jogo (lei do outro). O desejo
da mãe é visto como submetido ao desejo do outro (pai). Surge a dialética do ter ou
não ter o falo (da mãe). Agora a criança não é o falo e não o tem (nem a mãe o tem).
(DOR, 1992).
Aqui entra uma relação com o mundo externo e seus limites (DOR, 1992, p.
82-87). O cérebro emocional (mamífero) mais operante.
No terceiro e último momento do Édipo em Lacan, a criança caminha em
direção à conquista do falo, com o declínio desse complexo edipiano – com a
conclusão da rivalidade fálica em torno da mãe. Aqui, o pai deve intervir como
aquele que tem o falo e não como aquele que o é. Nesta etapa há simbolização da
lei, que garante a plena significação da criança (estruturação). (DOR, 1992, p. 88).
O menino engaja na dialética do ter o falo, identificando-se com o pai. A
menina pode identificar-se com a mãe e ir buscar o falo, já que a mãe sabe onde ele
está (DOR, 1992, p. 88).
Repor o falo em seu lugar estrutura a criança. É passagem do registro do ser
ao do ter. Instala-se a metáfora paterna (outro conceito lacaniano) e o respectivo
mecanismo intrapsíquico do recalque originário (DOR, 1992, p.88).
Passa a operar aqui o cérebro lógico-racional, pela maturação do neocórtex?
Nesta fase (da metáfora paterna), inaugura-se a alienação do desejo na
linguagem e o acesso da criança à dimensão simbólica (sujeito desejante e cativo da
linguagem). O desejo segue em busca de objetos substitutivos ao objeto perdido.
Gera demanda. Divide o sujeito e cria o inconsciente (se tiver sucesso). Ou cria a
psicose (se fracassar). (DOR, 1992, p. 94).
45

Então, encontramos uma dúvida: a linguagem dividiria o sujeito que já nasce


tripartido (biogeneticamente) em cérebros conflitantes? Provavelmente não.
Rodulfo e Rodulfo (1986) trazem algumas contribuições interessantes
acerca dos períodos do narcisismo edipiano no seu texto “La transferencia como
garabato. Apuntes generales” (1986) – com base mais lacaniana.
O primeiro espelho está no rosto materno (o Outro primordial), a função do
eu é herdada da função materna e a constituição do Supereu é herdada da função
paterna. Isso ocorre após a passagem das vicissitudes ligadas à maturação
biológica (RODULFO, 1986, p. 15-24).
Maturação biológica (do réptil), o Eu (emocional) vem da mãe, o Supereu
(racional) vem do pai?
O narcisismo é recortado em três (3) tempos lógicos.
O primeiro: em que o sujeito está no Outro primordial (é o Outro). No real de
sua presença, a mãe se coloca dentro de sua cabeça (célula mãe-filho). (RODULFO,
1986).
O segundo: o pequeno infans começa a se ver como outro (o olhar da mãe o
autoriza a ver-se). (RODULFO, 1986).
O terceiro: diante do estranho, a criança dá mostras de angústia (antes tudo
era a mãe, e a criança começa a simbolizar algo como estranho): “se por lo menos
hay uno que sea extraño a ella, yo también lo soy.” (RODULFO, 1986, p. 29-30).
A triune brain theory ajuda a compreendermos melhor Lacan: Real é o réptil
e o buraco fica quando a célula mãe-filho se desfaz. Imaginário é o narcisismo (o
eu), o olhar da mãe permite ver-se como outro. Simbólico é perceber pela angústia
que há pelo menos um estranho (o pai) e isso é simbolizado?
E aí entra o jogo do Fort Da, operação fundamental da estruturação
simbólica do sujeito precoce (p. 33) – presença e ausência maternas: “emerge el
primer espacio fuera del cuerpo materno para vivir” (RODULFO, 1986, p. 31).
O mito do narcisismo vem resolver a questão do ser, já o mito do Édipo vem
responder ao ser sexuado e ao ter um sexo. Lacan fala de um Édipo inclusive antes
do nascimento (RODULFO, 1986, p. 44).
Na problemática narcísica, a criança compreende que “la madre no és el”.
Na edipiana, que “su madre no és de el”. Passa de ser ao ter identidade sexual
(castração simbólica). (RODULFO, 1986, p. 45).
46

Rodulfo e Rodulfo (1986, p. 48) também apresentam o Édipo recortado por


três tempos lógicos, em situação triangular (com três pólos): pai, mãe e filho.
Será que essa triangulação é a base de tudo na civilização humana, a partir
da configuração dos três cérebros, a partir de um primitivo, instintual: filho
(instintivo), mãe (relações com o mundo externo, por meio de emoções elaboradas),
pai (lei e pensamento lógico-racional)? Pode ser.
No primeiro tempo, o menino identifica-se com o objeto do desejo da mãe,
constrói a metáfora paterna. Para agradar a mãe basta ser o falo (RODULFO, 1986,
p. 49-50).
No segundo tempo, o postulado de ser o falo recai sobre o pai: no sentido de
privar o menino de seu objeto de desejo e de privar a mãe de seu objeto fálico. A
mãe se remete à lei do pai (RODULFO, 1986, p. 50).
No terceiro tempo lógico do Édipo, ocorre a passagem de ser a ter (ser
possuidor do desejo do Outro a ter algo com que possa desejar e ser desejado).
(RODULFO, 1986, p. 52).
Após o período do Édipo vem o da latência (vida imaginativa limitada).
(RODULFO, 1986, p. 55).
Na sequência deste, vem a puberdade, adolescência, em que o indivíduo
questiona o seu ser: “En la puberdad encontramos al paciente dominado por sus
emociones, con manifestaciones más pronunciadas que en el período de latência y
uma vida más rica en imaginación.” (RODULFO, 1986, p. 64).
Então: primeiro o biológico (réptil) – Real, depois o emocional (mamífero) –
Imaginário, por fim o lógico-racional (neocórtex) – Simbólico. Esses períodos
retromencionados também parecem seguir o desenvolvimento dos cérebros
macleanianos.
O adolescente está em difícil borda entre dois limites: as crianças e os
adultos. (RODULFO, 1986, p. 65).
Escreve o casal Rodulfo e Rodulfo (1986, p. 68): “He comprobado el
incremento de consultas alrededor de la puberdad, edad en ellos del
recrudecimiento pulsional y narcisista que instaurado desde lo biológico pasa como
un Real resistente a simbolización” – casos de “niños retrasados graves”, colocados
no lugar de “siempre niños”, sem poder deixar para trás a criança que seguem
sendo e sem poder alcançar o papel genitor assinalado para os adultos da raça
humana e ter um filho.
47

Alcançar o “papel genitor assinalado” para a raça humana é assim relevante


na teoria psicanalítica? Então, há um reconhecimento de nossa condição animal
(filogenética), claramente. Sobreviver e procriar são as metas do organismo
humano.
Particularmente, temos visto muitos genitores, teoricamente adultos,
portanto, que seguem no lugar de “siempre niños” também, embora não pareçam
enquadráveis (à primeira vista) como retardados graves – porém, o que nos parece
fundamental compreendermos nesse contexto é o momento da passagem do
adolescente para o papel maduro adulto (em que estratégia, pensamento, raciocínio-
lógico, intelectualidade passam a ter função central no comportamento humano).
Lacan sustentou suas ideias sobre os três registros que batizou como
Simbólico, Imaginário e Real (LACAN, 1996 [1975]), entre outros conceitos que criou
(tais como os de nome-do-pai, sujeito e significante), sem ter, no entanto, o objetivo
de reinventar a psicanálise (fez um retorno a Freud, revalorizando o inconsciente e o
Id, em detrimento do Ego): “Não, não se deve desconhecer aqui o registro simbólico,
que é aquele por onde se constitui o ser humano enquanto tal.” (LACAN, 1996
[1975], p. 183).
Real, Imaginário e Simbólico “dão conta do campo possível de experiências
subjetivas.” (SAFATLE, 2007, p. 30).
No Seminário sobre “Os escritos técnicos de Freud” (1953), ele aborda
essas categorias que considera “elementares sem as quais nada podemos distinguir
em nossa experiência”. Assim Lacan antecipa o “encaixe” regente da estrutura do nó
borromeano:

Não é por nada, sem dúvida, que elas são três. Deve haver aí uma lei
mínima que a geometria não faz, aqui, mais do que encarnar, a saber, que
se vocês destacam no plano do real alguma aba que se introduza numa
terceira dimensão, não poderia fazer nada de sólido senão com duas outras
abas, no mínimo. (LACAN apud DARMON, 1994, p. 227).

“Não é por nada que elas são três”. Palavras de Lacan.


Ele introduziu em sua teoria o nó borromeano em 1972.
Esclarece Marc Darmon que: “Efetivamente, no nó borromeano, as três
consistências do Real, do Simbólico e do Imaginário se mantêm juntas de modo tal
que, se se corta indiferentemente um dos círculos, os dois outros se destacam.”
(DARMON, 1994, p. 227).
48

Vladimir Safatle explica em sua obra “Lacan”, que o psicanalista teórico


aproxima-se de Nietzsche (e de sua “dor” que obriga os filósofos a descerem às
suas profundezas e a desfazerem-se de toda sua confiança) ao insistir ao longo do
tempo, cada vez mais, no sentido de que:

(...) a experiência humana não é um campo de condutas guiadas apenas


por imagens ordenadoras (Imaginário) e por estruturas sociossimbólicas
(Simbólico) que visam garantir e assegurar identidades, mas também por
uma força de ruptura cujo nome correto é Real. (SAFATLE, 2007, p. 74).

Esse Real, ensina Safatle, “não deve ser entendido como um horizonte de
experiências concretas acessíveis à consciência imediata”, porque não se liga a
descrição objetiva das coisas, “diz respeito a um campo de experiências subjetivas
que não podem ser simbolizadas ou colonizadas por imagens fantasmáticas.”
(SAFATLE, 2007, p. 74).
O Imaginário pode ser compreendido como “(...) aquilo que o homem tem
em comum com o comportamento animal. Trata-se de um conjunto de imagens
ideais que guiam tanto o desenvolvimento da personalidade do indivíduo quanto sua
relação com seu meio ambiente próprio”. Segundo Safatle, o imaginário em Lacan é
fundamentalmente narcísico. (SAFATLE, 2007, p. 30-31).
O Simbólico é, para Lacan, o sistema linguístico que estrutura o campo da
experiência (SAFATLE, 2007, p. 43).

Figura 5 – Os três registros da teoria de Lacan: Real, Imaginário e Simbólico.


A cadeia borromeana ou o nó borromeano.

Fonte: “Ensaios sobre a topologia lacaniana” (DARMON, 1994, p. 228).


49

Em sua conferência de 1953, “O Simbólico, o Imaginário e o Real”, o


médico-legista e psicanalista francês faz uma exposição programática de sua
reconstrução da teoria freudiana, por meio de uma noção de inconsciente inédita
(proveniente do estruturalismo34). (SAFATLE, 2007, p. 40).
Então, a princípio, aceita-se que o Simbólico é “inconsciente”, pois “a
verdadeira relação intersubjetiva” se daria “entre o sujeito e a estrutura, e não entre
o sujeito e os outros.” (SAFATLE, 2007, p. 44).
Jacques Lacan entende impossível avançar na experiência analítica (senão
usando “expressões místicas” no estilo jungiano, condenado pelos seguidores
freudianos) sem distinguir Simbólico, Imaginário e Real:

Antes que o desejo aprenda a se reconhecer – digamos a palavra – pelo


símbolo, ele só é visto no outro. Na origem, antes da linguagem, o desejo só
existe no plano da relação imaginária do estado especular, projetado,
alienado no outro. (LACAN, 1996 [1975], p. 197).

Dois pilares da teoria lacaniana dizem que o “inconsciente está estruturado


como uma linguagem” (e de fato está: na linguagem do sistema réptil-afetivo
traduzida por Freud a partir dos atos falhos, chistes, sonhos, lapsos; e também em
parte da linguagem lógico-racional35) e que “não existe a relação sexual” (NÁSIO,
1993).
Safatle (2007, p. 45) traduz essa ideia como: “O inconsciente é a linguagem”
(enquanto ordem que organiza previamente o campo de toda experiência possível).
Lacan introduz uma noção de “inconsciente como ordem sociossimbólica,
portanto”. Um tanto genérica para dar conta da noção freudiana de inconsciente,
sem que Lacan tenha que criar outros conceitos que irão compor a sua, assim
denominada, releitura da teoria psicanalítica. (SAFATLE, 2007, p. 45).
Aquelas memórias que pretendemos deixar de lado (e que não são
passíveis de serem recuperadas conscientemente) estariam, segundo os
psicanalistas, no local destinado ao inconsciente. Há alguns meios de comunicação
limitados do inconsciente com o “eu” (os sonhos, os símbolos, a linguagem dos
arquétipos para Jung; os sonhos, os atos falhos, os lapsos acidentais de linguagem
para Freud; as diversas correntes psicanalíticas concordam que o inconsciente

34 Estruturalismo: teoria fundada grosso modo, sobre a ideia de que o verdadeiro objeto das ciências
humanas são as “estruturas sociais” que determinam o homem e não ele mesmo como centro
intencional de ação e produtor de sentido (SAFATLE, 2007, p. 42).
35 Já vimos que, em Freud, o inconsciente abrange partes do Id, do Ego, do Superego.
50

retém mais informações do que o consciente). Para Lacan, porém, “a linguagem do


inconsciente não é a do ‘eu’, mas a do ‘Outro’”. (COLLIN et. al., 2012, p. 122).
Os significantes (sinais ou códigos) chegariam a nós a partir do exterior,
formando-se a partir da linguagem, que Lacan preferia chamar de “discurso” do
Outro (ambiente externo, toda alteridade além do “eu”):

Somente pela linguagem somos capazes de pensar e expressar nossas


ideias e emoções, e a única linguagem que possuímos, segundo Lacan, é
a do Outro. As sensações e imagens que se traduzem nos
pensamentos do inconsciente devem, então, ser construídas pela
linguagem do Outro, ou como dizia Lacan: ‘o inconsciente é o discurso do
Outro’. [grifo nosso]. (COLLIN et. al., 2012, p. 123).

Com relação a esses três registros e sua estreita articulação, Juan-David


Násio nos traz este esclarecimento, tendo em perspectiva o “corpo no campo
psicanalítico” (lacaniano):

Como estamos vendo, o corpo pode ser contemplado de três pontos de


vista complementares: em primeiro lugar, do ponto de vista real, temos o
corpo sinônimo de gozo; depois, do ponto de vista simbólico, temos o corpo
significante, conjunto de elementos diferenciados entre si e que determinam
um ato no outro; e por fim, o corpo imaginário, identificado com uma
imagem externa e prenhe, que desperta o sentido num sujeito. São essas
as três perspectivas que lhes proponho adotar, para definir o corpo no
interior do campo psicanalítico. (NÁSIO, 1993, p. 151).

E mais adiante, prossegue Násio, distinguindo os três estatutos do corpo:

Segundo os três estatutos do corpo que acabamos de destacar, está claro


que, nessas afecções (psicossomáticas), um dos corpos rompe o atamento
do real, do simbólico e do imaginário para irromper maciçamente na cena
da análise. Que corpo, a não ser o corpo real e gozoso que, à maneira de
um transbordamento de gozo, transtorna o corpo de carne e osso do
sujeito? (NÁSIO, 1993, p. 154).

Em sua obra “Lacan, o grande freudiano”, Marco Antonio Coutinho Jorge


e Nadiá Paulo Ferreira trazem uma informação que não podemos deixar de citar na
íntegra, numa pesquisa como a nossa, sob pena de perdermos sua valiosa precisão
original:

R.S.I., iniciais de real, simbólico, imaginário, é uma tripartição conceitual


construída por Lacan. Ele a chama de “trindade infernal” e pondera que “o
desejo do homem é o inferno precisamente no que é o inferno que lhe falta”.
O termo “inferninho”, em voga há décadas para designar os lugares nos
quais a juventude busca prazer, bem pode servir para ilustrá-lo...
Essa trindade é introduzida pela primeira vez em uma conferência,
realizada em julho de 1953 na SFP e retomada no seminário de 1974-75,
51

intitulado R.S.I. A sua construção não levou séculos e nem empregou


milhares de homens como a de grandes catedrais. Um único homem,
Lacan, inspirando-se nas ciências de seu tempo — a lingüística, a
antropologia estrutural e a matemática —, revê a obra de Freud com
uma nova lente e descobre implícitos nela três registros heterogêneos
que constituem o aparelho psíquico: R.S.I. A nomeação desses registros
não só fornece um enorme alcance às teses freudianas, mas também
permite a compreensão e o enriquecimento dos conceitos. [grifo nosso].
(JORGE, 2005, p. 29-30).

Os autores referidos no parágrafo anterior escrevem que Lacan, ainda em


R.S.I. (Seminário de 1974-75), “afirma que a particularidade desse nó reside no fato
de que “três é seu mínimo’.” (JORGE, 2005, p. 30).
Agora, nos perguntamos: nova lente? Linguística, antropologia cultural,
matemática. “Descobre” implícitos na obra freudiana três registros heterogêneos que
constituem o aparelho psíquico? Sempre estiveram lá; existem desde antes de
Platão (como veremos no próximo subcapítulo).
A nova lente enobrece a intelectualidade e despreza a origem biológica da
vida (instintivo-afetiva).
Escreveu Desmond Morris em sua polêmica obra “O macaco nu: um estudo
do animal humano”:

O macaco pelado é essencialmente uma espécie exploradora, e toda a


sociedade que não foi capaz de avançar constitui um fracasso e “seguiu um
caminho errado”. Por alguma razão se manteve atrasada, algo se opôs às
tendências naturais da espécie para explorar e investigar o mundo que a
rodeia. (MORRIS, 1996, p. 8).

Muita gente gosta de pensar que não somos animais. E podem dizer que eu
avilto a nossa espécie quando a descrevo em rudes termos animais. Posso
apenas afirmar que não é essa a minha intenção. Outros ofender-se-ão pelo
fato de um zoólogo se intrometer nos seus campos especializados. Mas eu
admito que essa perspectiva poderá ter grande valor e que, apesar de todos
os defeitos, introduzirá novos (e de certa maneira inesperados)
esclarecimentos sobre a natureza complexa da nossa extraordinária
espécie. (MORRIS, 1996, p. 10).

A base biológica de todo esse progresso reside no desenvolvimento de um


cérebro suficientemente grande e complexo que permitiu que o macaco
caçador evoluísse. (...) O macaco da floresta que se tornou macaco
terrestre, que se tornou macaco caçador, que se tornou macaco territorial,
acabou por se tornar macaco culto (...). (MORRIS, 1996, p. 18-19).

Lacan diz que o Real é o que ex-siste, o Imaginário é o que dá consistência


e o simbólico é o que insiste. Prosseguindo nessa distinção (sempre útil, dada a
complexidade quase inexpugnável do muito peculiar vocabulário lacaniano), para
ele, há três grandes segmentos da obra freudiana passíveis de serem incluídos
52

nessas três instâncias: o Simbólico correspondendo às relações entre inconsciente e


linguagem, o Imaginário ligado à abordagem freudiana do narcisismo, e o Real
conectado às questões das diferenças sexuais, da repetição, da pulsão de morte.
Enfim, o Real é o que não pode ser representado por imagens nem por palavras
(sem representação psíquica), já a realidade é constituída por tramas simbólico-
imaginárias (palavras e imagens). (LACAN, apud JORGE, 2005, p. 32).
As observações desses autores nos ajudam a percebermos que no encéfalo
humano, esses três núcleos, ou instâncias, ou registros, ou como os desejarmos
denominar, esses três estão intimamente interconectados. O desenho lacaniano de
três círculos que se intercruzam pode sim representar pictoricamente o que ocorre
no cérebro triúnico. Quando há conflito, ocorre desamarragem (ou incoerência e
incongruência que geram sintomas e desequilíbrio mental e comportamental).
Marco Antonio Coutinho Jorge (2008) escreveu, em “Fundamentos da
psicanálise – de Freud a Lacan” (Volume 1), que a tripartição estrutural real-
simbólico-imaginário (RSI) – afirmada por Lacan na conferência de 1953 – retira da
obra de Freud todo o seu alcance e os três registros dessa tripartição concernem
três grandes segmentos da descoberta freudiana.
Por volta de 1974-75, Lacan reuniu esses três registros sob a ótica da
cadeia borromeana (ou nó), quando a ordem de apresentação deles alterou-se de
SIR para RSI. Lacan identificou essa fase como “retorno aos textos freudianos”. O
Real é apresentado em 1953 como “aquela parte do sujeito que nos escapa na
análise” ou “os limites da nossa experiência”. O Simbólico é o saber em jogo na
própria experiência psicanalítica (responsável pelas “transformações tão profundas
para o sujeito” – Lacan questiona a palavra, o símbolo). O Imaginário somente
descreve os ciclos instintuais dos animais, que mostram deslocamentos, que
significam um esboço de comportamento simbólico (exemplificando-os com um
comportamento de ostentação para combate, de alisar as plumas). Esses três
registros não podem ser separados, estão unidos, indissolúveis, pela (cadeia) ou nó
borromeano. E “tudo começa no três”. “É preciso ao menos três para que a estrutura
se dê”. (JORGE, 2008, p. 93-95). Concordamos.
Marco Jorge, ainda nos brinda com nova menção lacaniana ao três (“tudo
começa no três”), fascinado que estava Lacan com o nó borromeano, tal qual tinha
53

estado Freud fascinado com a imagem da cabeça de Janus36 (ou Jano, o Deus
romano das mudanças e transições):

Tal idéia se acha expressa em dois adágios latinos citados,


surpreendentemente, nos extremos de seu ensino: Tres faciunt collegium,
citado no texto sobre O tempo lógico, em 1945, e Tres faciunt ecclesiam,
mencionado nas “Jornadas sobre cartéis” da Escola Freudiana de Paris, em
1975. [grifo nosso]. (JORGE, 2008, p. 95).

A esse respeito, vale citarmos o artigo “Três fazem o grupo: o ternário, o


colégio, a convergência”, de Tonini e Goldenberg (2003, p. 2), em que comentam o
antigo provérbio tres faciunt collegium, explicando-o, a partir de suas pesquisas, no
sentido de que “expressa consenso, união, discussão e concordância, uniformidade
de opinião. Harmonia. Esforço para convergir até um ponto comum, geralmente
melhor, porque decidido em conjunto, democraticamente”.
O artigo supramencionado traz citações de vários autores sobre a “trindade”
(de diferentes épocas, culturas e nações), lembrando inclusive o texto do Tao Te
Ching (que também referimos neste trabalho), entre as quais escolhemos algumas:

O três é a união dos opostos, o número equilibrante.

Pai-filho-espírito santo. Tese-antítese-síntese. Pai-mãe-filho. Mais-menos-


neutro. Sim-não-talvez. 3 patriarcas (Abraão-Isaac-Jacó). 3 filhos de Adão
(Caim-Abel-Sem). 3 reis magos (Balthazar, Gaspar, Melchior). São três os
portões do Templo. Jesus ressuscitou no terceiro dia. 3 virtudes teológicas
(fé, esperança e caridade). 3 paladinos da justiça (Athos, Porthus, Aramis).
3 as operações da Cabala literal (gematria-notarikon-themurah). 3 as tríades
da Árvore da Vida. 3 as letras hebraicas fundamentais (aleph-mem-shin).

São três as Leis Fundamentos da Lógica de Parmênides, simultâneas ao


pensar, e ao ser. Cogito, ergo sum (penso, logo existo). – o que é, é; – nada
pode ser ou não ser ao mesmo tempo; – não há outra possibilidade senão
ser, ou não ser.

Três pontos conferem estabilidade à base. 1 e 2 são essenciais, mas não


correspondem a nenhuma figura geométrica. Pitágoras disse que o 3 é o
primeiro número real, que corresponde ao triângulo, portanto, à realidade
física. O três possibilita a multiplicidade e a espacialidade, a terceira
dimensão. (...) a Santíssima Trindade, as partes do universo, as fases da
existência, os reinos da natureza, as partes do corpo, as dimensões do
espaço, os elementos da matéria, os pontos da reticência, as Três Marias, o
número perfeito, o triângulo inconfidente, o triângulo da liberdade. (...) três
pilastras da arte cirúrgica: diérese, hemostasia e síntese. (...) insistir no
estímulo à Extensão, à Pesquisa e ao Ensino, a tríade maior da carreira
acadêmica. (TONINI, 2003, p. 1-2).

36 Janus é a divindade dos pórticos (que dá nome ao mês de Janeiro), olha para o ano que passou e
para o que se anuncia, representação grega imagética da unidade dividida e da dualidade una,
melhor representante do sujeito do inconsciente, avesso à possibilidade de representação.
(JORGE, 2008, p. 99).
54

Em nosso estudo, parecem novamente corresponder claramente: o real – ao


réptil primitivo, o imaginário – ao mamífero emocional, o simbólico – ao lógico-
racional, em uma analogia da psicanálise lacaniana com o triune brain macleaniano.
Conforme Jorge (2008, p. 98), Lacan situou o inconsciente em uma região
intersticial ao simbólico e real (em “A topologia e o tempo”, 1978), ambos o
articulam, pois: “o núcleo do inconsciente é real, é uma falta originária constituída
pelo objeto perdido do desejo e é em torno dessa falta que o inconsciente se
estrutura, no simbólico, como uma linguagem.”
Jorge cita Freud, ao escrever que “operamos no reino do entre” (JORGE,
2008, p. 99). De fato, entre três cérebros conflitantes, ou dois sistemas conflitantes,
como deseja a definição teórica de Villeneuve (2016).
Antonio Godino Cabas, em seu livro “Curso e discurso na obra de Jacques
Lacan”, aborda também “O simbólico, o imaginário e o real”, e nos ensina que, de
acordo com Lacan, “o propriamente real é eminentemente: a realidade do
inconsciente”, de modo que essa categoria de real no que se refere à dinâmica do
sujeito do inconsciente é a noção de discurso (sendo seu substrato o desejo).
(CABAS, 1982, p. 58).
Para esse autor, o imaginário está vinculado à noção de imagem, rede,
ilusão, espelho, outro; e o simbólico remete à noção de cultura (ordem social,
linguagem, palavra):

O imaginário tem como características as de subjetividade, individualidade e


particularidade, enquanto que o simbólico se rege pelos atributos de
estruturalidade, convencionalidade e dependência do grupo. (CABAS, 1982,
p. 58).

Por fim, ainda em um esforço didático de aprendizagem, visando um melhor


entendimento (mais claro) dessas três instâncias lacanianas, transcrevemos as três
definições constantes do “Dicionário de psicanálise”, de Elisabeth Roudinesco e
Michel Plon:

Real. al. Reale (das); esp. real; fr. réel; ing. real.

Termo empregado como substantivo por Jacques Lacan, introduzido em


1953 e extraído, simultaneamente, do vocabulário da filosofia e do conceito
freudiano de realidade psíquica, para designar uma realidade fenomênica
que é imanente à representação e impossível de simbolizar.
55

Utilizado no contexto de uma tópica, o conceito de real é inseparável dos


outros dois componentes desta, o imaginário e o simbólico, e forma com
eles uma estrutura. Designa a realidade própria da psicose (delírio,
alucinação), na medida em que é composto dos significantes
foracluídos (rejeitados) do simbólico.

Imaginário. al. Imaginäre; esp. imaginario; fr. imaginaire; ing. Imaginary.

Termo derivado do latim imago (imagem) e empregado como substantivo na


filosofia e na psicologia para designar aquilo que se relaciona com a
imaginação, isto é, com a faculdade de representar coisas em pensamento,
independentemente da realidade.

Utilizado por Jacques Lacan a partir de 1936, o termo é correlato da


expressão estádio do espelho e designa uma relação dual com a imagem
do semelhante. Associado ao real e ao simbólico no âmbito de uma tópica,
a partir de 1953, o imaginário se define, no sentido lacaniano, como o
lugar do eu por excelência, com seus fenômenos de ilusão, captação e
engodo.

Simbólico. al. Simbolische; esp. simbólico; fr. symbolique; ing. Symbolic.

Termo extraído da antropologia e empregado como substantivo masculino


por Jacques Lacan, a partir de 1936, para designar um sistema de
representação baseado na linguagem, isto é, em signos e significações que
determinam o sujeito à sua revelia, permitindo-lhe referir-se a ele,
consciente e inconscientemente, ao exercer sua faculdade de simbolização.

Utilizado em 1953 no quadro de uma tópica, o conceito de simbólico é


inseparável dos de imaginário e real, formando os três uma estrutura.
Assim, designa tanto a ordem (ou função simbólica) a que o sujeito
está ligado quanto a própria psicanálise, na medida em que ela se
fundamenta na eficácia de um tratamento que se apóia na fala. [grifo
nosso]. (ROUDINESCO, 1998).

Real como realidade do delírio e da psicose (fora do simbólico), Imaginário


como o lugar por excelência do eu (ilusão, engodo) e Simbólico como a própria
psicanálise (tratamento pela fala) e a ordem (ou função) simbólica a que se liga o
sujeito. Muito interessante.
Lacan sofreu críticas de diferentes autores. André Green, psicólogo egípcio
que foi também seu estagiário na década de 1950, parece ter feito crítica relevante,
ao apontar que seu mestre “dava importância exagerada à forma simbólica e
estrutural, o que invalidava sua visão freudiana.” (COLLIN et. al., 2012, p. 339).
Pode ser.
Voltando ao fundador da psicanálise, há elementos úteis à nossa pesquisa
em diversas obras freudianas. Uma delas chama a atenção em especial: “O mal-
estar na civilização” (FREUD, 1997 [1929]). São tantos detalhes, que o seu conteúdo
mereceria um subtítulo ou apêndice específico neste trabalho. Mas, antes, algumas
56

citações gerais (focadas mais propriamente apenas nos Capítulo I e II dessa obra) já
são suficientes.
Freud fala desde logo nas “discrepâncias existentes entre os pensamentos
das pessoas e suas ações” e sobre a “diversidade de seus impulsos plenos de
desejo” (FREUD, 1997 [1929], p. 9). Nossos conflitos internos.
Uma inserção oportuna, neste ponto. Ao escrever sobre a “Psicopatologia do
comportamento organizacional: organizações desorganizadas, mas produtivas”,
Cecília Whitaker Bergamini e Rafael Tassinari citam Cloke e Goldsmith (2008,
Prefácio, p. XIV): “Quando se está em conflito, é comum dizer coisas que não se
pretende e pretender coisas que não se diz.”
Sobre o cérebro réptil, uma observação freudiana, em “O mal-estar na
civilização”, nos impressiona em particular:

No reino animal, atemo-nos à opinião de que as espécies mais altamente


desenvolvidas se originaram das mais baixas; no entanto, ainda hoje,
encontramos em existência todas as formas mais simples. A raça dos
grandes sáurios se extinguiu e abriu caminho para os mamíferos; o
crocodilo, porém, legítimo representante dos sáurios, ainda vive entre
nós. [...] Via de regra, os elos intermediários extinguiram-se, e só os
conhecemos através de reconstruções. No domínio da mente, por sua
vez, o elemento primitivo se mostra tão comumente preservado, ao
lado da versão transformada que dele surgiu, que se faz desnecessário
fornecer exemplos como prova. [grifo nosso]. (FREUD, 1997 [1929], p.
14).

“Ainda vive entre nós” e “no domínio da mente” o “elemento primitivo” segue
“preservado, ao lado da versão transformada que dele surgiu” (FREUD, 1997 [1929],
p. 14). “Grandes sáurios” e o seu legítimo representante moderno: o “crocodilo”.
Incrível, mas Freud antecipou as neurociências e a teoria de Paul MacLean
em 40 anos. Talvez não intencionalmente, pois procurava pistas sobre o
inconsciente. Talvez o tenha feito (até mesmo) inconscientemente (neurologista que
era), dados os recursos limitados de sua época. E ele não para por aí. Utiliza-se de
sua técnica analógica predileta: as metáforas.
Ele escolhe o passado de uma cidade (Roma) para compará-lo com o
passado da mente. Na vida mental, diz ele, “nada do que uma vez se formou pode
perecer”, referindo-se ao inconsciente. Fala sobre sítios remanescentes da Roma
Antiga, hoje mesclados com a confusão de uma grande metrópole, que se
desenvolveu nos últimos séculos, a partir da Renascença. Mas há muitas coisas
antigas enterradas no solo da cidade. (FREUD, 1997 [1929], p. 15-16).
57

Então, o criador da psicanálise imagina Roma como uma entidade psíquica:


“onde nada do que outrora surgiu desapareceu e onde todas as fases
anteriores de desenvolvimento continuam a existir, paralelamente à última.”
[grifo nosso]. (FREUD, 1997 [1929], p. 16).
Paralelamente à última. Mesmo assim ele acha uma cidade inapropriada
para essa comparação.
Opta, então, pela comparação entre a mente humana e um objeto mais
próximo, o corpo de um animal (ou de um ser humano). As primeiras fases do
desenvolvimento já não se acham preservadas, o embrião não pode ser descoberto
no adulto, a glândula do timo modifica-se, o osso infantil deixa rastros no osso do
adulto: “Permanecem o fato de que só na mente é possível a preservação de
todas as etapas anteriores, lado a lado com a forma final, e o de que não
estamos em condições de representar esse fenômeno em termos pictóricos”. [grifo
nosso]. (FREUD, 1997 [1929], p. 18-19)
De fato, naquela época, não estavam tão avançadas as neurociências –
embora suas analogias procurem demonstrar a existência do inconsciente, de modo
fantástico, apontam para a existência do réptil, talvez do sistema instintivo-emocional
villeneuviano (2016).
Estaremos, nós, em 2018, em condições de representar esse fenômeno em
termos pictóricos? Estava Paul MacLean, em 1970 (ou pouco antes)?
Nessa obra sobre o mal-estar civilizatório, ao alertar sobre os sentimentos
dele resultantes, de angústia, agressividade e culpa, Freud explica que o sofrimento
nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo (biológico e frágil),
condenado à decadência; de nossos relacionamentos com outros homens (emoções
relacionais, inadequação às regras na família e na sociedade); do mundo externo
(forças destruidoras da natureza). E ainda mostra-nos três paliativos para esse
sofrimento: as satisfações substitutivas ou sublimação dos instintos (arte, música,
enfermidades neuróticas, fantasias, delírios, religiões, amor), substâncias tóxicas
(drogas, álcool) e os derivativos poderosos que extraem luz do sofrimento (trabalho,
ciência). (FREUD, 1997 [1929]).
Tóxicos e ilusões de suave narcose para dominar o sistema instintivo-
emocional e atividades intelectuais para sublimar esses forças poderosas e entreter
o sistema lógico-racional de Villeneuve (2016)?
58

Aparentemente tratando a respeito do cérebro primitivo, Freud escreve ainda


que:

O sentimento de felicidade derivado da satisfação de um selvagem


impulso instintivo não domado pelo ego é incomparavelmente mais
intenso do que o derivado da satisfação de um instinto que já foi
domado. A irresistibilidade dos instintos perversos e, talvez, a atração geral
pelas coisas proibidas encontram aqui uma explicação econômica. [grifo
nosso]. (FREUD, 1997 [1929], p. 28).

Também escreve, sobre a sublimação dos instintos, que:

Atualmente, apenas de forma figurada podemos dizer que tais satisfações


parecem ‘mais refinadas e mais altas’. Contudo, sua intensidade se revela
muito tênue quando comparada com a que se origina da satisfação de
impulsos instintivos grosseiros e primários; ela não convulsiona o
nosso ser físico. [grifo nosso]. (FREUD, 1997 [1929], p. 28-29).

Por fim, Freud não praticou Yôga, mas a criticou, sendo que tal prática
oriental pode ser (segundo um amigo dele lhe confidenciou) uma das formas de
evocarmos em nós mesmos “sensações e cenestesias, consideradas estas como
regressões a estados primordiais da mente que há muito foram recobertos” – esse
mesmo amigo lhe informou ter visto “nesses estados uma base, por assim dizer
fisiológica, de grande parte da sabedoria do misticismo”. (FREUD, 1997 [1929], p.
20).
Os sonhos, no entanto, linguagem do inconsciente, também regressão a
estados primordiais da mente, interessaram-lhe muito.
Mais adiante, ainda sobre a Yôga, ele afirma que “podemos, portanto, ter
esperanças de nos libertar de uma parte de nossos sofrimentos, agindo sobre os
impulsos instintivos”, ao procurarmos “dominar as fontes internas de nossas
necessidades”. Freud vê, entretanto, a Yôga como “aniquilamento dos instintos” (a
quietude), “forma extrema” prescrita pela sabedoria do mundo peculiar ao Oriente.
Mas reconhece que o controle (ou “doma”, em palavra dele) dos instintos primitivos
nos traz certa felicidade, podendo ser realizado por meio de “agentes psíquicos
superiores, que se sujeitaram ao princípio da realidade”. (FREUD, 1997 [1929], p.
28).
Que “agentes psíquicos superiores” seriam esses, sujeitos ao princípio da
realidade? O sistema lógico-racional seria um deles? Seria a “doma” dos instintos ou
o seu “controle” o melhor caminho?
59

Será que as práticas milenares da Yôga, da meditação e da respiração


profunda são tão extremadas assim, ou podem ser ferramentas úteis para esse
controle (ou mais propriamente para a integração) de nosso sistema instintivo-
emocional com o uso melhor direcionado do nosso sistema lógico-racional?
Interessante investigarmos isso noutra oportunidade.
Vemos nessas declarações psicanalíticas de distintos autores o processo de
desenvolvimento dos três cérebros ao longo das fases e períodos que se intercalam,
se sobrepõem e que são interdependentes (em geral em número de três, também).
Na visão mais ampla (da segunda tópica) do aparelho psíquico freudiano: Id,
Ego e Superego. Nos três registros lacanianos: Real, Imaginário e Simbólico. Na
teoria macleaniana (que inclui as neurociências), os cérebros: Reptiliano (primitivo),
Emocional (mamífero) e Lógico-racional (neocórtex).
Não estamos neste trabalho de conclusão do curso de psicologia, que tem
uma intenção nada mais do que reflexivo-crítica, requisitando essa correspondência
assim estanque: a repetição (coincidente) do número três nos é suficiente, por ora.
Vemos como secundárias, para o fim de nossa pesquisa (que não pretende ser
anatômico-neurológica), a definição das interrelações exatas das três instâncias de
cada teoria e a localização específica de suas funções cerebrais.
Também não pretendemos aprofundar tais elaborações teóricas neste
estudo. Apenas citar o que é público e notório para a academia sobre essas duas
teorias psicanalíticas (as mais proeminentes entre as demais, pelo que estudamos
até aqui) e suas eventuais conexões com a teoria do cérebro triúnico. São
novamente três instâncias.

1.5 O projeto de Freud para uma Psicologia Científica

Pretendemos ser breves neste capítulo inicial (porém, assunto é relevante,


pois muitas associações psicológicas e médicas podem derivar dessas premissas
apontadas por tantos autores, aplicáveis inclusive aos diferentes distúrbios e
doenças mentais, como demonstram outros estudos que apresentamos no próximo
subcapítulo).
A localização de raras referências bibliográficas sobre o triune brain, como o
artigo da pediatra Villenueve, de 2016, (que traz importante relação encontrada por
ela entre a educação de crianças e as neurociências), conforme pesquisa online (no
60

site Scielo), já mostra a pouca dedicação do pessoal das áreas da psicologia, da


psicanálise, da neurologia e da psiquiatria sobre o tema – posteriormente, foi
localizado também o artigo “Neural and mental Hierarchies” (Viena, Áustria, WEIR,
2012). Mais tarde, o da doutora Lima (2010), este, porém, sem referências à obra de
Paul D. MacLean.
Neste item, desejamos mencionar somente a existência de um projeto
interrompido (em 1895) pelo médico neurologista criador da psicanálise, Sigmund
Freud, logo no início de sua atividade produtiva. No seu “Projeto para uma psicologia
científica”, ele queixa-se, em carta a Wilhelm Fliess, sobre estar exausto com o
trabalho para desenvolver a sua “Psicologia para Neurologistas”. A publicação dessa
obra ocorreu apenas em 1950, póstuma ao seu falecimento (que data de 1939).
(FREUD, 1996 [1895]).
Há nessa obra abandonada pelo psicanalista pioneiro, esquemas
(desenhos) em que o médico combina representações neurológicas (centro espinhal
e neurônios) com uma análise psicológica (ego, sentimentos sexuais). (VIEIRA,
2005). Mas essa seria outra pesquisa específica. Desejamos aqui apenas registrar a
preocupação de Freud em procurar localizar anatomicamente (em sistemas de
neurônios) a relação dinâmica entre os seus conceitos psicanalíticos nascentes, que
mais tarde denominou “aparelho psíquico” (algo um tanto abstrato, que requer raízes
na contrapartida física do encéfalo de todos nós humanos).
De acordo com Garcia-Roza (2008, p. 17), em seu livro “Introdução à
metapsicologia freudiana” (Volume 1), o primeiro passo do neurologista Freud, em
seu sonho de construir um aparelho da alma, foi dado em 1891, com um texto
relegado a um segundo plano pelos comentadores de sua obra: “Para uma
concepção das afasias: um estudo crítico”37, que teve destino semelhante ao do
Projeto (permanecer desconhecido).
Nesse estudo, Freud ataca as concepções de seu professor de Viena,
Meynert (centro cerebral sensorial), e de Broca (centro cerebral motor), entre outros
autores da chamada “teoria das localizações”, pois na opinião dele “somente as
funções mais elementares podem ser localizadas”, as funções “complexas implicam
a articulação de várias áreas corticais, através de um sistema de associações, não
podendo ser localizadas numa única área.” (GARCIA-ROZA, 2008, p. 21).

37 Afasia: distúrbio da memória (lato sensu) e da linguagem (stricto sensu); afasia sensorial, afasia
motora. (GARCIA-ROZA, 2008, p. 19).
61

Assim, colocou em questão a neurologia da época, com sua hipótese


funcional. Como esse “aparelho” diz respeito à linguagem, ele lança as bases para o
modelo do inconsciente (como o primeiro aparelho da alma). Freud faz linguística e
também neurologia nesse texto, e nos leva a repensar a questão das funções e
localizações. (GARCIA-ROZA, 2008, p. 28-29).
Para o Doutor Freud, o processo psíquico é paralelo ao fisiológico: “ao texto
psíquico corresponde, como correlato, um tecido fisiológico que lhe serve de
suporte.” Todavia, não há causalidade entre o psíquico e o fisiológico, mas
paralelismo. (GARCIA-ROZA, 2008, p. 34-35). Será só paralelismo mesmo? Talvez.
Pode ser.
A partir dessas premissas, Freud passa a falar sobre sua visão a respeito
das afasias. Deixa claro que separa o aspecto psicológico do anatômico, mas deixa
claro, igualmente, que não há esquema psicológico sem esquema neurológico.
(GARCIA-ROZA, 2008, p. 46).
John Stuart Mill propõe uma “química mental”, em oposição à “mecânica
mental” proposta por seu pai James Mill. Pensadores ingleses. (GARCIA-ROZA,
2008, p. 51).
Em resumo, o objetivo de Freud é mostrar que, nessa nova visão da
neurologia, não há relação de causalidade entre a cadeia dos processos fisiológicos
e os psicológicos.
A partir de 1891, escreve Garcia-Roza (2008, p. 64), Freud nos diz que
“nenhum ato de percepção se faz com total independência do signo”.
Esse aparelho de linguagem de Freud pode ser considerado o primeiro
“modelo” dele do aparelho psíquico. Freud não recusa a neurologia, o que faz é
produzir uma neurologia inspirada em Hughlings Jackson, ao romper com os
neurólogos alemães (GARCIA-ROZA, 2008, p. 68). Então, ele passa ao Projeto.
O modelo neurológico triúnico de Paul MacLean também segue a teoria de
Hughlings Jackson. Curioso isso, não é mesmo?
Freud tentou destruir o seu próprio manuscrito do Projeto (que estava com
Marie Bonaparte) e mantê-lo fora do alcance do público. Várias ideias nele contidas
reaparecem em outros escritos psicanalíticos posteriores. Ele pretendia oferecer
uma psicologia como ciência natural, inicialmente. Segundo Ernest Jones, Herbart
ofereceu um conceito de inconsciente dinâmico antes de Freud, inclusive a noção de
conflito intrapsíquico – que opõe uma ideia recalcada a outra consciente, e a ideia
62

de um princípio de equilíbrio (em que os processos psíquicos esforçam-se para


manter um equilíbrio). Freud e Herbart têm em comum sua crença de que os
processos psíquicos podem ser descritos por leis científicas. Freud tem, de um lado,
a filosofia do espírito e, de outro, as ciências da natureza em mente, ao escrever o
Projeto. (GARCIA-ROZA, 2008, p. 70-79).
Conflito intrapsíquico. Princípio de equilíbrio.
No Projeto: “O neurônio é o suporte material e o elemento constituinte do
aparato psíquico”. São sistemas de neurônios: sistema , sistema  e sistema .
São TRÊS sistemas de “neurônios”. (GARCIA-ROZA, 2008, p. 79).
O modelo desses neurônios é tomado da física (termodinâmica), o aparelho
lida com energia e é capaz de transformá-la. É um modelo explicativo, sem
correspondência exata com o sistema nervoso neurológico (embora isomórfico), na
opinião de Garcia-Roza: a neurologia e a anatomia que apresenta são “fantásticos”
(é um trabalho teórico e hipotético). Entende que tal trabalho recusa a neurologia da
época e que trata-se de metapsicologia (sem bases anatômicas e neurológicas).
(GARCIA-ROZA, 2008, p. 80-81).
Sistemas de neurônios sem bases anatômicas e neurológicas?
E a neurologia de hoje, com nossas ainda mais fantásticas máquinas de
neuroimagens (que podem acompanhar essas raízes psíquicas atreladas à
realidade física, em tempo real, de um cérebro humano em funcionamento)?
Garcia-Roza esforça-se para justificar por que pensa que o Projeto não tem
bases neuroanatômicas, mas não convence. Freud desejava uma psicologia
científica. Acabou com um pé em cada área (o que nos parece até adequado à
integração das várias “psicologias” – o fenômeno humano é muito complexo para
que uma só teoria consiga abarcar toda a sua amplitude). As ideologias não podem
silenciar a realidade fática.
Nos parece que Sigmund ficou com “dois corações”, servindo a dois
senhores ao mesmo tempo (mas, aqui, nos domínios do pensamento complexo, isso
é perfeitamente possível).
Freud apud Garcia-Roza (2008, p. 109) afirma, ao tratar do modo de
funcionamento do aparato psíquico, que a função principal do sistema  (de
neurônios) é a de fornecer ao sistema  signos (de realidade ou de qualidade). O
Ego pertence ao sistema  e as percepções pertencem ao sistema .
63

Percepções (físicas), Ego (psicoemocional), Signos (lógicos):  –  – .


Garcia-Roza faz conexões, em seu livro sobre a metapsicologia freudiana,
entre o Projeto e a visão lacaniana.
Escreve ele que Das Ding (a coisa), por exemplo, é uma konstant Struktur,
presente no estado de desejo e na percepção, comum tanto aos investimentos do
pallium quanto aos do núcleo do eu (), sem pertencer a nenhum dos dois. Daí a
ideia de vazio ou furo (em Lacan). Não habita propriamente o aparelho psíquico,
mas faz presença, embora ausente. (GARCIA-ROZA, 2008, p. 160-164). Isso
segundo essa linha teórica, que ele parece esposar.
Ausente, embora presente (ou, melhor, presente, embora ausente)? Para
nós, neste estudo, Id é “a coisa” (reptiliana), é o pronome neutro do inglês, It.
Cabe ainda registrarmos que:

(...) Freud aponta como sendo, em termos evolutivos, as duas


características do sistema nervoso: 1) a recepção de estímulos externos, e
2) a descarga de excitações endógenas; a cada uma destas funções
correspondendo um sistema de neurônios: o sistema  para a recepção de
estímulos externos e o sistema  para as excitações endógenas. Do ponto
de vista anatômico, o sistema  corresponderia à substância cinzenta
da medula espinal, enquanto o sistema  corresponderia à substância
cinzenta do cérebro; a primeira tendo contato direto como mundo externo
e a segunda carecendo de ligações periféricas. [grifo nosso]. (GARCIA-
ROZA, 2008, p. 95-96).

Que: “(...) o sistema  não tem acesso direto à realidade externa (...)”
(GARCIA-ROZA, 2008, p. 172).
Que: “(...) Freud divide o sistema  em duas partes: o  pallium (ou manto) e
o  núcleo. Os neurônios do pallium são investidos a partir de , e os neurônios do
núcleo são investidos a partir das fontes endógenas.” (GARCIA-ROZA, 2008, p.
121). Sendo que nessa mesma página, o autor de “Introdução à metapsicologia
freudiana” escreve (em nota de rodapé) que: “(...) Essa distinção entre núcleo e
pallium correspondia, na época, à distinção entre camadas do córtex cerebral, o
pallium correspondendo à camada mais externa e o núcleo correspondendo a
camada mais central do córtex”. Se isso não se refere à anatomia cerebral...
E que: “(...) os signos de qualidade são enviados pelo sistema  (...)”
(GARCIA-ROZA, 2008, p. 174).
Garcia-Roza finaliza escrevendo que: “Quando Freud distingue os três
sistemas de neurônios, ele não pretende estar emitindo juízos de existência, mas
64

estabelecendo a estrutura e o funcionamento de um aparato psíquico hipotético.”


(GARCIA-ROZA, 2008, p. 135). Será mesmo?
Para concluirmos essas breves observações sobre “O projeto para uma
psicologia científica” (1895), escrito e abandonado (quase destruído) pelo fundador
da psicanálise, nosso respeitado Doutor Sigmund Freud, impõe-se transcrevermos
transcrição (sic) feita mais para o final desse livro de Garcia-Roza, da “Carta 52” (de
6 de dezembro de 1896), escrita por Freud a Fliess, que, em nossa modesta opinião,
faz desvanecerem quaisquer dúvidas que ainda possam nos restar sobre o real
objetivo do autor ao escrever o polêmico Projeto:

Querido Wilhelm,
(...) Como você sabe, estou trabalhando com a hipótese de que nosso
mecanismo psíquico tenha-se formado por um processo de
estratificação sucessiva, pois de tempos em tempos o material presente
sob a forma de traços mnêmicos experimenta um reordenamento segundo
novos nexos, uma retranscrição [Umschrift]. Assim, o que há de
essencialmente novo em minha teoria é a tese de que a memória não
preexiste de maneira simples, mas múltipla, está registrada em
diversas variedades de signos. Há algum tempo atrás (Aphasia) postulei
a existência de uma espécie semelhante de reordenamento com respeito as
vias que chegam a partir da periferia [do corpo até o córtex cerebral].
Não sei quantas dessas transcrições existem. Pelo menos três,
provavelmente mais. [grifo nosso]. (FREUD apud GARCIA-ROZA, 2008, p.
197).

Mecanismo psíquico formado por um processo de estratificação sucessiva.


Memória múltipla, não simples. Registrada em diferentes signos. Vias que chegam
da periferia do corpo até o córtex cerebral. Quantas transcrições existem? PELO
MENOS TRÊS.
A neurologia não invalida a metapsicologia38, e vice-versa. São
complementares. É preciso vermos o todo e evitarmos a tentação de defendermos
cegamente a ideologia que estamos acostumados a estudar (ou a gostar) mais –
suas respostas podem nos ser agradáveis, mas podem não ter bases na realidade.
A doutora Andréa Pereira de Lima, cujo artigo foi comentado no item anterior
deste nosso trabalho de conclusão do curso de psicologia, refere que são várias as
investigações na área da neurociência que têm trazido elementos que comprovam
“frutífera associação entre a psicanálise e a neurociência”, visto que as funções
encefálicas descritas atualmente aparentam integrar-se bem ao quadro teórico

38 Metapsicologia: é “sinônimo de teoria em psicanálise, portanto, de um modo de exposição que se


afasta deliberadamente das descrições clínicas”. Mas uma não nega a outra. (GARCIA-ROZA,
2008, Prólogo, p. 13).
65

freudiano. A autora ainda cita outros autores que explicam a tentativa de Freud (com
o seu “Projeto para uma psicologia científica”) de construção de um modelo da
mente humana apoiado nos mecanismos neurobiológicos até então conhecidos. As
teses inovadoras que desenvolveu “em seu esforço de elaborar uma psicologia que
se aproximasse das ciências naturais” permanecem até hoje como base teórica da
psicanálise. Ela ainda registra em seu artigo que “(...) muitos de seus conceitos
inovadores ficaram relegados por muito tempo ao campo da metapsicologia.”
(WINOGRAD apud LIMA, 2010, p. 281).
A publicação do Projeto ocorreu em 1950, póstuma ao falecimento de
Sigmund Freud (1939).
Em 1949, com sua publicação “Psychosomatic disease and the ‘visceral
brain’”, Paul Maclean iniciou seus estudos sobre seu conceito pioneiro do “Cérebro
Triúnico”, a partir de astutas observações de sinais e sintomas psiquiátricos. Após
esse artigo, em 1952, publicou outro: “Some psychiatric implications of physiological
studies on frontotemporal portion of lymbic system (visceral brain)”. (PLANCK, 2003).
Seus estudos foram mais tarde aprofundados em sua obra “The triune brain
in evolution: role in paleocerebral functions”. (MACLEAN, 1990 [1970]). E
prosseguiram, com “Triune brain in conflict”. (MACLEAN, 1977).
Paul Maclean faleceu em Dezembro de 2007.

Paul D. MacLean, 94, a neuroscientist who proposed that certain human


behavior is explained by a brain that contains the remnants of reptilian and
early mammalian brains, died of a heart attack Dec. 26 at his home at Arden
Courts in Potomac.

Dr. MacLean's "triune brain" model attempted to explain the evolution of the
human brain by proposing in 1964 that it was actually three brains in one,
each with its own intelligence, subjectivity, sense of time, space and
memory. [grifo nosso]. (SULLIVAN, 2008).

Segue a nossa tradução do trecho negritado na citação direta acima: “três


cérebros em um: cada qual com sua própria inteligência, subjetividade, senso de
tempo, espaço e memória”. (SULLIVAN, 2008).
Infelizmente, o fundador da psicanálise não teve acesso a essa teoria. Como
não teve acesso à impressionante evolução tecnológica que resultou nos
equipamentos avançadíssimos disponíveis para o uso dos neurologistas, psicólogos,
psiquiatras e psicanalistas atualmente.
66

Perguntamos: o que faria Sigmund Freud, com a inovação das


neuroimagens hoje disponíveis?
As teorias de MacLean e de Freud podem ser complementares, como quase
todas em psicologia (são peças do quebra-cabeças humano). Precisam ser
integradas com as demais ferramentas das várias teorias psicológicas para que os
instintos, as pulsões, o espírito, a raça, a energia psíquica, o indivíduo, as áreas
cerebrais, o comportamento, as emoções, o pensamento, a espécie, os impulsos, o
ambiente, a alma, os afetos, o raciocínio-lógico e a mente humanos possam ser
estudados e compreendidos de modo mais abrangente, menos estereotipado,
menos limitado e menos preconceituoso.

Figura 6 – O Dr. Paul D. MacLean em idade avançada.

Fonte: http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2008/01/10/AR2008011003840.html

1.6 Outros artigos localizados nas bases de dados PubMed, BVS e Scielo

Há pouca disponibilidade de material para consulta (relativamente à interface


entre a psicanálise e modelo do triune brain), porém dois artigos principais foram
localizados por meio do site Scielo (já abordados nos itens 1.1 e 1.2 supra).
67

O site PubMed e BVS foram consultados e outros artigos foram localizados,


nem todos exatamente sobre a temática específica que desenvolvemos. Embora
úteis – pelo conteúdo de sua ementa – não conseguimos acesso a sua íntegra por
dependerem de pagamento prévio para consulta e por terem sido escritos em língua
estrangeira. Não são relevantes para o objetivo desta monografia, podendo ser
alvos, porventura, de futura pesquisa específica mais extensa).
No entanto, alguns breves comentários sobre tais pesquisas online se fazem
necessários para demonstrarmos que o assunto é objeto de pesquisa científica nos
países mais avançados e também no Brasil.
É o caso da tese de doutorado “Contribuições da perspectiva evolucionista
para a compreensão do transtorno obsessivo-compulsivo”, de autoria da professora
Maria Isabel Fabrini de Almeida39, que analisa os processos psicológicos humanos
e resgata proposições sobre estereotipias comportamentais apresentadas por
animais em cativeiro. Discute a noção de psicopatologia numa perspectiva
evolucionista e também “a presença de comportamentos compulsivos e ritualizados
fora do contexto da psicopatologia, levantando a questão de um possível continuum
entre estes fenômenos da vida cotidiana ao transtorno obsessivo-compulsivo”. Traz
dados a respeito da psicobiologia do TOC, como a participação de doenças
infecciosas na manifestação de sintomas obsessivo-compulsivos. Aproxima-se da
etologia. Busca recuperar a perspectiva filogenética na abordagem da neurociência,
quando discute o modelo do cérebro triúnico de Paul MacLean. A autora transita
também pelas principais hipóteses evolucionistas: o modelo de simulação de
cenários de risco, o modelo de prevenção de situações de risco, e o sistema
motivacional de segurança (o comportamento obsessivo pode envolver uma
alteração em um sistema funcional voltado para a prevenção de riscos e pode
decorrer do predomínio de sintomas de caráter social, sobretudo aqueles ligados à
adequação a normas e regras). (ALMEIDA, 2007).
W. Böcher escreveu o artigo “Human behavior between instinct, feelings and
responsibility”. Para ele, o cérebro humano e seu modo de funcionamento
influenciam a experiência humana, o comportamento e a interação social. Böcher
traz questionamentos sobre essa influência. Utiliza-se da teoria do cérebro triúnico
de Maclean e analisa a percepção e a realidade humanas, os limites da imaginação,

39 Maria Isabel Fabrini de Almeida: Graduada em Psicologia pela PUC/SP, Mestre em Psicologia
pela USP, Doutora em Psicologia Experimental pela USP.
68

as bases do aprendizado, a complexidade dos processos cerebrais, a reação a


mudanças e a habilidade de concentração. Considera aspectos biológicos e
socioculturais da evolução humana, a ética evolucionista e a responsabilidade.
(BÖTCHER, 1994).
Por seu turno, B. Cyrulnik intitulou seu artigo “Freud, précurseur de
l'éthologie, entre Darwin et MacLean [Freud, precursor of ethology, between Darwin
and MacLean]”, ou em português: identifica Freud como precursor da etologia e
localiza o seu legado entre o de Darwin e o de Paul MacLean. Parte do resumo
desse artigo mostra o resgate dos níveis cerebrais feito por MacLean e o interesse
de Freud pela Zoologia:

We often forget Freud's share for zoology. Many primary ideas are issued
from "Expression of Emotions in Man and Animals". The general attitude is
evolutionistic, with his reasoning in becoming, fixation-regression, ontogeny
and history in Man. This attitude is found again on its neurological side in
MacLean and his verbal translation of cerebral levels. (CYRULNIK, 1994).

Outro artigo que localizamos é de autoria de John Price et. al., cujo título é
“Can depression, anxiety and somatization be understood as appeasement
displays?”. Esses autores apresentam pesquisa sobre desordens somáticas,
estados de humor ansiosos e depressivos e sua relação com expressões
adaptativas de apaziguamento e submissão a outros membros da mesma espécie,
cujas hipóteses utilizam-se das formulações da soluções de conflitos por meio da
teoria do jogo e da teoria do cérebro triúnico de MacLean. (PRICE, 2004).
Também localizamos interessante artigo de Detlev W. Ploog, que dedica-se
ao tema “The place of the Triune Brain in psychiatry”. O autor investiga a trajetória
da teoria de MacLean e seu pioneiro conceito sobre o cérebro triúnico, que surgiu
em 1949, sendo seguido por uma evolução de suas ideias para além dos estudos
psiquiátricos e das patologias (sua observação das emoções e sentimentos
descontrolados e dos comportamentos motores bizarros e sua ligação ao cérebro
visceral ou sistema límbico). Com base no modelo do cérebro triúnico, nova
abordagem da psicopatologia está tomando forma: a perspectiva evolucionista das
doenças mentais, tais como a psicose, a anorexia nervosa, os distúrbios de
ansiedade também as doenças cerebrais, como o Parkinson e a doença de
Huntington. O artigo de Ploog visa revelar as conexões entre as ciências naturais e
sociais, com base no conceito macleaniano, que nos traz um insight para a
69

compreensão das raízes biológicas da comunicação e do comportamento humanos.


A contribuição que ele pretende apresentar em seu estudo (com base na psiquiatria
evolucionista) envolve a desintegração do comportamento social na psicopatologia,
pois muitas doenças mentais são acompanhadas por déficits severos exatamente
nas habilidades de comunicação e comportamento sociais (o sistema de
comunicação social desintegra-se, especialmente nas psicoses graves,
comprometendo as escolhas responsivas aos sinais externos em determinadas
situações sociais – com limitações, distorções, processos decisórios sem apoio na
razão). (PLOOG, 2004).
Kelly G. Lambert escreveu sobre “The life and career of Paul MacLean. A
journey toward neurobiological and social harmony”, abordando a biografia do
médico Paul MacLean, que passou a interessar-se pelo cérebro humano ao
perceber que a maioria de seus pacientes sofria de sintomas (ansiedade, problemas
do sono) para os quais não podia ser identificada uma causa fisiológica. Segundo
Lambert, nos laboratórios de Stanley Cobb e James Papez, MacLean iniciou seus
estudos sobre as origens neurológicas de tais sintomas (a princípio, com ênfase no
lobo temporal, e depois em toda a área da neurologia); estendeu seu interesse às
relações sociais e familiares e seu acompanhamento, com base nos cirtuitos
neuroanatômicos; reintroduziu o termo “límbico”, criado por Broca, e descreveu, por
meio do conceito do cérebro triúnico, os distintos componentes evolutivos do
“mammalian brain” (cérebro mamífero), envolvidos nas funções emocionais; tinha
uma perspectiva evolucionista, a partir da qual via o cérebro e o comportamento
humanos. Para Lambert, a perspectiva neuroevolutiva e a apreciação da
complexidade e do significado evolutivo dos sistemas sociais de Paul MacLean
presenteia-nos com valiosos insights sobre temas contemporâneos da neurociência
comportamental e da psiquiatria biológica. No resumo de seu artigo, Lambert ainda
informa que MacLean escreveu que o desenvolvimento de comportamentos sociais,
tais como a comunicação audiovocal entre mãe e filho e o choro da separação
servem como força conducente na evolução do neocórtex. (LAMBERT, 2003).
Nossa curiosidade pelo assunto, levou-nos a localizar ainda o interessante
artigo escrito por Chris Smith, sob o título “The triune brain in antiquity: Plato,
Aristotle, Erasistratus” (SMITH, 2010). De acordo com a pesquisa desse autor, o
pensamento de Platão também aponta no sentido da existência de três centros de
comando no organismo humano. A cultura ocidental, ao longo de mais de dois
70

milênios, vem abordando neuropsicologias tripartites, que receberam ares novos na


teoria do cérebro triúnico de Paul MacLean, e cuja origem é objeto de pesquisa de
Smith. Há sinais da psicofisiologia já nas obras gregas “A república” e “Timeu” (em
Platão e Pitágoras). Pupilo e colega de Platão, Aristóteles também desenvolveu
teoria similar, com base em exaustivas pesquisas biológicas. Em geração posterior,
Herófilo e Erasístrato, no Museu de Alexandria, criaram uma teoria tripartite
anatomicamente melhor estabelecida, modificada em parte por Galeno, que
prevaleceu até o período das grandes figuras da Renascença. (SMITH, 2010).
O estudo de Smith demonstra que essa noção da neuropsicologia humana,
melhor pensada com uma estrutura tripartite, permaneceu resiliente ao longo dos
anos e reapareceu novamente na modernidade, investiga suas origens e sugere que
talvez seja chegado o momento dessa teoria milenar seguir em frente e ser objeto
de mais atenção por parte da ciência. (SMITH, 2010).
Outro artigo muito bom, igualmente relacionado à temática do presente
trabalho, é o publicado por Guilherme Carvalhal Ribas, cujo título é “As bases
neuroanatômicas do comportamento: histórico e contribuições recentes”, em que o
professor da USP aprofunda estudo sobre o encéfalo humano e suas estruturas
anatômicas, tendo deixado registrada, em “comentários finais” ao seu estudo,
relevante informação para nossa pesquisa sobre as conexões entre a psicanálise e
o triune brain macleaniano:

Considerando a evolução filogenética do sistema nervoso, apesar do


gradual desenvolvimento das suas diversas estruturas, o fato das estruturas
límbicas se projetarem direta e maciçamente sobre o hipotálamo e o tronco
encefálico, gerando manifestações emocionais autonômicas e endócrinas
sem um efetivo controle cortical, acabou acarretando no ser humano uma
integração incompleta dos três encéfalos filogenéticos, conforme
apontado pelo próprio Paul MacLean, que os conceituou, e
apropriadamente descrito por Arthur Koestler ao comparar o neocórtex
a um cavaleiro que não controla completamente o seu cavalo -
metaforicamente representado pelo sistema límbico. Para Koestler, o
conhecimento da morte, proporcionado pelo intelecto, em
contraposição à sua coexistente instintiva rejeição, veiculada pelas
estruturas mais primitivas, veio caracterizar o principal paradigma da
dissociação da mente humana. [grifo nosso]. (RIBAS, 2007, p. 69).

A afirmação de Arthur Koestler de que “o neocórtex é um cavaleiro que


não controla completamente o seu cavalo”40 coaduna-se com os achados de
nossas pesquisas, tanto na teoria freudiana, como no modelo macleaniano

40 Referência à obra de Arthur Koestler: The ghost in the machine. (1967).


71

(KOESTLER, 1967). Platão, por sinal, fez a mesma afirmação, a seu modo e à sua
época (como antes referimos).
Pesquisadores do Department of Science Humanities e do Departament of
Medicine, University Telematica Pegaso of Naples, Italy, Corona et. al., escreveram
artigo entitulado “The Triune Brain: Limbic Mind, Mind Plastic, Emotional Mind”, em
que abordam a teoria do cérebro triúnico de Paul MacLean para o fim de investigar o
quão desconcertante é o fato de que a natureza tenha sido capaz de conectar os
cérebros reptiliano, emocional e intelectual e estabelecer uma espécie de
comunicação entre eles, ao longo da evolução. Focaram o estudo nas substâncias
químicas que regulam a atividade dos neurônios (neuromoduladores de
comportamento – porque a intervenção deles influencia nossas ações). Utilizaram,
então, o método TMS (transcranial magnetic stimulation), técnica não invasiva de
neuroestimulação e neuromodulação, com a qual puderam compreender o momento
preciso em que uma região cerebral contribui para a realização de certa tarefa e
mapear a conectividade funcional entre diferentes regiões do cérebro, identificando
as relações causais entre cérebro, cognição e comportamento. Já é reconhecida a
proposição de que pensamentos e experiências mudam a configuração das
conexões cerebrais, mas pelo mesmo princípio, os sistemas de indução são
capazes de alterar a matéria cerebral para fins terapêuticos, reabilitativos ou
educativos – com base nas premissas do fenômeno chamado aprendizado hebbiano
(Hebbian learning), que altera quimicamente as células e sinapses (CORONA et. al.,
2011).
O estudo de Corona, Perrotta e Cozzarelli é importante, porque ocupa-se de
outra técnica que pode vir a auxiliar (por meio da estimulação magnética não
invasiva) essa tríade cerebral a comunicar-se melhor entre si (já que a base dos
conflitos humanos pode estar localizada exatamente nessas falhas de
comunicação):
Using the present terminology, the three subunits of the brain could be
considered biological computers, each with its own specific form of
subjectivity, his intelligence, his measure of time, its memory function, motor
and other related to them.

Therefore there is no doubt in our research hypotheses (Corona, 2008;


Corona et. al., 2011; Corona et. al., 2010) that the entire human race to
survive, by virtue of the triad just mentioned, without considering mainly the
limbic emotions because whatever we do, they ensure the existence of
conflict and discussion and that in turn provide the shuffling of the genetic
heritage of ideas. A remarkable achievement that you can for example
translate to the two young mature in the world today, the intellectual and the
72

emotional. So much so that often there is a clear asymmetry, with a very


intelligent young people however cannot handle the feelings and emotions
curb. (CORONA et. al., 2011).

No site da University of Essex (Colchester, Essex, U.K.) – Institutional


Repository Service, localizamos o artigo “Evolution in the brain, evolution in the mind:
The hierarchical brain and the interface between psychoanalysis and neuroscience”,
sendo que o texto disponível em formato PDF mostrou o título (um pouco alterado
para) “Evolution in the brain, evolution in the mind: John Hughlings Jackson and the
origins of psychoanalysis (and of neuropsychoanalysis)”, que deve ter sido
modificado para publicação (recentíssima, por sinal) pelo seu autor, Leonardo Niro
Nascimento, pois data de Dezembro de 2017 (e foi por nós encontrado online
apenas em Maio do corrente ano de 2018). O pensamento de Nascimento transcrito
em seu estudo vem ao encontro do que procuramos demonstrar com a nossa
pesquisa bibliográfica nesta monografia.
Conforme nossa tradução livre (e adaptação sintética) do seu resumo: o
artigo objetiva mostrar como o trabalho do neurologista inglês John Hughlings
Jackson influenciou Freud, sendo que a estrutura proposta por Jackson continuou a
ser utilizada pelos neurologistas do século vinte, tais como Papez, MacLean e
Panksepp por meio de modelos hierárquicos tripartites evolucionistas; bem como,
esse estudo projeta luz sobre as similaridades encontradas pelos pesquisadores da
neuropsicanálise entre os modelos freudianos da mente e as perspectivas da
anatomia e da fisiologia sobre o sistema nervoso. O autor vê muito mais do que
simples similaridades nesses fatos, já que há uma questão histórica envolvendo
esses postulados que têm uma origem comum: a visão evolucionista
hierárquica tripartite de John Hughlings Jackson sobre o cérebro humano.
(NASCIMENTO, 2017).
O autor procura demonstrar que as ideias da psicanálise mesmo tiveram
suas origens nas neurociências, que são nascidas (descendem) de uma ramo dessa
área do conhecimento e, para tanto, cita inclusive o psicanalista e neuropsicólogo
Mark Solms, que fundou o movimento neuropsicanalítico (nessa interface).
(NASCIMENTO, 2017).
Nascimento também aborda, em dois capítulos sequenciais de seu estudo, a
interligação da perspectiva freudiana com a jacksoniana e, depois, desta com a
macleaniana (da triune brian theory). Com relação a Freud, em várias citações
73

pontuais, destaca trechos do texto do psicanalista pioneiro “Sobre as afasias”, em


que demonstra ter uma visão similar do cérebro hierarquicamente composto de
sucessivos estágios evolutivos, por exemplo este breve extrato:

The whole organization of the brain seems to fall into two central
apparatuses of which the cerebral cortex is the younger, while the older one
is represented by the ganglia of the forebrain which have still maintained
some of their phylogenetically old original functions. (FREUD, 1891 apud
NASCIMENTO, 2017).

Esse artigo afirma que Freud, em carta a Abraham, e no estudo “Sobre as


afasias” reconheceu o legado do conceito de regressão originário da influência e da
noção de “evolution and involution” dos “neurologistas ingleses” (Jackson e
Spencer):
In assessing the functions of the speech apparatus under pathological
conditions we are adopting as a guiding principle Hughlings Jackson’s
doctrine that all these modes of reaction represent instances of functional
retrogression (Rückbildung, disinvolution) of a highly organized apparatus,
and therefore correspond to previous states of its functional development.
This means that under all circumstances an arrangement of association
which, having been acquired later, belongs to a higher level of functioning,
will be lost, while an earlier and simpler one will be preserved. (FREUD,
1891, apud NASCIMENTO, 2017, p. 87).

Importante informação que o pesquisador Leonardo Nascimento traz sobre


essas conexões teóricas ressalta que Freud seguiu explicitamente a “Doutrina da
Concomitância” de Hughlings Jackson, em sua antiga monografia “Sobre as afasias”
(1891), tipo de parelelismo psicofísico, que pretende separar os reinos da psicologia
e da fisiologia e liberar os neurologistas da tarefa de localizar anatomicamente os
eventos psíquicos, o que abriu o caminho para uma neurologia fisiológica pura
(estados da mente e estados nervosos operariam correlacionados, mas não de
forma causal: ocorreriam paralelamente, sem interferência de um com o outro).
(JACKSON apud NASCIMENTO 2017, p. 25).
Freud repetiu essa doutrina dando-lhe um papel central no nascimento da
psicanálise, ao desenvolver uma psicologia pura, separada da fisiologia (porém
paralela aos modelos desta), ao escrever o “Projeto para uma psicologia científica”
(que abandonou, frustrado), e ao consolidar a chegada da psicanálise quando
afirmou, em “A interpretação dos sonhos”, que:

I shall entirely disregard the fact that the mental apparatus with which we are
here concerned is also known to us in the form of an anatomical preparation,
and I shall carefully avoid the temptation to determine psychical locality in
74

any anatomical fashion. I shall remain upon psychological ground, and I


propose simply to follow the suggestion that we should picture the
instrument which carries out our mental functions as resembling a
compound microscope or a photographic apparatus, or something of the
kind. (FREUD, 1900, p. 536, apud NASCIMENTO, 2017).

Em Nota do Editor Inglês ao artigo “O inconsciente”, realmente encontramos


o esclarecimento de que a carreira científica de Freud foi, no princípio, inteiramente
voltada para a fisiologia e que ele revelara em sua monografia “Sobre as afasias”
(1891) grande admiração pela obra e pelos conceitos de Hughlings Jackson, de
modo que começou por adotar o método neurológico de descrição dos fenômenos
psicopatológicos, intelectualmente fascinado que estava pela possibilidade de
construir uma “psicologia” a partir de ingredientes puramente neurológicos (o que
resultou no seu mergulho na “Psicologia para neurologistas”, em 1895, denominada
“Projeto para uma psicologia científica”, que abandonou depois, como já referimos).
(FREUD, 1996 [1915), p. 166-167).
Nos Apêndices B e C do artigo freudiano sobre “O inconsciente” (1996
[1915]), o Editor Inglês reitera que “os conceitos emitidos anteriormente sobre a
relação entre a mente e o sistema nervoso foram grandemente influenciados por
Hughlings Jackson”, e que inclusive “a seção final desse mesmo artigo sobre ‘O
inconsciente’ parece ter raízes em sua antiga monografia sobre afasia (1891)”, de
modo que nesses apêndices foram reproduzidos trechos do trabalho “Sobre as
afasias”, após “(...) uma sucessão de argumentos anatômicos e fisiológicos
destrutivos e construtivos, a qual conduziu Freud a um esquema hipotético a
respeito do funcionamento neurológico por ele descrito como o ‘aparelho da fala’.”
(FREUD, 1996 [1915/1891], p. 211-222).
Na sequência, Nascimento traça paralelos entre o modelo de Freud e o de
Jackson. Depois, explica a teoria de MacLean e a compara também com a sua
antecessora jacksoniana: “(...) MacLean’s triune brain theory shows direct
correspondence to Jackson’s model.” (NASCIMENTO, 2017, p. 29).
O autor ainda fala sobre as críticas à integração dos modelos acima
referidos e as críticas ao modelo do cérebro triúnico de MacLean, além de
esclarecer que estruturas tripartites da mente não eram novidade nem para Freud,
nem para Jackson, uma vez que ao longo de dois milênios e meio os autores (entre
eles Platão) têm tentado explicar nossa natureza conflituosa por meio de modelos de
três elementos que compõem a nossa capacidade de agir (sense of agency),
75

remontando sua origem à antiguidade grega (como já referido por outro autor – Chris
Smith – em artigo já antes mencionado neste mesmo subcapítulo). Nascimento
informa que Smith alega que esses autores ocidentais podem ter sido culturalmente
condicionados a aceitar o número três e esquemas tripartites (pela sua experiência
com estratificações sociais tripartites), porém, conforme sua pesquisa41, outra
hipótese apresenta-se com igual credibilidade:

As Affective Neuroscience seems to indicate, it is possible to speculate that


what different authors identified as tripartite structures of the soul, mind or
spirit, may in fact be different analogies that reflect something structural in
the evolutionary history of the architecture of our nervous system.
(PANKSEPP apud NASCIMENTO, 2017, p. 37).

Em publicação sobre as “Teorías neurocientíficas del aprendizaje y su


implicación en la construcción de conocimiento de los estudiantes universitários”, na
área da educação, Bertha Marlén Velásquez Burgos et. al., da Universidad
Colegio Mayor de Cundinamarca (Colombia), investiga a implicação de diferentes
perspectivas neurológicas na construção do conhecimento dos universitários (na
estruturação curricular, na implantação de metodologias facilitadoras do processo
ensino-aprendizagem e no sistema de avaliação) e enfoca: a teoria do cérebro
triúnico (de MACLEAN, 1970 [1990]), a teoria do cérebro total ou cérebro base de
aprendizagem42 (de HERRMANN, 1994), a teoria das inteligências múltiplas43 (de
GARDNER, 1993) e a especialização dos hemisférios cerebrais esquerdo e direito44
(de SPERRY, 1973). (apud VELÁSQUEZ BURGOS et. al., 2006).
Como pensamos em psicoeducação (a ela conduzidos por alguns autores
cujas referências constam neste trabalho de conclusão), parece-nos interessante
citar tal artigo neste subcapítulo, visto que inclusive as autoras concordam com
nossa visão integrativa das psicologias, quando escrevem sobre as teorias
neurocientíficas de aprendizagem:

Las teorías del aprendizaje desde una perspectiva neurocientífica,


constituyen un nuevo paradigma en el ámbito educativo que permite
reflexionar, analizar y explicar el comportamiento del cerebro humano como
un órgano que aprende, desde cuatro perspectivas teóricas diferentes:
Neurociencia o Cerebro Triuno; Cerebro base del aprendizaje; Cerebro
derecho vrs. Cerebro izquierdo; Inteligencias múltiples, que no son teorías

41 Referência ao livro de PANKSEPP, J. Affective neuroscience. (1998).


42 Referência ao livro de HERRMANN, A. The whole brain bussiness book. Unblocking the power of
whole brain. (1994).
43 Referência ao livro de GARDNER, H. Multiple intelligences. The theory in practive. (1993).
44 Referência ao livro de SPERRY, R. Sindrome of hemispherich desconnection. (1970).
76

excluyentes, sino que al contrario se integran y complementan. (grifo


nosso). (VELÁSQUEZ BURGOS et. al., 2006).

Salientamos: “que não são teorias excludentes, mas ao contrário, que se


integram e complementam” (tradução livre nossa a partir da citação supra).
As autoras desse estudo descrevem os conceitos e postulados de cada uma
dessas teorias e demonstram como cada uma delas impacta a aprendizagem.
Com relação ao triune brain, destacamos (entre várias outras valiosas
explicações) a informação que trazem sobre a contribuição da Dra. Elaine de
Beauport45 (1994), que inscreve-se na corrente de pensamento iniciada com a Física
Quântica e desenvolve uma teoria sobre o cérebro e as inteligências múltiplas –
integrando MacLean e Gardner – ao referir em sua publicação venezuelana que:

(...) cada uno de los sistemas cerebrales está asociado a múltiples


inteligencias. El sistema neocortical, por su parte, está asociado a las
inteligencias: espacial-visual-auditiva, racional, asociativa e intuitiva;
asimismo, el sistema límbico se asocia a las inteligencias: afectiva,
motivacional y de los estados de ánimo; y el sistema básico o reptil se
asocia a las inteligencias: básica, de los parámetros y de los patrones. [grifo
nosso]. (BEAUPORT, 1994 apud VELÁSQUEZ BURGOS et. al., 2006).

Não podemos deixar de mencionar a publicação de Lazarous C. Triarhou,


da University of Macedonia, Thessaloniki, Greece (Grécia), que tornou-se o Capítulo
7 da obra “Cognitive psychology research developments” (WEINGARTEN, 2009),
denominado “Tripartite concepts of mind and brain, with special emphasis on the
neuroevolutionary postulates of Christfried Jakob and Paul Maclean.” (TRIARHOU,
2009).
O autor inicia seu artigo citando o neurologista William E. DeMyer46 (1988
apud TRIARHOU, 2009): “to understand the brain–thought–behavior triumvirate is
the Holy Grail of neuroanatomy, as compelling to the researcher as a cyclonic
vortex.”
Com relação à terminologia neuroanatômica, refere que, já em 1901, Elliot
Smith47 cunhou o termo neopallium: “to denote a cortical organ that had the ability,
based on progressive evolution, to learn with experience through a mechanism of

45 Referência ao livro de BEAUPORT, E. Las tres caras de la mente. Orquesta tu energia com las
múltiples inteligencias de tu cérebro triuno. (1994).
46 Referência ao trabalho de DEMYER, W. E. Neuroanatomy. (1988).
47 Referência ao livro de SMITH, E. The natural subdivision of the cerebral hemisphere. (1901).
77

sensory perception, associative memory, consciousness and response.” (SMITH,


1901 apud TRIARHOU, 2009).
O incansável esforço do pesquisador Lazarous Triarhou traz no mencionado
artigo inclusive a referência bibliográfica sobre o pioneiro documentário48 a respeito
do triune brain, produzido pela National Film Board of Canada Research (THÉRIEN,
1984, apud TRIARHOU, 2009).
Lazarous relembra que a perspectiva de um sistema tripartite da mente
humana remonta a Aristóteles e Platão e que prosseguiu em “O Ego e o Id”, com
Freud (1923 apud TRIARHOU, 2009); com o neurobiologista (Christofredo) Jakob
(1923 apud TRIARHOU, 2009), em La Plata, na Argentina, em seu livro “Elements of
Neurobiology” (também de 1923, no qual formulou um sistema cerebral trifísico49
baseado em sua profunda compreensão da filogenia biológica e neural); com
MacLean (no final da década de 60); com Sternberg (1988 apud TRIARHOU, 2009)
e sua teoria triárquica da inteligência humana50; sendo que o modelo macleaniano
ainda hoje é objeto de mais atenção e controvérsias do que qualquer outro modelo
evolucionista do cérebro e do comportamento na moderna neurociência. Jakob
obteve renome internacional por seus estudos de anatomia comparada (inclusive
animal) e pelas várias obras que publicou sobre anatomia humana.
Esse artigo traz importante informação no sentido de que o anatomista
Ludwig Edinger (1908 apud TRIARHOU, 2009), de Frankfurt, já havia feito uma
proposição51 no sentido de que o cérebro humano teria evoluído numa adição
sequencial de partes – praticamente a ideia original da qual deriva o conceito do
“triune brain” de MacLean.
Além disso, Lazarous C. Triarhou investiga as antigas obras gregas desde
Pitágoras, Aristóteles, Platão, Sócrates e aprofunda suas pesquisas nas obras de
Jacob, Freud e MacLean, relativamente a essa hipótese trifísica da composição
cerebral, agregrando à sua pesquisa ainda modelos tripartites mais recentes, tais
como os pensamentos de Knopp52 (1970), e também de Popper e Eccles53 (1977),

48 Referência ao documentário de Gilles Thérien, Montreal, Quebec. The triune brain: a film. (1984).
49 Referência à obra de JAKOB, C. Elementos de neurobiología. Volume I: Parte teórica. (1923).
50 Referência à obra de STERNBERG, R. J. The triarchic mind: a new theory of human intelligence.
(1988).
51 Referência à publicação de EDINGER, L. Die Beziehungen der vergleichenden Anotomie zur
vergheichenden Pschologie, Neue Aufgaben. (1908).
52 Referência à obra de KNOPP, W. Man’s tripartite brain and psychosomatic medicine. (1970).
53 Referência ao trabalho de POPPER, K. R.; ECCLES, J. C. The Self and its brain. (1977).
78

passando pela visão cibernética de Hubel54 (1979) da operação do sistema nervoso


(em componentes de input, integrating e ouput), pela perspectiva de Sternberg55
(1984) da inteligência triárquica (analítica, prática e criativa) – que poderia, conforme
autores citados (Tigner & Tigner, 2000) no mesmo artigo de Triarhou, descender do
sistema da inteligência humana constante56 da obra “Ética a Nicômacos”, de
Aristóteles (composta de três virtudes: teorética, prática e produtiva); e da
proposição de Fodor da divisão da consciência57 em estrutura tripartite (1983).
(TRIARHOU, 2009).
Apesar da distância entre eles, Jakob e MacLean (e outros teóricos)
pensaram de forma substancialmente convergente, escreve Triarhou. Eles nunca
encontraram-se, mas formularam proposições convergentes, talvez porque “great
minds think alike” – que traduzimos livremente como: “grandes mentes pensam de
modo parecido” (TRIARHOU, 2009, p. 203).
Com a recorrência das teorias triúnicas ao longo de 25 séculos de
questionamentos humanos, podemos ponderar sobre uma tendência do cérebro
humano de construir modelos tripartidos da realidade (TRIARHOU, 2009).
Por fim, excetuadas as menções aos trabalhos em inglês do próprio Paul
MacLean (que não aprofundamos neste estudo), somente mais um artigo sobre o
assunto “teoria do cérebro triúnico” foi encontrado nos sites de pesquisa atualmente
disponíveis, cujo título é “La théorie de MacLean. Quel modèle de cerveau pour
quelle pratique psychiatrique? / MacLean's theory. Which brain model for which
psychiatric practice?”, de Timsit-Berthier. Em seu texto, esse autor objetiva
apresentar as considerações evolucionistas de MacLean sobre o Triune Brain – uma
hierarquia de três cérebros em um, constituída por três formações evolutivas
radicalmente diferentes em estrutura e química, caracterizados como reptilian,
paleomammalian e neomammalian; cada uma dessas formações evolutivas
desempenhando um importante papel na regulação do comportamento e cuja
heterogeneidade pode levar a sentimentos e ideias esquizofreniformes. Timsit-
Berthier observa que as especulações de MacLean sobre a psiquiatria enfatizam
fatores genéticos e biológicos na gênese dos distúrbios mentais e tende a colocar

54 Referência ao livro de HUBBEL, D. H. The brain. (1979).


55 Referência à obra de STERNBERG, R. J. Toward a triarchic theory of human intelligence. (1984).
56 Referência à produção de TIGNER, R. B.; TIGNER, S. S. Triarchic theories of intelligence: Aristotle
and Sternberg. (2002).
57 Referência ao livro de FODOR, J. A. The modularity of mind. (1983).
79

em segundo plano o papel desempenhado pelos fatores familiares e sócio-culturais.


(TIMSIT-BERTHIER, 1994).
Repetimos: três (radicalmente) diferentes estruturas e químicas, cuja
heterogeneidade pode levar a sentimentos e ideias (e impulsos) esquizofreniformes.
Em adendo a esta pesquisa de artigos envolvendo a neurologia triúnica de
MacLean, encontramos (após a conclusão das buscas online) ainda um outro
trabalho muito interessante que reúne diferentes linhas teóricas, desenvolvido pelo
sociólogo cibernético gaúcho Waldemar De Gregori, publicado pela Universidad
Austral de Chile, Valdívia, denominado “En búsqueda de una nueva noología”.
Como indica o título de seu texto, o autor está em busca de uma nova
noologia58 “o ciencia de la mente, de las funciones mentales, con nuevas bases
teóricas, nuevo enfoque, nuevos métodos educacionales y nuevos esfuerzos para el
desarrollo y utilización del cérebro.” (DE GREGORI, 1999).
Para tanto, o autor apresenta uma nova teoria do cérebro em três blocos
anatômicos e três processos funcionais, tendo por base os descobrimentos das
neurociências, com o intuito de aplicar esse novo enfoque – que denomina triádico –
ao processo psicopedagógico (por meio do desenvolvimento de ferramentas
identificadoras, organizadoras e educativas desse funcionamento tricerebral: o CT –
Revelador do Quociente Triádico, o Ciclo Cibernético de Feedback – que vai além
do método científico tradicional, e os quatro níveis de desenvolvimento e
desempenho do cérebro como nova matriz curricular). (DE GREGORI, 1999).
Fala dos anos 90 como a década do cérebro (pelas investigações e
experiências da eletrofisiologia, da neuroquímica, das neurociências, da psicologia
da aprendizagem, do construtivismo piagetiano e vygotskyano, das ciências da
cognição, da ciberciência – ou inteligência artificial, das correntes esotéricas
meditativas, das alterações do estado mental por meio de drogas e dos recursos
humanos como capital intelectual da visão neoliberal. (DE GREGORI, 1999).
Define esse novo enfoque como não apenas evolutivo e sistêmico, mas
triádico, com raízes na física quântica59, citando Murray Gell-Mann. (1994 apud DE
GREGORI, 1999).

58 Noologia: s. f. (gr. Noós. espírito, e lógos. tratado). Ciência que se ocupa do espírito humano.
(NOVO DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO LUSO-BRASILEIRO, 1958).
59 Referência à obra de GELL-MANN, M. The Quark and the Jaguar. (1994).
80

A visão monádica considerava inteligência, consciência, razão (iluminismo,


método científico). A diádica embasava-se na dicotomia corpo/mente, mente/alma,
matéria/espírito, objeto/sujeito. As teorias de Gardner60 (1995) e Goleman61 (1995),
dessa época, são também reaproveitadas no novo enfoque triádico, que apóia-se
nos autores da teoria cibernética, da teoria do caos e principalmente das
neurociências com enfoque triádico (trialético) do cérebro e de suas funções, tais
como: Sigmund Freud (Id, Ego e Superego; Inconsciente, Pré-Consciente,
Consciente); Alexander Luria62, discípulo de Vygotsky (teoria dos três processos
mentais, 1974); Jean Piaget63 (a evolução da aprendizagem e do pensamento:
operatório, imaginário e abstrato, 1973); e Paul MacLean64 (teoria do cérebro
triúnico, 1970). (DE GREGORI, 1999).
Conforme citação de De Gregori, transcrevemos trechos escritos por Luria e
por MacLean, respectivamente, por importantes também para o contexto deste
trabalho de conclusão do curso de psicologia:

Examinamos, antes, las ideas modernas concernientes a las tres principales


unidades funcionales del cerebro... Cada forma de actividad consciente es
siempre un sistema funcional complejo y ocurre por medio del
funcionamiento combinado de todas las tres unidades cerebrales, cada una
de las cuales ofrece su contribución propia. (LURIA, 1974 apud DE
GREGORI, 1999).

Hay tres regentes del chasis neural. El más arcaico de ellos circunda el
mesencéfalo (y está constituido, en su mayor parte, por lo que los
neuroanatomistas llaman estría olfativa, cuerpo estriado y globo pálido).
Compartimos eso con los mamíferos y reptiles. Probablemente, su
desarrollo se procesó en varias centenas de millones de años, que
podemos denominar complejo reptiliano o complejo-R. Circundando el
complejo-R, se encuentra el sistema límbico, así llamado porque se limita
con el cerebro subyacente y el superior, como un anillo o puente. Tenemos
el sistema límbico en común con otros mamíferos, pero lo mismo no ocurre,
en su elaboración total, con los reptiles. Probablemente se desarrolló hace
más de 150 millones de años. Finalmente, envolviendo lo restante del
cerebro, y, evidentemente, la adquisición evolutiva más reciente, tenemos el
neocórtex. (MACLEAN, 1970 apud DE GREGORI, 1999).

De Gregori integra em sua teoria o descobrimento da especialização do


cérebro humano nos hemisférios direito (mais intuitivo ou gestáltico) e esquerdo
(mais lógico), pelo Prêmio Nobel em Medicina Roger W. Sperry65. Ainda inclui as

60 Referência à obra de GARDNER, H. Inteligências múltiplas. (1995).


61 Referência à obra de GOLEMAN, D. Inteligência emocional. (1995).
62 Referência à teoria de LURIA, A. Fundamentos de neuropsicologia. (1981).
63 Referência à teoria de PIAGET, J. A epistemologia genética. (1973).
64 Referência à obra de MACLEAN, P. D. The Triune Brain, emotion, and scientific bias. (1970).
65 Referência à obra de SPERRY, R. Síndrome of Hemispheric Desconnection. (1973).
81

visões de Luria, de MacLean, do colombiano Mauro Torres 66 (1993) e do brasileiro


Wilson Sanvito67 (1994). (DE GREGORI, 1999).
Assim, para De Gregori, as perspectivas anteriores à sua teoria triádica do
cérebro são reducionistas. Cita outros (modelos e) autores estudiosos do cérebro e
as teorias orientais místicas (do yin e do yang – e sua cópia hegeliana denominada
tese e antítese). A ideia de animus e anima de Jung. A quadralidade ou quatrinidade
de Ned Herrmann68 (que tem base diádica). Razão pura e razão prática de Kant.
Razão e élan vital ou criativo de Bergson. Razão e fé. Idealismo e materialismo de
Marx. (DE GREGORI, 1999).
O autor assimila em sua teoria do cérebro triádico: Freud, Luria, MacLean,
Piaget e as representações mentais da Neurolinguística. Procura demonstrar em
alguns exemplos, então, as ferramentas que desenvolveu para a educação e para
todas as ciências sociais e humanas, segundo o seu paradigma tricerebelar. (DE
GREGORI, 1999).
Interessa-nos salientar uma frase desse artigo de De Gregori (quando ele
trata dos modelos que mais se aproximam do triádico) que coincide com nosso
pensamento exposto nesta monografia: “Id, ego y superego, inconsciente,
subconsciente, consciente, de Freud que corresponderían al reptílico, límbico y
neocórtex de MacLean.” (DE GREGORI, 1999).
Para concluir esta seleção e síntese de artigos, acreditamos ser de muita
valia para nossos objetivos de pesquisa trazermos ainda alguns comentários sobre a
tese de doutorado em psicologia experimental de Maria Isabel Fabrini de Almeida,
“Contribuições da perspectiva evolucionista para a compreensão do transtorno
obsessivo-compulsivo” (Instituto de Psicologia, Curso de pós-graduação, USP-SP,
2007), antes referida, retomando a introdução deste subcapítulo.
Em um longo texto, a autora aborda o tema do título de sua tese, sendo que
chamaram nossa atenção em seu enfoque: a investigação de estereotipias
comportamentais apresentadas em animais em cativeiro (e sua analogia com os
humanos); os conceitos de modularidade da mente, sistemas funcionais e ambiente
de adaptação evolutiva; os comportamentos compulsivos e ritualizados fora do
contexto da psicopatologia (possível continuum entre estes fenômenos, da vida

66 Referência ao livro de TORRES, M. Conócete. Triunfará el Cerebro Sobre el Computador? (1993).


67 Referência ao livro de SANVITO, W. L. O cérebro e suas vertentes. (1994).
68 Como já referimos em nota anterior.
82

cotidiana ao TOC); os dados sobre a psicobiologia do TOC (participação de doenças


infecciosas na manifestação de sintomas obsessivos-compulsivos); a aproximação
com a etologia (e a retomada de alguns de seus conceitos fundamentais); a busca
da recuperação da perspectiva filogenética na abordagem da neurociência, pela
discussão do modelo do cérebro triuno de Paul Macelan; e a discussão das
principais hipóteses evolucionistas com ideias similares sobre o transtorno
obsessivo-compulsivo – o modelo de simulação de cenários de risco, o modelo de
prevenção de situações de risco, e o sistema motivacional de segurança. (ALMEIDA,
2007).
Essas “hipóteses evolucionistas” sugerem que o desenvolvimento do TOC
“envolve uma alteração em um sistema funcional voltado para a prevenção de
riscos”, inclusive pelo predomínio de sintomas de caráter social ligados a adequação
a normas e regras, o que demonstra a importância das pressões seletivas que
levaram ao desenvolvimento de um “cérebro social”, a partir das adaptações que
permitiram estabelecermos relações sociais complexas. (ALMEIDA, 2007).
De certa forma, o trabalho da doutora Almeida é tão aprofundado sobre o
TOC que merece uma leitura muita mais atenta e detalhada. Talvez possamos trazer
algumas de suas contribuições articulando-as com nossa busca de vestígios do
modelo macleaniano nos textos freudianos, em um trabalho futuro, em que
pretendemos falar sobre a obra “Notas sobre um caso de neurose obsessiva.”
(FREUD, 1996 [1909]).
Por ora, pensamos ser suficiente mencionarmos o grande valor heurístico 69
que a autora atribui ao modelo do cérebro triúnico de Paul MacLean:

Embora tenha influenciado profundamente a neurociência médica ao longo


da última metade do século XX, seu trabalho tem sido subestimado ou
mesmo ignorado, inclusive pela própria psicologia evolucionista, campo no
qual ele é mencionado com pouca frequência. Panksepp e Panksepp (2000)
afirmam que a psicologia evolucionista tem deixado de considerar os
achados de pesquisas longamente estabelecidas, a partir de estudos
comparados entre espécies, sobre o funcionamento cerebral. Antônio
Damásio fala da curiosa negligencia científica da emoção, em favor da
cognição, na neurociência dominante, citando outros três aspectos que,
embora fundamentais, têm sido igualmente negligenciados: a perspectiva
evolucionista, o conceito de homeostase, e o conceito de organismo como
um todo. Todos esses aspectos estão contemplados no trabalho de Paul
MacLean. (ALMEIDA, 2007, p. 75).

69 Que serve para a descoberta ou para a investigação de fatos.


83

2 O MODELO DO CÉREBRO TRIÚNICO EM INTERFACE COM A PSICANÁLISE


E OUTRAS TEORIAS TRIPARTITES DA MENTE

(...) dentre as referências mais recorrentes a Freud, estão a Bíblia, Goethe e


Shakespeare. (FRANÇA, 2014, p. 266).

2.1 Princípios norteadores de Freud e do evento “Nós Outros Gaúchos”

Sigmund Freud sempre demonstrou sua preocupação com as “Linhas de


progresso na terapia psicanalítica” (1996 [1918]), tanto que utilizou essa frase para
nomear texto de sua autoria, que inicia admitindo as imperfeições de sua
compreensão, declarando seu desejo de aprender coisas novas e de alterar seus
métodos para melhorá-los – deixando claro que nunca se vangloriou da “inteireza e
acabamento definitivo” de seu conhecimento.
Uma louvável postura de humildade científica que não vemos em muitos de
seus discípulos.
Conceituou de forma singela “psicanálise”, nesse mesmo texto, como “o
processo pelo qual trazemos o material mental reprimido para a consciência do
paciente.” (FREUD, 1996 [1918], p.173).
Já há 100 anos, o médico lançou uma previsão sobre a enorme quantidade
de miséria neurótica que existe no mundo, especialmente entre a população pobre
(já que a psicanálise restringia-se ao atendimento das classes abastadas),
acreditando que provavelmente passar-se-ia um longo tempos antes que o Estado
chegasse a compreender o quão urgentes são os seus deveres de atendimento
dessa massa crescente da população. Ele previu a necessidade de adaptar a
técnica psicanalítica às novas condições (inclusive de atendimento em instituições
ou clínicas de pacientes externos). Reconheceu a necessidade de “buscar formas
mais simples e mais facilmente inteligíveis de expressar as nossas doutrinas
teóricas”. Reconheceu a provável necessidade, inclusive, de que “a aplicação em
larga escala da nossa terapia nos force a fundir o ouro puro da análise livre com o
cobre da sugestão direta; e também com a influência hipnótica” (como no caso do
tratamento das neuroses de guerra). Preocupou-se com uma psicoterapia para o
povo, qualquer que fosse a forma que ela pudesse assumir, quaisquer que sejam os
elementos dos quais viesse a se compor (esperando, claro, que seus ingredientes
84

mais efetivos e importantes continuassem a ser os da psicanálise estrita e não


tendenciosa). (FREUD, 1996 [1918], p. 173-181).
Em resumo, o pai da psicanálise nunca colocou limites à evolução da sua
própria teoria, sendo capaz de perceber que ela sofreria modificações. Ele estava
aberto às novidades, muitas das quais, lamentavelmente, interdisciplinarmente,
surgiram apenas após o seu falecimento – em especial nas neurociências (nas
neuroimagens, na medicina psiquiátrica, nas descobertas científicas e tecnológicas
extraordinárias que temos hoje, cujas pesquisas estaria por certo apoiando, vivo
estivesse).
Gostaríamos de aliar a essas observações, a posição de Edgar Morin autor
do texto “Da necessidade de um pensamento complexo” (In: “Para navegar no
Século XXI”)70, no sentido de que o complexo do mundo é quebrado pela inteligência
parcelar, compartimentada, mecânica, disjuntiva, reducionista, gerando fragmentos e
problemas fracionados, ao separar o que é ligado e unidimensionalizar o
multidimensional. Para ele: “Quanto mais os problemas se tornam multidimensionais,
mais há incapacidade para pensar essa multidimensionalidade” (MORIN, 2000, p.
31).
Ele cita Pascal e sua proposição de que não há como conhecermos o todo,
sem conhecermos as partes, e vice-versa. Nosso princípio de pensamento deveria
ser o de ligarmos as coisas que nos parecem separadas, mas nosso sistema
educativo privilegia a separação disciplinar do conhecimento. Nos faz estudar o
espírito humano pelas ciências humanas, como a psicologia, mas relega o estudo do
cérebro (órgão biológico) à biologia, embora vivamos numa realidade
multidimensional (econômica, psicológica, mitológica, sociológica, simultaneamente
– no caso do triune brain macleaniano, uma realidade: ambiental, intelectual,
emocional, instintual). (MORIN, 2000).
Morin nos lembra que “somos seres trinitários, ou seja, somos triplos em
um só. Somos indivíduos, membros de uma espécie biológica chamada Homo
Sapiens, e somos, ao mesmo tempo, seres sociais. Temos três naturezas numa só.”
[grifo nosso]. (MORIN, 2000, p. 23).
O pensamento complexo busca, nas palavras do autor, “distinguir (mas não
separar) e ligar”. Não se reduz nem à ciência, nem à filosofia, criando uma ponte

70 Conforme material de leitura indicado na disciplina Filosofia e Psicologia II, ministrada pelo
professor Valdir G. Kinn, durante o segundo semestre de 2017, Curso de Psicologia, UNIJUÍ.
85

comunicativa entre ambas, trata com a incerteza, concebe a organização, une,


contextualiza, globaliza, reconhecendo também o singular, o individual e o concreto
(MORIN, 2000, p. 36).
Excelentes os princípios norteadores escolhidos pelos curadores do projeto
“Nós Outros Gaúchos”, evento realizado em parceria da UFRGS com o Instituto da
Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA, aos quais tivemos acesso no
segundo semestre71 de 2017: “nenhuma disciplina dá conta de tudo; não há
hierarquia entre as diferentes disciplinas aplicadas; ninguém é dono da
verdade; o Real é impossível de simbolizar”. [grifo nosso]. (NÓS OUTROS
GAÚCHOS, 2017).
O Real é impossível de simbolizar. O réptil?
Princípios norteadores, com efeito, que precisam materializar-se em
condutas humanas, nas artes, na educação, na filosofia (ou no que restou dela), na
política, na ciência, na psicanálise, nas psicologias e em outras disciplinas. Por isso,
integrar é preciso. Evoluir é preciso72.

2.2 Breve articulação entre as teorias de MacLean e de Freud (psicanálise)

Será que nos é lícito fazer uma breve correlação entre todas essas grandes
ideias, como já estivemos fazendo no Capítulo 1 (e como pretendemos continuar
fazendo ao longo de todo o texto seguinte)?
Não ficará mais fácil para o público público leigo se a psicologia moderna
procurar integrar-se, utilizando-se de termos mais simples, visando a ética, a
compreensão e a clareza em primeiro lugar, antes das vaidades intelectuais dos
teóricos ou da rigidez ideológica?
O ID poderia ser o cérebro RÉPTIL? Com o perdão da possível heresia.
O EGO poderia ser o cérebro EMOCIONAL? Idem.
O SUPEREGO poderia ser o cérebro RACIONAL? Idem.
O REAL poderia ser o cérebro INSTINTIVO? Idem.
O IMAGINÁRIO poderia ser o cérebro MAMÍFERO? Idem.
O SIMBÓLICO poderia ser o cérebro LÓGICO? Idem.

71 Durante a elaboração de resenha para o componente curricular “Aspectos sociais do sintoma”,


professora Luciane Gheller Veronese. Evento cujo objetivo foi procurar compreender melhor as
origens dos conflitos e das dificuldades do povo gaúcho para superar rivalidades e desconfianças.
72 Referência à obra do professor Mario Osório Marques, “Escrever é preciso” (2001).
86

Quando a psicanálise fala da linguagem do inconsciente é possível também


fazermos uma conexão com esses três cérebros que cresceram sobrepondo-se um
ao outro: eles tem objetivos e linguagens evidentemente diferentes entre si. Isso
também vale para os significantes escolhidos por Lacan, ao nomear os três
registros, em especial o que nomeou “simbólico”.
Em sua obra “O seminário – Livro 1 – Os escritos técnicos de Freud”,
Jacques Lacan diz, explicitamente:

Porque as palavras, os símbolos, introduzem um oco, um buraco, graças ao


qual todas as espécies de franqueamentos são possíveis. As coisas tornam-
se intercambiáveis. Esse buraco no real chama-se, segundo a maneira pela
qual o encaramos, o ser ou o nada. Esse ser e esse nada são
essencialmente ligados ao fenômeno da palavra. É na dimensão do ser que
se situa a tripartição do simbólico, do imaginário e do real, categorias
elementares sem as quais não podemos distinguir nada na nossa
experiência. Não é por nada, sem dúvida, que elas são três. Deve haver
aí alguma lei mínima que a geometria não faz, mais do que encarnar, a
saber, que se vocês destacam no plano do real algum pedaço que se
introduza numa terceira dimensão, não poderão fazer nada de sólido
senão com dois outros pedaços no mínimo. Um tal esquema presentifica
a vocês isto – é somente na dimensão do ser, e não na do real, que podem
se inscrever as três paixões fundamentais – na junção do simbólico e do
imaginário, essa fenda, se vocês quiserem, essa aresta, que se chama o
amor – na junção do imaginário e do real, o ódio – na junção do real e do
simbólico – a ignorância. [grifo nosso]. (LACAN, 1996 [1975], p. 308-309).

Quando o Doutor Freud atentou para o inconsciente, ele percebeu ou a


existência do réptil (de uma “língua diferente”) por suas manifestações em sonhos,
atos falhos, chistes; ou talvez do sistema instintivo-emocional (para ficarmos em
duas instâncias, como optou a pediatra Villeneuve, 2016).
Definir o inconsciente é tarefa complexa. Freud mesmo dizia: “poetas e
filósofos descobriram o inconsciente antes de mim; o que descobri foi o método
científico para estudá-lo.” Contém todas nossas experiências sobre a realidade e
parece manter-se fora de nossa percepção e controle. Armazena memórias,
pensamentos e sentimentos. “É a parte da mente que define e explica os
mecanismos responsáveis por nossa habilidade de pensar e sentir”. Há memórias
perturbadoras ocultas na mente inconsciente, e dar voz a essas memórias, trazê-las
à consciência, possibilita o desaparecimento dos sintomas de doenças mentais nos
pacientes. (FREUD apud COLLIN et. al., 2012, p. 94-95).
Para Freud, a consciência, ou mente operacional das experiências
cotidianas da qual estamos cientes, “(...) é apenas uma fração do total de forças
atuantes em nossa realidade psicológica” (FREUD apud COLLIN et. al., 2012, p. 95).
87

Ideias, pensamentos e sentimentos dolorosos ou inapropriados demais para


que a mente consciente possa suportar são reprimidos e guardados no inconsciente
(junto de nossos impulsos instintivos). E o inconsciente dirige em silêncio os
pensamentos e o comportamento do indivíduo. Tensão psíquica surge da diferença
entre esses pensamentos conscientes e inconscientes. Ela só alivia-se quando
essas memórias reprimidas vem à consciência por meio da psicanálise. (FREUD
apud COLLIN et. al., 2012, p. 95).

Figura 7 – “A mente é como um iceberg que flutua com um sétimo de


seu volume acima da superfície, registrou Freud” (COLLIN et. al., 2012, p. 96).

Fonte: http://psicoativo.com/wp-content/uploads/2017/04/iceberg_inconsciente_
preconsciente_consciente_id_ego_superego_psicanalise_freud.jpg

Freud ensina que a psique é semelhante a um iceberg. Tem uma área de


pulsões primitivas, o Id, que está oculta no inconsciente. O Ego opera com o
pensamento consciente e regula tanto o Id quanto o Superego – sendo este a voz
que julga e critica. (FREUD apud COLLIN et. al., 2012, p. 96).
Nesse momento do estudo, aplicamos novamente a ferramenta
hermenêutica para, criticamente, pensarmos sobre a palavra (ou o significante,
como prefere Lacan) Id e, para tanto, utilizamos a pesquisa simples em diferentes
dicionários enciclopédicos (propositalmente) não dependentes de vocabulário
psicanalítico. Assim, vamos encontrar neles alguns tesouros significantes.
88

Será que podemos compreender o termo ID também como “a coisa” – esse


cérebro primitivo reptiliano e inconsciente (com origem no latim: o Isso, que tem uso
como pronome neutro e indefinido no inglês, usado para designar o clima, para
coisas e animais)?
Conforme o Dicionário Enciclopédico Koogan Larousse Seleções (1978): “ID
s.m. Psicanál. Substrato instintivo da psique.”; enquanto que: “IT s.m. (pal. Ingl.).
Mais ou menos o mesmo que charme e glamour; encanto, atrativo: aquela mulher
tem um it irresistível.” [grifo nosso]. Charme e glamour, encanto e atrativo
(irresistível) nos parecem muito relacionados ao sistema instintivo-afetivo de
Villeneuve (2016) e ao reptilian brain de MacLean (1990 [1970]).
Além disso, o Id também é traduzido para a língua portuguesa como Isso na
literatura psicanalítica. O Ego (é o Eu), o Superego (o Supereu), o Id (o Isso).
Segundo o MICHAELIS 2000 Moderno Dicionário da Língua Portuguesa
(2000): “Id s.m. (latim id, isso) Psicol. Na Psicanálise, aspecto da personalidade
relacionado com as reações instintivas. Em sentido geral, o organismo humano
psicologicamente considerado.” Vejamos que consta nessa obra que, em sentido
geral, o próprio Id é situado como verbete que refere-se ao organismo humano (o
cérebro réptil é o mais conectado dos três macleanianos ao corpo físico e instintivo).
Ainda, de acordo com o Dicionário Inglês-Português (HOUAISS, 1982),
podemos ver que o termo It é usado como pronome neutro e também como sujeito
gramatical antecipado, curiosamente com a observação de que o verdadeiro sujeito
vem depois do predicado:

It pron. (neutro) ele; ela; o; a; lhe. Como sujeito de verbos impessoais ou


aux. não é traduzido (it is raining está chovendo; it is difficult é difícil); isto,
isso (pron. Demonstrativo) (what is it?, How is it?); como sujeito gramatical
antecipado, vindo o verdadeiro sujeito depois do predicado (it is the winter
that comes é o inverno que está chegando; it is a pleasure to see you é um
prazer ver você); como objeto indefinido de verbo transitivo ou intransitivo
(to do it over fazer de novo, repetir; to run for it fugir para salvar-se, correr
para conseguir). (HOUAISS, 1982).

No “Dicionário de Psicanálise”, de Elisabeth Roudinesco e Michel Plon


(1998), o verbete “Id” aparece, inclusive, somente para o fim de remeter o
pesquisador ao verbete “Isso”, referindo-se claramente à origem do termo estar
conectada ao pronome neutro da terceira pessoa (isso, o réptil?) da língua nativa
alemã (Es) de Freud:
89

Isso. al. Es; esp. ello; fr. ça; ing. Id. Termo introduzido por Georg
Groddeck em 1923 e conceituado por Sigmund Freud no mesmo ano, a
partir do pronome alemão neutro da terceira pessoa do singular (Es),
para designar uma das três instâncias da segunda tópica freudiana, ao
lado do eu e do supereu. O isso é concebido como um conjunto de
conteúdos de natureza pulsional e de ordem inconsciente. A tradução
francesa foi introduzida por Édouard Pichon e a inglesa, por James
Strachey. No Brasil também se usa “id”.

(...) uma vivência passiva do indivíduo, confrontado com forças


desconhecidas e impossíveis de dominar.

(...) Daí a introdução do termo isso para designar o inconsciente,


considerado um reservatório pulsional desorganizado, assimilado a um
verdadeiro caos, sede de “paixões indomadas” que, sem a intervenção do
eu, seria um joguete de suas aspirações pulsionais e caminharia
inelutavelmente para sua perdição.

(...) [Freud] enunciou sua célebre frase “Wo Es war, soll Ich werden”, que
daria margem a diversas leituras, por sua vez articuladas com as
modalidades de interpretação da segunda tópica. Uma primeira leitura, a
da Ego Psychology, privilegiou o papel do eu, considerado como tendo
que dominar o isso ao término de uma análise bem conduzida.
Inversamente, Jacques Lacan forneceu da frase freudiana uma tradução
baseada em sua teoria da linguagem. Enfatizou a emergência dos
desejos inconscientes para os quais a análise deve abrir caminho, em
oposição às defesas do eu, posição esta que ele recapitulou em 1967 por
meio de uma formulação que se tornou famosa: “isso fala!” [grifo nosso].
(ROUDINESCO, 1998).

Não nos filiamos nem à releitura da “psicologia do ego” (Ego Psychology),


nem à linha da releitura lacaniana, porém, considerando todas as perspectivas das
“psicologias” (e “psicanálises”) existentes, procuramos uma integração entre essas
visões do fenômeno humano nem tão distantes assim (quanto aparentam ser).
Freud também postulou que o funcionamento psíquico é concebido a partir
de três pontos de vista.
Um deles é o econômico (uma energia que alimenta esses processos
intrapsíquicos). Outro é o tópico: “sistemas diferenciados quanto à sua natureza
e seu modo de funcionamento, o que permite considerá-lo como ‘lugar’
psíquico.” [grifo nosso] – BOCK, 1999, p. 51). Então, há um “lugar” psíquico (entre
aspas) do aparelho psíquico psicanalítico (abstrato).
E, do ponto de vista dinâmico: há forças que estão em conflito no interior do
psiquismo humano, permanentemente ativas, com origem na pulsão. (BOCK, 1999,
p. 51).
Assim, temos instintos, ou impulsos, ou pulsões, energia, instâncias e
conflitos de forças psíquicas (o nome não é tão relevante assim), mas lhes falta um
‘lugar’ físico. Diferenciar pulsão de instintos de modo tão extremo a ponto de alegar
90

que os humanos perderam seus instintos animais ao “entrarem na linguagem” ou


“que somente os seres humanos praticam o ato sexual para fins não relacionados à
procriação” é fazer uso de frases de efeito que, no entanto, não são suficientes para
eliminar nossas fortes e presentes raízes biológicas, por sinal; basta atentarmos
para a complexa organização social desenvolvida pelos macacos bonobos (Pan
paniscus), inclusive e principalmente no tocante ao modo que lidam com sua
sexualidade (menos voltada somente à procriação e mais voltada a criar laços
sociais e a proporcionar prazer e integração no bando, como podemos ver em trecho
de documentário em vídeo disponível em canal do Youtube: “Out In Nature:
homosexual behavior in the animal kingdom”). (MENENDEZ, 2001). Basta
observarmos também o altíssimo nível de comunicação verbal dos prairie dogs (cães
da pradaria), por exemplo, descoberto graças ao esforço de pesquisadores como
Con Slobodchikoff e aos avanços nas pesquisas da Biologia e da Etologia
(SLOBODCHIKOFF, 2009); e como é possível verificarmos em trecho de vídeo
disponível também em canal do Youtube: Prairie Dogs: America's Meerkats –
Language (SLOBODCHIKOFF, 2011). Há comportamentos instintivos
(principalmente os violentos) nos humanos que dão sinais de ser condutas mais
“animalescas” do que as dos próprios animais.
Além disso, como podemos ler em “O Trieb de Freud como instinto 1:
sexualidade e reprodução”, artigo de Richard Theisen Simanke (2014), para alguns
autores, Freud teria feito uma radical “desnaturalização” da sexualidade humana,
desvinculando esta da finalidade reprodutiva (biológica), uma interpretação que
decorre da ruptura epistemológica entre as ciências humanas e as naturais – pela
proposição de refundamentar a psicanálise em termos antropológicos ou linguísticos
(versões estruturalistas e antinaturalistas – Lacan e Laplanche). Segundo o
articulista, entretanto, Freud sustentava uma visão naturalista das ciências sociais.
Atualmente, a proximidade da psicanálise e das ciências naturais e biológicas
retorna com força, dadas as evidências dessa posição original freudiana.
No artigo “Corpo somático e psiquismo na psicanálise: uma relação de
tensionalidade”, a Doutora Tatiana Lionço (2008) analisa a hipótese de que a
condição humana tem dinâmica própria nos processos de subjetivação (com base
no termo pulsão), e cita Garcia-Roza (1990) no sentido de que um elemento não
91

natural se interporia no caso do humano73: a palavra; o que geraria dois registros: o


do corpo material e o da linguagem. Com a emergência da linguagem (como efeito
imediato), ocorreria a desnaturalização do corpo, de suas necessidades e dos
objetos do mundo. Perde-se a ordem natural e nova ordem se instaura, a Simbólica,
advindo nova condição de falta para esse corpo (não mais o objeto absoluto perdido,
a necessidade). E, agora, tal falta não seria natural e por isso não superável pela
adaptação (inviável dada a perda da garantia instintiva).

As faltas corporais permaneceram, isto é, o corpo permaneceu como não


auto-suficiente. Só que agora a ação desencadeadora por essas faltas ficou
sem direção predeterminada. O homem foi lançado numa errância, já que
não desempenha mais do sinal inequívoco do objeto anteriormente natural e
adequado”. (GARCIA-ROZA, 1990, p .16-17).

(...) tomar a linguagem como ponto de partida, significa recusar a ordem


prévia que o naturalismo impõe ao mundo. (GARCIA-ROZA, 1990, p. 17).

O objetivo parece ser o de forçar conceitos freudianos (baseados no


paralelismo psicofísico já descrito anteriormente neste trabalho) a entrarem no
discurso ideológico (abstrato, portanto, e altamente intelectualizado) do
estruturalismo (da antropologia e da linguística).
Entre as belas teorias (sem base nos fatos) e a realidade dos fatos, ficamos
com os fatos – perfilando-nos junto de Flávio Gikovate (1993), que refere esse
pensamento em “A arte de viver bem” (e em várias outras obras, tais como “O mal, o
bem e mais além”), quando escreve que “nossa imaginação nos leva além dos
fatos” e que nossas ideias podem, às vezes, nos parecer fascinantes e gerar
otimismo – como a da igualdade sexual entre homens e mulheres – e depois
mostrarem-se inexequíveis, por serem belas, porém falsas: “O voto definitivo é o da
realidade e não o do mundo das ideias.” Muitas pessoas tentam, não conseguem
transformar esses sonhos em realidade e desistem, acusando os outros de serem os
“culpados” pelos seus insucessos. Em geral, “desenvolvem rancor pelos fatos,
pelas pessoas e acabam por tornar-se criaturas cínicas e ressentidas, quando não
deprimidas e com sensação de fracasso.” [grifo nosso]. (GIKOVATE, 1993, p. 19).

73 Referência à obra de GARCIA-ROZA, L. A. O mal radical em Freud. (1990).


92

Mas por que insistirmos em tentar localizar anatomicamente essas três


instâncias74 macleanianas, igualmente contempladas pelas teorias psicanalíticas
freudiana e lacaniana?

Figura 8 – Desenho do Modelo do Cérebro Triúnico (1990 [1970]).

Fonte: Adaptação do desenho que fizemos durante diálogo com colega do curso de psicologia,
em 2014, no intervalo de aula da disciplina “Estrutura do sujeito psíquico”.

Primeiro, porque elas podem de fato estar localizadas, como teorizou


MacLean (1990). Como pioneiramente as procurava Freud, em 1895 (sem as
ferramentas tecnológicas fantásticas que temos atualmente). Segundo, porque fica
muito mais fácil para entendermos os homens, as mulheres, os idosos, as crianças e
suas atitudes impulsivas, automáticas, por vezes irracionais, etc., como a pediatra
Villeneuve já nos explicou sobre a educação infantil em seu preclaro artigo objeto de
síntese na introdução deste trabalho (e ajudá-los a compreender e a conviver melhor
com seus conflitos internos). Já que os externos são, em geral, inevitáveis.
(VILLENEUVE, 2016).
Tais instâncias podem não estar localizadas exatamente nesses pontos,
porque o cérebro é um todo integrado e trabalha em rede (BEAR, 2002). Porém, tais
lugares parecem ter funções muito próximas daquelas que os teóricos da mente
procuraram posicionar em aparelhos abstratos (parecem núcleos). Podem estar
entre esses “cerébros” de MacLean, podem estar neles individualmente, podem
estar espalhadas pelo encéfalo e pela medula. Importa que essa teoria bem

74 Boa pergunta que nos foi direcionada no intervalo de aula da disciplina “Estrutura do sujeito
psíquico”, em 2014, pelo professor Doutor Gustavo Héctor Brun, enquanto trocávamos ideias com
colega do curso de psicologia, rascunhando no quadro o modelo do triune brain com o pincel
atômico.
93

assentada de cérebros evoluindo nos animais, de forma sobreposta um ao outro,


interligados, merece mais atenção da psicologia. Mesmo que não tenham evoluído
um “após o outro” ou “um sobre o outro”, podem ter crescido paralelamente (o
emocional e racional; minúsculos nas serpentes, lagartos e crocodilos certamente).
Achamos muito interessante a coincidência desse número três (3): há o três
em várias teorias e religiões (“Pai, Filho e Espírito Santo”, no catolicismo). Pai réptil,
Filho mamífero e Espírito Santo racional (e espiritual)? Com o perdão da heresia.
Idem entre os filósofos75, como é o caso de Platão, segundo o qual:

O homem não tem somente uma alma, mas três: a alma racional, a alma
irascível e a alma concupiscível. Elas se encontram respectivamente na
cabeça, no peito e no ventre. A alma racional é como o cocheiro. Ora, um
dos cavalos é bom e belo (a alma irascível), o outro é mau e feio (a alma
concupiscível); o cavalo bom é obediente ao cocheiro, o outro é rebelde e
dá muito trabalho ao companheiro de jugo e ao cocheiro.” [grifo nosso].
(MONDIN, 1981, p. 68).

O “Tao Te Ching: o livro que revela Deus”, de Lao Tsé (Poema 42, “A auto-
realização do Ser”) também ensina que: “De Tao veio o Um. Do Um veio o Dois. Do
Dois veio o Três. E o Três gerou os Muitos.” (TSÉ, 2003, p. 109).
Há muito mais referências assim na literatura e na ciência que podem ser
localizadas em pesquisa mais aprofundada.
A propósito, muito interessantes também são as íntimas conexões da
psicanálise com a literatura (e os indícios do triune brain também presentes nessas
ligações), pois Freud mesmo reconheceu que a psicanálise praticamente nasceu do
interesse dele pelos grandes escritores de todos os tempos, em especial Goethe,
Shakespeare e Dostoievski, cujas obras esquadrinhou em busca de elementos
psicológicos estruturantes da personalidade humana. (CAMPOS, 2013).
Considerava os escritores ingleses e escoceses os seus verdadeiros
mentores (MANNONI 1994 apud CAMPOS, 2013).
Sigmund via nesses escritores criativos uma capacidade extraordinária de
compreensão da mente humana, que antecedeu em muito a psicanálise. Ele era um
grande leitor dos clássicos. Neles encontrou metáforas, imagens, arquétipos e
conceitos. Na clínica e na arte (literatura), o inconsciente aflora. Ambas sondam a
subjetividade. Para Freud, a mente é um produtor de poesia. (ROSENBAUM, 2012).

75 Observar nossas referências em notas anteriores às palavras de Freud, Platão e de Koestler a


essa metáfora sobre o cavaleiro e o cavalo, relativamente às instâncias do encéfalo humano.
94

Ele deixou registrada a seguinte opinião em seu texto “Delírios e sonhos na


Gradiva de Jensen”, de 1906:

E os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve


ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de
coisas entre o céu e a terra, com as quais a nossa filosofia ainda não nos
deixou sonhar. Estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento
da mente, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à
ciência. (FREUD,1996 [1906], p. 20).

Talvez, com a teoria macleaniana (1990 [1970]) aliada à metapsicologia


freudiana (integradas a outras “psicologias” e à literatura e psicologia orientais), tal
conhecimento poderá tornar-se, finalmente, acessível à ciência de modo mais
completo.
Em Sófocles, Shakespeare e Dostoieviski, Sigmund foi buscar elementos
para um dos pilares de suas teses psicanalíticas: o complexo de Édipo. Uma lei
universal da vida mental (em seu ponto de vista), captada em todo seu significado
emocional nas obras desses autores. Detectou indícios claros de incesto e parricídio
nas três obras. (CAMPOS, 2013).
Em “O interesse científico da psicanálise”, Freud (1996 [1913]) aproxima o
neurótico do artista, pois vê que as forças impulsionadoras dos homens de gênio
são da mesma natureza que os conflitos que levam o homem comum à neurose;
sendo que o exercício artístico (é atividade que) visa “aplacar desejos não
gratificados, primeiramente do próprio artista, mas também dos espectadores”
(leitores). (FREUD, 1913 apud CAMPOS, 2013).
Os conflitos humanos intrapsíquicos podem levar à neurose e também
podem dar origem à arte e à criatividade artística.
Já em “Um estudo autobiográfico” (1996 [1924]), Sigmund declara que a
imaginação seria uma “reserva” construída durante a passagem do princípio do
prazer para o princípio da realidade (que regem o funcionamento mental) para
permitir uma satisfação substituta para as pulsões que precisam ser sacrificadas na
vida real. (FREUD, 1924 apud CAMPOS, 2013).
O princípio do prazer plasmado no cérebro réptil tenta acessar a passagem
para o princípio da realidade do cérebro lógico-racional, mas não sem antes
construir a reserva da imaginação típica do cérebro emocional (mamífero).
Freud foi indevidamente acusado de fazer “biografismo”, mas na verdade em
raras vezes preocupou-se em relacionar a vida pessoal dos autores às suas obras.
95

Seu objetivo central era encontrar fórmulas psicológicas nos personagens e ilustrar
suas teorias e conceitos nascentes (suas concepções psicológicas e, em especial, a
ideia do “inconsciente”). (FRANÇA, 2014).
Ele escreve em “A interpretação dos sonhos” (1900), quando analisa Hamlet:

Assim como todos os sintomas neuróticos (...) todos os sonhos são


passíveis de ser “superinterpretados”, e na verdade precisam sê-lo, se
pretendermos compreendê-los na íntegra, também todos os textos
genuinamente criativos são o produto de mais de um motivo único e
mais de um único impulso na mente do poeta, e são passíveis de mais
de uma interpretação. No que escrevi, tentei apenas interpretar a camada
mais profunda dos impulsos anímicos do escritor criativo. [grifo nosso].
(FREUD, 1996 [1900], p. 292).

Interessava ao fundador da psicanálise a “criação artística enquanto


possibilidade de um outro caminho para o conhecimento do inconsciente.”
(MANNONI, 1994 apud CAMPOS, 2013).
Em nosso estudo, a criação artística pode tratar-se de um outro caminho
para a investigação da interface da psicanálise com a teoria do cérebro triúnico, no
que tange à compreensão da origem dos conflitos internos do ser humano.
Marcelo Gonçalves Campos escreve que, para Freud (1996 [1906] apud
CAMPOS, 2013, p. 22), “os escritores são os precursores na descrição da mente
humana, sendo este o seu campo mais legítimo, e assim se adiantaram à ciência e à
psicologia neste terreno”. E, por isso, o criador da psicanálise busca respaldo na
ficção para suas descobertas.
Em “Sobre a psicopatologia da vida cotidiana”, Freud abordou os
esquecimentos de nomes, lapsos de leitura e escrita e os equívocos na ação,
processos que afirmou não serem arbitrários ou frutos do acaso, mas causados pelo
determinismo psíquico (e detentores de múltiplos sentidos). Idem os atos falhos e os
chistes. (FREUD, 1996 [1901] apud CAMPOS, 2013).
Manifestações do sistema instintivo-afetivo (VILLENEUVE, 2016).
A interface da psicanálise e da literatura também demonstra vestígios do
triune brain nas obras desses escritores criativos conhecedores da mente humana.
Segundo França (2014, p. 266), as duas obsessões de Freud eram “dissecar
as razões do comportamento humano” e “a literatura” – e suas referências mais
recorrentes eram a Bíblia, Shakespeare e Goethe.
Claro que ele buscava legitimar o complexo de Édipo:
96

Hamlet é capaz de fazer qualquer coisa – salvo vingar-se do homem que


eliminou seu pai e tomou o lugar deste junto a sua mãe, o homem que lhe
mostra os desejos recalcados de sua própria infância realizados. Desse
modo, o ódio que deveria impeli-lo à vingança é nele substituído por auto-
recriminações, por escrúpulos de consciência que o fazem lembrar que ele
próprio literalmente, não é melhor do que o pecador a quem deve punir.
Aqui traduzi em termos conscientes o que se destinava a permanecer
inconsciente na mente de Hamlet (...). (FREUD, 1996 [1900], p. 291-292).

Para nós, fica claro um ambiente infantil problemático, o afeto (carinho) de


Hamlet pela mãe – nada de necessariamente sexual (no sentido luxurioso do termo),
rivalidade com o pai, sua agressividade reptiliana contida, o desenvolvimento de
escrúpulos, como escreve Freud, de consciência. A presença de grande conflito
interno. A presença do triune brain.
“Édipo Rei”, “Os irmãos Karamazov” e “Hamlet” trazem em comum o
parricídio (nos três livros, o motivo para a ação é a rivalidade sexual por uma
mulher). Estórias de desejos de parricídio que envolvem razões e reações
psicológicas obscuras. (FRANÇA, 2014). Histórias de tramas que mostram as
dimensões do reptilian brain, do paleomammalian brain, do neomammalian brain.
Hamlet deseja matar o tio (não realiza intento, mas sente culpa), no romance
de Dostoievski um irmão assume a culpa pela morte do pai (desejada pelos três
irmãos). (FRANÇA, 2014).
França (2014) cita Freud e o texto: “Dostoievski e o parricídio” (1996 [1927]):
“É indiferente saber quem realmente cometeu o crime; a psicologia se interessa
apenas em saber quem o desejou emocionalmente e quem o recebeu com alegria
quando foi cometido.” (FREUD apud FRANÇA, 2014, p. 268).
À qual psicologia interessa saber isso? Somente àquela psicologia que não
reconhecia a existência de (ao menos uma) instância inconsciente nos humanos.
Há algo enigmático nessas personalidades, porém, à luz da teoria do
cérebro triúnico, ao reconhecermos o conflito entre esses três cérebros como algo
natural, nenhuma dessas condutas nos parece mais assim tão misteriosa. Idem para
a psicanálise, já naquela época. Freud analisou e descreveu as facetas de
Dostoievski: “neurótico, culposo, criativo, moralista e pecador” – mas o conheceu
somente pelas biografias disponíveis à sua época. Foi o suficiente. (FRANÇA, 2014,
p. 269).
O público cria uma intimidade com o herói dessas tramas literárias
(românticas): simpatia, repulsa, identificação. O receptor (leitor) é capaz de
97

reconhecer os piores ou melhores sentimentos do herói. Interessa o drama, todos os


tipos de sofrimento (de onde o espectador extrai algum prazer). (FRANÇA, 2014, p.
270-271). Sim, ele também tem sofrimento dentro de si. Em três instâncias.
Shakespeare, por exemplo, constrói uma personalidade “perturbada mas
tolerável” para Hamlet – ele precisa ser, na medida-limite: “capaz de transmitir uma
extrema perturbação emocional e existencial”, mas não ficar reduzido simplesmente
a um estado patológico. Se agisse como louco, ou totalmente mau, sufocaria a
simpatia do auditório. (FRANÇA, 2014, p. 271).
Fértil campo de tipos psicológicos, a literatura internacional. Em “Lady
Macbeth”, Freud destaca a ambição, o medo do sucesso, a infertilidade, a
incapacidade de usufruir de sua conquista, a culpa por atos passados (FRANÇA,
2014).
Em “Personagens psicopáticos no palco”, Freud declara que interessa-lhe
acima de tudo o “drama psicológico”, que internaliza todos os demais dramas
(religioso, social, de caracteres):

Aqui, é na própria alma do herói que se trava a luta geradora do


sofrimento: são os impulsos desencontrados que se combatem, numa
luta que não culmina na derrota do herói, mas na extinção de um de
seus impulsos: tem que terminar na renúncia a um deles. Claro está
que são possíveis todas as combinações entre essa precondição e as que
regem a tragédia social e a de caracteres; assim, as próprias instituições
podem ser a causa do conflito interno. É aí que entram as tragédias do
amor, pois o sufocamento do amor pela cultura social, pelas convenções
humanas, ou o conflito entre “amor e dever”, tão notório na ópera, são
ponto de partida de uma variedade quase infinita de situações de conflito
– tão infinita quanto os devaneios eróticos dos seres humanos. [grifo
nosso]. (1996 [1905], p. 295)

Freud deixa clara a sua percepção dos três cérebros macleanianos, a nosso
ver, quando refere no trecho acima: a luta na alma (mente) do herói, o sofrimento, as
tragédias do amor (emocional), o conflito entre amor e dever (lógico-racional, da
cultura e convenções), os devaneios eróticos (reptilianos e sexuais).
Freud (1996 [1905] apud FRANÇA, 2014, p. 275) lembra que: a “luta que
provoca o sofrimento é travada na própria mente do herói” (ele utiliza o termo
“mente” em lugar de “alma”, com base em outra tradução das obras freudianas). De
fato. E esta é uma afirmação muito relevante para nosso estudo.
França (2014, p. 275) escreve que essa é uma “luta entre impulsos, desejos,
valores sociais internalizados, culpa, renúncia e prazer”. Desse drama psicológico
98

não se pode fugir ou esquivar e o desfecho só se dá pela “renúncia de um dos


impulsos de desejo”, não pela destruição de outro herói ou instituição, como
escreveu Freud (no trecho que transcrevemos acima).
Renúncia a impulsos de desejo. Interessante expressão.
Freud salienta que o “circo pega fogo” quando dois impulsos estão em
conflito, sendo um deles inconsciente. (FREUD, 1996 [1905] apud FRANÇA,
2014, p. 275).
Antes da morte de seu pai (e de aparecer o seu fantasma), Hamlet tinha vida
psicológica equilibrada (algo estava recalcado). O abalo faz emergirem impulsos
inconscientes. O herói fica no limite da neurose (e o espectador comum nele se
reconhece). Para Freud, todos somos neuróticos (com angústias, impulsos
recalcados, sublimação de desejos). (FRANÇA, 2014, p. 275-276).
Todos temos triune brain.
Em “O tema dos três escrínios” (1996 [1913]), Freud passeia por “Cinderela”,
“Afrodite” e “Psique” e trata sobre a relação do homem com a morte, presente
nesses três casos.
Freud (1996 [1913] apud FRANÇA, 2014) destaca as três inevitáveis
relações do homem com a mulher: “A mulher que o dá à luz, a mulher que é a sua
companheira e a mulher que o destrói”.
Poderíamos alterar a interpretação dessa tríade para, respectivamente, a
mãe amorosa, a companheira (e fêmea sexualizada), e a sabedoria que o
desnaturaliza (destrói)? Novamente, mamífero, réptil, neocórtex. Seria a psicanálise
(feminina e uma) representante da sabedoria, que desnaturaliza o homem?
Freud (1996 [1919] apud FRANÇA, 2014, p. 276) trata em, “O estranho”,
sobre o fenômeno que pode envolver “um objeto novo que suscita familiaridade” (o
conhecido galicismo déjà vu), ao interpretar que nesse caso algum elemento (desse
mesmo objeto novo), “de forma muito sutil, remete nosso inconsciente a uma
sensação, desejo ou terror que anteriormente vivenciamos”.
Perguntamos: será, o déjà vu, a sensação de reencontrarmos algo (alguém)
que já tenha sido conhecido pelo (do) sistema réptil-afetivo (nas palavras de
Villeneuve, 2016)? Informação de prévio conhecimento desse sistema mais
primitivo, à qual, somente no momento “atual”, o sistema lógico-racional obteve
acesso pela primeira vez? Pode ser daí a impressão de familiaridade com o
99

“estranho”. Eis aí, outra conexão preciosa entre a interpretação psicanalítica e o


triune brain.
Essa relação abordada no parágrafo anterior pode estar na origem da
explicação de nossas ideias religiosas sobre a existência de vidas passadas que de
fato existiram, talvez ligadas às fases do desenvolvimento infantil desses três
cérebros unidos (e seria então um fenômeno normal da constituição mental
humana).
A sensação do déjà vú pode estar relacionada também a filmes assistidos
(desenhos animados ou não) em idades precoces e mesmo na adolescência, às
relações com os pais e cuidadores substitutos imediatos, com colegas de infância e
de escola primária. Podem estar registradas imagens do tipo imprint (no mesmo
sentido do termo utilizado pelo zoólogo e médico austríaco Konrad Lorenz: “o
imprinting jamais é esquecido”, em seus “padrões de ação fixa”), e podem também
ter ligação com o abuso de drogas na juventude (na infância ou mesmo na idade
adulta). (LORENZ apud COLLIN et. al., 2012, p. 77).
O leitor experimentaria na leitura das obras dos escritores geniais um
processo de identificação e catarse, daí a sua importância. (FRANÇA, 2014).
França (2014, p. 278) também refere que Freud equiparava a criação
literária a uma brincadeira infantil, em “Escritores criativos e devaneios” (1996
[1907]). Concordamos, pois esses gênios da pena acessam um mundo inconsciente
para o adulto: o sistema réptil-afetivo, ainda em formação nas crianças (como
pudemos aprender com Villeneuve, 2016).
O escritor cria um mundo próprio, principalmente nos contos fabulosos:

O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de
fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande
quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre
o mesmo e a realidade. A linguagem preservou essa relação entre o
brincar infantil e a criação poética. [grifo nosso]. (FREUD, 1996 [1907]),
p. 135-136).

Sim, a linguagem instintivo-afetiva parece ter sido preservada também nas


estruturas físicas cerebrais.
Interessava a Freud, nos escritores criativos, o estudo das fantasias. Ele
pretendia preencher “as lacunas referentes às ausências, obscuridades ou
enigmatismo das motivações dos personagens” ficcionais com seus conceitos
psicanalíticos. Para França (2014, p. 280), a arte permite “tocar, trazer à tona e
100

possibilita ao leitor experienciar sem riscos psicológicos seus desejos inconscientes,


insuportáveis e recalcados”.
A psicoterapia e a psicanálise produzem resultados semelhantes a esse, por
outros caminhos (mais ligados ao racional). Fez excelente trabalho o Doutor Freud.
Entendemos que a interface da psicanálise com o triune brain ajuda a esclarecer
ainda mais o ser humano sobre os seus conflitos internos – inclusive para o
entendimento dos leigos (e não apenas de uma parcela intelectualmente privilegiada
da sociedade humana que tem acesso às comumente complexas teorias sobre a
mente do Homo Sapiens).
A obra de Freud está repleta de excertos poéticos que são valiosíssimos
repositórios de indícios ilustrativos de sua teoria e da teoria do cérebro triúnico.
Quando voltamos nossa atenção para o mundo paralelo dos contos de fadas
e da literatura infantil essas recorrências ficam ainda mais fortalecidas, conforme
podemos verificar nas articulações teóricas que seguem.
Como escrevem Oliveira et. al. (2014), em seu texto “Oficinas de contação
de histórias na Casa dos Cata-Ventos”, os contos estão na área das experiências
transicionais (em um espaço de imaginação e simbolização). O brincar e a narração
de histórias são um dispositivo clínico, com potencial de cura, que dá vazão às
tensões da realidade interna e externa da criança.
Citam Bettelheim (1980 apud OLIVEIRA et. al., 2014, p. 140), para o qual os
contos76 tem êxito na ajuda às crianças “de um modo inconsciente, na elaboração
dos seus conflitos internos, na relação com o mundo externo, ao oferecer exemplos
de resoluções para dificuldades angustiantes.”
Citam Winnicott (1975 apud OLIVEIRA et. al., 2014, p. 141), em cuja visão
“existe na origem humana um impulso vital para o desenvolvimento, um impulso
inato ao indivíduo para a atividade” (impulso esse que é fonte da agressividade
primária)77. O espaço transicional seria aquele para “a emergência do sujeito, na
interação do indivíduo com o ambiente humano e simbólico”. Nele, a criança re-cria
suas narrativas. Um instinto agressivo pode, nesse espaço, ser ressignificado e sua
expressão pode abandonar o sentido destrutivo. São novos modos, criativos e
lúdicos, de continuar produzindo desejo, com vazão às tensões criadas entre a
realidade interna e externa da criança.

76 Referência ao livro de BETTELHEIM, B. A psicanálise nos contos de fadas. (1980).


77 Referência à obra de WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. (1975).
101

Essa é uma forma, de fato, de terapia para os conflitos internos do triune


brain (que no caso infantil está em formação, como ensina Villeneuve, 2016). Ajuda
a reelaborar sofrimentos e dores, cria opções relacionais, produz gestos (OLIVEIRA
et. al., 2014) – durante esse período conturbado de transição do réptil primitivo para
o mamífero emocional e deste para o lógico racional, adulto (e maduro, quando
consegue essa evolução).
Por fim, na intersecção dos campos da literatura, da psicanálise e do triune
brain, parece-nos interessante ainda comentarmos sobre os contos algumas
passagens pinçadas do “Capítulo 10 – Fantasia e sonho no País das Maravilhas” do
livro “A psicanálise na Terra do Nunca”, escrito por Mário e Diana Corso (2011),
casal de psicanalistas gaúchos. Certas histórias, como a de “Alice no País das
Maravilhas”, de Lewis Carroll, têm a estrutura de um sonho. Há nelas sabedoria,
maluquice e patologias psíquicas, enigmas em cenas sociais e domésticas que
precisam ser decifrados. A linguagem infantil tem um lógica própria que alguns
adultos esquecem, mas Carroll nos devolve a conexão com essa “língua arcaica que
ele nunca [deixou] de praticar”. O lado obscuro de nossa relação com a infância nos
é revelado em imagens e narrativas (agressividade, desejos menos castos). Há
jogos de linguagem, puerilidade, fantasias oníricas. Uma forma de expressão
esquecida (pelos adultos). São histórias que não contêm intenções morais e
pedagógicas e por isso mesmo impactariam mais – segundo os autores.
Conexão com essa língua arcaica. Linguagem infantil, estrutura dos sonhos.
Jogos de linguagem, fantasias, desejos menos castos. Tem uma lógica própria.
Nesse capítulo de seu livro, Corso e Corso (2011, p. 245-261) explicam que
“focada com a lente infantil”, a vida dos adultos se parece com a do Coelho Branco,
“que corre atrás de objetivos ridículos, a mando de uma rainha ensandecida”. Na
história de Carroll e em nossas vidas reais, nossas determinações inconscientes é
que ditam uma lógica estranha e semelhante à dos sonhos, pois as escolhas de
nossas vidas e o nosso modo de ser são influenciados diretamente pelo
inconsciente (fobias, preconceitos, dificuldades bobas, compulsões, desejos), e por
isso: “Nossa mente é similar ao País das Maravilhas: um território imprevisível,
paradoxal”.
Estão com a razão, Corso e Corso (2011). Nossa mente conflitante (ou
triconflitante), gera um mundo conturbado e confuso para a visão das crianças (e
para o triune brain também em formação na mente das crianças), o que gera
102

angústia nelas; e em todos nós, humanos. No mundo de Alice, todos querem falar,
poucos escutam. No nosso também.
A linguagem e a lógica infantis utilizadas por Carroll e pelos outros mestres
da literatura infantil nos parecem muitos similares às do sistema instintivo-afetivo (ou
do inconsciente).
Nessas fantasias, tramas e sonhos das histórias infantis: “O timão está nas
mãos de determinações inconscientes.” O sonho, em certas ocasiões, pode ser uma
saída de emergência, “para aliviar-se da opressão do clima de pesadelo”. (CORSO,
2011, p. 245-261).
Outro autor que escreveu sobre os contos de fadas, Tolkien, relata que “na
fantasia existem vontades e poderes que não dependem das mentes e intenções
dos homens”. Ele pensa que é bom “deixar aberto um canal para se crer que em
outro lugar, em outra época” seja possível acessar as criaturas fantásticas, dragões
e bruxas, territórios encantados. (CORSO, 2011, p. 245-261).
Verdade. O mundo adulto tenta colocar uma venda nos olhos do sistema
réptil-emocional e viver somente nos domínios do lógico-racional. Isso gera muitos
sintomas.
O ser humano precisa viver em sonhos o acesso aos conteúdos delirantes
que nos visitam – com a garantia de que são situações inverídicas, falaciosas e
delimitadas. Nossa mente racional resiste à fantasia em outras formas. (CORSO,
2011, p. 245-261).
A psicanálise sabe que a lógica dos sonhos é de difícil acesso e que eles
têm uma tradução, que eles são “deformações, realizadas pela censura, de tramas
organizadas a partir de nossos desejos e de nossos traumas”. A psicanálise, através
dos sonhos vai (por um atalho direto ao inconsciente) ao cerne dos problemas que
atormentam o ser humano. (CORSO, 2011, p. 245-261).
Da mesma forma que a arte e a fantasia, o sonho permite contato com a
loucura, mesmo para quem não padece de quadros psíquicos graves, em
experiências nas quais se perde o controle consciente e racional. Os conteúdos
inconscientes são inaceitáveis para o pensamento racional e se expressam por meio
de subterfúgios. Com o portal aberto ao mundo onírico, por meio da ficção e dos
sonhos, das fantasias pessoais e das alheias, temos recursos para conhecer nossos
desejos e fazer algo com nossas motivações inconscientes. (CORSO, 2011, p. 245-
261).
103

A questão está nesse “fazer algo” com nossas motivações inconscientes.


A vocação mais íntima da psicanálise é a de interrogar os desejos dos
homens, ainda antes de ser uma ciência que lida com o sofrimento humano e com
sintomas indesejáveis que inviabilizam a vida das pessoas (parcial ou totalmente).
Corso e Corso (2011, p. 245-261) nos reapresentam uma questão que já
conhecemos desde o início deste trabalho de conclusão do curso de psicologia: “O
que queremos afinal?”.
O que queremos afinal? Nós, os humanos?
Ou, na forma que escrevemos o problema de pesquisa para este trabalho,
ampliando a centenária questão freudiana, “Afinal, o que querem as mulheres”
(supostamente ainda não respondida pela psicanálise): “Afinal, o que querem os
humanos?”.
Encontramos um livro de Serge André, cujo título é “O que quer uma
mulher?”, porém o seu conteúdo é mais voltado para a explicação lacaniana
puramente sexualizada da fêmea humana (da mulher). Assim, como Freud parece
ter objetivado inicialmente sua pergunta, “Afinal, o que querem as mulheres?”, de
fato, porque considerava a vida sexual delas um continente obscuro. O próprio
Sigmund foi um pouco além, porque declarou não compreender a alma feminina. A
vida amorosa da mulher estaria envolta em uma obscuridade ainda não penetrável.
(ANDRÉ, 1998).
Nesse livro, o autor quer saber “o que significa ‘ser uma mulher’?” [grifo
nosso]. (ANDRÉ, 1998, p. 10). Sua investigação parte para um rumo bem diferente
da nossa neste trabalho de conclusão. Permanece, portanto, a preocupação muito
intensa freudiana com a diferença sexual anatômica entre os sexos, tanto no
pensamento de Lacan, quanto no de André. E homens e mulheres tem muito mais
semelhanças do que diferenças (que, obviamente, também existem e que precisam
ser consideradas em estudos específicos).
Serge segue a linha psicanalítica lacaniana e volta-se unicamente ao estudo
da feminilidade, sendo esse o seu foco ao analisar essa proposição freudiana por
meio de pressupostos mais baseados no pensamento de Jacques Marie Émile
Lacan, tais como: “a psicanálise não permite saber tudo, pois o inconsciente não diz
tudo”, “a mulher não existe”, “não há relação sexual”, “o inconsciente é estruturado
como uma linguagem”, entre outras noções gerais sobre a histeria, a libido, o Édipo
feminino, a bissexualidade, etc. Para ele, a “feminilidade não é um ser, mas um se
104

tornar”. (ANDRÉ, 1998). Livro interessante para a compreensão mais específica da


sexualidade de uma mulher, então, como prefere o autor, em lugar da sexualidade
das mulheres.
Ocorre que nossa pesquisa dessa questão deixa de lado a pura
sexualização da mulher, que parece colocá-la como um ser misterioso e
incompreensível aos olhos de tantos pensadores, para apresentar a teoria do
cérebro triúnico, com base na questão adaptada para o “todo” conflituoso,
incongruente e incoerente dos seres humanos de ambos os sexos. O homem
também não parece saber o que quer, não apenas sexualmente, mas também em
várias outras áreas da sua breve vida.
Corso e Corso (2011) perguntam ainda:

Quais os nossos anseios mais secretos e íntimos? O que descobrimos é


que nem sempre queremos saber deles, pois incluem conteúdos nada
nobres, pensamentos inadequados. Por esta razão, não há contradição
entre o sonho ser uma realização de nossos desejos e termos pesadelos:
justamente, tememos muitos de nossos desejos, cuja existência é um
pesadelo para nós. [grifo nosso]. (CORSO, 2011, p. 245-261).

Nesse parágrafo fica claro para nós o que a psicanálise (ao menos
lacaniana, cuja doutrina permeia a obra desses autores) entende como desejo:
anseios secretos e íntimos, de conteúdos nada nobres, pensamentos inadequados.
Nos parecem atividade mental típica do sistema réptil-afetivo villeneuviano.
Segundo os autores, seguimos (por vivermos num mundo “positivista” de
poucas relações com nossos sonhos) “não querendo saber de certas partes de nós
mesmos”, que só se abrigam nos sonhos (que por isso “podem ser ao mesmo tempo
íntimos e sinistros”). (CORSO, 2011, p. 245-261).
Certas partes de nós mesmos. Sonhos íntimos e sinistros.
E Corso e Corso não para por aí:

Ocultamos de nós mesmos nossas paixões homicidas, as taras


sexuais, as ambições egoístas e podemos nos acreditar como bons,
altruístas, piedosos e sexualmente regrados. O esquecimento do sonho,
relegando-o a um lugar menor, é a tradução do exílio de nossa parte mais
obscura, assim como da covardia para assumir nossos desejos. E,
ainda, nos devolve uma imagem de integridade ilusória: escondemos
nossas fissuras, nossas divisões psíquicas, ficamos em uma posição
mais confortável para nos encaixarmos no etos individualista reinante. [grifo
nosso]. (CORSO, 2011, p. 245-261).
105

Então, o perigo está, repetimos, em certas interpretações da psicanálise


(como diria Freud, da “psicanálise tendenciosa”) insistirem em prescrever a livre
vazão desses “desejos”, que nos parecem ter muito a ver com a agenda do reptilian
brian, ainda mais do que com a do mammalian brain: “paixões homicidas, taras
sexuais, ambições egoístas, agressividade contida”. Segundo Corso e Corso (2011,
p. 245-261), somos covardes para assumirmos os “desejos” de nossa parte mais
obscura e exilada nos sonhos.
Há algo mais individualista (a palavra certa seria egoísta, porque o
individualismo é constitutivo do humano) do que essa conduta primitiva pautada
pelos anseios e desejos do cérebro instintivo, físico, ancestral e animalesco?
De nossa ótica, “iluminada” pela teoria do cérebro tríunico (e pela psicanálise
de versão freudiana não tendenciosa), pensamos que podemos ser e somos ambas
as coisas (egoístas e altruístas), talvez as três ao mesmo tempo: reptilianos,
emocionais e racionais (possivelmente espirituais).
Um dos caminhos alternativos à livre vazão dos “desejos” (cuja definição é
sempre distorcida e vai-se alterando metonimicamente, conforme os diferentes
autores) pode ser a psicoeducação e a integração desses centros de comando
conflitantes.
Vivê-los em sonhos é outra opção, confessar tais desejos na sessão
psicanalítica, outra. Aliás, já fizemos em nosso “Relatório final de estágio básico em
psicologia” (2016) uma associação entre a técnica da escuta psicanalítica e a escuta
do sacramento da “confissão” da religião católica. Qual será a mais antiga? Será
uma ideia plágio da outra?
Embora excelente o texto do casal Mário e Diana Corso (2011), ele perde
em coerência, qualidade e honestidade intelectual quando envereda pelo caminho
(de que já tratamos neste trabalho) do ativismo e da ideologia, ou seja, quando
passa a falar de “adultos militando” contra o mundo mágico para “erradicar a
imaginação” da cabeça das crianças; das posições religiosas que somente aceitam
a mitologia religiosa da criação divina; dos que consideram a fantasia prejudicial ao
desenvolvimento sadio da criança; da extrema pobreza que impediria o acesso à
criatividade; e da “coragem” (de Alice) para romper com o papel feminino
convencional que lhe “era reservado”.
As críticas à fantasia excessiva estão mesmo nessas questões que o casal
de psicanalistas gaúcho suscita, ou na reclamação cotidiana de muitos pais e
106

professores sobre o conteúdo violento, sexualizado e ideológico de muitos desenhos


animados, jogos e histórias infantis que estimulam (instigam mesmo) os nossos
desejos – vamos chamá-los assim, autorizados pelo texto dos próprios autores
Corso e Corso – mais conectados aos nossos cérebros mais primitivos? Reconhecer
a existência de uma instância inconsciente não significa que somente por meio do
estímulo a essas imagens e narrativas mais “exuberantes” é que os conflitos
internos das crianças – e dos adultos – serão equacionados, ressignificados. Há
outros meios.
Corso e Corso (2011, p. 245-261) ainda falam de “pessoas assim,
completamente alheias à fantasia”, prováveis vítimas da proibição dos pais ou de um
sistema educacional, desestimulados a fantasiar, com a imaginação privada dos
mundos mágicos, “contentando-se com raciocínios sobre as coisas práticas,
reduzindo-se a pensar sobre os fatos ocorridos e comprovados”. Seriam, segundo a
ótica do casal de psicanalistas, “exilados da fantasia”, tipos que não procuram a
ficção entre os seus produtos culturais, pois se reduzem “a obras atreladas ao
realismo como documentários, programas científicos”, preferindo enredos “sobre o
que realmente existe ou já ocorreu e assim seguem as premissas do legado
paterno” (sic – como se as mães nada legassem de lógico-racional aos seus
descendentes). Sofreriam com uma subjetividade empobrecida, sem compreender
as “sutilezas” às quais os “aficcionados da fantasia” (nos autorizamos a chamá-los
assim) teriam pleno e irrestrito acesso. Estes últimos é que seriam “emocionalmente
inteligentes”, para os autores de “A psicanálise na Terra do Nunca” (2011).
Se reduzem pelas suas escolhas diferentes? Legado paterno? O materno
não dispõe de um intelecto que possa legar? O que vemos é um legado parental. E
os “viciados em fantasia” não se reduziriam a ilusões e coisas vãs? Para nós, “esses
exilados da fantasia” que gostam de documentários, por exemplo, geralmente são os
humanos que atingiram o ápice da evolução lógico-racional humana (e entre eles
estão, frequentemente, psicólogos, professores, cientistas, psicanalistas, psiquiatras,
mestres e doutores, entre outros intelectuais). Não nos parece que estejam
totalmente desligados da fantasia. Agora, pode ser que suas escolhas de gênero
cultural sejam – esperamos mesmo – mais sofisticadas do que as fantasias que
envolvam taras sexuais, paixões homicidas, ambições egoístas e agressividade em
diferentes modalidades, por exemplo (com exceções, lapsos, atos falhos, sonhos, é
107

claro, pois todos nós, os humanos, temos essas três instâncias freudo-lacan-
macleanianas em nossos encéfalos).
Já escrevemos sobre os quatro arquétipos humanos básicos jungianos
(MOORE, 1993), e pensamos que não há por que darmos a entender que os Magos
e/ou os Poetas (Amantes) – mais relacionados ao lado direito do cérebro – sejam,
pela criatividade, percepção, intuição, observação, introversão, desfrute de prazeres
sensuais, compaixão e empatia que lhes são peculiares, melhores do que os
Guerreiros e Reis – perfis mais relacionados ao lado esquerdo do cérebro. As
pessoas são mesmo diferentes e singulares. Pode ser, isso sim, que às nossas
sociedades ditas modernas (e alvos fáceis de quadrilhas de narcotráfico, prostituição
e corrupção interfronteiras) estejam faltando mais das qualidades destes últimos
dois tipos psicológicos: organização, sensatez, racionalidade, estabilização da
emoção caótica e dos comportamentos descontrolados, pensamento realista,
equilíbrio, integridade, discernimento, ordem, treinamento e estudo dedicado,
lucidez, senso de dever, pensamento positivo, coragem, controle da mente e do
corpo, compromisso, lealdade.
Falamos em equilíbrio entre centros cerebrais desequilibrados.
O problema está na não integração desses perfis psicológicos na
personalidade e na sociedade humanas (no desequilíbrio em favor de uns e outros
desses caracteres). É possível desenvolver uma personalidade equilibrada que
reúna habilidades do Rei, Guerreiro, Mago, Amante em um só indivíduo. Isso exige
autoconhecimento e muito trabalho psicológico.
Respeitamos a importância da ficção, da psicanálise e da literatura, como já
deixamos claro em parágrafos anteriores, sabemos que há pessoas que preferem
viver mais no mundo prático. Concordamos com os autores, quando explicam que a
ficção ajuda a simularmos vivências e emoções e a aprendermos com a experiência
alheia; que as histórias imaginadas potencializam as aventuras, os lugares e as
personagens com quem é possível travar contato; e que a “fantasia é (...) a
oportunidade de reviver um modo antigo de operar”.
A experiência com a fantasia é importante. O problema está em que tipo de
fantasia e se vai ou não haver estímulos ao seu desenlace nem sempre saudável e
construtivo (individual e coletivamente). Aquela fantasia das imagens subliminares
(sexuais, violentas, competitivas) que estão sendo inseridas atualmente, sem prévia
consulta, nas mentes dos filhos da humanidade? Qual dos três cérebros iremos
108

privilegiar? As imagens e os desejos dos cérebros mais primitivos, comprometidos


com estágios (animalescos) anteriores à evolução humana sobre a Terra? Os
desejos do cérebro reptiliano e do emocional?
Ou desejamos ter – na condição de humanos – o cérebro lógico-racional
(neocórtex) a cavaleiro desses centros de comando que Platão qualificou como
concupiscente e irascível (apoiado por Freud e por Koestler nesse raciocínio),
integrando simultaneamente àquele o mundo fantástico destes?
Privados da ficção, desenvolvemos patologias, temos menos empatia e
menos sensibilidade para antecipar o que o outro pensa (CORSO, 2011, p. 245-
261). Mas o excesso de “ficção” (em Ipads e celulares, nos desenhos com duplo
sentido, histórias com excesso de violência implícita ou explícita, nos cadernos
escolares repletos de textos com viés ideológico-ativista) também gera patologias,
por vezes, mais sérias, como a psicose – pela ultrapassagem da borda da realidade,
por sonhar demais (visão crítica, essa, que é classificada pelos autores como “senso
comum”, pois para eles, não há relação entre patologias e “um excesso dos recursos
da imaginação”).
Queremos crianças alienadas entre o Real e o Imaginário? Entre o réptil e o
emocional? Entre o Id e o Ego?
Às vezes é bom retornarmos às antigas leituras de livros e enciclopédias que
foram sendo substituídos por dispositivos para uso em microcomputadores e cujas
informações de cunho didático e histórico vem sofrendo suspeitas “releituras” de
cunho ideológico-ativista, em especial de escritores contemporâneos brasileiros
comprometidos com objetivos muitas vezes político-partidários, inclusive.
Essas questionáveis influências estão por toda parte, nos bancos
universitários, no comércio, na indústria, na política, nas casas noturnas e,
lamentavelmente, inclusive nas pesquisas científicas (cujas conclusões são
compradas no interesse do capital ou adulteradas ao sabor político de
pseudocientistas, detentores de suspeitos títulos de pós-graduação, ou não).
Pensamos que, em geral, essas produções literárias (assim como as
pesquisas científicas em geral) guardavam, até as décadas de 70 ou 80, mais
legitimidade e fidelidade à realidade da condição humana, que, segundo o Doutor
Flávio Gikovate, infelizmente mudou muito pouco em termos de evolução e de
valores desde os grandes filósofos da antiguidade grega e romana (GIKOVATE,
2006 [1998], p. 219-220). Desenvolvemos muitas tecnologias novas, porém a alma
109

humana segue limitada praticamente aos avanços que foram obtidos pelos grandes
pensadores de priscas eras. Infelizmente.
Por sinal, nessa mesma passagem de “Ensaios sobre o amor e a solidão”
em que faz menção à antiguidade grega, Gikovate escreve que somos “criaturas
contraditórias, pressionadas por duas tendências antagônicas de intensidade igual”,
o que torna a aventura de viver não tão fácil assim (uma nos arrasta no sentido da
individualidade e outra no sentido da integração). Isso lhe parece, no entanto,
estimulante para a busca do conhecimento: com a inteligência, resolvemos
problemas. Os problemas (conflitos?) gerados no interior de um ser “fracionado em
dois” e “puxado em duas direções antagônicas” são quase insolúveis e servem de
eterno entretenimento para essa mesma mente (GIKOVATE, 2006 [1998], p. 219).
Mente essa que, pensamos com MacLean, é a geradora dos próprios
conflitos internos apontados por Gikovate (já que desde a origem desenvolve-se
sobre um triunvirato ou triarquia intracerebral).
Devido a essa mesma inquietação definitiva, o ser humano esforça-se para
entender e dominar o mundo físico que o circunda, por meio de sua invenção: as
ciências da natureza. Entender a nós mesmos já é mais complicado. Estamos nesse
aspecto ainda mais próximos de nossas antepassados: não avançamos em
evolução interior e em nossa subjetividade, embora os avanços técnicos e domínio
do habitat que obtivemos. (GIKOVATE, 2006 [1998], p. 219).

É perfeitamente possível conceber que fomos capazes de grandes avanços


tecnológicos apesar de nossa mentalidade e de nossos dilemas ainda
serem muito parecidos com os dos antigos gregos e romanos.

Não há dúvida de que o autoconhecimento é uma empreitada muito mais


difícil do que o ato de conhecer o meio externo que nos cerca. (GIKOVATE,
2006 [1998], p. 219-220).

Assim, em respeito a teorias sólidas e registradas em enciclopédia mais


antiga, fomos buscar suplementos teóricos na Enciclopédia Prática Jackson (que
data de 1963) sobre a “A fuga da realidade e o consolo da imaginação” (que
encontra-se sob o verbete “psicologia”), para embasarmos em parte nosso raciocínio
antes exposto.
A “fabricação de um mundo interior” é uma das formas de evitação do
sofrimento gerado pelas renúncias e obrigações limitantes, requeridas pela vida
social. Viver de ilusões (ou representações) é, assim, ter um Eu cercado das
110

próprias criações fantásticas. Há uma cinematografia representada internamente


para nós somente na tela de nossa fantasia. Hipóteses e conceitos explicam com
dificuldade a sutilidade e complexidade de nossas funções psíquicas. É um “sonhar
desperto”, ou chamado depreciativamente “a louca casa”, um paraíso excelso e
infinito cujo nome é “arte”, cuja atividade reduz o sofrimento. No “vale de lágrimas”
em que vivemos, criar, com a fantasia a rédeas soltas (pelas técnicas pictórica,
musical, escultórica, literária), é um grato prazer. (ENCICLOPÉDIA PRÁTICA
JACKSON, 1963, v. XI, p. 388-389).
Sob o subtítulo “O perigo da aterragem e do “viver nas nuvens”, prossegue o
texto enciclopédico, no seguinte sentido:

“Atrofiar” a imaginação das crianças prendendo-as à “dura realidade” é mau.


No entanto, mais perigoso será, talvez, abusar das histórias, mitos, fábulas,
passes mágicos e ficções, criando um estado de “artificialismo”, em muitos
casos tão exagerado que, paradoxalmente dificulta, em vez de facilitar, o
ajuste pessoal. Com efeito, acostumadas a mover-se em um mundo sem
entraves, onde dominam seu antojo, tais crianças não toleram o esforço do
trabalho, pois sob o sopro da vontade imaginativa, todos os obstáculos se
desvanecem. Diante de uma situação desagradável reagem encerrando-se
numa “torre de marfim”, em vez de procurarem qualquer solução eficaz.
Outras vezes, procuram um esconderijo ou afundam-se nos lençóis, para
maior comodidade. E assim como quem voa tem medo de aterrar, quem
“voa com a imaginação tem também medo de “esborrachar o nariz contra a
realidade”. Não se estranhe por isso sua decisão de viver entre as nuvens
da sua fantasia. (ENCICLOPÉDIA PRÁTICA JACKSON, 1963, v. XI, p. 389).

Em trecho de profunda sabedoria, a encliclopédia segue explicando que o


perigo maior surge, portanto, do isolamento social, da condição de estranho ou
alienus (alheio) pela qual passa a ser tratado, em direção ao rótulo de alienado (que
tem mais a ver com a perda do contato com a realidade do que com a perda da
razão). Ocorre uma dissociação que pode levar à incompatibilidade de convivência
entre esse individuo e o grupo humano que o rodeia. Antigamente, tais pessoas
recebiam a depreciativa alcunha de ‘lunáticos” (habitantes da Lua) e eram
destinados aos manicômios. Ou eram vistos como possuídos por maus espíritos e
queimados em fogueiras. Em conclusão, a falta de imaginação é penosa, mas seu
excesso de carga é perigoso, uma vez que: “a imaginação é uma ponte estendida
entre a Razão e a Loucura.” (ENCICLOPÉDIA PRÁTICA JACKSON, 1963, v. XI, p.
389).
A imaginação é uma ponte entre a razão e a loucura.
111

Excelente material descoberto nessa pesquisa arqueológica sobre o triune


brain no texto dessa enciclopédia de 1963. Sim, o Imaginário de Lacan pode ser
uma ponte entre o Simbólico e o Real. O Ego freudiano pode ser uma ponte entre o
Superego e o Id. O cérebro emocional-mamífero é uma ponte entre o lógico-racional
e o instintivo-reptiliano-primitivo-afetivo. Talvez.
Na sequência da coluna vertebral e do cerebelo existem a ponte e o bulbo
raquidiano (BEAR, 2002; LENT, 2001).
A fantasia, pensamos, é essencial ao diálogo com (e entre) essas instâncias
primitivas de que todos somos constituídos e das quais são provenientes (grande
parte de) nossos conflitos internos.
De fato, não devemos dispensar “uma ponte” (como também escrevem os
autores das neurociências: ponte e bulbo raquidiano) com um estado de espírito
infantil, dada nossa condição de desamparo, na dimensão do espaço de repouso,
segundo Winnicott (1990) – que via benefícios no acesso à religião, ao pensamento
mágico e à arte. (WINNICOTT apud CORSO, 2011, p. 245-261).
Diana e Mário Corso (2011, p. 245-261) escrevem:

É preciso reviver e funcionar com sistemas de pensamento que já seriam


superados nos adultos para encontrar e criar a fantasia necessária. Com ela
conseguimos lidar com tudo aquilo que habita terrenos pouco delimitados,
como o que os outros nos dizem sem palavras e o que nossos desejos
imiscuem na vida cotidiana. Até mesmo a esperança depende da fantasia
para existir, pois ela é tecida de irrealidade. Para percorrer terrenos
pantanosos, onde as bússolas não funcionam, não existe melhor transporte
do que a fantasia.

Para concluirmos estes comentários sobre o precioso trabalho do casal


Corso e Corso (2011), registramos suas conclusões desse texto, no sentido de que
nós, os adultos, não dependemos somente de memórias infantis (Freud) que são
meros “farrapos de acontecimentos” (entre dúvidas e projeções retroativas de
fantasias), mas podemos nos conectar “a conteúdos inconscientes que estão
sempre disponíveis, sobrevivem ocultos no adulto” – somente contatáveis por meio
dos mecanismos conhecidos das crianças: a brincadeira, a fantasia, o portal do
sonho. Para eles, Carroll falava e compreendia bem essa linguagem (que traduzia
em contos), percebia esse mundo maluco (compartilhado com Alice) representado
pela lógica dos sonhos. (p. 245-261).
Réptil: software básico – emocional, mamífero: software intermediário, ponte
e portal imaginário – neomammalian brain: sofisticado software intelectual.
112

Concordamos com essa linguagem fantástica da lógica infantil de acesso ao


inconsciente, pelos motivos já antes exaustivamente expostos neste trabalho sobre
o triune brain in evolution. Há, na mente, outras “formas linguísticas” também.
Conforme o livro “Neurociências – desvendando o sistema nervoso”:

A teoria da psicanálise de Freud baseava-se em duas hipóteses: (1) que


muito da vida mental é inconsciente (além da percepção consciente) e (2)
que as experiências passadas, particularmente as da infância, determinam
como uma pessoa sentirá e responderá durante toda a vida. De acordo
com Freud, o transtorno mental resulta de um conflito de elementos
conscientes e inconscientes da psique. A maneira de resolver este
conflito e tratar o transtorno mental seria ajudar o paciente a desvendar seu
inconsciente. Geralmente estes segredos "sombrios" estão relacionados
com incidentes (como algum molestamento sexual ou abuso físico ou
mental) que ocorreram na infância e foram oprimidos pela consciência.
Uma teoria diferente acerca da personalidade, defendida pelo psicólogo B.
F. Skinner (1904-l990), da Universidade de Harvard, baseia-se na hipótese
de que muitos comportamentos são respostas ao ambiente, aprendidas. O
behaviorismo rejeita a noção de conflitos reprimidos e do inconsciente,
concentrando-se, em vez disso, em comportamentos observáveis e
controlados, pelo ambiente. (BEAR, 2002, p. 677).

Já transcrevemos, no primeiro capítulo, o pensamento da médica pediatra


Villeneuve sobre um “câmbio de paradigma”. Sobre a existência de uma conduta
reativa (defensiva), nascida dos dois primeiro cérebros (impulsiva, automática). E de
outra mais humana (governada pelo córtex cerebral, pelos lobos pré-frontais). A
autora afirma que predomina em nossa sociedade a primeira conduta, a da
competitividade. E que a educação pode mudar isso: pela capacidade de modular
com a razão as respostas do cérebro instintivo-emocional. (VILLENEUVE, 2016).
Ela fala em psicoeducação.
Como já aduzimos antes, talvez não seja uma ideia tão boa o elogio à
chamada “ética da psicanálise” no sentido de darmos livre vazão ao “desejos”
humanos (inconscientes). Descobrimos que os psicanalistas ortodoxos “acreditam
no Inconsciente”78 (e isso aproxima-se muito de uma reverência religiosa; neste
caso, a um sistema neuronal primitivo, voltado à agressividade e ao egoísmo
originais).
O inconsciente de fato existe (como o testemunhamos por seus efeitos e
consequências cognitivas e comportamentais nos humanos), talvez localizado no

78 Conforme resposta fornecida pela professora Mestre Normandia C. G. Castillo, à nossa questão
sobre ela “acreditar ou não em alguma entidade divina ou criadora do Universo”, em aula proferida
em Ijuí, em novembro de 2017, durante a disciplina “Seminário em psicologia e processos clínicos
II”.
113

sistema instintivo-emocional, mas dar livre vazão ao “desejo” é dar livre curso ao
sexo e à pulsão de morte no nível individual e no social, com as desastrosas
consequências que temos acompanhado atualmente.
O “desejo” diferencia-se conceitualmente da “vontade” do indivíduo (mas
esses termos acabam tendo, na prática, um só significado para os leigos e para
alguns profissionais da psicologia). Por outro lado, equilibrar e integrar os instintos
(ou as pulsões), as emoções e a razão pode ter efeitos, inclusive sociais, mais
saudáveis. É o que pensamos.
Kehl ensina que a análise é o novo destino da pulsão (para o sujeito
investigar-se) e que a “ética da psicanálise é a ética da clínica psicanalítica.” (KEHL,
2002, p. 33), como já havíamos mencionado anteriormente.
A ética da psicanálise na concepção lacaniana nada tem a ver com moral
social (não lida com o comportamento, não é prescritiva, é a ética do desejo, lida
mais com atuação – ação – do que com comportamento).
Escreve o professor Doutor Gustavo Héctor Brun, em seu artigo “Real peso
imaginário” (2015), explicando a ideia de sujeito suposto saber e o objetivo da
psicanálise de “não educar, nem curar”, ao tempo em que mostra-se de confissão
lacaniana ortodoxa, pelo vocabulário e posições de seu discurso.

Lembremos que o paciente chega porque sofre, se fosse só por curiosidade


não tardaria em se desiludir. Nesse sentido a Clínica usufrui tanto do
sofrimento como do saber (sempre suposto) sobre esse sofrimento em
particular. Quando um cidadão consulta um dentista, busca um advogado,
um urologista, ou tantas outras profissões, o faz esperando um saber que o
liberte de uma dor, um conflito legítimo, uma ameaça à integridade física,
e geralmente obtém alívio, resoluções, ou tamponam com fármacos e
outros meios, entre anais e fálicos. O que o psicólogo estudou, porém,
diz de conceitos e estruturas psíquicas que não almejam nem educar
nem curar, mas poder escutar. Mesmo que, por um efeito de
ressignificação de sua falta pela intervenção de seu psicólogo, o paciente
ache que aquele sabe de que se trata e constitua um Sujeito Suposto Saber
em quem escuta, este não pretende saber e não pretende dar a úultima
verdade como solução. (BRUN, 2015, p. 76-77).

O “psicólogo” que o Doutor Brun refere no trecho que destacamos, por certo,
é o de formação estrita lacaniana (da escuta) – então, antes de psicólogo seria um
psicanalista lacaniano que não tem a intenção de educar, nem curar o seu paciente.
Por outro lado, pensamos que os conflitos do triune brain são também legítimos,
muito mais do que aqueles que o mundo externo (como o jurídico) nos impõe, e que
requerem a busca de soluções equilibradas.
114

Freud questionou em sua época o pensamento moral vigente (sexualidade


posta desde a infância: linguagem e pulsão). Psicologias foram vistas como
produção da cultura (sendo o inconsciente preexistente, criado pela linguagem). O
sujeito da psicanálise é aquele que a ciência forcluiu. A ética da psicanálise tem a
ver, portanto, com a ética do desejo (que não é desejo de algo). A perda do instinto
ao entrar na linguagem (tema que já abordamos antes neste trabalho) cria o vazio,
em torno do qual se criam significações. Pela fantasia, esse vazio torna-se uma falta
(desamparo, em Freud) e no lugar da falta vêm desejo e lei: os humanos surgem
assim. Para Lacan, desejo só existe como falta, ligada ao vazio. Ele só é abordado
pela escuta (ética) psicanalítica. Os significantes representam esse sujeito dividido.
Escuta das falhas do discurso. A ética do desejo diz que o pecado do homem é não
ceder ao seu desejo (pois isso não traz felicidade, nem vai completar a pessoa). Vai
fazer valer a sua palavra (é ação, passagem de uma posição a outra). Ética da
psicanálise é levar o sujeito a assumir algo de seu desejo (que não é estado de
felicidade). O paciente é deixado com sua questão (o terapeuta não responde à
demanda dele). Dominar o sexual não é escolha consciente, daí vem nossa tentativa
de interditarmos o sexo (com a noção religiosa de pecado, por exemplo). A
psicanálise não incentiva os desejos, mas não vai contra eles (não é moral) –
LACAN, 2008 [1986]79.
Entendemos que Freud “descobriu” o inconsciente, porém jamais nos disse
para venerá-lo, nem para seguirmos agindo de modo inconsciente (ou pelo
Inconsciente comandados) – talvez tenha divulgado suas teorias para ficarmos
alertas sobre a existência de processos intracranianos alheios ao nosso
conhecimento racional e sobre as suas poderosas forças e energias psíquicas
conflitantes.
Freud respeitava a consciência. Basta ver o exemplo (metáfora) do cocheiro
e do cavalo, antes citado, utilizado por Platão, Freud e Koestler.
Essa mesma analogia (utilizada por três autores de épocas e locais
diferentes), faz-nos associar o conflito do cérebro triúnico humano a uma possível
origem para as várias lendas existentes entre tribos muito primitivas sobre os
centauros (espécie fantástica de seres, metade homem metade cavalo), segundo as

79 E também com base em informações fornecidas pela professora Mestre Normandia C. G. Castillo,
em aula proferida em Ijuí, em novembro de 2017, durante o componente curricular “Seminário em
psicologia e processos clínicos II”.
115

quais eles viviam nas montanhas da Tessália em libertinagem e selvageria, até


serem exterminados em luta feroz. (ENCICLOPÉDIA BARSA, 1967, v. 4, p. 190).

Figura 9 – “Animais míticos. CENTAURO. Intelecto versus instinto.”

Fonte: “O livro ilustrado dos símbolos”, de Miranda Bruce-Mitford (2002, p. 28).

Assim está escrito em “O livro ilustrado dos símbolos”:

Com cabeça, torso e braços de homem, sobre um corpo de cavalo, o


centauro combina a natureza instintiva do animal com o juízo e a virtude de
um homem. No mito grego, Quíron, mestre respeitado, era um deles. O
centauro também é um símbolo cristão do homem dilacerado entre o bem
e o mal. [grifo nosso]. (BRUCE-MITFORD, 2002, p. 28).

Nessa ilustração, consta a inscrição na capa do livro supramencionado


sobre a oposição entre razão e instinto (uma perspectiva dualista). Às vezes vemos
teorias que contrapõem razão e emoção. Então, parece-nos que essa imagem
utilizada pela autora de “O livro dos símbolos” (2002) agrega as três instâncias
macleanianas de forma não intencional, pois traz o centauro meio homem (intelecto),
meio cavalo (mamífero) segurando na sua mão direita um arco de guerra e caça e
na sua mão esquerda uma serpente (instinto primitivo reptiliano e agressivo). O
cérebro lógico-racional aparece, então, no centauro, no domínio (a cavaleiro) dos
instintos e das emoções.
Reiteramos que Sigmund Freud é claro em seu recado:

(...) a mente não é uma coisa simples; ao contrário, é uma hierarquia de


instâncias superiores e subordinadas, um labirinto de impulsos que se
esforçam, independentemente um do outro, no sentido da ação,
correspondentes à multiplicidade de instintos e de relações com o mundo
externo, muitos dos quais antagônicos e incompatíveis (...) para ter um
funcionamento adequado é necessário que a mais elevada dessas
116

instâncias tenha conhecimento de tudo o que está acontecendo e que sua


vontade penetre em tudo, de modo que possa exercer sua influência. (In:
“Uma dificuldade no caminho da psicanálise”, Sigmund Freud, 1996 [1917],
p. 151).

Como tivemos a oportunidade de ler no primeiro capítulo deste estudo, a


Doutora Velásquez Burgos (2006) explica que o cérebro humano é um órgão que
aprende a partir de quatro perspectivas teóricas diferentes, que não são
excludentes, mas que se integram e se complementam (como acreditamos serem
todas as demais teorias em psicologia):

Las teorías del aprendizaje desde una perspectiva neurocientífica,


constituyen un nuevo paradigma en el ámbito educativo que permite
reflexionar, analizar y explicar el comportamiento del cerebro humano como
un órgano que aprende, desde cuatro perspectivas teóricas diferentes:
Neurociencia o Cerebro Triuno; Cerebro base del aprendizaje; Cerebro
derecho vrs. Cerebro izquierdo; Inteligencias múltiples, que no son teorías
excluyentes, sino que al contrario se integran y complementan. (grifo
nosso). (VELÁSQUEZ BURGOS et. al., 2006).

Investigar é preciso. Evoluir é preciso. Por que motivo uma teoria tem que
“rejeitar” a outra, ou “resistir” a ela? E são tantas e com tantos conceitos úteis!
Integrar é preciso80.

2.3 Os efeitos dessa integração nos adultos

Já abordamos o assunto do “câmbio de paradigma” proposto por Villeneuve


(2016) no primeiro capítulo deste trabalho, relativamente ao âmbito infantil.
A pediatra que escreve com propriedade (também na área da psicologia)
ensina como ajudar nossas crianças desde cedo a lidar com os seus conflitos,
dotando-as de “habilidades socioemocionales que les permitan actuar bajo el
mandato de los lóbulos prefrontales.” (VILLENEUVE, 2016).
Nós, os adultos, podemos também beneficiarmo-nos da integração desses
conhecimentos (como anteriormente mencionamos), porque muitas vezes somos
agressivos indevidamente, nos envolvemos com o perfil cafajeste do sexo oposto
(fêmea visualmente mais atraente ou mais exuberante, macho mais forte ou mais
indiferente) mesmo sabendo racionalmente que é má escolha para relacionamentos
de longo prazo, tememos falar em público, temos “brancos” em testes escolares,

80 Referência ao estilo de escrita do professor Mario Osório Marques, no livro “Escrever é preciso”
(MARQUES, 2001).
117

praticamos bullying, assassinato, maus-tratos, traições, gritamos uns com os outros,


por exemplo, sem sabermos o porquê, como já referimos anteriormente.
Esses simples exemplos de condutas humanas mostram um agir
inconsciente (o modo “piloto automático”). Elas tem origem no cérebro instintivo-
emocional. Ou no réptil e no mamífero inferior que temos dentro de nós. Nosso agir
racional precisa ser acionado. Teria o Homo Sapiens, ainda, acesso a um “modo de
agir espiritual”, reivindicado pelas religiões (e pelos místicos)?
O conflito entre esses três cérebros gera incongruência no agir humano, pois
nosso cérebro é na verdade três cérebros em um: cada qual servindo aos seus
propósitos evolutivos específicos (MACLEAN, 1977). É sabido que eles não se
comunicam muito bem, mas que estão intimamente vinculados entre si: “[...] a
maioria das operações do encéfalo depende de interconexões incrivelmente
precisas entre seus, aproximadamente, 100 bilhões de neurônios.” (BEAR, 2002, p.
705). Os conflitos humanos internos81 são frequentemente desacordos entre “os
desejos” desses três cérebros. (MACLEAN, 1977).
Tendemos a crer que nossa parte pensante está controlando a situação,
porém os cérebros mais arcaicos é que controlam o mais recente para os seus
próprios fins: em geral, sobreviver e procriar, em primeiro plano. E aqui entraria uma
provável ligação com a teoria desenvolvida por outro seguidor de Darwin,
relacionada aos nossos genes, a serviço dos quais estaria o próprio organismo
humano como um todo (“O gene egoísta” – DAWKINS, 2007 [1976]), mas essa é
outra conexão possível de ser feita talvez noutro estudo mais aprofundado.
Em momentos decisivos da vida, situações críticas, aparecem imagens,
emoções, desejos de fazer determinadas coisas – e elas não vêm do cérebro lógico,
na maioria das vezes. Ele pode ser “tomado de assalto” para atingir os objetivos
dessas partes mais anciãs do cérebro do animal humano. Ele planeja, cria
estratégias, com base nesses impulsos ancestrais. Ou pensa que pensa sozinho (e
aí está o inconsciente – sistema instintivo-emocional agindo).
Mais uma vez, podemos considerar o cérebro réptil muito ativo em situações
de disputa territorial, nas atitudes narcísicas em frente aos espelhos, nas crises de
raiva, no desejo de poder e de dominação, na prática do sexo “selvagem” (lutar,
fugir, procriar, “luxuriar”), no comportamento dos políticos corruptos (que não

81 Referência ao livro de Paul Maclean, “The triune brain in conflict” (MACLEAN, 1977).
118

pensam no povo que representam). O cérebro emocional pode ser visto como a
parte de nós humanos que deseja receber e dar amor e afeição e receber e dar
aprovação relativamente a nossos semelhantes (a rejeição é algo muito
desprazeroso e chega a acionar os mesmos centros encefálicos da dor física,
conforme WEIR, 2012). O cérebro pensante, por sua vez, é uma densa rede
neuronal que lida com conceitos abstratos, é objetivo e racional, planeja, utiliza
ferramentas mentais como a matemática e a linguagem mais complexa.
No entanto, nossas poderosas emoções (desencadeadoras de uma química
fortíssima nas sinapses cerebrais e por vezes também decorrentes dessa mesma
química – em círculos vicioso ou virtuoso – por ocasião das respostas aos estímulos
do meio), por exemplo, podem tomar conta desse último cérebro (mais moderno e
racional) e sobrepor ou manipular toda a lógica de nossas mentes, em situações de
crise (principalmente). Idem o réptil desejoso por sexo, por exemplo.
O Doutor Matt Ridley, de Oxford, biólogo investigador, antes de tornar-se
autor de obras premiadas do jornalismo científico (“Genoma”, “The Origins of Virtue”
e “Nature via nurture”), escreve no capítulo oitavo de seu livro “A Rainha de Copas –
O sexo e a evolução da natureza humana”, após muita teorização e utilização
também da psicobiologia animal comparada (etologia), dois parágrafos (um que ele
mesmo classifica como banal, e outro como inflamatório):

Os homens e as mulheres têm corpos diferentes. As diferenças são o


resultado direto da evolução. Os corpos das mulheres desenvolveram-se
para se adaptarem às exigências de gerarem e criarem filhos e para
colherem alimentos vegetais. Os corpos dos homens desenvolveram-se
para se adaptarem às exigências de subirem numa hierarquia masculina,
lutarem pelas mulheres e fornecerem carne a uma família.

Os homens e as mulheres têm mentes diferentes. As diferenças são o


resultado direto da evolução. As mentes das mulheres desenvolveram-se
para se adaptarem às exigências de gerarem e criarem filhos e para
colherem alimentos vegetais. As mentes dos homens desenvolveram-se
para se adaptarem às exigências de subirem numa hierarquia masculina,
lutarem pelas mulheres e fornecerem carne a uma família. (RIDLEY, 2004
[1993], p. 261-262).

Ridley (2004 [1993]) acredita que tais asserções são verdadeiras, pois os
dois capítulos anteriores de sua obra demonstram que, durante longos períodos de
tempo, homens e mulheres enfrentaram diferentes pressões evolutivas, tendo sido
bem sucedidos aqueles indivíduos cujos cérebros produziram comportamentos
adequados para o enfrentamento das dificuldades vivenciadas por cada qual.
119

Homens e mulheres são mais idênticos do que diferentes, porém são diferentes,
conforme as evidências científicas hoje inegáveis.
Essa realidade biológica e milenar do desenvolvimento masculino e feminino
sobre o Planeta continua influenciando as decisões “racionais” tomadas atualmente.
Eis a posição de Paul Ekman, professor americano doutorado em psicologia
clínica e estudioso do inexplorado território da psicologia das emoções:

Em “A linguagem das emoções”, Ekman afirmou que as emoções podem


ser mais fortes do que as pulsões freudianas de sexo, fome e até a
vontade de viver. Por exemplo, a vergonha ou o medo podem sobrepujar a
libido, prejudicando uma vida sexual saudável. Uma tristeza extrema pode
superar a vontade de viver. A força de “trem desgovernado” das
emoções convenceu Ekman de que compreender melhor a questão poderia
ajudar a superar alguns distúrbios mentais. Podemos ser incapazes de
controlar nossas emoções, mas somos capazes de modificar aquilo que as
despertam e o comportamento que provocam. [grifo nosso]. (ECKMANN
apud COLLIN et. al., 2012, p. 197).

Nico Henri Frijda psicólogo clínico holandês distinguiu emoções (forças


motivadoras que nos preparam para agir: fugir/lutar, processos espontâneos e
biológicos que podem ser captados pelos outros) de sentimentos (interpretação das
emoções experimentadas, tem um elemento consciente e podemos ocultá-los).
Para esse pesquisador, “somente raiva, alegria, vergonha, tristeza e medo são
emoções básicas. Segundo ele, o ciúme e a culpa, por exemplo, não tem o mesmo
imperativo biológico”. (FRIJDA apud COLLIN et. al., 2012, p. 325).

O livro pioneiro de Nico Frijda, “The laws of emotion”, investiga a essência e


as regras que regem as emoções. Para o autor, as emoções estão na
encruzilhada entre os processos biológicos e cognitivos. Algumas,
como o medo, são biologicamente herdadas ou inatas e estão presentes
também em outros animais. Outras, porém, surgem como resposta aos
nossos pensamentos e tem, portanto, origem claramente cognitiva. Podem
até ser definidas pela cultura – como é o caso da indignação e da
humilhação. [grifo nosso]. (FRIJDA apud COLLIN et. al., 2012, p. 325).

Importante: as emoções estão na encruzilhada entre os processos biológicos


e cognitivos. Mais um testemunho a favor da teoria do triune brian.
Acionar e treinar o cérebro lógico-racional para ser o dominante entre eles
provavelmente nunca eliminará o inconsciente (e o sistema instintivo-emocional)
totalmente, mas fará um grande bem à humanidade. Inclusive (e principalmente) no
caso dos adultos. Pensamos que a Doutora Villeneuve está certa em sua
120

abordagem. Também os antigos filósofos. Também o Doutor Victor Frankl.


(VILLENEUVE, 2016).
Também o Doutor Freud, em “Sobre o início do tratamento (novas
recomendações sobre a técnica da psicanálise I)”:

A estranha conduta dos pacientes, por serem capazes de combinar um


conhecimento consciente com o desconhecimento, permanece
inexplicável pela chamada psicologia normal. Para a psicanálise,
entretanto, que reconhece a existência do inconsciente, ela não apresenta
dificuldade. O fenômeno que descrevemos, ademais, fornece o melhor
apoio do ângulo da diferenciação topográfica. Os pacientes conhecem
agora a experiência reprimida em seu pensamento consciente, mas falta a
este pensamento qualquer vinculação com o lugar em que a lembrança
reprimida, de uma ou outra maneira, está contida. Nenhuma mudança é
possível até que o processo consciente de pensamento tenha
penetrado até esse lugar e lá superado as resistências da repressão. É
exatamente como se fosse promulgado pelo Ministério da Justiça um
decreto no sentido de que os delitos juvenis fossem tratados de modo
decididamente demente. Enquanto esse decreto não chegar ao
conhecimento dos magistrados locais, ou no caso de eles não pretenderem
obedecê-lo, mas preferirem administrar a justiça segundo suas próprias
luzes, nenhuma mudança pode ocorrer no tratamento de determinados
delinquentes juvenis. Todavia, a bem da completa exatidão, dever-se-ia
acrescentar que a comunicação do material reprimido à consciência do
paciente não fica, entretanto, sem efeito. Ela não produz o resultado
desejado de acabar com os sintomas, mas tem outras consequências.
A princípio, desperta resistências, mas depois, quando estas foram
superadas, estabelece um processo de pensamento no decorrer do qual a
influência esperada da recordação inconsciente acaba por realizar-se. [grifo
nosso]. (FREUD, 1996, [1913] p. 156-157).

E em “Observações sobre o amor transferencial (novas recomendações


sobre a técnica da psicanálise III)”, quando Freud fala sobre (o próprio terapeuta)
dominar os perigosos impulsos primitivos que nos acompanham e sobre a tríplice
batalha que o psicoterapeuta analítico precisa travar (em sua própria mente, contra
as forças que tentam arrastá-lo para abaixo do nível analítico; contra opositores que
criticam a importância que ele dá às “forças instintuais sexuais”; contra as pacientes,
que se opõem de início, mas supervalorizam depois a vida sexual que as domina,
tentando tornar o analista cativo de sua paixão socialmente indomada):

O psicanalista sabe que está trabalhando com forças altamente


explosivas e que precisa avançar com tanto cautela e escrúpulo
quanto um químico. Mas quando foram os químicos proibidos, devido ao
perigo, de manejar substâncias explosivas, que são indispensáveis, por
causa de seus efeitos? É digno de nota que a psicanálise tenha de
conquistar para a própria, de novo, todas as liberdades que há muito tempo
foram concebidas a outras atividades médicas. Certamente não sou
favorável a abandonar os métodos inócuos de tratamento. Para muitos
casos, eles são suficientes e, quando tudo está dito, a sociedade humana
não tem mais uso para o furor sanandi do que para qualquer outro
121

fanatismo. Mas acreditar que as neuroses podem ser vencidas pela


administração de remediozinhos inócuos é subestimar grosseiramente
esses distúrbios, tanto quanto à sua origem quanto à sua importância
prática. Não; na clínica médica sempre haverá lugar para o ‘ferrum’ e
para o ‘ignis’, lado a lado com as ‘medicinas’; e, da mesma maneira,
nunca seremos capazes de passar sem uma psicanálise estritamente
regular e forte, que não tenha medo de manejar os mais perigosos
impulsos mentais e de obter domínio sobre eles, em benefício do
paciente. [grifo nosso]. (FREUD, 1996 [1914], p. 187-188).

Forças altamente explosivas. Métodos inócuos de tratamento (suficientes


para alguns casos, no entanto). Remediozinhos de 1914 que avançaram
tremendamente no último século (além das novas tecnologias revolucionárias).
Outras psicologias que não atentam para o inconsciente. Os efeitos de comunicar o
material reprimido à consciência do paciente. Ter coragem de manejar os mais
perigosos impulsos (químicos) mentais. Químicos. Obter domínio sobre eles (tanto o
analista, quanto, em especial, o próprio paciente, pensamos nós).
E, o mais importante, talvez: o reconhecimento do lugar cativo para
sempre, lado a lado, para as diferentes abordagens (ferrum, ignis e medicinas)
dos conflitos internos dos pacientes (sejam eles vistos como distúrbios, mais ou
menos graves, ou não) – parafraseando Hipócrates em “Aforismas” (citado por Freud
em nota de rodapé da mesma bibliografia acima referida).

Aquelas doenças que os remédios não curam, o ferro (a faca??) cura;


aquelas que o ferro não pode curar, o fogo cura; e aquelas que o fogo não
pode curar devem ser consideradas inteiramente incuráveis. (Aforismos VII,
87, tradução inglesa, 1849, apud FREUD, 1996 [1914], p. 188, nota de
rodapé).

2.4 O exemplo do tratamento das fobias e dos medos

Há um capítulo chamado “Mentes emocionais, mentes racionais – as bases


neurais da emoção e da razão” – no livro de Robert Lent (2001) sobre o cérebro
humano (“Cem bilhões de neurônios”)82. Nele, embora não exista nenhuma
referência à teoria do cérebro triúnico, fica visível o que vem sendo estudado nessa
linha teórica que pretendemos apenas citar neste artigo, com relação às conexões
entre essas funções e locais do cérebro. O mencionado capítulo traz muitas

82 Existe também um livro chamado “A emoção e a regra”, do professor da Università La Sapienza,


de Roma, Domenico De Masi – sobre formas organizacionais (empresas) que conseguiram
conciliar esses aspectos aparentemente díspares, sem abrir mão da eficiência. (DE MASI, 1999).
122

referências bibliográficas e informações sobre as funções dos sistemas nervoso


central e periférico.
Tal texto aborda as emoções humanas, positivas e negativas, o sistema
límbico, o medo e seu circuito, a função hipotalâmica, a raiva e a agressão e seu
circuito, as mentes racionais e o córtex da razão (sendo referido o caso de Phineas
Gage83, que teve a região dos lobos frontais atingida por um cano de metal após
uma explosão e sofreu alterações significativas que ajudaram a identificar as
funções das regiões cerebrais relacionadas à razão LENT (2001). Esse caso
também foi citado no artigo de Villeneuve (2016) que comentamos no primeiro
capítulo deste trabalho.
Cérebros instintivo-emocional e lógico-racional. Ou réptil, emocional e lógico.
Em sua obra audiovisual “Psicoterapia Breve”, o Doutor Flávio Gikovate,
psicoterapeuta e psiquiatra paulista (falecido em Outubro de 2016) fala sobre o
tratamento das fobias, referindo que o medo, por exemplo, é “como aparecem no
cérebro as mudanças do corpo quando o animal sente-se ameaçado”. É a reação
física correspondente (que prepara a luta/fuga animal), diante de uma ameaça ou
estresse do ambiente (eriçar os pelos, alterar a pressão, a respiração e a frequência
cardíaca). “O medo é a contrapartida psíquica dessa reação física ao estresse.”
(GIKOVATE, 2012).
O médico aponta que a área das fobias é aquela em que a psicanálise
enfrenta as maiores dificuldades no tratamento de pacientes. Também é aquela em
que a teoria cognitivo comportamental obtém seus resultados mais visivelmente
promissores (cita os estóicos romanos Epitecto e Marco Aurélio84). (GIKOVATE,
2012).
Interessante pensarmos que a psicanálise direciona-se ao inconsciente
(instintivo?) e que os termos cognitivo e comportamental referem-se,
respectivamente, ao cérebro racional e ao sistema instintivo-emocional. Embora, é
claro, tudo esteja interligado (como sabemos) no intrincadíssimo organismo e
cérebro humanos.

83 O estudo sobre o caso de Phineas Gage é clássico nas neurociências. Foi também abordado por
Oliver Sacks, em seu livro “Um antropólogo em Marte” (SACKS, 2000) e mereceria uma análise
mais detida do ponto de vista do modelo do cérebro triúnico macleaniano (1990 [1970]), também,
caso ainda não tenha sido realizada.
84 De cujo pensamento procuramos trazer um breve extrato neste estudo, mais adiante
(BRAUNSTEIN, 2003).
123

Ele aponta que há medos inatos (incondicionados), do escuro, de trovões,


de leões, de cobras e de aranhas (acompanhando os humanóides há milhares de
anos). Há fobias de situações, de objetos, de animais que não deveriam causar
medo (por serem inofensivos para o ser humano, como é o caso das baratas).
(GIKOVATE, 2012).
Há experiências traumáticas, como pensa ocorrer nas fobias das mulheres
em relação às baratas (medo por imitação das mães, avós). E outros casos, como a
claustrofobia, a agorafobia, o medo de voar, de elevadores, o pânico. (GIKOVATE,
2012).
O supracitado livro de neurociências traz o seguinte trecho sobre as fobias:

As manifestações de ansiedade e estresse são consideradas reações


normais até o ponto – mal definido – em que começam a provocar
sofrimento no indivíduo. Daí em diante ocorrem ansiedade patológica
generalizada e outros distúrbios emocionais, como a síndrome do pânico e
as fobias. [...] As fobias [...] têm uma causa determinada, embora para a
maioria das pessoas elas sejam inócuas: medo extremo de certos objetos,
animais ou situações comuns como insetos e animais domésticos, raios e
relâmpagos, doenças corriqueiras e até mesmo aglomerações em lugares
públicos e ambientes fechados. Em todos esses casos, o sentimento é
acompanhado das manifestações comportamentais e fisiológicas
características do medo, em grande intensidade. (LENT, 2001, p. 727).

Então, o médico e psicoterapeuta fala sobre as opções de tratamento que


constatou terem bom resultado em sua clínica para as fobias. Claro que reconhece a
importância da anamnese (investigar a história de cada paciente, sua infância,
fatores desencadeantes, se a pessoa é mais medrosa do que o habitual, seus
medos inatos). Diz que em alguns humanos os traumas viram fobias, em outros não.
(GIKOVATE, 2012).
Nos casos em que não há necessidade profissional de tratar o medo, ele
entende ser melhor evitar as situações geradoras (como é o caso do medo de altura
por aproximar-se de um beiral de edifício, sendo a pessoa um matemático, por
exemplo). Nos casos a serem tratados, propõe três grandes linhas: a
dessensibilização sistemática, a implosão (em desuso atualmente) e os
antidepressivos combinados com psicoterapia. (GIKOVATE, 2012).
Por que fazemos a inserção dessas informações sobre os medos humanos
aparentemente fora de contexto? Porque podem ajudar-nos a percebermos melhor a
necessidade (premente) da integração das psicologias e das teorias em tela.
124

No caso específico das fobias, por exemplo, a psicologia profunda vai buscar
as causas inconscientes e investigar por longo tempo a história pessoal, infantil e
sexual do paciente (mediante atenta e sempre necessária escuta). Encontra por
certo explicações e motivos para esse medo. Porém, as pessoas procuram hoje,
mais do que na época de Freud, soluções mais rápidas. Desejam resultados mais
rápidos (na cultura do imediatismo contemporânea) e não explicações detalhadas,
mesmo que estas possam permitir a cura definitiva no longo prazo (e não o mero
deslocamento de sintomas, como argumentam os psicanalistas). (GIKOVATE,
2012).
Encontramos, novamente em “Sobre o início do tratamento (novas
recomendações sobre a técnica da psicanálise I)”, comentário freudiano no seguinte
sentido:
Para falar claramente, a psicanálise é sempre questão de longos períodos
de tempo, de meio ano ou de anos inteiros – de períodos maiores do que o
paciente espera. É nosso dever, portanto, dizer-lhe isso antes que ele se
decida finalmente sobre o tratamento.
(...) Abreviar o tratamento analítico é um desejo justificável, e sua
realização, como aprenderemos, está sendo tentada dentro de várias
orientações. Infelizmente, opõe-se-lhe um fator muito importante, a saber, a
lentidão com que se realizam as mudanças profundas na mente – em última
instância, fora de dúvida, a ‘atemporalidade’ de nossos processos
inconscientes. (...) Dividem seus achaques e descrevem alguns como
insuportáveis e outros como secundários, e então dizem: ‘Se apenas o
senhor me aliviasse deste (uma dor de cabeça ou um medo específico, por
exemplo), eu poderia lidar com o outro sozinho, em minha vida normal’.
(FREUD, 1996 [1913], p. 145).

Freud mesmo dizia85 que “às vezes, um charuto é apenas um charuto”86


(VALA, 2015) – uma barata pode ser apenas uma barata da qual se tem medo
devido ao condicionamento de conviver durante a infância com uma mãe medrosa
que fazia escândalos (e isso pode ser milenar na raça humana), e pode não ter
ligação com o órgão sexual feminino, necessariamente, afirma o psiquiatra e
psicoterapeuta paulista. (GIKOVATE, 2012).
Antonio Godino Cabas também registra esse alerta de Freud: “cuidem de
construir símbolos universais devido ao fato de que, às vezes, um charuto nada mais

85 Em uma de suas citações mais repetidas, conforme artigo “Legado de Freud é cultuado e debatido
após 150 anos” (In: TERRA EDUCAÇÃO, 2006).
86 Esse aforismo é atribuído apocrifamente a Freud – alvo de muitas citações na literatura, inclusive
psicanalítica. “Com esta frase, Freud quereria impor um limite às suas teorias da psicanálise,
dizendo que, por vezes, é necessário travar interpretações analíticas excessivas. Por vezes, um
charuto não é passível de qualquer interpretação fálica. Por vezes, um charuto é apenas um
charuto.” (VALA, 2015).
125

é do que um charuto. Tudo isso leva ao dilema de se perguntar quando um charuto


é um pênis e quando um charuto não é nada além de um charuto”. (CABAS, 1982,
p. 59).

Figura 10 – The Triune Brain Model by Paul MacLean (1990 [1970]).

Fonte: Visão artística da teoria macleaniana. Illustration by Joe Scordo


for the book “Hidden Scents” (2015), by Allen Barkkume.

Gikovate ensina que, em sua vasta experiência clínica (de 1966 a 2016),
aprendeu que a coragem (potência psíquica racional) é a força necessária para
enfrentar e combater o medo. Ele utilizou em sua forma de agir como terapeuta
sempre aquilo que lhe trouxe bons resultados: se a questão está mais ligada ao
cérebro racional, a cognição; se mais voltada ao cérebro emocional, talvez a
comportamental; se muito relacionada ao reptiliano instintivo-afetivo, talvez a
comportamental e a psicologia profunda; embora o Doutor Flávio nada tenha
registrado sobre a teoria do cérebro triúnico, especificamente – registramos acima
aquilo que concluímos pela leitura e escuta atentas de seus relatos e ensinamentos
sobre a psicologia (eclética e não ortodoxa) que praticou em sua Clínica (mais
artesanal, como a denominou), tendo obtido resultados positivos. (GIKOVATE,
2012).

A psicologia do século XX foi um tanto negligente com o estudo da razão


como um dos fatores fundamentais de nossa vida íntima. Ela é a
propriedade que nos caracteriza como espécie distinta, o que temos de
mais peculiar. Nossa razão é tão biológica quanto qualquer de nossas
propriedades instintivas ou neurofisiológicas. É um dos subprodutos
derivados do grande desenvolvimento das partes externas do cérebro,
sendo o que, em nossa espécie, mais aumentou. O pouco interesse
que a razão despertou nos estudiosos do século XIX derivou, antes de
tudo, das importantes descobertas relacionadas com nossa vida
126

instintiva e com as emoções e sentimentos que nos constituem. Como


naquele século tudo era voltado para a racionalidade – ainda que de forma
muito diferente daquela que hoje nos importa – era mais do que esperada a
reversão do interesse aos impulsos e emoções com as descobertas
fundamentais de Freud e dos primeiros psicanalistas.

Outro componente da negligência em relação à razão é o fato de a


psicanálise ter voltado sua atenção para os fenômenos inconscientes,
aqueles que não podem ser enxergados de forma direta e fácil. Assim,
passou-se a considerar mais importantes e dignos os estudos relacionados
com os processos que escapam a nossa observação imediata. Aliás, muitos
de nós têm a tendência de se ater menos ao que está diante dos olhos. Isso
acontece porque acreditamos que já temos certo conhecimento sobre esses
aspectos apenas por convivermos o tempo todo com eles. Trata-se de um
grave engano, e o próprio estudo da razão é um bom exemplo disso.
Apesar de ser uma instância intrapsíquica com a qual estamos em
contato permanente, pela qual pensamos, agimos e reagimos, pouco
sabemos sobre seu funcionamento. E mais, se quisermos estudá-la,
teremos de nos valer dela e de seus recursos. É claro que, do ponto de
vista de uma metodologia científica rigorosa, isso implica problemas
complexos. Entretanto, não dispomos de outros recursos e seremos
nós a estudar nós mesmos. Os enganos e as dificuldades serão muitos;
mesmo assim, é imprescindível que consigamos entender como funciona a
razão. Nossa libertação depende de estarmos em condições de nos
conhecermos muito bem e também o que nos cerca. Para isso, precisamos
de um processo racional ativo, eficaz e, se possível, competente para nos
livrar dos enganos e auto-enganos que tanto nos têm prejudicado. [grifo do
autor]. (GIKOVATE, 2006, p. 148-149).

Gikovate nessa transcrição de seu livro “A liberdade possível”, fala sobre a


nossa “libertação”. Mais adiante, neste trabalho, iremos abordar outra perspectiva da
psicologia, a judaico-cristã, que vai apresentar-nos trecho bíblico sobre “a verdade e
a libertação”, nas palavras de Jesus Cristo, segundo a visão de programa televisivo
mantido pela Igreja Adventista. Parecem links interessantes para nosso tema de
pesquisa.
O estudo das neurociências também nos traz algumas explicações sobre o
indivíduo com medo:
Uma pessoa com medo geralmente tem suas razões. Isso significa que
existem estímulos que produzem medo. Dentre estes, alguns produzem
medo por si mesmos, independentemente do contexto (o chamado medo
incondicionado). Sons muito fortes e súbitos são um exemplo típico:
produzem medo em todos os animais. O medo da altura é também
generalizado entre seres humanos e animais. A escuridão, por outro lado,
para os seres humanos é uma situação que produz medo incondicionado,
mas esse não é o caso para a maioria dos animais. Entre estes, por sua
vez, as presas respondem com reações de medo incondicionado à simples
visão dos seus predadores. Até mesmo estímulos visuais grandes, não
identificados, que surgem de repente na parte superior do campo visual,
têm esse efeito incondicionado.
Outros estímulos causadores de medo, talvez a maioria, são condicionados.
Normalmente inócuos, em algum momento foram associados a situações
ameaçadoras e tornaram-se “avisos” de que elas podem estar prestes a
acontecer novamente (medo condicionado ou aprendido). Exemplos? O
127

rosto de uma pessoa que alguma vez nos causou uma experiência
ameaçadora, o ruído de uma freada associado a uma colisão iminente, o
cheiro de um cachorro que alguma vez nos tenha mordido, e assim por
diante. Os seres humanos têm também medos “implícitos”, isto é, aqueles
cuja causa não podem descrever com precisão, porque não foram capazes
de percebê-la conscientemente quando foram expostos a ela em
associação a alguma situação ameaçadora ou apenas desagradável.
(LENT, 2001, p. 721-722).

Há pessoas com menos medo. Há naturezas mais assustadas. (GIKOVATE,


2012).
Para o caso dos hipocondríacos (que têm medo das doenças e vontade de
controlar o organismo), Gikovate (2012) entende ser necessário ensinar-lhes a
humildade de compreender que há situações na vida que estão fora do nosso
controle (inclusive nossa saúde, mesmo diante das novas tecnologias e
medicamentos cada vez mais disponíveis no mercado, porém a preços exorbitantes)
– e isso é assunto para a compreensão do cérebro lógico-racional. Pensamos que é
psicoeducação também.
Em especial nas fobias, mas em todo tratamento psíquico também, ele
sugere exercícios físicos (que tratam o réptil e o mamífero?). (GIKOVATE, 2012).
Isso significa que o Doutor Flávio Gikovate era um defensor da teoria do
cérebro triúnico? Não. Ele tinha uma teoria própria, que foi ajustando com o passar
dos anos, com sua mente arejada (com seu “cérebro poroso”, como costumava
referir ser necessário e salutar viver e pensar). Sua prática clínica ficou registrada
em dezenas de livros, vídeos e áudios (em sua maioria disponíveis gratuitamente,
também online, e em linguagem acessível ao povo). A experiência profissional dele
parece acompanhar a mesma linha de pensamento que procuramos investigar neste
trabalho e ajuda a comprovar (pelo testemunho de profissional com 40 anos de
experiência clínica) que as várias teorias psicológicas existentes merecem uma
tentativa honesta de integração. (GIKOVATE, 2012).
Ele (que foi psicoanalisado por quatro anos, como relata no audiovisual)
resume o tratamento das fobias sugerindo repetição progressiva (dessensibilizadora
das condutas de enfrentamento), ousar, arriscar, sofrer com o medo, usar
antidepressivos e, no início, se necessário, tranquilizantes (para domar o réptil e o
sistema límbico?). Sugere em seguida retirar esses medicamentos, à medida que a
pessoa estiver mais segura de si, e ajudá-la a perceber racionalmente que não
128

controla o incontrolável (aquilo que lhe é exterior) – citando os estóicos.


(GIKOVATE, 2012). Perceber racionalmente. Psicoeducação.
Segue um trecho do livro “História da Psicologia” (BRAUNSTEIN, 2003),
atribuído a pensadores do estoicismo:

Conhecer-se a si mesmo, descer para dentro de si mesmo, para melhor


controlar as paixões, este é que é um dos aspectos principais do projeto dos
estóicos. Foi o que os primeiros alienistas – Pinel e Esquirol em particular –
retiveram deles: com efeito, de acordo com eles, a leitura dos escritos
estóicos era um dos elementos do tratamento da loucura; aprender a
controlar as suas paixões ajuda os seres privados de razão a recuperá-la.
O tema da interioridade assumiu uma importância considerável nos
estóicos, e o cuidado consigo mesmo conduz à autoconquista. “Olha para
dentro de ti mesmo, recomenda Marco Aurélio; dentro de ti é que está a
fonte do bem, uma nascente inesgotável, aliás, se escavares a toda a hora.”
(Pensamentos, Livro VII, LIX). (BRAUNSTEIN, 2003, p. 29).

Em resumo: ter medo e ir em frente mesmo assim. Tal aconselhamento cabe


também para a superação do medo de falar em público. (GIKOVATE, 2012).
Esse bom resultado foi também testemunhado em atendimento (por dez
sessões) no nosso estágio clínico de 2017 com a paciente X9 (senhora de 60
anos)87, encaminhada em novembro por psiquiatra, e que desde março de 2017 não
saía de dentro de casa (por medo – uma espécie de agorafobia), apesar de
medicada.
O terapeuta, neste caso psicoterapeuta e psiquiatra, vale-se de
medicamentos, estimula a parte cognitiva e ajuda o paciente a enfrentar os medos e
a compreender os limites da vida, procura animá-lo e melhorar a sua autoestima, o
que resulta em um extraordinário avanço interior. (GIKOVATE, 2012).
Essa evolução irá, segundo o saudoso pensador brasileiro, repercutir
dramaticamente em todos os outros aspectos da vida desse paciente (ou cliente,
para Carl Rogers88, dependendo da linha teórica de cada terapeuta): ficará mais
confiante, terá mais vigor profissional, sairá mais ativo das disputas inevitáveis da
vida, terá melhor convívio social, será mais confiante nas abordagens sentimentais,
terá, enfim, ganhos significativos em autoestima. Poderá, eventualmente, rir-se de
seus medos. Isso irá gerar grande ganho em qualidade de vida. (GIKOVATE, 2012).

87 Referência ao “Estágio supervisionado e seminário em psicologia e processos clínicos” que


realizamos no ano de 2017, na Clínica de Psicologia da UNIJUÍ, sob a supervisão da professora
Mestre Ana Maria de Souza Dias.
88 Carl Rogers criou a “Terapia centrada no cliente” (que depois alterou para: “Abordagem centrada
na pessoa”), para o qual: “A vida plena é um processo, não um estado de ser.” (ROGERS apud
COLLIN et. al., 2012, p. 132-137).
129

Os Alcoólicos Anônimos tem um ditado semelhante ao que segue: “devemos


ter a humildade para aceitar as coisas que não podemos mudar, a coragem para
mudar as que podemos e a sabedoria para distinguir umas das outras” 89. Estaria aí
também uma referência popular aos três cérebros, em sequência (o biológico
instintivo, o mediador emocional, o pensador lógico)?
Ainda no livro sobre as neurociências “Cem bilhões de neurônios” (já referido
neste trabalho), encontramos a seguinte conclusão no capítulo sobre “Mentes
emocionais, mentes racionais”:

Na vida cotidiana, sempre que você se defronta com uma determinada


situação, há geralmente uma cena real ou imaginária que você avalia com
base inicialmente em informações sensoriais: visuais, auditivas e outras.
Esse conjunto de informações sensoriais é então comparado com os
arquivos situados na sua memória, e ponderados segundo seu
significado emocional. Com base nesse conjunto de dados você avalia
custos e benefícios, faz previsões sobre os prováveis resultados de
suas ações, e finalmente toma as decisões que orientam o seu
comportamento. Os pólos de convergência como a amígdala, o córtex
orbitofrontal, a parte lateral do córtex pré-frontal e o córtex cingulado
anterior seriam as regiões cerebrais onde essa complexa sequência de
computações é efetuada, possibilitando o planejamento do seu
comportamento desse ponto em diante. [grifo nosso]. (LENT, 2001, p.
744).

Novamente, a cena real (o visual, auditivo), a imaginária, as emoções, as


decisões, o comportamento, o planejamento. Regiões cerebrais. Complexa
sequência de computações.
Dessa experiência clínica testemunhada pelo falecido médico paulista (de
viva voz, em áudio e vídeo), relatada parcialmente neste trabalho, parece-nos ficar
mais um reforço à ideia de que é preciso atentarmos para esses três aspectos do
humano no setting terapêutico (físico, emocional e racional) – sem esquecermos de
que há um aspecto espiritual ainda pouco explorado a ser respeitado nos
tratamentos dos pacientes, principalmente daqueles que trazem consigo fortes
crenças, religiosas, ou não; crenças políticas, sociais, históricas, culturais, ativistas e
ideológicas, ou não.
Com relação à dimensão espiritual dos pacientes, o Brazilian Journal of
Cardiovascular Surgery Blog, publicou texto (2017) de Nathalia Ribeiro, que reúne
informações sobre “A influência da religião e espiritualidade no prognóstico de

89 Referência ao pensamento do teólogo norte-americano Reinhold Niebuhr (1892-1971). (NIEBUHR,


2018).
130

cirurgias cardiovasculares” (no qual ela cita diversas pesquisas recentes realizadas
com significativo número de pacientes – com suporte em artigos científicos). A
Medicina está avançando na investigação do aspecto espiritual do humano.
No contexto dos pacientes cardiopatas é preciso levarmos em conta
aspectos técnicos, sociais e psíquicos. Para um prognóstico favorável, aceitação e
adaptação à doença são essenciais. O coping religioso-espiritual (religião,
espiritualidade e fé) é potente influenciador do comportamento dos pacientes (para a
compreensão da doença e para o enfrentamento das adversidades). Pioneiros
nesse estudo, Oxman et. al. (1995 apud RIBEIRO, 2017) descobriram taxa de
mortalidade pós-revascularização do miocárdio três vezes menor no grupo
praticante de coping religioso (em um total de 232 pacientes, seis meses após a
intervenção)90.
Mais recentemente, em outra pesquisa envolvendo 177 pacientes
submetidos à revascularização do miocárdio, Al Ai et. al. (2009 apud RIBEIRO,
2017), concluíram que os que oravam com frequência no pré-operatório foram 45%
menos suscetíveis a complicações no período pós-operatório91.
Al Ai et. al. (2013 apud RIBEIRO, 2017) também descobriram que o coping
religioso pode prever (para além da influência na dimensão física) uma mudança
positiva de comportamento nos trinta meses após o evento cirúrgico cardíaco –
crescimento pós-traumático92.
Em razão de “incertezas religiosas” (sentir-se alvo da doença por punição
divina), por outro lado, alguns pacientes podem não desenvolver os aspectos
positivos do coping religioso. O enfrentamento otimista do sofrimento e o suporte
social são ainda mais importantes nesses casos. Assim, o sucesso cirúrgico não
depende somente de uma anatomia cardíaca favorável e da técnica cirúrgica
adequada, mas da multidimensionalidade do paciente (sua condição psíquica: seus
anseios, crenças e emoções). (RIBEIRO, 2017).

90 Referência à pesquisa de OXMAN, T.; FREEMAN, D.; MANHEIMER, E. Lack of social participation
or religious strength and comfort as risk factors for death after cardiac surgery in the elderly.
Psychosomatic Medicine, v. 57, n. 1, p. 5-15, 1995.
91 Referência à pesquisa de AI, A. et al. Prayer and reverence in naturalistic, aesthetic, and socio-
moral contexts predicted fewer complications following coronary artery bypass. Journal of
Behavioral Medicine, v. 32, n. 6, p. 570-581, 2009.
92 Referência à pesquisa de AI, A. et al. Posttraumatic growth in patients who survived cardiac
surgery: the predictive and mediating roles of faith-based factors. Journal of Behavioral Medicine,
v. 36, n. 2, p. 186-198, 2013.
131

Outros artigos que demonstram a importância da dimensão espiritual e sua


influência positiva na recuperação de pacientes que passaram por eventos
cardíacos graves são encontrados entre as referências do texto de Nathalia Ribeiro
(2017), dos quais citamos, a seguir, somente os títulos: “Religion, spirituality and
cardiovascular disease: research, clinical implications, and opportunities in Brazil”;
“Religious Beliefs May Affect Psychological Recovery After Cardiac Surgery”;
“Religious Beliefs Can Protect Psychological Well-Being During Stressful
Experiences”; “Religion and belief in God in the preoperative period of cardiac
surgery: an exploratory study”; “Multidimensional measurement of religiousness,
spirituality for use in health research: a report of a national working group”.
Tivemos, pessoalmente, em atendimento de paciente com conhecimentos
na área da biologia (de pseudônimo X4) por ocasião do Estágio na Clínica de
Psicologia da UNIJUI93, no segundo semestre de 2017, a oportunidade de
testemunhar o fato de que a mera informação à pessoa que procura auxílio
psicológico sobre a existência de uma teoria com raízes científicas como a do
cérebro triúnico (que aponta para a descoberta de “cérebros” cujos objetivos
conflitam entre si) já ajuda também a paciente (jovem adulta e no inteiro domínio de
suas faculdades mentais) a perceber que algum fator desencadeante ou estímulo
exterior ou interior gerou nela uma emoção negativa ou excitatória – de modo que
possa tomar, quando possível (quando a situação prática e o momento assim lhe
permitirem), as medidas racionais e conscientes adequadas para conter a evolução
da raiva, do medo ou do amor exagerados, por exemplo, nas suas relações pessoais
cotidianas (conforme relato da própria paciente).
Há indícios claros da tripartição cerebral macleaniana também em obras
freudianas mais específicas. Ainda, com relação ao medo, por exemplo, no caso das
fobias do pequeno Hans.
Da mesma forma, há conexões possíveis de serem estudadas mais
detidamente nos interessantes casos do Homem dos Ratos (neurose obsessiva), de
Schreber (psicose) e de Dora (histeria), entre outras das diversas histórias clínicas
relatadas pelo Doutor Sigmund Freud.

93 Referência ao “Estágio supervisionado e seminário em psicologia e processos clínicos” que


realizamos no ano de 2017, na Clínica de Psicologia da UNIJUÍ, sob a supervisão da professora
Mestre Ana Maria de Souza Dias.
132

2.5 Outras conexões teóricas possíveis

Afinal, o que querem as mulheres? E os humanos? Essa pergunta inicial


encerra em si o âmago da própria psicanálise e da psicologia humana (e reconhece
a existência de uma instância inconsciente).
Freud escreve, novamente em seu “Projeto para uma psicologia científica
(1895)”:
Até aqui nada se disse sobre o fato de que toda teoria psicológica,
independentemente do que se realiza do ponto de vista da ciência natural,
precisa satisfazer mais um requisito fundamental. Ela tem de nos explicar
tudo o que já conhecemos, da maneira mais enigmática, através de
nossa “consciência”; e, uma vez que essa consciência nada sabe do
que até agora vimos supondo – quantidades e neurônios – também
terá de nos explicar essa falta de conhecimento. (...) Estivemos tratando
os processos psíquicos como algo que pode prescindir dessa percepção da
consciência, como algo que existe independentemente dela. (...) os
processos neuronais (...) devem ser considerados em sua totalidade, antes
de mais nada, como inconscientes, e (...) devem ser inferidos como os
demais fenômenos naturais (...) é preciso encontrar um lugar para
conteúdo da consciência em nossos processos  quantitativos. A
consciência nos dá o que se convencionou chamar de qualidades –
sensações que são diferentes numa ampla gama de variedades e cuja
diferença se discerne conforme suas relações com o mundo externo. (...)
Pode-se perguntar como se originam as qualidades e onde. Tratam-se
de perguntas que exigem um exame atento e que aqui só pode ser
abordado superficialmente (...) Quem sabe não se originam no sistema ϕ?
Isso estaria de acordo com o fato de as qualidades estarem vinculadas à
percepção, mas entra em contradição com tudo o que, com justa razão, fala
em favor da localização da consciência nos níveis mais altos do
sistema nervoso. Quem sabe, então, no sistema ? [grifo nosso]. (FREUD,
1996 [1895], p. 359-361).

Requisito fundamental de toda teoria psicológica (segundo Freud, na citação


direta acima) é, portanto, “explicar o que já conhecemos da maneira mais
enigmática” por meio da (e para a) nossa consciência.
São várias as conexões possíveis ao relacionarmos o modelo do cérebro
triúnico de Paul MacLean (1990 [1970]) com outras teorias desenvolvidas ao longo
da história da humanidade (e com os comportamentos, distúrbios e doenças
humanas). E por que deveríamos procurá-las? Pela simples razão de que a
confirmação dessa teoria é central para explicar as contradições humanas.
Falar assim, responder diretamente (como o fizemos no Capítulo 1 deste
trabalho de conclusão do curso de psicologia) uma questão que perturbou Freud ao
longo de sua história de pesquisador (e tantos outros que o seguiram), tendo ficado
“sem resposta”, pode parecer pretensão de acadêmico incipiente. No entanto, há
133

muitos outros que já responderam essa questão do humano, com base nessa teoria.
Não são lidos. Não são ouvidos. São isolados e desconsiderados e desqualificados
sumariamente.
É isso que precisa mudar na psicologia. E a integração é um caminho futuro
inevitável. Não estamos aqui atacando a psicanálise (ou o autor A ou B), pensamos
que o rigor e a honestidade e a clareza epistemológicas vêm antes dos ativismos e
ideologias. Estamos com Freud, quando escreveu sobre uma psicanálise não
tendenciosa.
Já destacamos algumas das referidas interligações teóricas neste artigo.
Porém, há muitas outras detectadas ao longo do curso de psicologia que podem ser
também relacionadas entre si (teorias de Vygotsky, Luria, Piaget, entre outros) e
com o modelo macleaniano (oportunamente, para evitar-se a prolixidade neste
estudo introdutório).
A propósito, na teoria Jean Piaget encontramos também três estágios que
ele identifica como quatro (dos quais um é pré-operacional) do desenvolvimento
infantil: o sensório-motor (em que as crianças aprendem sobre o mundo por meio
dos órgãos dos sentidos e pela ação física – de 1 a 2 anos de idade), o pré-
operacional (em que organizam objetos, símbolos internos, imagens e linguagem –
de 2 a 4 anos), o operacional concreto (em que realizam operações lógicas com
objetos concretos) e o operacional formal (estágio do raciocínio verbal e do
pensamento hipotético). (PIAGET apud COLLIN et. al., 2012, p. 266-267).
Mesmo para Lev Vygostky, autor do construtivismo social, o
desenvolvimento humano se dá em três níveis: individual, interpessoal e cultural.
(COLLIN et. al., 2012, p. 270).
Vygotsky escreveu que “as habilidades necessárias para raciocinar,
compreender e memorizar têm origem na vivência da criança com pais, professores
e colegas.” (VYGOTSKY apud COLLIN et. al., 2012, p. 270).
Seu discípulo Alexander Luria observou que um dos pilares do pensamento
vygotskyano é a “ideia de que as funções mentais superiores são construídas ao
longo da história social do homem”. (OLIVEIRA, 1997, p. 83-87).
Por outro lado, o próprio Vygotsky registrou que “as atividades sociais
desempenhadas durante o desenvolvimento” promovem “nossas capacidades
cognitivas inatas” (VYGOTSKY apud COLLIN et. al., 2012 p. 270). Inatas.
134

Sim. Isso não significa que não existem propriedades naturais do sistema
nervoso. O ambiente interfere (e nele estão a cultura, a política, o social, etc.).
Luria – que foi, dentre os colaboradores de Vygotsky, quem dedicou-se
intensamente ao estudo das funções psicológicas relacionadas ao sistema nervoso
central – fala de um sistema funcional e, embora negue sua localização em pontos
específicos, refere articulação de áreas diferentes do cérebro em um sistema
complexo. Interessa-nos destacar especificamente o momento em que ele
aprofunda sua obra sobre a estrutura básica cerebral e distingue três (3) grandes
unidades de funcionamento. A primeira regula a atividade cerebral e o estado de
vigília (nível adequado de atividade). A segunda é a unidade de recebimento, análise
e armazenamento de informações (sensações do mundo externo, visão, percepção).
A terceira é a unidade para programação, regulação e controle da atividade
(intenções, programa de ação em atos exteriores – motores, ou interiores –
mentais). (OLIVEIRA, 1997, p. 83-87).
“A segunda unidade trabalha com informação vinda do ambiente” e a
terceira unidade “regula a ação – física e mental – do indivíduo sobre o ambiente”
(OLIVEIRA, 1997, p. 87). Três unidades novamente. Réptil, mamífero, macaco
intelectual.
Por fim, “qualquer forma de atividade psicológica é um sistema complexo
que envolve a operação simultânea das três unidades funcionais.” (LURIA apud
OLIVEIRA, 1997, p. 87).
Para Alexander Luria, neurologista e psicólogo russo, “a neuropsicologia é
uma área interdisciplinar, que envolve as disciplinas de neurologia, psiquiatria,
fonoaudiologia, linguística, e outras correlatas, e que tem como objetivo estudar
as interrelações entre as funções psicológicas humanas e sua base biológica.”
[grifo nosso]. (LURIA apud OLIVEIRA, 1997, p. 83).
Já Leontiev – outro colaborador muito próximo de Vygotsky, que trabalhou
com ele no projeto de construção da “nova psicologia” na Rússia pós-revolucionária
– vê um homem orientado por objetivos e distingue três (3) níveis de funcionamento
da atividade humana: a atividade propriamente dita (finalidades conscientes e ação
coletiva), as ações (dirigidas por metas) e as operações (aspecto prático da
realização das ações – os procedimentos e as condições ambientais). Para esse
autor, “o funcionamento humano não pode, pois, ser compreendido sem referência
ao contexto em que ocorre.” (OLIVEIRA, 1997, p. 98). Há paralelo entre esses três
135

níveis de funcionamento da atividade humana e os sistemas funcionais lurianos. De


novo, outro autor escolhe o número de três níveis funcionais para embasar sua
teoria acerca de processos psicológicos.
Na visão desses autores, as instâncias cerebrais também são três com
variações em seus pontos de vista e nas formas de abordagem. Talvez preocupem-
se excessivamente com a importância do coletivo sobre o individual, mas
reconhecem a existência de elementos inatos na constituição psicológica humana.
Claro que não é adequado que questões de cunho ideológico interfiram nas
pesquisas sérias e científicas e nos resultados destas.
A filósofa brasileira (de ideologia política declaradamente ativista) Marilena
Chauí é autora do livro “Repressão sexual”, que contém um capítulo sobre “Contos
de fadas” em que discorda do trabalho “Psicanálise dos contos de fadas”, de Bruno
Bettelheim, em três aspectos: porque seu livro (dele) “dissolve o aspecto repressivo”
também presente nos contos; porque ele “enfatiza o aspecto pedagógico dos
contos” (o que restringiria o “lúdico primordial” deles); e porque, Bettelheim, como a
maioria dos psicanalistas (nas palavras da filósofa e ativista brasileira – estas, por
sinal, duas atividades de inviável exercício simultâneo por um free spirit) “não põe
em dúvida a moral sexual burguesa veiculada pelos contos” em algumas de suas
versões (CHAUÍ, 1985, p. 31).
Mais adiante, nesse capítulo sobre “Contos de fadas”, a pensadora paulista,
ao visitar o conhecido conto “Pele de burro”, escreve sobre o significado do número
três algumas linhas interessantes para a nossa pesquisa:

O vestidos também são significativos, além do sentido geral de elementos


da natureza. Em inúmeras mitologias, esses elementos são deuses e
costumam formar uma trilogia ou trindade indissolúvel: sol-dia-luz-fogo-
sexo; lua, noite, treva, mistério, sexo; mar-água-abismo-sexo. Força vital,
força mágica e força concebedora.

O número três, cujo significado preciso desconhecemos neste conto, é


considerado em muitas culturas o número perfeito, ou número da harmonia
e da síntese dos contrários. Possui poderes mágicos (repetir três vezes uma
expressão ou um gesto). Na filosofia pitagórica, forma a figura perfeita e
sagrada do triângulo constituído pelos dez primeiros números. Na Cabala,
são as três luzes mais altas do infinito, formando o “teto dos tetos” e três
são as letras do nome de deus, quando este passa de “nada” a “Eu”. Três
são as pessoas da Santíssima Trindade. Três vezes Pedro negou Cristo.
Três são as essências ou hierarquias celestes (na primeira: tronos, serafins
e querubins; na segunda: poderes, senhorias e potências; na terceira: anjos,
arcanjos e potestades). Três são as partes da alma. Três as virtudes
cardeais (fé, esperança e caridade).
136

Três vestidos, três bailes. Na Branca de Neve, três vezes a madrasta vai à
casa dos anões (na primeira, com o cinto de fitas, na segunda, com o pente,
na terceira, com a maçã). Três são as filhas em A bela e a fera e na Gata
Borralheira, como três são as irmãs nos Três cisnes e nas Três plumas.

Três vezes na canção, “Terezinha foi ao chão” e “acudiram três cavalheiros/


Todos três chapéu na mão / o primeiro, foi seu pai / o segundo, seu irmão /
o terceiro foi aquele a quem ela deu a mão”. [grifo nosso]. (CHAUÍ, 1985, p.
48).

Vygotsky ainda refere, cabe mencionarmos, que: “O processo cognitivo não


existe descolado da emoção.” (BOCK, 2001, p.105).
Para ele, não há dicotomia entre pensamento e emoção, sendo que a esse
respeito, Lane & Camargo escolhem esclarecedora citação sobre essa questão:

O pensamento propriamente dito é gerado pela motivação, isto é, por


nossos desejos e necessidades, nossos interesses e emoções. Por trás de
cada pensamento há uma tendência afetivo-volitiva, que traz em si a
resposta ao último “por que” de nossa análise do pensamento. Uma
compreensão plena e verdadeira do pensamento de outrem só é possível
quando entendemos sua base afetivo-volitiva. [grifo nosso]. (LANE &
CAMARGO, 1995 apud BOCK, 2001, p. 105-106).

A expressão “tendência afetivo-volitiva” poderia ser compreendida com o


mesmo significado da expressão “instintivo-emocional” – do texto villeneuviano
(2016)?
Para Vygotsky, “as emoções tem uma natureza social e um caráter
comunicativo”, sendo que as emoções “se constituem numa linguagem” (LANE &
CAMARGO, 1995 apud BOCK, 2001, p. 106).
Uma linguagem – do cérebro emocional? Freud e Lacan identificaram uma
linguagem do inconsciente – do cérebro réptil primitivo? Nossa linguagem lógico-
racional é de notório conhecimento humano. É a que escreve estas linhas. Usa
signos e símbolos.
Símbolos, como aqueles com que nossa civilização identifica atualmente o
sexo masculino ♂ e o sexo feminino ♀ – que, ademais, também são sinais que
trazem a imagem do três a partir do círculo central (um na seta que indica para a
direita e para cima, e outro na cruz que está posicionada para baixo).
Stein, em “Aproximações sobre hermenêutica”, registra que para a Filosofia,
o homem é animal racional (Aristóteles): “O ser humano é detentor do logos, ele é
possuidor do logos” (...) A lógica é a expressão da racionalidade da qual a filosofia
se ocupa precipuamente.” (STEIN, 1996, p.12).
137

O ser humano é o animal capaz de um discurso lógico, pois tem linguagem.


É capaz de dizer frases que podem ter a propriedade de verdade e de falsidade.
(STEIN, 1996).
Para Gadamer, não há uma objetividade absoluta e “todo intérprete propõe
a ‘sua própria interpretação’, que não obstante não é de modo algum arbitrária, mas
pode alcançar ou não um grau definido de propriedade (justesse)”. (GADAMER,
1998, p. 10).
Palmer escreve que “‘o problema da compreensão’, especialmente o da
compreensão da linguagem, é intrínseco a toda a ‘interpretação literária’. É este
problema que constitui o tema da hermenêutica.” (PALMER, 1989, p. 28).
Jürgen Habermas, em seu texto “A pretensão de universalidade da
hermenêutica” fala sobre o discurso racional e a importância da hermenêutica, que
é: “a arte de compreender um sentido linguisticamente comunicável e, no caso de
comunicações perturbadas, torná-lo inteligível.” (HABERMAS, 1987, p. 26).
Explica o que são decisões tomadas racionalmente, motivadas por um
discurso convincente, que se formam sobre a base de um consenso (por meios ao
mesmo tempo cognitivos e expressivos de exposição em linguagem corrente).
(HABERMAS, 1987, p. 30).
A habilidade de ver a partir de outras perspectivas requer esse discurso
competente que nos permite “intervir conscientemente” (HABERMAS, 1987, p. 31).
Habermas cita Platão, evocado por Gadamer: “no espelho da linguagem se
reflete tudo o que é.” (HABERMAS, 1987, p. 36). No espelho da linguagem. Lacan.
Segundo esse autor, a consciência hermenêutica deve perceber os limites
da compreensão hermenêutica: as manifestações vitais especificamente
incompreensíveis; ou seja, a comunicação sistematicamente distorcida (como no
caso das psicoses, das perturbações linguísticas claramente patológicas). Freud
encarou o sonho como modelo “normal” desses fenômenos do tipo: atos falhos,
lapsos, sintomas neuróticos, doenças do espírito e doenças psicossomáticas. O fato
é que a psicanálise ajuda a traduzir em parte essas manifestações vitais
neuroticamente distorcidas. (HABERMAS, 1987, p. 40-42).
E o modelo macleaniano ajuda a simplificar o entendimento da etiologia
desses conflitos, com raízes na anatomia evolutiva do cérebro triúnico, com base
nas hierarquias neurais e mentais de Hughlings Jackson (de quem Freud era fã).
Como ainda registra Jürgen Habermas, no texto referido:
138

E se nós, por fim, observarmos em conjunto o sistema da comunicação


distorcida, então chama a atenção a discrepância peculiar entre os níveis da
comunicação: está desintegrada a usual congruência entre a simbologia
linguística, ações e expressões associadas. Os sintomas neuróticos são
apenas o testemunho mais obstinado e palpável dessa dissonância.
(HABERMAS 1987, p. 43).

Dissonância. Congruência desintegrada entre: simbologia, ações e


expressões.
Alfred Lorenzer ensina que, da perspectiva hermenêutica, esclarecer o
sentido incompreensível de manifestações sintomáticas é a meta da interpretação
analítica (LORENZER apud HABERMAS, 1987, p. 44).
Ocorre uma “tradução do sentido” (dos conflitos insuportáveis dos quais o
paciente criança ou adulto se defende), até então inacessível à comunicação
pública, mas gerador de comportamento, do “modelo de comunicação
patologicamente entorpecido.” (HABERMAS, 1987, p. 45).
A psicanálise tem suas regras fundamentais (em especial a livre a
associação) e seu enfoque nas relações de objeto (infantis) anteriores perturbadas
por conflitos – que permitem à relação transferencial servir de “folheta de tradução”.
O contexto das conversas com o paciente tende a ter “duplo sentido”. (HABERMAS,
1987, p. 46-47).
O que se objetiva é chegar (tanto quanto possível) a um jogo de linguagem
não-deformado, em que:

(...) ocorre congruência das manifestações em todos os níveis da


comunicação: as manifestações linguisticamente simbolizadas, as
representadas em ações e as concretizadas em expressões corporais não
se contradizem, e sim se complementam metacomunicativamente.
(HABERMAS, 1987, p. 47-48).

O objetivo é a congruência de todos os níveis de comunicação.


O filósofo e sociólogo alemão (muito festejado no meio acadêmico brasileiro)
explica ainda claramente sobre a existência de uma “organização simbólica mais
antiga”:

(...) que se opõe a uma conversão de seus conteúdos em comunicação


regulada gramaticalmente, só se deixa explorar ou deduzir com auxílio de
dados da patologia linguística e à base da análise do material onírico
(Traummaterial). Trata-se aí de símbolos que dirigem condutas, e não
apenas de sinais, pois os símbolos têm uma autêntica função de
significação: eles expõem experiências de interação. De resto, faltam,
porém a esta camada dos paleossímbolos todas as características do
139

discurso normal. Paleossímbolos não estão enquadrados em um sistema


gramatical de regras. Eles não são elementos ordenados e não aparecem
em conjuntos que podem ser transformados gramaticalmente. Por isso,
comparou-se o modo funcional desses símbolos pré-linguísticos com
os da calculadora analógica, diferentes dos da calculadora digital. Já Freud
tinha notado, em suas análises do sonho, a falta de relações lógicas. (...)
palavras de oposição (...) associação de significados logicamente
irreconciliáveis, isto é, contrários. Os símbolos pré-linguísticos são
fortemente carregados afetivamente e sempre presos a cenas
determinadas. (HABERMAS, 1987, p. 51-52).

Excelente texto apoiador da triune brain theory, a nosso sentir e pensar.


Mesmo argumentando, o autor, na linha da visão lacaniana, vygotskyana (e
da assim chamada psicologia sócio-histórica), no sentido de que os paleossímbolos
se formam “evidentemente” em contextos de “interação” (a questão ideológico-
social, novamente), ficam evidentes a existência de um sistema reptiliano-afetivo e
de outro lógico-racional, pelo menos – com dificuldades evidentes de comunicação
entre si; ou, na expressão de Sigmund Freud, citado por Habermas, com a “falta de
relações lógicas” de um sonho. (HABERMAS, 1987).
Ele explica que o mecanismo de defesa do recalque é uma operação
conduzida na (e com a) linguagem e reversível hermeneuticamente, justamente pela
análise da linguagem. Por essa hipótese, o comportamento do neurótico seria
dirigido paleossimbolicamente e apenas posteriormente seria racionalizado por uma
interpretação linguística – o que explicaria esse comportamento e valores
pseudocomunicativos, estereotipia e compulsão, ocupação emocional, conteúdo
expressivo e vinculação rígida a situações. (HABERMAS, 1987, p. 54-55).
Sim, reptilian brain, paleomammalian brain, logical brain com “associação de
significados logicamente irreconciliáveis”: estereotipia, compulsão, comportamento
dirigido paleossimbolicamente, racionalizado, pseudocomunicações, ocupação
emocional, conteúdo expressivo, vinculação rígida a situações. Observações que
nos lembram o texto publicado por Lima (2010), que referimos no Capítulo 1 deste
trabalho de conclusão do curso de psicologia. E nos lembram da possibilidade de
integração desses três centros de comando cujos conflitos aparecem em
“associações de significado” que são, para Habermas, “logicamente irreconciliáveis”.
Conforme Luiz Alfredo Garcia-Roza escreve em “Freud e o Inconsciente”,
Sigmund declara em trabalho publicado em 1926 que muito pouco sabemos sobre
as fases preliminares e antecedentes do recalcamento. (GARCIA-ROZA, 1996).
140

Na conclusão sobre a análise de “O homem dos lobos”, Freud escreve


trecho muito importante para nossa pesquisa, que transcrevemos, in verbis:

Se se considera o comportamento do menino de quatro anos em relação à


cena primária reativada, ou mesmo se se pensa nas reações muito mais
simples da criança de um ano e meio, quando a cena foi realmente vivida, é
difícil descartar a opinião de que algum tipo de conhecimento,
dificilmente definível, algo, fosse o que fosse, preparatório para uma
compreensão, estivesse agindo na criança, na época. Não podemos
formar um conceito sobre aquilo em que poderia ter consistido esse
conhecimento; nada temos à nossa disposição, a não ser uma única
analogia – e ela é excelente – a do extenso conhecimento instintivo
dos animais.

Se os seres humanos possuíssem também um dom instintivo como este,


não seria surpresa se fosse muito particularmente ligado aos processos da
vida sexual, mesmo que não pudesse ser de forma alguma confinado a
eles. Esse fator instintivo (instinktiv) seria então o núcleo do
inconsciente, um tipo primitivo de atividade mental que seria depois
destronado e encoberto pela razão humana, quando essa faculdade
viesse a ser adquirida; mas que, em algumas pessoas, talvez em
todas, mantivesse o poder de atrair para si os processos mentais mais
elevados. A repressão seria o retorno a esse estádio instintivo, e o
homem estaria, assim, pagando pela nova aquisição com a sua
sujeição à neurose, e estaria testemunhando, pela possibilidade das
neuroses, a existência desses estádios preliminares, de tipo instintivo.
A significação dos traumas da primitiva infância estaria no material
que transmitiriam ao inconsciente, que não permitiria que fosse
exaurido pelo curso subsequente do desenvolvimento.

Estou ciente de que, em muitos lugares, deu-se a expressão a


pensamentos como estes, que enfatizam o hereditário, o fator
filogeneticamente adquirido na vida mental. Na verdade, minha opinião é
que as pessoas têm-se prontificado excessivamente a abrir espaço para
esses fatores e atribuir-lhes importância, dentro da psicanálise. No entanto,
considero que são apenas admissíveis na medida em que a psicanálise
observa estritamente a ordem correta de precedência, e, depois de abrir
caminho através dos estratos daquilo que foi adquirido pelo indivíduo,
chega afinal aos vestígios do que foi herdado. [grifo nosso]. (FREUD,
1996 [1914], p. 125-126).

Um tipo primitivo de atividade mental. Um estádio instintivo. Claro. E as


neuroses são testemunhas da existência desses estádios preliminares, de tipo
instintivo. Palavras de Freud.
Garcia-Roza explica que Freud “compara esse ‘algo’ aos instintos (Instinkt)
dos animais, algo filogeneticamente adquirido na vida mental e que, apesar de não
estar restrito ao comportamento sexual, estaria intimamente ligado a ele.” (GARCIA-
ROZA, 1996).
Algumas “releituras” da psicanálise (principalmente lacaniana) procuram
resolver as questões conflituosas por meio da linguagem. Entretanto, a origem delas
está na dificuldade de entendimento entre os três cérebros hierarquicamente
141

evolutivos indicados por MacLean em sua triune brain theory, que comunicam-se
com extrema dificuldade. É claro que são linguagens distintas.
A conexão entre as teorias freudiana e macleaniana é inevitável
principalmente porque têm uma origem comum na realidade encefálica e no modelo
de Hughlings Jackson (como já abordamos neste trabalho).
A hermenêutica profunda “esclarece a incompreensibilidade específica da
comunicação sistematicamente distorcida” e consegue lidar com esses (ao menos)
“dois graus de organização simbólica” pois permite uma “pré-compreensão
sistemática que abarca as linguagens como um todo”, a partir da “des- e re-
simbolização”, da “invasão de elementos paleossimbólicos na linguagem” e da
“excomunhão desses invasores”, assim como por meio da “integração linguística dos
conteúdos simbólicos pré-linguísticos” (o modelo de instâncias que Freud
desenvolveu em seu aparelho psíquico). “A ‘tradução’ controlada da simbologia pré-
linguística para a linguagem afasta confusões (Unklarheiten)”. (HABERMAS, 1987,
p. 56-57).
Habermas escreve claramente que:

Todas as três categorias, Ego, Id e Superego, estão assim vinculadas ao


sentido específico de uma comunicação sistematicamente distorcida, na
qual o médico e o paciente ingressam com a finalidade de pôr em
andamento um processo dialógico de esclarecimento e de conduzir o
doente à autorreflexão. A metapsicologia só pode ser fundamentada com
meta-hermenêutica. (...) O modelo estrutural, que Freud introduziu como
quadro de referência categorial da metapsicologia, pode portanto ser
remetido a uma teoria dos desvios da competência comunicativa.
(HABERMAS, 1987, p. 58).

Autorreflexão. Razão.
A psicoeducação exige o uso da razão, que é tão inerente à condição
humana quanto as nossas emoções e instintos, de acordo com Aristóteles e
Gikovate (como antes referimos).
O psiquiatra e psicoterapeuta Flávio Gikovate (falecido em Outubro de 2016)
ensina que dissociar é o oposto de associar e que nos fixamos em certo padrão de
comportamento por meio de associações, obtendo respostas quase de reflexo
condicionado. Ele cita Ortega y Gasset: “o processo de dissociação requer grande
‘potência intelectual’”, no sentido de que “exige uma razão forte e determinada que
não se contrói de um dia para o outro.” (GIKOVATE, 2007, p. 104-105).
142

Mais vale uma potente razão que nos impulsione corajosamente para a
frente, em busca de experiências novas. Uma experiência nova e bem
sucedida (“experiência emocional corretiva” nas palavras de Franz
Alexander) pode ser o que necessitamos para deslanchar. [grifo nosso].
(GIKOVATE, 2007, p. 105).

No texto de “O livro ilustrado dos símbolos – O universo das imagens que


representam as ideias e os fenômenos da realidade” (2002), de Miranda Bruce-
Mitford, fomos buscar somente a figura do centauro (“intelecto versus instinto”).
Acabamos encontrando conteúdo para uma pesquisa minuciosa de inúmeras
imagens e referências ao número três vinculado aos vários aspectos da simbologia:
mitologias e religiões (deuses antigos, judaísmo, cristianismo, hinduísmo, budismo,
islamismo, espíritos ancestrais e da natureza, animais míticos), natureza (o sol e a
lua, a terra e o céu, pedras preciosas, substâncias valiosas, jardins, árvore, plantas,
alimentos naturais, flores, criaturas do mar, insetos, répteis e anfíbios, mamíferos,
aves), pessoas (sexo e fertilidade, corpo humano, dança e teatro, talismãs e magia,
instrumentos musicais, amor e casamento, vestuário, jóias, realeza, ferramentas e
armas, arquitetura, morte e luta, objetos do cotidiano) e outros sistemas simbólicos
(escrita desenhada, números, formas e padrões, cores, alquimia, maçonaria,
adivinhação, astrologia, emblemas heráldicos, símbolos internacionais, gestos
simbólicos). Faremos algumas observações a respeito, por também relevantes,
embora seja impossível apresentarmos aqui todo o material escrito e ilustrado
localizado nessa importante obra para o estudo da psicologia.
Com o uso de nosso hemisfério cerebral direito, mais intuitivo, uma segunda
leitura dos parágrafos seguintes pode ser feita a partir somente das palavras e
expressões que negritamos, acionando, assim, a conexão da psicanálise com o
triune brain (instintos, emoções e razão – a ele agregada a espiritualidade) por meio
do pensamento criativo e artístico, para uma percepção mais prática.
Logo à página número 6 desse curioso livro (BRUCE-MITFORD, 2002)
temos um símbolo alquímico, com a serpente da Arábia, o sol triplo e a lua e uma
interessante observação sobre a natureza humana que, além de sobreviver e
reproduzir-se, busca também explicações para tudo (diante dos mistérios e dos
fenômenos incompreensíveis, usamos símbolos para representá-los).
Na página 7 (BRUCE-MITFORD, 2002), uma alegoria da luta de forças
opostas na imagem de uma ave de rapina lutando contra uma serpente (descrita
como “a mais simbólica das criaturas”).
143

Destaca-se na página 10 (BRUCE-MITFORD, 2002), um quadro de Goya,


sobre os sonhos, mostrando como os “temores diurnos podem produzir os terrores
noturnos”, com o título: “O Sono da Razão Gera Monstros”. Na mesma página,
uma pintura em miniatura indiana retrata homens que “lutam com o gigante preso
num poço, que representa a ‘sombra’, ou os desejos básicos que tentamos
soterrar no inconsciente”, com referência aos trabalhos de Freud e de Jung.
Ao deslocarmo-nos até as páginas 14-15 (BRUCE-MITFORD, 2002),
encontramos a mitologia das religiões clássicas da Europa e do Egito sobrevivente
em grupos de deuses que controlava a vida das pessoas e eram venerados (na
língua, nas artes, na música) para aplacar suas influências, como é o caso da figura
de Posêidon (ou o Netuno romano), deus do mar e irmão de Zeus, representante do
poder das águas, portando um tridente (que simboliza a criação e protege os
navegantes); de Vênus (símbolo da beleza feminina); de Eros (ou Cupido, símbolo
do amor com suas flechas de fazer as vítimas apaixonarem-se perdidamente).
Os Celtas pré-romanos da Europa, que veneravam, entre outros deuses, um
criador e uma trindade de deusas mães ou da fertilidade; em todos os territórios
dos celtas está o deus Cernunnos, ladeado por animais, tendo à mão esquerda uma
serpente com cabeça de carneiro (que simboliza a fertilidade); ainda na quinze,
os três deuses escandinavos dos elementos e da natureza, Odim (guerra e
inteligência), Thor (trovão) e Freir (fertilidade e nascimento), foram incluídos em
peça de tapeçaria do século 12.
Já na página 16 (BRUCE-MITFORD, 2002), aparece a Estrela de Davi,
central no Judaísmo, que contém dois grandes triângulos que simbolizam o
equilíbrio do universo; (...) os triângulos representam o entrelaçamento de sol, fogo
e energia masculina com lua, água e energia feminina”. Na página seguinte, ainda
sobre o Judaísmo, aparece foto do Lulav – símbolo levado sete vezes em volta do
templo, com folhas entrelaçadas de palmeira, murta e salgueiro (que representam
a coluna, os olhos e a boca).
Detectamos na página 18 (BRUCE-MITFORD, 2002), na seção sobre o
Cristianismo, o terço, com o qual é rezada repetidas vezes a ave-maria (de tal modo
que três terços rezados constituem um rosário, derivado de “rosa”, o símbolo da
Virgem Maria); na mesma página está uma figura de três peixes unidos (em
círculo) que representam a Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo), pois o
144

peixe é o símbolo de Cristo (as iniciais gregas de “Jesus Cristo, Filho de Deus” são
lidas como ictos, ou peixe).
Seguindo a pesquisa, a página 21 (BRUCE-MITFORD, 2002) traz elementos
do Hinduísmo, entre os quais a sílaba sagrada Om, que acredita-se ser a semente
de todos os mantras (que são palavras ou sons divinos): o som A-U-M (que tem três
letras), “seria o único eterno, em que o passado o presente e o futuro
coexistem”.
Registro, à página 22 (BRUCE-MITFORD, 2002), explica que existem Três
Grandes Verdades que modelaram o pensamento chinês: o Confucionismo
(Confúcio), o Taoísmo (Lao-Tsé) e o Budismo (Buda; além disso, consta também
que as três bases do Budismo são a não-violência, a compaixão e a caridade e que
a serpente Muchalinda ergueu o seu Ser Sagrado e protegeu Buda durante uma
tempestade enquanto ele meditava profundamente, “envolvendo-o com seus vários
capelos”.
O Confucionismo apresenta-se em três bases doutrinárias: lealdade e dever
para com o os pais, o clã e o Estado (BRUCE-MITFORD, 2002, p.27).
Há imagens mais impressionantes para o fim de nossa pesquisa que
conecta a Triune Brain Theory às diferentes psicologias, às psicanálises, às
literaturas, às filosofias, quando buscamos vestígios de sua realidade conflituosa
também nos mitos e nas religiões (entre outras simbologias da civilização humana),
como as da página 28 (BRUCE-MITFORD, 2002), que ilustram seres míticos (meio
animais, meio humanos, que “representam tanto os instintos como o
intelecto”): entre eles, o Minotauro: metade homem, metade touro da cintura
para cima, que representa “os instintos mais básicos do homem”; a serpente
de duas cabeças, mito de várias culturas americanas, associada à chuva,
provedora da vida, que fazia parte do culto ao deus asteca Tlaloc; a imagem de
produção artística francesa, com três personagens, chamada “O Leão e o
Unicórnio” (1500), em que o leão representa o masculino e o sol, o unicórnio
representa a essência feminina e a lua, e a virgem, entre eles segura o espelho da
verdade (que significa a sabedoria do autoconhecimento) para o puro e
incorruptível unicórnio; e, por fim, na mesma página, estão a Hidra – que é uma
serpente (de nove cabeças) associada à naja de várias cabeças da Índia, por vezes
com corpo de cão, que simboliza os obstáculos no caminho da verdade e o
Centauro – com cabeça e torso humanos, corpo de cavalo, mesclando a “natureza
145

instintiva do animal com o juízo e a virtude de um homem”, também “símbolo


cristão do homem dilacerado entre o bem e o mal”.
Ainda, na página 29 (BRUCE-MITFORD, 2002), temos o Tritão (meio
homem, meio peixe, o qual também recebe a referência de ter sido uma raça); as
Sereias (da mitologia de muitos países, corpo de bela mulher e rabo de um peixe,
símbolo da fertilidade, da tentação, da sedução e do inconsciente); o Peixe-bispo
(que tem a cabeça raspada de um monge e o corpo de um peixe); o Hipocampo
(que tem corpo de peixe e patas dianteiras de cavalo, símbolo das águas e da
terra, conhecido como cavalo-marinho, montaria de Posêidon ou Netuno); Makara (é
a criatura aquática indiana, parte peixe e parte crocodilo ou elefante, que simboliza
as águas da criação e evoca a dualidade do bem e do mal, montaria do deus
marinho Varuna e de Ganga, deusa do rio Ganges); Naga (é a cobra naja de várias
cabeças da Índia e do sudeste asiático, que tem torso humano e cabeças de
serpente ou apenas vem representada como cobra, que controla as chuvas e vive
em conflito constante com Garuda, o pássaro do sol).

Figura 11 – Sereia de gravura francesa (1573).

Fonte: “O livro ilustrado dos símbolos” (BRUCE-MITFORD, 2002, p. 29).

Os indícios do triune brain na mitologia, nas religiões, nas criaturas, na


natureza, nos costumes e culturas, e nos sistemas de símbolos não param por aí
nesse livro ilustrado que traz em seu conteúdo “o universo das imagens que
representam as ideias e os fenômenos da realidade”. Há outras fontes também.
146

O quadro “São Jorge e o Dragão” (de Paolo Uccello, 1460) surge


imediatamente na página 30 (BRUCE-MITFORD, 2002), mostrando a equivalência,
para os cristãos, entre o dragão e a serpente que tentou Eva no Jardim do Éden –
ele “encarna os instintos mais baixos do homem” (o guerreiro vence o mal, a
heresia e seus próprios desejos primitivos, ao matar o dragão), sendo que “o
dragão com apenas duas pernas e garras nos pés representa Satanás”. Outros
animais míticos estão na página seguinte: Harpia (com cabeça e seios de mulher e
asas e pernas de abutre, símbolo grego dos aspectos femininos mais negativos e
destrutivos); Quitou (figura alada chinesa, meio animal, meio homem, guardião de
câmaras funerárias de pessoas importantes); Pégaso (cavalo alado da velocidade e
das tempestades, nascido do sangue da Medusa e portador do trovão de Zeus,
semelhante ao cavalo Hipogrifo – do período medieval, símbolo do poder inato,
capaz de transformar o bem em mal); Esfinge (corpo de leão e cabeça de gente,
monstro feminino devorador de quem não decifrava seu enigma, representa o
governante, a sabedoria e os enigmas, em várias culturas, mas era popular no Egito
e na Babilônia); Kinnara (músico celestial hindu meio humano, meio pássaro ou
cavalo, símbolo auspicioso); Garuda (parte homem, parte águia, criatura grande e
nobre símbolo do sol, pássaro da vida que luta com as serpentes, suas arqui-
inimigas, é a montaria de Vishnu); Grifo (corpo de leão e cabeça, asas e garras de
águia, sentinela, símbolo da vigilância, vingança e sabedoria); e o Simurgh (mistura
pavão, leão e grifo, em mitos russos e caucasianos, criatura fabulosa da Pérsia com
poderes curativos mágicos, símbolo da união da terra com o céu).
O rico manancial de símbolos da natureza tem poderoso papel no imaginário
da humanidade (sol e lua, estrelas, frutos e flores, animais, que recebem sentido
específico conforme suas características).
Os símbolos maçônicos também relacionam-se com o três e com os
opostos: cabeça de sol da figura que ilustra o maçom, compasso e esquadro,
chave dentro do triângulo que representa o coração guardião dos segredos,
como podemos ver na página 35. (BRUCE-MITFORD, 2002),
Por sua vez, a neblina (nuvens, que “representa a confusão que a alma
deve vencer para alcançar a iluminação”, é símbolo do misterioso e do místico); e
o arco-íris (que interliga o céu e a terra, “visto como mensagem de esperança dos
deuses”, tendo sido por seu intermédio que Deus, no Antigo Testamento, enviou um
147

sinal de conciliação após o Dilúvio) – aparecem na página 37. (BRUCE-MITFORD,


2002),
Várias substâncias valiosas tem os seus sentidos ocultos explicados nas
páginas 38-39 (BRUCE-MITFORD, 2002) e interessam-nos: o Cristal (que simboliza
a pureza, a claridade e a mente); Ferro (o poder do mal para os chineses, a força
masculina nas culturas mexicana e minoica, inflexível); Prata (associada à lua, pode
embaçar e simboliza o lado corruptível da natureza humana, que precisa ser
limpo, sendo para os chineses feminina, para os cristãos pureza, eloquência e
castidade); Cobre (símbolo das conexões, ligado ao calor e feminilidade na
alquimia, e à posição social entre os índios norte-americanos); Chumbo (o metal
mais pesado, que simboliza “a pessoa com alma carregada de pecados ou um
peso no peito”); Magnetita (poderes quase sexuais pela propriedade magnética,
pedra do amor, garantia da fidelidade feminina para os gregos).
As pedras preciosas vem estudadas nas páginas 40-41 (BRUCE-MITFORD,
2002), entre as quais: a Safira (que simboliza o azul do céu e os atributos celestiais
da verdade, castidade, contemplação, sendo que os três reflexos que a cortam
representam a fé, a esperança e o destino); Topázio (curativa dos males dos
olhos, úlceras, feridas, ficando no vinho por três dias); Talismã de ônix (sem poder
intrínseco, cuja força espiritual era a ele conferida pelo próprio índio norte-
americano, ajudava a controlar as forças da natureza e a lidar com problemas
cotidianos); Diamante (incorruptibilidade e invencibilidade, transparência e pureza,
símbolo de constância e sinceridade); Opala (símbolo da inconstância para
Shakespeare; e da fidelidade, oração e fervor religioso no cristianismo); Cornalina
(pedra da autoconfiança, coragem e saúde no Ocidente; protetora contra a inveja
no Oriente; por ser vermelha seria estimulante do sistema circulatório, valiosa
para os tímidos ao falar); Ágata (cura da insônia, garantia de sonhos prazerosos,
protetora contra os perigos, amolecedora de corações duros; espírito protetor
contra mau-olhado, no Sudão, pelo círculo branco que faz lembrar um olho; ágata
preta representa coragem, vigor, prosperidade; ágata vermelha, vida longa e
amor espiritual).
Se voltarmos nossa atenção para as páginas 42-43 (BRUCE-MITFORD,
2002), encontraremos os Jardins murados (as moradas da alma, na Idade Média,
representavam o útero e o princípio feminino de proteção, e também a
privacidade, o segredo, a virgindade, com forte simbolismo religioso, evocador da
148

iluminação espiritual, de modo que os jardins das delícias eram alegoria do amor
cortesão, com símbolos de beleza, amor e outros prazeres); Jardim de
Versalhes (representa a civilização, ordenação da natureza, significado político,
supremacia, posição social de Luis XIV em Paris, símbolo consciente do poder
da monarquia absoluta); Poço dos desejos (“símbolo do princípio feminino
provedor da vida, cre-se que o poço tem qualidades mágicas. A moeda jogada
nele pode fazer um desejo tornar-se realidade”). Labirinto (gerava confusões e
esconderijos para encontros amorosos a partir da renascença, nos jardins,
acolhedor dos espíritos maus, jornada das trevas para a luz ou a revelação da
sabedoria secreta, uma vez vencidos certos desafios).

Figura 12 – O poço dos desejos.

Fonte: “O livro dos símbolos” (BRUCE-MITFORD, 2002, p. 43).

Prosseguimos na pesquisa, a partir das páginas 44-45 (BRUCE-MITFORD,


2002), onde encontramos criações artísticas sobre as árvores que têm significado
simbólico em todas as culturas (a magia, a Grande Mãe, o mistério): a Árvore do
conhecimento retratada em produção da Escola Espanhola do século XII (que
simboliza a tentação e cresce no Paraíso, com o fruto do bem e do mal, tendo a
serpente – símbolo do mal – nela enrodilhada, que convence Eva a oferecer a
maçã a Adão, causando a queda e a perda da inocência, da graça e a condenação
da humanidade); a Amoreira (cujos frutos “evocam três estágios: brancos, são a
juventude; vermelhos, os vigorosos anos adultos; pretos, o amadurecimento da
sabedoria e a morte – para os chineses é a árvore da vida, símbolo do sol); Louro
(purificador físico e espiritual para gregos e romanos, coroava os poetas,
149

símbolo da excelência nas ciências e nas artes, da imortalidade e da vitória);


Árvores sagradas (Bodhi: tipo de figueira símbolo da iluminação, sob a qual está
Buda meditando; Igdrasil: “é a árvore sempre verde que representa o mundo todo” e
cujo tronco mostra o eixo central do universo, com os rios da sabedoria
borbulhando abaixo de suas raízes – que são atacadas por serpentes maléficas;
essa árvore tem ao seu redor Midgard, a serpente que circunda o mundo
representando o ciclo da eternidade).
Na página 46 (BRUCE-MITFORD, 2002), temos o antigo símbolo religioso
árabe do trevo – adotado pelos cristãos, cujas três folhas representam a
Santíssima Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo; na Irlanda, o trevo é o emblema
do país e de seu padroeiro; um trevo de quatro folhas traz sorte; e a Mandrágora
(cuja forma das raízes lembra a forma de um homem, considerada mágica pelos
egípcios, símbolo de encantamento, fertilidade, prosperidade).
A Erva-doce aparece na página 47 (BRUCE-MITFORD, 2002), no estudo
das plantas e seu simbolismo mais direto (ligado à cor, forma, cheiro, habitat), e é
símbolo de clareza e renovação (faria as cobras perderem a pele, boa para os
olhos).
E o Ovo (que está entre os alimentos naturais que nos dão vida e nos ligam
aos outros seres humanos, apresentado na página 48), surge envolvendo o mito
mundial de ser a origem do universo (representa o útero, o potencial de vida, o
nascimento, o universo, esperança e imortalidade). (BRUCE-MITFORD, 2002). O
ovo tem três partes básicas: gema, clara (ou álbumen) e casca.
As paginas 50-51 (BRUCE-MITFORD, 2002) trazem algumas flores, que em
todos os tempos e culturas foram usadas nos cultos e nas culturas com significados
especiais (e lugares na vida e no coração das pessoas): Íris (cada três pétalas dela
indicam fé, sabedoria e valor; leva o nome da deusa grega do arco-íris, que levava
as almas das mulheres para o mundo subterrâneo, servindo para decorar
túmulos); Amor-perfeito (está poeticamente ligada ao pensamento, às
lembranças e ao amor, pode levar a pessoa que estiver dormindo a se apaixonar
se colocada sobre seus olhos, emblema da Santíssima Trindade); Rosa (vermelha:
símbolo arquetípico do amor e beleza, consagrada a Vênus; branca: símbolo da
pureza, charme, virgindade e segredo, representa a água; amarela: associada ao
ciúme e infidelidade).
150

O Girassol “representa paixão desvairada” (é Clícia que nela transformou-


se por amor cego dedicado a Apolo, o deus do sol, conforme os gregos); o Lótus
(evoca pureza e criação; o cordão umbilical humano que o liga às suas origens
está na sua longa haste; a iluminação e pureza almejadas pela alma estão na
sua flor; símbolo dos mais antigos da arte da Ásia, representa nascimento e
renascimento); o Narciso (cujo odor suave e inebriante pode curar a loucura, sua
flor simboliza os perigos da vaidade; para os cristãos, representa o amor divino;
para os chineses, a boa sorte); a Madressilva (ilustra o amor generoso, símbolo da
união com seus entes queridos para os franceses, antigamente usada para curar
furúnculos); e o Jasmim (tem sua flor como símbolo do amor para os casamentos
hindus, na China ele representa a beleza e para os cristão simboliza a felicidade
celestial) – estão na página 52-53. (BRUCE-MITFORD, 2002),
Na página 54 (BRUCE-MITFORD, 2002), entre as várias criaturas do mar,
temos a Baleia (símbolo da morte e renascimento, ligada ao Velho Testamento
devido ao relato sobre Jonas ter sido por ela engolido e regurgitado na praia,
vivo, três dias depois; os inuits tem uma lenda similar; para os mitos russos, árticos
e eslavos, a terra está sobre uma baleia que se move quando há terremotos).
O escorpião significa destruição e morte, símbolo do mal, da inveja e do
ódio, e das trevas (por esconder-se no subsolo); era a forma da deusa egípcia
Serket). O lagarto tem conexão com a morte e a ressurreição e simboliza a busca
do conhecimento pela alma pelo seu costume de ficar ao sol; era figura mágica
para alguns índios, conforme podemos contemplar na página 58. (BRUCE-
MITFORD, 2002),
O Cajado de Esculápio, deus romano da medicina, traz desenhada (na
página seguinte, 59) uma serpente enrodilhada em um bastão; a troca da pele da
cobra se liga à cura; símbolo da renovação e da regeneração; na alquimia, essa
imagem representa o uso do metal mercúrio; na mesma página 59 estão a Medusa
(que tem seus cabelos de serpentes retorcidas, de aparência terrível para
transformar em pedra aqueles que a olhavam, símbolo do terror, da feitiçaria e da
velhacaria) e a Queda (ou perda da graça de Adão e Eva, que está intimamente
ligada à serpente símbolo do logro e do mal, da língua solta, da tentação e do
pecado; uma serpente em forma feminina tentou Eva a provar do fruto proibido).
(BRUCE-MITFORD, 2002),
151

Alguns mamíferos ocuparam lugar proeminente na imaginação humana (na


página 60): a Lebre, associada à luxúria, à lua, à fertilidade (representante de
personagens opostos: “parte palhaço, parte deus, criador e transformador de
nossa natureza animal”; na China ela é o yin, representa o princípio feminino; na
Páscoa simboliza renascimento da vida); o Cão (protetor e amigo leal, aparecia na
mitologia grega como Cérbero, o cão de três cabeças sentinela dos portões do
reino dos mortos, guia espiritual; entre judeus e islamitas é considerado sujo,
embora apreciado no zoroastrismo; símbolo de fidelidade, proteção, obediência
cega e amor incondicional); o Gato egípcio (consagrado à deusa Bastet, que tinha
cabeça felina e representava o poder do sol e de amadurecer plantações, sendo
que o gato macho era símbolo do deus sol); a Raposa (representa engano e logro
em toda parte, com capacidade de mudar de forma em algumas tradições; no
Oriente pode tornar-se bela jovem para causar problemas; nas fábulas usa
roupa de gente para pegar pessoas desprevenidas). (BRUCE-MITFORD, 2002)
O Bode (simboliza a busca incessante da verdade por ser ágil nas
escaladas, representa falta de lei, poderes diabólicos, luxúria e fertilidade; os
sátiros eram meio humanos e meio bodes e o Diabo aparece retratado com
chifres e cascos desse animal); o Porco (macho simboliza coragem e fêmea a
fertilidade; no judaísmo ele é sujo e repelente; no cristianismo é ligado a glutonaria
e a Satanás); e o Boi e o Búfalo evocam poder e força masculinos, mas tem
atributos femininos e lunares pelo formato crescente dos chifres, sendo que a
corda é símbolo da tentativa humana de controlar o animal – “O TOURO É
MONTARIA DE SHIVA NO HINDUÍSMO, E NO TAOÍSMO O SÁBIO LAO TSÉ É
REPRESENTADO CAVALGANDO UM BOI PARA INDICAR O DOMÍNIO DO EGO”
[grifo nosso]. (BRUCE-MITFORD, 2002). Essas são imagens constantes da página
61 do mesmo livro ilustrado. E isso nos lembra das palavras de Platão, Freud e
Koestler.
Na página 62-63 (BRUCE-MITFORD, 2002), temos: São Jerônimo e o Leão,
de Niccolo Colantonio (1450), o símbolo do domínio do homem sobre sua
própria natureza animal (vários contos do leão que se tornou devoto de quem o
ajudou, como Ândrocles, na fábula de Esopo, pela retirada de espinho de sua pata,
tornou-se manso e a viveu em paz com o santo); as Cabeças de animais e suas
características peculiares (a do Chacal, usada em urna egípcia; a do Leopardo, em
máscara de ouro da África do século XVI, símbolo de coragem, crueldade e
152

instinto indomável, representa o sol matinal, sua pele de realeza espanta os


perigos, suas manchas lembram olhos do “grande observador”, como é
chamado; já o Tigre, para os chineses, se devora um homem, tem sua alma
escravizada pelo animal e ataca outros homens; o Cervo (é animal solar, inimigo
da serpente, simboliza renovação pelos chifres, regeneração); a Gazela (simboliza
beleza e a alma, agilidade e velocidade: entre os árabes, é metáfora para os
enamorados, representa no cristianismo a alma que foge das paixões terrenas
porque corre dos predadores); o Hipopótamo (afinidade com a terra e a água: a
deusa da fertilidade Taueret era representada com cabeça de hipopótamo, era
a besta do Nilo na visão de gregos e romanos); o Elefante (força e porte, símbolo
de poder, paciência, sabedoria e castidade: o deus Ganesha tinha cabeça de
elefante e seu ventre representa prosperidade e benevolência; se branco,
representa realeza e é associado a Buda); e os Três macacos do Japão (figuras
ancestrais e sagradas para certas tribos africanas ocidentais, simbolizam
travessura e curiosidade excessiva; para os japoneses existe a conhecida
imagem dos três macacos místicos, que não vêem, não ouvem nem falam o
mal).
A alma deixaria o corpo em forma simbólica de ave (e esta às vezes é
representada “lutando com a serpente, ou carregando-a, como símbolo do
equilíbrio instável entre sol e água”) – páginas 64-65 (BRUCE-MITFORD, 2002): o
Pelicano (em antiga lenda cristã, três filhotes de pelicano foram mortos por uma
cobra, sendo que sua mãe pranteou por três dias e depois os ressuscitou com o
seu bico e o seu sangue, símbolo de autosacrifício e devoção, e que Jesus
derramou o sangue pela humanidade e levantou-se dos mortos ao terceiro dia); o
Falcão (força destrutiva da guerra e poder do sol para os chineses, representa
liberdade de espírito na Europa e os poderes masculinos e do sol); o Papagaio
(simboliza fertilidade e vigor, zombaria e arremedo, associado no hinduísmo ao
amor Kama e aos dons da profecia e de provocar chuva, já para os hopis da
América do Norte ele é ser sagrado).
“Pássaros e aves são mediadores entre deuses e homens, ou agentes das
divindades”. É dona mesmo de um forte simbolismo, a Águia, o rei das aves
(universalmente assim considerada), ligada ao sol, realeza, deuses, autoridade,
força, vitória, orgulho; ao princípio masculino yang, vigor, destemor (na China);
ligada à ave mítica Garuda em combate mortal com a serpente (na Índia); à
153

prece que subia até Deus e a ascenção de Cristo (na Europa Medieval); ao
retorno da alma dos mortos de volta ao Sonho (na Austrália), na águia marinha;
ao poder e à força na águia americana; ao trovão, emblema de Júpiter, na águia
de Napoleão. (BRUCE-MITFORD, 2002, p. 66).
A Coruja é pássaro da noite, de mau augúrio, seu grito prenuncia a morte e
infelicidade; para os gregos era consagrada a Atena, deusa da sabedoria e da
noite; os celtas a viam como bruxa da noite, ligada aos cadáveres; os africanos a
associavam à magia e usavam sua cabeça em feitiços. O Rouxinol tem canto doce
e queixoso (símbolo do amor, saudade e dor, na Pérsia; e do anseio da alma por
Jesus, entre os cristãos, por anunciar cantando o amanhecer). A Codorna, no
folclore russo, simboliza o sol; entre os chineses e romanos, era símbolo de coragem
e vitória em batalha (ou da alma prisioneira do corpo, se engaiolada); também se
relaciona em certos lugares à boa sorte, e à natureza extremamente amorosa
(com simbologia sexual). O Melro era pássaro sagrado na Grécia pelo seu canto
fascinante e símbolo das tentações da carne (representa o mal em alguns
escritos cristãos, com plumagem preta). O Abutre, por seu turno, vem representar
deuses egípcios (figura feminina e instinto materno); para os zoroastrianos são
“purificadores cheios de compaixão” por comerem cadáveres (temidos por terem
apetite carnívoro). (BRUCE-MITFORD, 2002, p. 67).
Há interpretação simbólica em grande parte do que as pessoas fazem (trajes
cerimoniais, por exemplo), nossos corpos são microcosmos do universo e os rituais
refletem a nossa relação com a natureza. Todas as culturas tiveram deuses
relacionados ao simbolismo sexual: “O linga é a forma de Shiva mais venerada: um
pilar em forma de falo representa o deus como princípio criativo masculino”. Na
imagem hindu, ele aparece posicionado “sobre o yoni, elemento feminino em
forma de vulva. Juntos, representam fertilidade e criação”. Na mesma imagem,
aparecem as três listras do culto a Shiva, cujo rosto é protegido por duas
cobras. [grifo nosso]. (BRUCE-MITFORD, 2002, p. 70).
Nas páginas 71-75 (BRUCE-MITFORD, 2002), localizamos mais símbolos
interessantes para pensarmos nossa pesquisa do triune brain: a Deusa da
Fertilidade (imagem em ouro da deusa cananéia da fertilidade Astarté, datado do
século XVI a.C., muito estilizada, com o triângulo púbico no interior de outro
maior e com órgãos sexuais bem definidos; o Santuário que tudo vê (estupa do
Nepal com quatro pares de olhos, com o olhar de Buda voltado a todas as direções,
154

tendo acima de cada par de olhos um terceiro olho, que evoca a clarividência
de Buda – sabedoria e onisciência – o olho simboliza o sol, o “olho que tudo vê”
de Deus, a sentinela eterna, assim como o poder do mal, janela da alma e luz do
corpo); o Cérebro está identificado com o intelecto, localizado no crânio, na
cabeça, a sede da inteligência na cultura do Ocidente; já a Boca (faz
julgamentos e simboliza a palavra, representando “a terra devoradora ou uma
porta para os domínios do inconsciente”); o Coração (no cristianismo é fonte de
amor, alegria, tristeza e compaixão; para os gregos era o centro das ideias, do
sentimento e da vontade; no islã é o foco espiritual; flecha do Cupido ao atingí-
lo gera na vítima prazer e dor do desejo); um Pilar egípcio representa a espinha
de Osíris e a estabilidade do poder faraônico e do céu (a coluna vertebral é o
suporte central do corpo que simboliza o eixo do mundo); e, por fim, o símbolo
de três pernas formando um círculo, significando rapidez do sol para nascer e se
pôr de novo, sorte, regeneração pelo ciclo contínuo de suas pegadas (emblema
da Sicília e da ilha britânica de Man).

Figura 13 – Símbolo de três pernas da Sicília e da Ilha de Man.

Fonte: “O livro dos símbolos” (BRUCE-MITFORD, 2002, p. 75).

Entre as páginas 76-77 (BRUCE-MITFORD, 2002), a autora escreve sobre


dança (energia, excitação, derivada de antigos rituais de fertilidade e de guerra,
símbolo de prazer) e teatro (gestos e ações mais controlados). Fantoches
representam pessoas e referem-se ao comportamento humano (em suas
aparências e ações); em Mianmar, histórias épicas inspiram atos nobres e
corajosos nos espectadores; em Bali, o teatro de sombras cria um mundo de
mistérios divinos e heróicos). Na Turquia, a dança dos dervixes (ou homens
155

santos) os faz girarem até o êxtase e a unidade com o eixo da terra em órbita do
sol, simbolizando a espiral do universo. Algo semelhante ocorre na dança da maia,
que ocorre em volta de uma mastro (eixo da terra e símbolo fálico) com fitas greco-
romanas que celebram a primavera, na Inglaterra. Shiva, o senhor da dança, em
frenesi, representa morte e renascimento e usa um tambor para marcar o pulso do
universo e do coração. Na Grécia antiga, o teatro era um retrato poderoso e
simbólico das emoções e do comportamento humanos (ciúme, amor e incesto,
ansiedade, terapia pela identificação com as personagens). A dança clássica
indiana traz gestos de mão que representam estados de espírito, ações e objetos
ou criaturas (e cada movimento tem significado próprio). No Japão, máscaras de
madeira pintada são usadas representando masculino, feminino, velhice,
divindades, monstros e emoções – as máscaras nô. Entre os dançarinos da tribo
kwatiutl, norte-americanos, as máscaras da transformação permitem apresentar
faces cambiantes (uma máscara se abre sob a outra) – na imagem do livro há
uma que tem, por fora, a imagem de uma águia e, por dentro, um rosto humano
expressando emoções negativas.
A pesquisa realizada nesse mundo mágico, mitológico, imaginário e artístico
do livro em estudo permitiu-nos obter mais insights sobre vestígios do triune brain na
cultura humana do que as pesquisas direcionadas aos artigos e livros científicos. É
claro que não há como trazer neste breve trabalho de conclusão do curso de
psicologia nossos comentários detalhados sobre cada um deles, por isso deixamos
essa tarefa a cargo daqueles(as) que aventurarem-se na leitura de nosso texto.
Muitas coisas permanecem sem explicação e envoltas em mistérios mesmo
no mundo adulto, quando passamos do período infantil em que nos interessamos
por contos de fadas, magia e rituais – há “forças que nos afetam e que não
podemos controlar”. Benzeduras e simpatias são a opção de muitas pessoas, em
busca da cura, do amor ou da vingança contra inimigos – a autora analisa os
talismãs e a magia (BRUCE-MITFORD, 2002, p. 78-79). No feng chui, os chineses
desejam criar harmonia da vida com o ambiente. “O espelho simboliza verdade
divina e sabedoria do universo”. As poções do amor (como na pintura trazida pelo
livro, “A poção do amor”, de Evelyn de Morgan, 1903) são um recurso à magia
para os apaixonados não-correspondidos tentarem cativar o objeto de sua
afeição (nelas há ingredientes fálicos, afrodisíacos e feitiços com palavras
mágicas). Os amuletos prometem proteger o corpo dos perigos e das doenças e
156

são usados em bebês ou por soldados na guerra (simbolizam saúde, efeitos


curativos, energia).
Há entre os instrumentos musicais também um simbolismo da harmonia e
união com a natureza, seu ritmo é o pulsar da vida. Dão prazer, afastam o
perigo, atraem o ouvinte (a percussão é êxtase, verdade e revelação; os de
cordas representam sons celestiais). (BRUCE-MITFORD, 2002, 80-81). O tambor
tem som primordial, fala e verdade divina (trovão, coração do universo), e é
usado nas danças (como o tambor africano, fortemente simbólico, tocado para
conjurar poderes mágicos e representar o bater do coração nas danças ritualísticas;
como o tambor militar usado nas guerras, em ritmo compassado). A guitarra
elétrica simboliza juventude e rebeldia (som ensurdecedor das bandas rivais) e é
símbolo fálico. Orfeu aplacava tempestades e encantava os animais com sua lira
(acalmava todos os seres). Vemos atualmente a flauta de Pã (que originalmente
levava ao transe) – dos sátiros gregos – ser tocada nos países andinos (a quena
representa a harmonia da natureza). Por outro lado, a flauta de Krishna “é a voz
da eternidade que chama todos os seres humanos” – é fálica, mas com som
delicado, feminino, gerando extremos de emoção e angústia (no cristianismo é o
anseio da alma por Deus).
Amor e casamento – ele é o sentimento que “faz girar o mundo” e é central
na vida (inspirando poetas, escritores, pintores e escultores de todos os lugares).
Liga pais e filhos. Homem e mulher. Pode ser sexual (“a poderosa atração de forças
opostas e complementares encontrada na natureza”). Pode ser platônico (gera a
trama social, e é emoção profunda e aglutinadora). A fusão da alma com o
cosmo é expressada pelo impulso da alma no ato sexual. A era vitoriana, no fim do
século XIX, foi o auge da sentimentalidade, com seus cartões de dia dos
namorados, trocados entre apaixonados, com símbolos do amor romântico:
pombas, cupidos, corações. Um símbolo clássico da atração sexual ou amorosa é a
imagem dos lábios com batom vermelho em forma de beijo para selar cartas (se
estiver no colarinho, representa infidelidade). (BRUCE-MITFORD, 2002, p. 82-83).
No vestuário está um reflexo da sociedade e das pessoas e de sua
posição social e sexual – por isso há nele interesse emocional. Diz o que
somos, o que desejamos ser. Pessoas finas, sedutoras, trabalhadoras, rebeldes,
jovens. Nas páginas 84 e 85 do livro em análise, temos várias imagens conectadas
aos objetivos diferentes dos cérebros constituintes (segundo Paul MacLean) de
157

nosso triune brain. Um caçador veste roupas simples e usa utensílios (entre eles
uma lança) que mostram seu estilo de vida. Alguns tecidos representam luxo
(seda), privilégio (renda), simplicidade (algodão). Calçados podem simbolizar
status (o desejo humano de “falar de cima” plasmado no sapato plataforma),
delicadeza (tamanco japonês), verdade e transformação (sapatinho de cristal de
Cinderela), a informalidade do atleta bem preparado fisicamente (tênis). Em
países muçulmanos radicais, mulheres somente saem de casa com o chador com
véu para não atrair o desejo masculino. Há chapéus de formatura (símbolo de
erudição). Há as boinas associadas tanto à guerra como à paz (representando
trabalho, valor, excelência militar). (BRUCE-MITFORD, 2002).
Jóias são um presente tradicional (prova de amor). Têm simbolismo ligado
mais ao objeto dado do que à sua forma. Há, entre os exemplos de Miranda Bruce-
Mitford (2002, p. 86-87) para esse aspecto da cultura e dos costumes dos humanos,
uma imagem de um colar em forma de cobra (1870). Contas africanas são
decorativas e uma forma de comunicação (as meninas fazem cartas amorosas
em colarzinhos). Num bracelete, cuja foto aparece nessa obra, há uma ferradura, um
poço dos desejos, um macaquinho, um peixe e a rã da fertilidade (são braceletes
fetiche, um talismã completo – os de prata protegem o seu portador). O anel do
amor, popular no século XVIII, era feito de peças interligadas que fechavam-se
sobre um coração (o simbolismo romântico deles está na impossibilidade de
separar suas peças). “Bodas de 30 anos: símbolo de beleza e perfeição, há muito
as pérolas representam o amor. Se o diamante é o ‘rei das joias’, ela é a rainha.
Costuma-se dar uma jóia com pérolas no aniversário de 30 anos de casamento”.
Forte simbolismo existe na instituição da realeza (direito divino, semideus,
microcosmos do universo nas cortes, e o trono no centro dos palácios – a
montanha sagrada do eixo do mundo – em países asiáticos). Coroa (soberania e
honra – indica a parte mais nobre da pessoa, a cabeça, sede do intelecto), cetro
(responsabilidade pela prosperidade e magia), trono (autoridade), manto (proteção e
mistério), orbe (o mundo nas mãos). O rei é consciência que controla as pulsões
inconscientes, e é o poder máximo. A rainha (contraparte feminina do rei, e com
ele representa a união perfeita dos opostos, duas metades do todo, sol e lua,
dia e noite). O cavaleiro (um homem superior sobre o cavalo, velocidade, ordem
no reino, coragem, devoção ao dever, nobreza, invencível). Príncipe e princesa
(ele, coragem e ação moral, herói; ela, supremo bem e beleza) – o príncipe “enfrenta
158

a adversidade para mudar uma situação ou salvar uma princesa: isso representa
que o caminho da verdade só pode ser atingido pela luta espiritual”. Os
palácios tem vários cômodos (alguns secretos, que escondem tesouros e
representam o inconsciente e as verdades espirituais) – residências reais,
simbolizam o céu e o coração do reino. (BRUCE-MITFORD, 2002, p. 88-89).
Ferramentas e armas também fazem parte do nosso mundo real, imaginário
e simbólico ao longo da história humana sobre a terra. São objetos de uso prático,
com forte significado para o mundo interior ou espiritual. Deuses são
associados a utensílios, que representam fertilidade, morte e guerra, poder,
proteção e destruição, derrota da ignorância e libertação, ou a superação de
conflito pelo deus ou herói. Balança da justiça (personificada em forma feminina
para os romanos, tem a espada da força e balança da imparcialidade, uma em
cada mão). A escada (é o anseio de nos elevarmos da ignorância para a luz,
Buda subiu por uma escada ao paraíso). A roca de fiar, símbolo do universo (tece a
vida com fios masculinos e femininos unidos em harmonia), é o instrumento das
Parcas, as três deusas gregas do destino (que regem o nascimento, a vida e a
morte). O emblema sikh (Nishan Sahib) se assemelha ao caduceu (em nossa
opinião), porque possui uma espada vertical de lâmina dupla (verdade e justiça),
outras duas cruzadas (poder divino) – similares às serpentes enrodilhadas num
bastão – e uma arma circular (quoit) no centro. A lança (tem forma fálica, evoca a
guerra, poder e fertilidade – entre os cristãos artistas “um animal empalado
por uma lança representa o vício derrotado”). Figuras que personificam a
virtude geralmente portam lanças. A lança também é o eixo do mundo (e símbolo
da paixão de Cristo). A bigorna é vista como a contraparte feminina do martelo
(símbolo do trovão) e é receptiva – juntos representam as forças opostas e
complementares do ativo e do passivo. O arado (fálico) é a fecundação da terra
pelos deuses, sendo os sulcos receptivos – simboliza o ato da Criação, quando a
matéria primordial deu origem à vida. Espada é poder, coragem, honra,
cerimonial, purificação (limpa a alma do cavaleiro) vitória, autoridade, “separa o
bem do mal e retalha a ignorância”. (BRUCE-MITFORD, 2002, p. 90-91).
Morte e luto são dois temas abordados também nessa obra ilustrada – a
certeza da morte que une os humanos, “independentemente de condição social”,
e o medo do desconhecido. Os rituais são distintos: para uns, união do corpo com
a Mãe Terra, para outros ocorre a reintegração da alma com o oceano cósmico, ou
159

ao céu (a vida de volta ao estado de união com a natureza). Simbolismo da


morte: pós-vida, luto, temores, dores e alegrias. A dança da morte demonstra que
ela nivela tudo (todos têm a morte em comum, as várias classes, do papa ao
camponês) – figura da “Dança da Morte”, de Hans Holbein (1786). A papoula
simboliza o sono e os sonhos, além dos mortos das duas guerras mundiais
quando usadas em uma coroa vermelha. (BRUCE-MITFORD, 2002, p. 92-93).

Figura 14 – Estátua e Balança da Justiça.

Fonte: “O livro dos símbolos” (BRUCE-MITFORD, 2002, p. 90).

Na arquitetura também existem vestígios do triune brain e da influência


sempre presente em todas as manifestações e fenômenos humanos sobre a Terra:
edifícios diferentes se associam a ideais distintos, ou status e realização
material, ou ligação ao ambiente natural. Terraços em degraus podem ter o
sentido de representação de níveis celestes. Janelas podem ser símbolos de
fronteiras entre mundos à parte. A pirâmide é símbolo do eixo do mundo, no
centro do universo, para os egípcios (seu topo, o mais alto nível espiritual) – uma
pirâmide em degraus evoca os níveis da consciência que a alma deve atingir
durante a ascese. A janela é o olho da alma, como o olho é a “janela da alma”
(simbolizam ambos a consciência e a percepção individual do mundo, luz da
verdade que entra na alma pela luminosidade que por ela passar). O facho de luz
do farol, orientador dos navios, é símbolo do ensinamento de Cristo (que “leva a
alma à segurança da fé e da compreensão”). Escadarias representam estágios
do desenvolvimento espiritual, tal qual os degraus da pirâmide – “pode-se
160

ascender até a iluminação ou descer às trevas e à ignorância”. A torre significa


o inacessível e a proteção. Já o castelo com torre, fosso, ponte representa o poder
territorial e segurança – nos contos de fadas nele mora um gigante ou um
demônio (o peso da ignorância), que precisa ser vencido para libertar a
princesa ou tomar o tesouro (símbolos de conhecimento espiritual). (BRUCE-
MITFORD, 2002, 94-95).
Ascender até a compreensão ou descer à ignorância. É para pensarmos.
É exatamente porque temos esses três cérebros (em um) que nossa a
civilização humana têm símbolos assim como os que temos revisitado nesses
últimos parágrafos, do contrário nossas representações artísticas seriam bem
diferentes.
Até os objetos do nosso cotidiano ganharam significado simbólico
(BRUCE-MITFORD, 2002, 96-97): há objetos recipientes (feminilidade, proteção,
segredo), de luz e fogo (iluminação), chaves, de passagem do tempo, da
fragilidade humana. Os três cestos são as escrituras do cânon budista. A cesta
cheia representa fertilidade, fruição, abundância. A caixa é símbolo feminino que
representa o inconsciente (fechada), e pode desencadear uma tempestade de
devastações, doença e morte sobre o mundo, se aberta (Pandora). A taça é
outro símbolo do domínio feminino. O espelho, como já vimos, é pensar e refletir,
verdade, clareza e autoconhecimento (no taoísmo é a tranquilidade do sábio,
reflexão do universo). Lâmpada é símbolo arquetípico da ideia brilhante
(inspiração). Lamparina tem chama que ilustra sabedoria, vida imortalidade, luz
do espírito (o gênio Aladim, de “Mil e uma noites”, atende os desejos da pessoa
que o libertar, símbolo de magia e fortuna). Vela simboliza a alma individual, com
a chama que dissolve a treva da ignorância (é sol, iluminação espiritual); apagada
é a morte; está presente em muitos ritos religiosos (acesa, representa Cristo como
luz ressurgida do mundo). Batom vermelho brilhante representa sexualidade
(destacador da zona erógena dos lábios), com mecanismo de rosca que sobe e
desce combinando o elemento masculino e o feminino. Já o livro simboliza
conhecimento e sabedoria do universo (quem nada tem a esconder é “um livro
aberto”; fechado, o livro é um mistério). A escrita chinesa usa a pena e a tinta
(símbolos do intelecto e aprendizado) – a pena (fálica) tira seu poder do tinteiro
(receptivo) em que mergulha e juntos escrevem o destino na folha branca da vida.
161

Em milênios evoluímos sistemas de símbolos (desenhados ou corporais)


e meios de comunicação imediata (gestos e imagens estilizadas), que hoje
transcendem as novas tecnologias. A escrita desenhada antiga é tentativa de
representar linguagem não verbal e não gestual, em pictogramas, e foi seguida da
linguagem de sinais de sons, complexificando-se com o tempo. Assim, temos os
ideogramas hititas, os pictogramas dos Camarões, as tabuinhas de argila de
3.000 a.C. achadas no Irã e Iraque, os hieróglifos egípcios (que usam animais,
plantas e flores com fonemas). “O livro ilustrado dos símbolos” mostra um painel da
história maia, de Yaxchilán, entre México e Guatemala, que representa uma
oferenda sacrificial de sangue para invocação de espíritos ancestrais: “A Senhora
Xoc, mulher do Senhor Escudo Jaguar, está encarando Yat-Balam, espírito que
emerge das mandíbulas de uma grande serpente de duas cabeças”. (BRUCE-
MITFORD, 2002, p. 100-101).
Os babilônios faziam observações astronômicas e, talvez, a partir daí é que
os números passaram a ser vistos como expressões da ordem cósmica: tem
significados simbólicos em várias culturas. Mais do que quantidades, representam
qualidades: para Pitágoras os pares eram femininos (passivos) e os ímpares eram
masculinos (ativos). O número três, que muito nos interessa neste trabalho de
conclusão do curso de psicologia, aparece no tridente de Netuno, deus do mar,
representando passado, presente e futuro; no de Shiva, deus hindu, indicando
sua função de criador, preservador e destruidor, e também no tridente de
Satanás. Aparece no trifólio da Santíssima Trindade, em três formas
geométricas reunidas (um deus em três pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo) –
o trifólio que é um detalhe da arquitetura de muitas igrejas. O número três
combina o um e o dois (em muitas religiões), incluindo toda a vida e a
experiência: nascimento, vida e morte; mente, corpo e alma; passado, presente
e futuro; homem, mulher e criança. A divina trindade hindu, Brahma, Vishnu e
Shiva, “formam um poderoso trio de deuses na Índia” (criam, protegem e
destroem a vida, em ciclo interminável de nascimento e renascimento). No
menorá, os braços do candelabro judaico lembram os dias da semana, os planetas,
o sol e a lua, e os seus três arcos em forma de U são símbolos da sabedoria,
força e beleza. Muitas culturas viam o mundo como constituído por dualidades de
opostos: vida e morte, luz e treva, feminino e masculino, céu e inferno; em outras
culturas, como a chinesa taoísta, os pares de opostos são complementares,
162

como o yin e o yang, pois dois pode gerar discórdia e conflito, ou equilíbrio e
casamento. Na filosofia hindu, há círculos interiores, ou sete chacras no corpo
humano, que são os níveis da consciência – e vão desde os inferiores
(sobrevivência física) até os superiores (iluminação espiritual). (BRUCE-
MITFORD, 2002, 102-103).
Há universalidade em certas formas e padrões (BRUCE-MITFORD, 2002,
104-105): simetria (ordem), mistérios (nós e laços), caminho certo (labirintos),
quadrilátero (solidez da terra) de um templo com cúpula circular (domo e céu). Nas
mandalas hindus há formas geométricas, triângulos de ponta para cima (princípio
masculino) e que apontam para baixo (feminino) que “se entrelaçam para
representar a atividade criativa do cosmo” – yantras para foco de meditação,
com círculos (que ligam os triângulos opostos) e quadrados (portas por onde a
mente entra no centro). A imagem de Shou é uma das três formas de simbolizar a
longevidade (imortalidade), e vem junto de outros símbolos de longa vida: tartaruga
e pinheiro. Nos labirintos (do mediterrâneo, indianos, egípcios, celtas) precisa-se
alcançar o conhecimento para encontrar o caminho correto – no centro reside
a verdade (nos sonhos o labirinto representa a indecisão). A crença no fluir da
energia em espirais simboliza as forças masculina e feminina (sol e lua), poder dos
redemoinhos e furacões, movimento do céu – energia da natureza manifesta
ligada à poderosa imagem da serpente e do movimento circular da alma (que
retorna ao centro, a verdade). O triskele é um tambor chinês com uma insígnia
tripla que simboliza a boa sorte e o movimento do sol pelo céu.
Conforme o mesmo livro e autora, as cores provocam impacto visual e
associações emocionais e simbólicas de grande poder. Vermelho (sangue),
verde (natureza), preto e branco (morte); vermelho (estimulante), azul (calmante),
arco-íris com todo o espectro (indica sorte). Verde é primavera e juventude,
esperança e alegria (e indica a Santíssima Trindade para os cristãos), além de
ser hoje a cor da ecologia, mas também da inveja. Vermelho pode ser também
símbolo de posição social (viril, perigo, sexualidade, esportividade e sucesso
masculino em países ricos); o Diabo (ou Satanás) é vermelho, desde a Idade
Média, pela cor do fogo do inferno, da paixão incontrolável, da luxúria. Azul é
calma, intelecto e reflexão, cor do céu e da água, infinito e vácuo de onde derivou
toda a vida. O amarelo representa sabedoria e bom conselho (dourado), luz e sol,
163

ou traição (pálido); em outras culturas pode significar inveja, desgraça, covardia; ou


pode representar a realeza, como na China. (BRUCE-MITFORD, 2002, 106-107).

Figura 15 – Símbolos alquímicos do fogo e da água,


a Estrela de Davi e o Selo de Salomão.

Fonte: “O livro dos símbolos” (BRUCE-MITFORD, 2002, p. 16 e 108).

A alquimia da Idade Média antecedeu a química e era tradição rica em


simbolismo que reunia a prática científica com a mística da natureza – na busca
da transmutação e da perfeição espiritual. Trabalhavam os alquimistas com os
opostos elementares: água e fogo, ar e terra (símbolos alquímicos). O uruboros
era dragão ou serpente que come a própria cauda (representante do deus
Mercúrio), formando um círculo do ciclo eterno da natureza. No Selo de Salomão
a estrela tem seis pontas, com o ar e a terra criando-se com o movimento dos
triângulos que representam o fogo (para cima) e a água (para baixo) e a união
dos quatro elementos na busca da pedra filosofal (e da transformação de metais em
ouro). Do caduceu, que tanto falamos neste trabalho, símbolo de forças opostas
em equilíbrio, lembramos a imagem das duas serpentes litigantes entre as
quais o deus Mercúrio jogou sua vareta mágica na qual elas enroscaram-se.
Sob cada uma das asas da imagem da ave Fênix, que renasce pelo fogo
(regenera-se), aparecem protegidos os elementos água e fogo. A Maçonaria
também tem diferentes símbolos que remetem ao número três, tais como o quadro
que exibe os três pilares da sabedoria, da força e da beleza na construção do
Templo de Salomão; no mesmo quadro, Ashlar (bloco de pedra em forma bruta
representam o homem em estado informe, e depois de concluído mostra a
perfeição); nessa imagem, a Escada de Jacó também traz três pilares principais:
164

fé, esperança e caridade. A escada em curva do Templo de Salomão (que é


repleto de símbolos) representa a viagem interior do indivíduo; a chave dos
segredos humanos reside no templo. O emblema maçônico com as ferramentas
essenciais do pedreiro (esquadro e compasso) simboliza a construção de
melhores cidadãos (pelo seu código moral) e tem formato triangular assemelhado
ao Selo de Salomão. (BRUCE-MITFORD, 2002, 108-109).
A quiromancia, consulta de runas, leitura das mãos, e o sistema divinatório
do tarô (representações visuais de estados da mente) continuam a ser praticados
no mundo todo, desde tempos imemoriais para prever o curso futuro dos
acontecimentos e atender a essa primordial preocupação humana (BRUCE-
MITFORD, 2002, 110-111). Uma imagem: “Cigana lê as folhas de chá” traz
comentário sobre a predição da sorte com o uso de folhas de chá, na Europa,
método pelo qual a pessoa bebe a infusão “até deixar o equivalente a uma colher
chá na xícara”, que era girada três vezes antes de derramar o líquido no pires
(interpretava-se o desenho criado pelas folhas no fundo da xícara). E o I Ching é
antigo texto de adivinhação chinês cujas respostas provêm de trigramas (linhas
inteiras ou interrompidas, masculinas e femininas), que geram 64 hexagramas.
Há milhares de anos a ideia de que Sol e Lua influenciam o comportamento
humano nos acompanha com a astrologia (desde as antigas civilizações
mesopotâmicas, antes de 3.000 a.C.). Os signos de fogo são enérgicos e
vigorosos e os da água são emocionais e intuitivos; os do ar são objetivos e
lógicos e os da terra práticos e confiáveis (conforme a roda astrológica da fortuna)
– são quadrantes (formados pelos símbolos do pedaço do céu no instante do
nascimento da pessoa) que se assemelham aos quadrantes arquetípicos básicos
junguianos que já citamos neste trabalho e que podem ter conexão, para além do
triune brain macleaniano, com a especialização sperryana do cérebro em dois
hemisférios. Na astrologia, os planetas regentes (incluídos o Sol e a Lua)
representam “características ou tendências comuns a todas as pessoas” (e
enriquecem a expressão de suas energias): Netuno é da fantasia e sonhos;
Júpiter é da busca do conhecimento; Saturno representa ordem; Mercúrio
representa a mente e a comunicação; Urano as novas ideias e a liberdade
individual; Vênus liga-se ao amor, atração e beleza; Marte à guerra; Plutão forças
ocultas; o Sol, os atributos masculinos e a Lua, os femininos. (BRUCE-MITFORD,
2002, 112-113).
165

Símbolos heráldicos são emblemas de bandeiras ou brasões que


representam famílias, nações, empresas – desde a Idade Média – usando vários
elementos: plantas, animais, pessoas, seres mitológicos, formas geométricas, cores,
inscrições. É o caso da bandeira de piratas impiedosos, vermelha, com uma
ampulheta com asas, braço com espada e a caveira (sinais de morte). Já a
bandeira da Coréia do Sul traz os quatro trigramas do I Ching e o símbolo yin-
yang que representa as forças universais e opostas do taoísmo. A do Sri Lanka
tem ao centro um emblema do leão Kandy, imagem do budismo cingalês (sendo
esse o maior animal na bandeira de um país. O brasão da cidade de Liverpool
traz Netuno com seu tridente e um tritão (o equivalente masculino das sereias),
símbolos do porto e ainda uma ave cormorão. O brasão da família Swinton, século
XII, tem seis javalis “rampantes” e as inscrições “eu espero”, “eu penso”. Há
muitos animais estilizados nessa linguagem vívida da heráldica: leões, ursos,
cães, águias, dragões e unicórnios também nos escudos e nos mantos dos
cavaleiros. No Japão, há grous, centopeias circulares, roda de foices, crisântemos,
um mon privado da família imperial (com a árvore nativa paulóvnia com flores – em
número de três). Os “heraldos” ou arautos eram enviados dos reis que seguiam
normas estritas. (BRUCE-MITFORD, 2002, 114-115).
Outros símbolos internacionais, como sinais de trânsito e proibição de fumar,
comprovam o ditado chinês que afirma que “uma imagem vale mais do que mil
palavras” (comunicação instantânea e eficaz). Um símbolo de três setas em
perpétuo movimento é o de reciclagem, que aparece em produtos
biodegradáveis, com a consciência crescente sobre os efeitos danosos dos dejetos
tóxicos e da redução da camada de ozônio. Alguns são lógicos, como os sistemas
de notação musical; outros são emocionais como o da Cruz Vermelha Internacional
criada para oferecer ajuda médica a vítimas de guerra, pela inversão das cores da
Suíça na bandeira (Genebra, 1863); ainda outros são físicos, como as placas que
alertam no trânsito para o cuidado com animais na pista ou sobre o transporte de
materiais radiativos, ou que avisam sobre acesso a deficientes em prédios. (BRUCE-
MITFORD, 2002, 116-117).
Por fim, são variados os gestos simbólicos e posturas que nós, os
humanos, utilizamos consciente ou inconscientemente (BRUCE-MITFORD,
2002, 118-119), e por isso mesmo, são altamente reveladores sobre nossas
personalidades (embora dependam do contexto e da intenção com que são
166

usados). Esses gestos com as mãos, por exemplo, podem significar ofensas,
emoções, reflexão e prece, atração, etc. – e também podem ter significados
diferenciados aqueles gestos executados com os braços ou com a boca, com os
olhos, com a cabeça, os cumprimentos e mesmos os beijos trocados entre
pessoas.
Nas conexões que nos são lícitas fazermos com “O livro ilustrado dos
símbolos” encontramos várias menções aos cérebros lógico-racional, emocional e
instintivo – especialmente entre os animais míticos, meio animais, meio humanos.
Não é só no domínio das ciências neurológicas que o triune brain tem o seu lugar e
deixa os seus registros; o mesmo vale para as alusões, nem sempre conscientes, ao
número três.
Outra dessas interessantes conexões possíveis com a teoria do cérebro
triúnico macleaniano tem a ver com o Capítulo VI da obra freudiana “Análise
terminável e interminável” (FREUD, 1996 [1937]), relativamente à proximidade do
pensamento freudiano com o de uma das “mais notáveis figuras da civilização
grega”, o filósofo Empédocles94. Segue o trecho completo, como escrito pelo próprio
Freud, por muito relevante:

Se reconhecermos o caso que estamos examinando como expressão do


instinto destrutivo ou agressivo, surge imediatamente a questão de saber
se essa visão não deve ser estendida a outros exemplos de conflito, e,
na verdade, de saber se tudo o que conhecemos sobre o conflito
psíquico não deveria ser revisto a partir desse novo ângulo. Afinal de
contas, presumimos que, no decurso do desenvolvimento do homem de um
estado primitivo para um civilizado, sua agressividade experimenta um grau
bastante considerável de internalização ou volta para o interior; se assim
for, seus conflitos internos certamente seriam o equivalente apropriado
para as lutas internas que então cessaram. Estou bem cônscio de que a
teoria dualista, segundo a qual um instinto de morte ou de destruição ou
agressão reivindica iguais direitos como sócio de Eros, tal como este se
manifesta na libido, encontrou pouca simpatia e na realidade não foi aceita,
mesmo entre psicanalistas. Isso me deixou ainda mais satisfeito quando,
não muito tempo atrás, me deparei com essa teoria de minha autoria nos
escritos de um dos maiores pensadores da antiga Grécia. Estou
prontíssimo a ceder o prestígio da originalidade em favor de tal confirmação,
em especial porque nunca pode ficar certo, em vista da ampla extensão de
minhas leituras nos primeiros anos, se aquilo que tomei por uma nova
criação não constituía um efeito da criptoamnésia.

Empédocles de Acragas (Girgenti), nascido por volta de 495 a.C., é uma


das maiores e mais notáveis figuras da história da civilização grega. As
atividades de sua personalidade multifacetada seguiram as mais variadas
direções. Ele foi investigador e pensador, profeta e mágico, político,

94 A teoria desse autor assemelha-se muito ao que encontramos no “I Ching – o livro das
mutações”). (WILHELM, 2009).
167

filantropo e médico com conhecimentos de ciências naturais. Diz-se que


libertou a cidade de Selinunte da malária e seus contemporâneos o
reverenciavam como a um deus. Sua mente parece ter unido os mais
agudos contrastes. Era exato e sóbrio em suas pesquisas físicas e
fisiológicas; contudo, não se retraiu ante as obscuridades do misticismo e
construiu especulações cósmicas de audácia espantosamente imaginativa.
Capelle compara-o ao Dr. Fausto, “a quem muitos segredos foram
revelados”. Nascido, como foi, numa época em que o reino da ciência
ainda não estava dividido em tantas províncias, algumas de suas teorias
devem inevitavelmente impressionar-nos como primitivas. Explicava ele a
variedade das coisas pela mistura dos quatros elementos, a terra, o ar, o
fogo e a água. Sustentava que toda a natureza era animada, e acreditava
na transmigração das almas. Mas também incluiu no corpo teórico do
conhecimento idéias modernas, como a evolução gradual das criaturas
vivas, a sobrevivência dos mais aptos e o reconhecimento do papel
desempenhado pelo acaso (τύχη) nessa evolução.

Mas a teoria de Empédocles que merece especialmente nosso


interesse é uma que se aproxima tanto da teoria psicanalítica dos
instintos, que ficaríamos tentados a sustentar que as duas são
idênticas, não fosse pela diferença de a teoria do filósofo grego ser
uma fantasia cósmica, ao passo que a nossa se contenta em
reivindicar validade biológica. Ao mesmo tempo, o ato de Empédocles
atribuir ao universo a mesma natureza animada que aos organismos
individuais despoja essa diferença de grande parte de sua importância.

O filósofo ensinou que dois princípios dirigem os eventos na vida do


universo e na vida da mente, e que esses princípios estão
perenemente em guerra um com o outro. Chamou-os de φιλία (amor) e
νεικοϛ (discórdia). Desses dois princípios - que ele concebeu como
sendo, no fundo, “forças naturais a operar como instintos, e de
maneira alguma inteligências com um intuito consciente” -, um deles se
esforça por aglomerar as partículas primevas dos quatro elementos numa
só unidade, ao passo que o outro, ao contrário, procura desfazer todas
essas fusões e separar umas das outras as partículas primevas dos
elementos. Empédocles imaginou o processo do universo como uma
alternação contínua e incessante de períodos, nos quais uma ou outra das
duas forças fundamentais leva a melhor, de maneira que em determinada
ocasião o amor e noutra a discórdia realizam completamente seu intuito e
dominam o universo, após o que o outro lado, vencido, se afirma e, por sua
vez, derrota seu parceiro.

Os dois princípios fundamentais de Empédocles - φιλία e νεικοϛ - são,


tanto em nome quanto em função, os mesmos que nossos dois
instintos primevos, Eros e destrutividade, dos quais o primeiro se
esforça por combinar o que existe em unidades cada vez maiores, ao passo
que o segundo se esforça por dissolver essas combinações e destruir as
estruturas a que elas deram origem. Não ficaremos surpresos, contudo,
em descobrir que, em seu ressurgimento após dois milênios e meio,
essa teoria se alterou em algumas de suas características [...]. [grifo
nosso]. (FREUD, 1996 [1937], p. 261-263).

Os opostos complementares do misticismo e pensamento chinês: Yin e


Yang e os domínios dos reptilian, paleomammalian, e neomammallian brains?
De um lado, os objetivos do sistema instintivo-reptiliano (egoísta – destrutivo;
procriar, sobreviver), do outro aqueles do emocional (generoso – amoroso; interagir
168

em grupo). O cérebro racional (lógico) buscaria o equilíbrio da justiça e a integração


desses sistemas mais primitivos?95
Flávio Gikovate escreveu interessante livro sobre a questão da moral: “O
mal, o bem e mais além – egoístas, generosos e justos”, parafraseando em seu
título uma das obras de Friedrich Nietzsche96. (GIKOVATE, 2005). Voltaremos ao
tema da moral, em breves observações, mais adiante.
Citamos, de passagem, no primeiro capítulo (deste trabalho) e no capítulo
sobre as “fobias”, o caso de Phineas Gage (enorme lesão nos lobos frontais por
cano de ferro após explosão, em 1848), clássico no estudo das neurociências, como
uma importante referência a ser estudada levando-se em consideração a teoria do
cérebro triúnico:

(...) mudança radical no caráter de Gage semanas após o acidente (...) o


médico que o estudou mais de perto, John Martyn Harlow (aí,
aparentemente, movido pelas novas doutrinas sobre os níveis “superiores” e
“inferiores” do sistema nervoso, o superior inibindo e refreando o inferior (...)
‘não para quieto, é irreverente’ (...) impaciente (...) planos (...) abandonados
mal são concluídos (...) Uma criança em suas manifestações e capacidade
intelectual, tem as paixões animais de um homem robusto (...) antes de sua
lesão (...) possuía uma mente equilibrada (...) astuto e esperto (...) enérgico
e persistente (...) Parecia que essa desinibição ocorrera com a lesão do
lobo frontal, liberando algo animal ou infantil, de maneira que Gage tinha se
tornado um escravo de seus caprichos e impulsos imediatos [...] (SACKS,
2000, p. 76).

Níveis superiores e inferiores do sistema nervoso. Paixões animais.


Liberando algo animal, ou infantil. De uma mente equilibrada a escravo de impulsos
imediatos.
Citamos outro caso trazido igualmente na obra “Um antropologista em
Marte” (SACKS, 2000)97, de Oliver Sacks, como passível do mesmo tipo de ligação
com o modelo macleaniano (1990 [1970]): “O último hippie”.

O peso da consciência e a própria consciência e o escrúpulo, o peso do


dever, a obrigação e a responsabilidade podem nos pressionar com uma
força insuportável, levando-nos a procurar a libertação dessas inibições

95 Referência ao livro de GIKOVATE, F. “O mal, o bem e mais além – egoístas, generosos e justos”
(2005), uma nova visão (com base em sua experiência clínica de atendimento de casais) sobre
esse tema que foi motivo da reflexão desse autor por décadas – a atração entre perfis psicológicos
opostos – tendo ele estendido esse estudo da moral à esfera social.
96 Referência ao livro NIETZSCHE, F. “Para além do bem e do mal”. (2007 [1886]).
97 Livro indicado pela professora Doutora Ana Paula Pillatt (na disciplina de Psiconeurofisiologia, em
2017, Curso de Psicologia, UNIJUÍ), assim como os livros “Cem bilhões de neurônios – conceitos
fundamentais em neurociências” (LENT, 2001) e “Neurociências – desvendando o sistema
nervoso” (BEAR, 2002).
169

esmagadoras, da sanidade e da sobriedade. Procuramos umas férias de


nossos lobos frontais, uma festa dionisíaca dos sentidos e impulsos. Que
isso seja uma necessidade de nossa natureza hiperfrontal reprimida e
civilizada, foi algo reconhecido por todas as épocas e culturas. Todos
precisamos tirar férias de nossos lobos frontais – a tragédia é quando, por
doença ou lesão graves, não há volta das férias, como com Phineas Gage,
ou Greg. (SACKS, 2000, p. 79-80).

Esse capítulo da obra do neurologista americano dedica-se a relatar a


trágica história de Greg F. (lesão neurológica) e está repleto de indícios
comprobatórios das articulações que este trabalho, modestamente, procura fazer
com “O ser humano, o cérebro o triúnico, a psicanálise e seus conflitos internos”:

Uma vez “acordado”, uma vez que o córtex de Greg ganhava vida, via-se
que sua própria animação tinha uma estranha qualidade – uma qualidade
desinibida e ardilosa do tipo que se costuma ver quando as porções orbitais
dos lobos frontais (ou seja, as porções adjacentes aos olhos) foram lesadas,
a chamada síndrome órbito-frontal. Os lobos frontais são a parte mais
complexa do cérebro, concernidos não com as funções “inferiores” do
movimento e sensação, mas com as mais superiores, de integração de todo
juízo e comportamento, toda imaginação e emoção, numa identidade única
que costumamos chamar de “personalidade” ou o “eu”. (...)

Esse tipo de gracejos é de fato característico dessas síndromes órbito-


frontais – e é tão impressionante que ganhou um nome próprio: Witzelsucht,
ou “mal de chiste”. Parte do comedimento, da precaução, da inibição, é
destruída, e pacientes com essas síndromes tendem a reagir incontinenti ou
imediatamente a tudo a sua volta e dentro deles – a praticamente qualquer
objeto, pessoa, sensação, palavra, pensamento, emoção, nuança ou tom.
(SACKS, 2000, p. 72).

São tantos elementos relevantes nos casos de Greg e de Phineas Gage,


para o fim do estudo proposto, que neste estudo somente cabe a indicação da
leitura de ambos (nada extensos). São casos de lesões do neocórtex, que
permitiram o transbordamento do reptilian e do paleomammalian brains, pela
supressão do freio inibitório, da lógica e da racionalidade do neomammalian brain.
Uma das várias aplicações possíveis dessa perspectiva integradora ocorre
nos casos de violência física do homem contra a mulher. Ambos, após essas
ocorrências, com frequência mutuamente agressivas, racionalmente estão cientes
de que protagonizaram condutas equivocadas. Os homens mais racionais
dificilmente agridem fisicamente. A mulheres mais racionais também dominam mais
habilmente o seu sistema instintivo-emocional. O homem que age violentamente, em
geral, o faz quando bêbado – talvez sob domínio do "cérebro réptil". Idem a mulher
que provoca ou agride (por meio de gestos, expressões e agressões
170

psicoemocionais), em geral, o faz sob o domínio dos “cérebros inferiores” (ou mais
antigos).
Muitas vezes ambos aceitam e “desejam” permanecer nessas relações sem
futuro (ou com futuro previsivelmente caótico e conflitante), mesmo sabendo que
não são saudáveis e que tais violências tendem a repetir-se. Lógica e racionalmente,
ambos rejeitam a ideia de seguir nelas. Questionados98, homem e mulher
respondem que não sabem por que motivo continuam "querendo" estar em relações
de violência física, emocional, psicológica e verbal. Homens e mulheres agressores
podem ser orientados e informados sobre esses fatos biológicos na prisão e em
atendimentos psicológicos.
São infinitas as possibilidades de associação dessas teorias com as
condutas humanas incongruentes.
Também, três cérebros com objetivos diferentes agindo ao mesmo tempo
(em um só organismo) em pleno século XXI só podem resultar nisso: foram mais
úteis, em tempos passados, para sobreviver e procriar. A saída parece ser o
alinhamento desses "centros" de comando cerebrais.
A psicoeducação (desde as escolas infantis) pode ser uma saída,
paralelamente à psicoterapia e outras terapias psicomédicas.
Os vícios entram na mesma possibilidade de análise: decorrem de
sensações agradáveis ao sistema instintivo-emocional (conforme Villeneuve, 2016),
mesmo estando o adicto racionalmente informado de que sofrerá com os prejuízos
decorrentes de suas más escolhas (isso vale para as toxicomanias e para os
recentes avanços tecnológicos que rapidamente dominaram idosos, adultos e
crianças: os jogos, redes sociais e outros softwares disponíveis em Ipads e
celulares).
A obesidade e o “comer compulsivo” parecem decorrer da influência desses
cérebros mais antigos, igualmente. As dietas são apontadas como tendo melhores
resultados no curto e médio prazos, fazendo com que os praticantes voltem
rapidamente a comer em excesso e a recuperar o peso perdido no longo prazo. Por
98 Também, resta saber como é que em um casal poderá ser possível alinhar os desejos conflitantes
de 6 (seis) cérebros distintos... A doutora pediatra Inés Villeneuve, o terapeuta sobrevivente dos
campos de concentração Victor Frankl, Aristóteles, Freud, Flávio Gikovate, os filósofos epicuristas
e estóicos e outros sábios ocidentais e orientais sugerem-nos algumas formas de contornarmos
essa “maldição” evolutiva. Também o psiquiatra e psicanalista italiano Contardo Calligaris, no
artigo “A ressaca do Prozac e os milagres da fala” (CALLIGARIS, 1996), ao escrever sobre as
terapias da fala e a medicamentosa, ambas influenciando os mecanismos químicos cerebrais.
Atos e palavras também modificam nosso cérebro.
171

quê? Haveria aí também desejos ocultos e inconscientes e comandos químicos e


emocionais oriundos do sistema instintivo-emocional (a ansiedade leva muitas
pessoas a comer chocolates). Racionalmente, os humanos sabem que precisam
evitar os alimentos gordurosos e muito doces, mas mesmo assim acabam fazendo
uso exatamente desses tipos poucos saudáveis.
A qual desses sistemas ou cérebros estamos entregando as rédeas de
nosso destino, quando sobrevalorizamos as atividades relacionadas à sexualidade
humana, individual e socialmente (por meio de propagandas e músicas e
espetáculos midiáticos)?
Em seu “Dicionário de Psicanálise” (1998), Elisabeth Roudinesco define o
termo “desejo” da seguinte forma:

Desejo. al. Begierde, Wunsch, Wunscherfüllung, Wunschbefriedigung; esp.


deseo; fr. désir; ing. wish, wish fulfillment, desire

Termo empregado em filosofia, psicanálise e psicologia para designar, ao


mesmo tempo, a propensão, o anseio, a necessidade, a cobiça ou o apetite,
isto é, qualquer forma de movimento em direção a um objeto cuja atração
espiritual ou sexual é sentida pela alma e pelo corpo.

Em Sigmund Freud, essa idéia é empregada no contexto de uma teoria do


inconsciente para designar, ao mesmo tempo, a propensão e a realização
da propensão. Nesse sentido, o desejo é a realização de um anseio ou voto
(Wunsch) inconsciente. Segundo essa formulação freudiana clássica,
empregam-se como sinônimas de desejo as palavras alemãs
Wunscherfüllung e Wunschbefriedigung e a expressão inglesa wish
fulfillment (desejo no sentido da realização ou satisfação de um anseio
inconsciente).

Entre os sucessores de Freud, somente Jacques Lacan conceituou a ideia


de desejo em psicanálise a partir da tradição filosófica, para dela fazer a
expressão de uma cobiça ou apetite que tendem a se satisfazer no
absoluto, isto é, fora de qualquer realização de um anseio ou de uma
propensão. Segundo essa concepção lacaniana, empregam-se em alemão
a palavra Begierde e em inglês a palavra desire (desejo no sentido de
desejo de um desejo). (ROUDINESCO, 1998).

Sexo é necessidade ou desejo? Qual deles é um imperativo fisiológico?


Sexo não é necessidade. Podem ser controlados o desejo sexual e seus derivados
(entre os quais a agressividade). Uma preocupação exagerada com determinadas
facetas do humano, neste caso com a sexual, aparece nos ativismos que
pretendem, por exemplo, universalizar certas escolhas de condutas sexuais – sejam
hetero ou bissexuais, preocupados em situá-las na origem biológica (inata) de todos
os seres humanos. Dar relevância excessiva a essas questões instintuais
(inconscientes) é privilegiar uma das agendas mais poderosas do cérebro réptil,
172

primitivo: sobreviver e procriar (com incentivo à sexualidade descontrolada, às


disputas territoriais da concorrência, à competitividade e à agressividade).
Em seu livro sobre o tema, intitulado “Sexo”, o Doutor Flávio Gikovate
escreve, sempre preocupado com a busca da máxima clareza na comunicação
humana (“inimigo” que era dos termos genéricos aplicados sem precisão, do elitismo
e da vaidade intelectual prejudiciais à compreensão da escrita), ao diferenciar
excitação, necessidade, vontade e desejo:

Proponho definir o desejo como um anseio de se aproximar ou se apropriar


de alguém ou de um objeto externo a nós [...] a vontade abarca várias
manifestações psíquicas que podem resultar em ações de aproximação
que, via de regra, foram objeto de algum tipo de ponderação racional e
mesmo de reflexão moral. O desejo corresponderia a ações mais
espontâneas, autônomas. [...] No caso do desejo sexual, o objetivo seria o
de se aconchegar ao outro no intuito de estabelecer a adorável troca de
carícias capaz de produzir as descargas correspondentes à ejaculação ou
ao orgasmo feminino. Desejo tem de ser diferenciado de necessidade:
quando um bebê chora e pede pelo colo, está se sentindo mal por algum
motivo e necessita da aproximação materna para atenuar, por meio do
aconchego, a sensação de desemparo que tanto o desespera. É evidente
que a diferenciação entre desejo e necessidade não é tão estrita, de modo
que uma criança pode querer colo mesmo quando não se sente mal. Pode
achar gostoso o aconchego. Porém, na origem, trata-se de um prazer
negativo, algo que existe para atenuar algum mal-estar. O mesmo acontece
com a necessidade de se alimentar: ela poderá, graças à interferência da
razão, se transformar em desejo (talvez o termo mais adequado fosse
“vontade”; porém, na prática, não costumamos fazer essa diferenciação) de
determinado alimento preparado de maneira pitoresca. A sede pode ser
saciada com água – necessidade –, mas também com sucos e refrigerantes
de gosto especial – desejo construído que tem como base uma
necessidade. Os desejos desse tipo são criações culturais que sofisticam
necessidades orgânicas, aquelas essenciais à nossa sobrevivência. O
desejo faz parte do domínio facultativo, enquanto a necessidade
corresponde ao que é obrigatório. Construímos desejos sobre
necessidades, porém o essencial continua sendo a resolução destas
últimas. O desejo sexual corresponde, pois, ao único que é genuinamente
biológico, próprio e espontâneo em todos nós. Uma boa parte dos desejos
materiais é produto de cada época e cultura. Derivam de nossa inteligência
e criatividade e poderão com facilidade se acoplar aos de natureza erótica.
(GIKOVATE, 2010, p. 25-27).

O mesmo autor diferencia também, com propriedade, a excitação sexual –


fenômeno interno da subjetividade, pessoal, desencadeado ou não por pensamentos
que envolvem outras pessoas (caso das mulheres, que se excitam pelo fato de se
sentirem desejadas, na condição prazerosa de serem objeto do desejo); do desejo
sexual – que determina uma ação em direção ao objeto (caso dos rapazes, que são
estimulados visualmente pelas formas, caras e bocas das mulheres). O desejo
173

também implica excitação, mas desencadeada por um objeto externo. (GIKOVATE,


2001, p. 28-29).
Desnecessário um estudo mais profundo desse assunto nesta pesquisa.
Esses parágrafos anteriores são suficientes para percebermos como é importante o
uso de conceitos claros para a compreensão teórica (já dificultada pela própria
comunicação de nossa limitada linguagem humana) na área da psicologia – e o
quanto a ideia de “desejo” gikovateana afasta-se da ideia de “desejo” lacaniana, por
exemplo.
Também nesses temas, é impossível servir a dois (ou três) senhores:
quando optamos pela sexualidade idolatrada, junto dela vêm as demais demandas
do sistema instintivo-emocional (a luta e a fuga, a agressividade, os vícios, a
competição, os impulsos destrutivos, de morte e violência). É o que pensamos.
E se optássemos pelo cérebro lógico-racional como nosso principal aliado
para mediar, acalmar e coordenar os desejos desenfreados desse outro sistema
mais primitivo de modo mais efetivo?
Serão os cérebros mais antigos aqueles que decidem também
inconscientemente pela superpopulação do planeta? Excesso de bebês, gravidezes
plurais, repetidas e sequenciais num ambiente restrito – que não comporta mais
tantos organismos e seres humanos – parecem não ser ideias que possam estar de
acordo com o planejamento do sistema lógico-racional. A China já teve que tomar
medidas legais para conter o avanço desenfreado da população naquele país. Terá
o Ocidente que seguir o mesmo caminho radical? Quem decide por nós?
Por outro lado, que dizer dos centros cerebrais interferindo no “social” e na
“política”, já que a civilização não é nada mais do que uma família ampliada, o
indivíduo inflacionado e replicado em vários outros seres da mesma espécie? Se
temos de fato dois hemisférios cerebrais especializados (SPERRY, 1973), ou seja,
com funções e formas de pensar distintas (e até opostas), por que não cogitarmos a
hipótese de que a retrógrada e paralisante divisão “partidária” das sociedades
decorra justamente da ampliação dessa divisão cerebral dos indivíduos da
espécie?99

99 Além da tripartição em cérebros réptil, emocional e lógico (como já referimos) temos também a
bipartição em dois hemisférios cerebrais. Máquina complexa esse encéfalo humano (que ainda
conta com lobos cerebrais com funções especializadas: como é o caso do lobo occipital, que
repousa sobre a tenda do cerebelo e está associado à visão).
174

Assim, a bipartição do cérebro humano em dois hemisférios pode ter como


efeito social o extremismo político esquerda\direita (e seus antagonismos
conflituosos), tendo de um lado uma suposta “esquerda” revolucionária, criativa,
poética, utópica, artística, e de outro lado uma suposta “direita” conservadora,
racional, lógica, matemática e concreta. O fanatismo (ativismo ideológico) extremista
é estagnante; tal qual a lesão em um dos lados do mesencéfalo pode prejudicar o
controle voluntário dos movimentos do lado oposto do corpo humano (BEAR, 2002,
p. 186).
Conforme o “Livro da Psicologia”:

A separação bem sucedida do corpo caloso – estrutura de fibras nervosas


transfere transmissões entre os hemisférios direito e esquerdo do cérebro –
realizada pelo neurobiólogo americano Sperry, ocasionou um avanço
gigantesco no tratamento de um tipo de epilepsia. Em 1981, junto com
David Hubel e com Torsten Wiesel, Sperry recebeu o prêmio Nobel em
psicologia e medicina por seu trabalho sobre o cérebro bipartido, que
demonstrou que os hemisférios esquerdo e direito do cérebro tinham
especializações independentes. [grifo nosso]. (COLLIN et. al., 2012, p.
337-338).

Carl Jung escreveu sobre os arquétipos (ou “imagens primordiais”). Com


base na teoria dele, Robert Moore e Douglas Gillette (1993) escreveram sobre os
quatro arquétipos da civilização humana no livro “Rei, Mago, Guerreiro, Amante”:

Jung e seus sucessores descobriram que, em nível do inconsciente


profundo, a psique de cada indivíduo está assentada no que o psicanalista
chamou de “inconsciente coletivo”, formado por padrões instintivos e
configurações energéticas provavelmente herdados geneticamente ao longo
de todas as gerações de nossa espécie. Esses arquétipos fornecem as
próprias bases do nosso comportamento – a maneira como pensamos,
sentimos, e as nossas reações humanas características. (MOORE, 1993, p.
9).

Até hoje ninguém fez uma associação entre esses mitos e esse câncer das
sociedades que se dizem “modernas”: a eterna disputa entre ideologias
supostamente opostas. Comunismo e capitalismo (que nem existem nas nações em
seu estado puro). Ou já escreveram sobre isso?
Teríamos desde sempre um grupo de guerreiros (lógicos e realistas) aliados
a reis (lógicos e meditativos) disputando o “poder” de influência social com um grupo
de magos (criativos e ativistas) e amantes (criativos e poéticos)?
Integrar também esses núcleos cerebrais sociais é preciso.
175

Jung chamou essas quatro configurações básicas de “dupla quaternidade”, e


elas ajudam a ampliar nossa compreensão das estruturas profundas fundamentais
do ser humano (masculino ou feminino; macho ou fêmea): são “as duas oposições
dialéticas fundamentais inseridas na dinâmica do eu profundo: Rei (ou Rainha)/Mago
(ou Maga) e Amante/Guerreiro (ou Guerreira)”. (MOORE, 1993, Prefácio).
Curiosamente, muito antes de Jung, o médico, cirurgião e filósofo romano
Cláudio Galeno (129 – 201 d.C.) havia apoiado nos quatro elementos básicos (terra,
ar, fogo e água, cuja combinação forma todas as coisas e também os fluidos
corporais e os humores humanos, segundo Hipócrates) a sua teoria sobre os quatro
temperamentos da personalidade. O melancólico (triste, medroso, deprimido,
poético, artístico); o fleumático (lento, quieto, tímido, racional, coerente); o colérico
(impetuoso, energético e apaixonado); o sanguíneo (afetuoso, alegre, otimista e
confiante). Desequilíbrio nos humores geraria problemas de temperamento e, com a
restauração do equilíbrio dos humores, o médico curaria os problemas emocionais e
comportamentais. Somente com o Renascimento, as doutrinas de Galeno seriam
ofuscadas pelas novas pesquisas em medicina. Em 1947, Hans Eysenck detectou
dois traços de personalidade que ecoavam os antigos temperamentos, dando-lhes
bases biológicas: neuroticismo e extroversão. (GALENO apud COLLIN et. al., 2012,
p. 18-19).
Surpreendentes coincidências de quatro tipos psicológicos elementares.
Em “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (1911)”,
Freud também fala da obra de arte que reflete a realidade por expressão do dom
artístico que transforma as fantasias do artista em verdades (e ele mesmo se torna o
herói, o rei, o criador, ou o favorito – curiosa semelhança com as categorias
junguianas):

A arte ocasiona uma reconciliação entre os dois princípios [do prazer e da


realidade], de maneira peculiar. Um artista é originalmente um homem que
se afasta da realidade, porque não pode concordar com a renúncia à
satisfação instintual que ela a princípio exige, e que concede a seus
desejos eróticos e ambiciosos completa liberdade na vida de fantasia.
[grifo nosso]. (FREUD, 1996 [1911], p. 242).

Esses arquétipos podem explicar a eterna luta silenciosa entre os artistas


(escritores e poetas) e os militares (reis e guerreiros) – em especial nas ditaduras,
ditas “de esquerda” ou “de direita”, com a música, a caneta e o pincel confrontando o
fuzil, a pistola e o canhão); podem explicar a diversidade entre os gostos femininos e
176

masculinos (e o impulso e as diversas realizações do movimento feminista); as


diferenças entre as culturas orientais e ocidentais; os embates dos perfis
“sexualizados” que destoam da regra geral do casamento entre homem e mulher
pelo reconhecimento de suas escolhas (e por mais direitos “sociais”, e formação de
“famílias”); as disputas ideológicas e os conflitos religiosos, por exemplo.
Podem explicar o movimento pendular de intercalação e sucessão de
partidos e de ideologias diametralmente opostas no poder – que observamos ao
longo da história das nações (mais facilmente identificável nos combates entre os
democratas e republicanos nos Estados Unidos).
C. G. Jung escreveu em sua obra “Psicologia do inconsciente”, na época da
Primeira Grande Guerra Mundial:

A psicologia do indivíduo corresponde à psicologia das nações. As nações


fazem exatamente o que cada um faz individualmente; e do modo como o
indivíduo age, a nação também agirá. Somente com a transformação da
atitude do indivíduo é que começará a transformar-se a psicologia da nação.
Até hoje, os grande problemas da humanidade nunca foram resolvidos por
decretos coletivos, mas somente pela renovação da atitude do indivíduo.
Em tempo algum, meditar sobre si mesmo foi uma necessidade tão
imperiosa e a única coisa certa, como nessa catastrófica época
contemporânea. Mas quem se questiona a si mesmo depara
invariavelmente com as barreiras do inconsciente, que contém justamente
aquilo que mais importa co nhecer. (JUNG, 1971 [1916], Prefácio à 1ª
edição, p. 10).

O falecido médico brasileiro e antigo candidato à Presidência da República


Enéas Carneiro veiculou a seguinte afirmação em programa especial de seu partido,
o PRONA, em 1991: “A caneta de um mau jornalista pode fazer tanto mal quanto o
bisturi de um mau médico!” (CARNEIRO, 2018 [1991]).
Outra curiosa coincidência que aponta um possível paralelo com a
configuração básica do cérebro humano está na constituição dos estados nacionais
(como é o caso do Brasil, República Federativa, formada pela união indissolúvel de
Estados, Municípios e Distrito Federal), nos três Poderes da República
“independentes e harmônicos entre si” (nem tão harmônicos, na realidade
mutuamente conflitantes): o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. O executivo age
no concreto (teoricamente no interesse do povo), o legislativo interage com o povo e
legisla para ele (teoricamente para o povo) e o judiciário é a instância objetiva e
racional que deve ter a palavra final, severo e imparcial julgador (ao menos, em tese,
é para ser). No Executivo, há governos federal, estadual, municipal. No Legislativo,
177

há câmaras federais, estaduais e municipais. E no Judiciário, são três instâncias


julgadoras e recursivas (sic). (BRASIL, CF 1988, Artigos 1° e 2°).
Além da oposição (ou contradição) entre os nossos dois hemisférios
cerebrais especializados (palavras da ciência – SPERRY, 1973), parece haver,
simultaneamente, uma oposição (discórdia) entre o sistema instintivo-emocional
(cérebros réptil e emocional) e o sistema lógico-racional (neocórtex) – os três
cérebros do modelo macleaniano (1990 [1970]).
A propósito: a bipartição horizontal de Sperry, combinada com a tripartição
vertical de MacLean formariam o sinal da cruz: †, no cristianismo?
Arquétipos com raízes biogenéticas.
A explicação para essa repetição de quatro perfis psicológicos arquetípicos
no pensamento de vários autores pode assentar-se numa combinação da bipartição
(dois hemisférios) com a tripartição cerebral (triune brain)? Teríamos o cérebro
instintivo, o emocional e o racional (estando este último subdividido em hemisfério
esquerdo e direito)? Estariam cada um desses três cérebros bipartidos, como parece
estar bipartido também o cerebelo, além do córtex? Pode ser.
A teoria de Abraham Maslow, que tem base na sua famosa “hierarquia das
necessidades” com a forma de uma pirâmide (▲), aparenta (a nosso ver) também
estar de acordo com essa questão dos conflitos humanos e do cérebro triúnico e sua
interrelação com a psicanálise e demais linhas da psicologia.
Os psicanalistas defendem que a realização de nossas pulsões biológicas
inatas nos traz satisfação, enquanto os behavioristas destacam a importância de
satisfazermos nossas necessidades fisiológicas. O movimento humanista
acrescentou a essas, outras necessidades mais importantes para a experiência
humana: o amor, a esperança, a fé, a espiritualidade, a individualidade, a existência.
Para Maslow, o estado mais desenvolvido de consciência seria atingido quando o
indivíduo consegue realizar todo o seu potencial – estágio que define como
autorrealização. (MASLOW apud COLLIN et. al., 2012, p. 138-139).
Estaria o sistema instintivo-afetivo (base da pirâmide) mais preocupado com
as necessidades básicas ser humano (fisiológicas – ar, comida, bebida, sono, calor,
exercício; de segurança – estabilidade, saúde, abrigo, dinheiro, emprego; de amor e
pertencimento – aceitação, amizade, intimidade, relacionamentos; e de autoestima –
178

conquista, reconhecimento, respeito, competência), que por sinal seriam as


motivadas por deficiência? (MASLOW apud COLLIN et. al., 2012, p. 138-139).
Estaria o sistema lógico-racional (topo da pirâmide) mais voltado para as
necessidades motivadas por crescimento (cognitivas – conhecer, compreender;
estéticas – ordem, beleza, simetria; de autorrealização – alcançar o potencial
pessoal; e de autotranscendência – ajudar os outros, ligar-se a algo além de nós
mesmos)? (MASLOW apud COLLIN et. al., 2012, p. 138-139).
Também cabe-nos rápida referência sobre o trabalho de Bloom e seus
colaboradores (1972 e 1974, apud ZANELLI et. al., 2004, p. 246-247), que sugeriram
(observando os objetivos educacionais de escolas e universidades), em 1950, três
taxionomias100 de objetivos educacionais para classificar os distintos tipos de
resultados de aprendizagem, cada qual relativa a uma categoria ou domínio de
aprendizagem: cognitivo, afetivo e psicomotor. Três princípios norteadores dessa
organização: esses processos representam resultados de aprendizagem efetiva,
uma categoria deveria depender da outra e dar suporte às subsequentes
(cumulatividade do aprender), deveriam definir princípios estruturantes para garantir
a ordenação das categorias em um continuum – com os parâmetros integradores
diferindo para cada domínio de aprendizagem. No cognitivo, a complexidade; no
afetivo, a internalização; no psicomotor, a automatização.
São três domínios de aprendizagem interdependentes – como observamos
na figura seguinte. Apesar de muito interrelacionadas, as habilidades humanas nos
três domínios são independentes até certo ponto (conforme evidências científicas), e
os três tipos de resultados de aprendizagem são:

(...) transformados em ações humanas competentes, ocorrem


simultaneamente, podendo somar-se e/ou influenciar-se mutuamente. Em
vários casos, entretanto, há predomínio de uma categoria sobre a outra. Em
todos os casos, porém, essas três categorias estão presentes. (ZANELLI et.
al., 2004, p. 246).

Para os estudiosos do tema, enfatizar a recordação ou a resolução de


tarefas intelectuais (currículos escolares treinamentos profissionais) são objetivos
cognitivos (o princípio integrador é o grau de complexidade). (ZANELLI et. al., 2004,
p. 246).

100 Taxionomia. Termo grego para referir sistema de classificação de eventos ou entidades em grupos
ou categorias específicas. (ZANELLI et. al., 2004, p. 246).
179

“Enfatizar resultados de aprendizagem expressos em termos de interesses,


atitudes, apreciações, valores, disposições ou tendências emocionais” são objetivos
afetivos (o fio condutor é o grau de internalização de valores na interação do
aprendiz com a instrução). É o caso do tratamento cordial em hospitais, ou a
valorização dos sentimentos pessoais do subordinado. (ZANELLI, 2004 et. al., p.
246).
Os objetivos psicomotores (o eixo estruturante é o grau de automatização
dos movimentos) estão ligado ações musculares (ou motoras) conectadas à
manipulação de materiais, substâncias, objetos (movimentos corporais globais).
(ZANELLI et. al., 2004, p. 247).

Figura 16 – Interação entre os domínios de aprendizagem.

Fonte: “Psicologia, organizações e trabalho no Brasil”


(RODRIGUES JÚNIOR, 1997 apud Zanelli et. al., 2004, p. 247).

“Toda ação humana envolve os três domínios”, sendo que à educação


interessa saber (pois facilita o ensino) qual dos três aspectos predomina no
comportamento específico do estudante. Embora essa divisão dos resultados de
aprendizagem em três categorias seja uma abstração, como escrevem Zanelli et. al.
(2004, p. 247): “não quer dizer que um indivíduo possa pensar sem sentir, sentir sem
pensar, agir sem sentir ou agir sem pensar”.
Claro que não! Zanelli et. al. estão corretíssimos em sua afirmativa
retrocitada: os três cérebros (reptilian brain, paleomammalian brain e neomammalian
brain) que compõem a teoria macleaniana (e o encéfalo humano) têm autonomia,
porém são interdependentes e estão interconectados (a temática deste trabalho de
conclusão do curso de psicologia guarda estreita relação com mais esse material de
Bloom e seus colaboradores). Cumpre lembrarmos, por outro lado, que o Homo
180

Sapiens pode sim “pensar sem agir”. E pode também “sentir sem agir”. Essas
atitudes talvez não sejam compartilhadas pela grande maioria dos animais e podem
ser o diferencial de que falam Frankl (2008), Villeneuve (2016) e os grandes
pensadores da civilização humana (desde a Antiguidade).
As coincidências são tão gritantes a ponto de não parecerem mais meras
coincidências. Toda ação humana envolve os três domínios.
Novas articulações entre as teorias, para não nos tornarmos prolixos,
poderão ser estabelecidas no futuro, caso este texto suscite a curiosidade dos
mestres estudiosos da psicologia humana.

2.6 A visão judaico-cristã da saúde mental e dos conflitos humanos

Em recentes férias (Janeiro de 2018)101, tivemos a oportunidade de


assistirmos a alguns episódios do programa “Claramente”, da Rede Novo Tempo de
Comunicação, em que é apresentador o carioca, médico psiquiatra (desde 1974),
Cesar Vasconcellos de Souza, bastante atuante e autor de três livros.
Pesquisamos no site da TV Novo Tempo na Internet alguns programas anteriores
também (do ano de 2017).
Esse programa, que ora tomamos como exemplo, tem influência da religião
cristã (adventista – uma visão bíblica do ser humano) e traz aos telespectadores
interessantes insights sobre a psicologia, a psicanálise e a psiquiatria, preocupando-
se com a psicoeducação de seus fiéis.
O uso desse termo no programa chamou-nos a atenção, por conectar-se à
proposta de um “câmbio de paradigma” apresentada por Villeneuve (2016).
O material que divulga é direcionado a “leigos”, em simples e acessível
linguagem. Mas, afinal, que tipo de teórico ou intelectual gosta de escrever
hieróglifos para não ser compreendido por seu interlocutor?
Escreve o Doutor Flavio Gikovate, em seu livro “A liberdade possível” (2006),
sobre a vaidade intelectual102:

101 Pois, em verdade, não há férias para o estudante e pesquisador interessado na sua área de
aprendizado contínuo e permanente. Aprendemos o tempo todo, em todos os lugares.
102 Muito comum no meio acadêmico e, suspeitamos, interferência constante na obra de muitos dos
assim considerados grandes autores nas áreas tanto da psicologia como da psicanálise, como nos
parece ser o caso, por exemplo, de Jacques Lacan (pouco compreensível em sua totalidade
mesmo entre os mestres da área psicanalítica, conforme muitos deles mesmos o reconhecem).
181

Aliás, a clareza sempre foi uma de minhas maiores preocupações, uma


vez que alimento profunda repulsa pelos textos rebuscados. Por vezes,
considero-os arrogantes e agressivos, pois parece que foram feitos com o
intuito de mostrar a superioridade do autor, grave manifestação de elitismo
intelectual. Outras vezes, vejo-os como indício de uma mente confusa ou
pouco rigorosa, sério impedimento para quem escreve com a finalidade de
se comunicar. Não é raro uma pessoa fazer um esforço enorme para
entender o que o autor pretende dizer, de modo que, no fim, poderá pensar
que fez uma descoberta muito importante, mesmo que o conteúdo seja da
maior banalidade. Pessoalmente, gosto das deduções que aparecem
como óbvias. Acredito que as observações que mais se aproximam da
verdade têm sempre essa característica. Gosto dos espíritos sofisticados
mas despojados da vaidade intelectual, desse prazer erótico por destacar-
se pela via do saber. Já que somos todos vaidosos, prefiro os exercícios
físicos e os cosméticos às citações bibliográficas desnecessárias e as
frases quase indecifráveis. (GIKOVATE, 2006, p. 10-11).

“Claramente” é boa escolha de nome para um programa sobre psicologia.


Algumas das ideias veiculadas sobre essa forma de psicoeducação tem por
base os livros da autora norte-americana Ellen G. White e vários outros cientistas
estudiosos da mente humana e, por parecerem interessantes e coerentes com o
tema abordado neste trabalho de conclusão de curso (que respeita as diferenças e
as mais variadas linhas teóricas das psicologias, das literaturas, das filosofias, das
mitologias e das religiões), podem ser verificadas nas nossas breves anotações
seguintes.
Assim, o apresentador Cesar fala (em um dos programas intitulado “Por que
sofro emocionalmente? – A importância do autoconhecimento e da psicoeducação”)
que na Bíblia já há menção a essa visão tridimensional do ser humano: pensar,
sentir e agir. Podemos escolher uma cognição saudável para sairmos da melancolia
(por exemplo). Tentar algo novo. Agir, mudar de atitude, estudar. Os pensamentos
precisam ser treinados, cultivados, escolhidos. Não é natural pensarmos
positivamente o tempo todo. Somos responsáveis pelo que pensamos. Qual é o
conteúdo do nosso pensar? Aquilo que nós mais pensamos modifica os nossos
sentimentos. Nos tornamos mais parecidos com aquilo que mais contemplamos e
sobre o que mais pensamos. Pessoas mais amorosas e positivas em seu pensar,
tornam-se mais positivas. O caminho é não ficarmos focados na tristeza, nem na
angústia, cultivarmos a gratidão pelo que obtivemos, a resiliência, a inteligência
emocional (aprendermos a conviver com a dor, sem deixarmos ela tomar conta do
nosso comportamento e travar a nossa vida). (POR QUE SOFRO
EMOCIONALMENTE?, 2017).
182

Como o próprio Freud tinha predileção pelas citações bíblicas, o material


“Claramente” nos pareceu relevante neste estudo de interface da psicanálise com o
triune brain (e outras psicologias) “(...) dentre as referências mais recorrentes a
Freud, estão a Bíblia, Goethe e Shakespeare.” [grifo nosso]. (FRANÇA, 2014, p.
266).
Num segundo programa (“O funcionamento da mente – Como é estruturada
a mente e qual a sua relação com as doenças mentais”), César traz uma série de
explicações psicorreligiosas. Apesar de o nosso sofrimento mental perturbar
pensamentos, sentimentos e capacidade de escolha, não adoecemos por
compartimentos, não há uma separação entre aquilo que atinge só o corpo ou só a
mente. Há uma interligação: problema psicológico, problema físico, problema
espiritual estão interconectados. No pensamento judaico-cristão, bíblico, nada é só
físico, só psicológico (mental, emoções) ou só espiritual. O nosso Eu é formado por:
influências hereditárias (propensões) + meio ambiente (incluída a infância) +
sensibilidade pessoal (como cada um reage aos eventos exteriores) + natureza
espiritual. (O FUNCIONAMENTO DA MENTE, 2017).

Figura 17 – Gráfico freudiano sobre a formação dos sintomas.

Fonte: “Psicodiagnóstico clínico – novas contribuições” (ARZENO, 1995, p. 27).

Em “Psicodiagnóstico clínico”, Arzeno (1995, p. 27) escreve algo muito


semelhante no sentido de que “todo sintoma implica fracasso ou rompimento do
equilíbrio entre as séries complementares. É sempre bom relembrar este conhecido
gráfico freudiano”.
183

Consoante o mesmo programa televisivo, John R. Peteet (2010), professor


da Harvard University, em seu livro103 “Depression and the soul – A guide to
spirituality integrated treatment”, afirma que “(...) estados de humor e experiências
espirituais tem correlatos cerebrais distintos, mas se sobrepõem (...) É, portanto,
enganoso assumir que as dimensões biológica, psicológica ou espiritual do Eu (self)
são não mescladas.” (PETEET, 2010 apud O FUNCIONAMENTO DA MENTE,
2017).
Cabe reiterarmos, aqui, que a cardiologia está bastante avançada nos
estudos de interface da Medicina com a espiritualidade, como já abordamos o
assunto em subcapítulo anterior com base no artigo “A influência da religião e
espiritualidade no prognóstico de cirurgias cardiovasculares”, de Nathalia Ribeiro
(2017).
O programa prescreve orientações, no sentido de que se quisermos ter
saúde mental, devemos procurar melhorar nosso estilo de vida físico, precisamos
aprender a lidar melhor com as nossas emoções (para expressá-las mais, se as
reprimimos; para controlá-las, se agimos por impulso) e procurarmos a oração.
Todos os indivíduos deste planeta têm sentimentos, pensamentos (cognição) e
ações (decisões ou inércia). Temos as dimensões física, mental e espiritual (social).
(O FUNCIONAMENTO DA MENTE, 2017).
Esse programa, que é o mais voltado para o tema de nossa pesquisa sobre
o triune brain, traz citação de obra104 da Doutora Leigh McCullough Vaillant (1997),
também da Harvard University, que afirma em seu livro “Changing character: short-
term anxiety-regulating psychotherapy for restructuring defenses, affects, and
attachment”, que: “(...) as cognições (são) como o motorista que guia a máquina e os
afetos como o motor que movimenta o carro. Afeto e cognição são componentes
essenciais do funcionamento e ambos podem funcionar mal e necessitarem de
reparo (...)”. (VAILLANT,1997 apud O FUNCIONAMENTO DA MENTE, 2017).
Então, quem sofre emocionalmente, vai também ter algum prejuízo
(disfunção) no modo pensar, de sentir e de decidir. O apresentador Cesar Souza
compara o ser humano a um carro, que tem quatro rodas (com as da frente móveis,
que são o pensamento e a decisão; com as duas rodas de trás fixas, que são as

103 Referência ao livro de PETEET, J. R. Depression and the soul – A guide to spirituality integrated
treatment. New York: Taylor & Francis Group, 2010.
104 Referência ao livro de VAILLANT, L. M. Changing character: short-term anxiety-regulating
psychotherapy for restructuring defenses, affects, and attachment. New York: Basic Books, 1997.
184

rodas da emoção e a da fisiologia – reações físicas). Rodiziar essas “rodas” pode


gerar problemas, como é o caso de ter as emoções comandando nossas vidas
(porque as emoções flutuam, embora sejam muito importantes, já que sem emoções
morremos). Pessoas impulsivas e emocionais demais, deixam a cognição na roda
traseira do veículo e criam problemas para o seu próprio corpo e destino. Uma forma
de definir saúde mental é: “ter as emoções, sem deixar que as emoções tenham
você.” (O FUNCIONAMENTO DA MENTE, 2017).
Esse mesmo programa também traz elementos bíblicos, que, segundo o
apresentador Cesar, demonstrariam a antiguidade das orientações psicológicas para
os fiéis, constantes já das Sagradas Escrituras. Nas Cartas de Paulo, por exemplo,
uma citação de Efésios 4,26: “Mesmo em cólera, não pequeis” – ou seja: tenha raiva
(porque ela é constituinte do humano), mas não deixe que a raiva tenha você. Paulo
está citando nesse trecho, ainda segundo o apresentador do programa, César, o
Livro de Salmos 4,5: “Tremei, mas sem pecar; refleti em vossos corações quando
estiverdes em vossos leitos, e calai.” (BÍBLIA, 2001 apud O FUNCIONAMENTO DA
MENTE, 2017).
Ensina o mesmo programa sob exame, que pessoas movidas demais pelas
emoções, cometem, por exemplo, crimes passionais (agem sem pensar).
Perguntamos: movidas pelo inconsciente? Perdem o controle (a emoção toma conta
da razão). As emoções não são inadequadas, mas lidar com elas exige inteligência
emocional (capacidade de perceber emoções em si e nos outros e saber interagir
empaticamente). O ser humano pode ter sofrimentos em níveis diferentes (da
neurose pode regredir para a psicose – e quanto mais ele regredir, mais os fatores
biológicos terão ascendência sobre a bioquímica cerebral). A maturidade psicológica
vai no sentido contrário: a pessoa lida bem com seus sofrimentos, aceita o que não
consegue mudar (quanto mais maturidade, menos influência dos fatores biológicos e
do meio ambiente). Outra forma de definir saúde mental está relacionada à nossa
capacidade de aprendermos a lidar com o afeto, a expressar e experimentar
sentimentos, a utilizar a razão sem muita frieza, a dizer não, a colocar limites e a ter
uma vida produtiva. Saúde mental (saúde lato sensu) é um processo. É uma decisão
pessoal entrarmos nesse processo. É uma escolha (não decorre de força, pressão
ou violência). (O FUNCIONAMENTO DA MENTE, 2017).
Na conformidade do que o apresentador e psiquiatra César aborda noutro
episódio do programa “Claramente”, denominado “Controle Emocional – como ter
185

uma vida mais saudável através do controle emocional”), nós, os humanos, somos
ensinados desde pequenos a comer, a trabalhar, ir à escola, a ler, a escrever, a
fazer a higiene pessoal, a orar (alguns de nós). Quem nos ensina a dominar nossos
sentimentos? Existe alguma disciplina escolar que nos ensina como devemos lidar
com nossas emoções e pensamentos? Os pais podem ensinar (educar) os seus
filhos sobre como lidar com os seus sentimentos, também. É possível aprendermos
a ter autocontrole e a viver em harmonia. Mudamos mediante aprendizado e prática.
Um conceito de insanidade é o de repetirmos os mesmos comportamentos e
esperarmos resultados diferentes. Maturidade (e inteligência) emocional é viver
emoções fortes e administrá-las ao mesmo tempo, sem agredir o outro. O controle
emocional pode ser obtido: quando aceitamos que essa falta de controle existe em
nós (por imitação de modelos paternos ou por herança genética); quando
assumimos a responsabilidade e não culpamos os outros pela nossa conduta;
quando (cultivamos a ideia de e) decidimos mudar de fato; e quando ficamos prontos
para mudar (decididos mesmo, por um desejo profundo e pessoal de melhorar como
pessoas) – o auxílio de profissionais da área da psicologia pode ser necessário.
Termos as emoções não é o problema; o problema é deixarmos que elas nos
dominem. Quando ainda não aprendemos bem o controle emocional, é possível
descarregarmos nosso nervosismo praticando atividade físicas (por exemplo, rachar
lenha, subir morros, fazer ginástica). Não podemos mudar as pessoas que vivem em
descontrole emocional (elas é que devem desejar e buscar essa mudança).
(CONTROLE EMOCIONAL, 2017).
Nesse episódio do programa “Claramente” (veiculado semanalmente na TV
Novo Tempo), César V. Souza cita novamente um pensamento bíblico, como
suporte para suas preleções psicológicas, extraído de Provérbios 16,32: “Mais vale
controlar o seu espírito do que conquistar uma cidade.” (BÍBLIA, 2001 apud
CONTROLE EMOCIONAL, 2017). Não nos parecem prescrições muitos distantes
daquelas de Platão, Freud e Koestler: ter o Ego (para Villeneuve, 2016, o sistema
lógico-racional) a cavaleiro das demais instâncias.
Em outro programa Claramente, chamado “Neurose, o encolhimento do eu –
neurose, o que é e como podemos ter uma mente mais saudável”, Cesar ensina que
buscar o autoconhecimento é esforço que pode ajudar-nos a seguirmos rumo a uma
melhor qualidade de vida (ao nos aprimorarmos como pessoa, ao aprendermos a
lidar com a dor, amadurecemos). Ninguém está livre de sentir angústia, ansiedade
186

excessiva, nem de viver problemas psicológicos de algum tipo. Ele explica que a
raiva, por exemplo, nos defende de abusos e que não é errado sentirmos raiva; ela
nos protege, como um escudo, de invasões danosas para nossa vida emocional.
Todas as emoções tem uma função, aprendemos com elas. A pessoa mentalmente
saudável controla e aprende com as emoções. É o caso do medo (que protege todo
ser humano, e que em excesso pode gerar o pânico). (NEUROSE, O
ENCOLHIMENTO DO EU [2], 2017).
O programa “Claramente” transmite sua mensagem (cristã e psicoeducativa)
de que pessoas saudáveis não permitem que suas emoções as conduzam a um
comportamento destrutivo. Saúde mental é saber dosar adequadamente a forma
pela qual lidamos com a nossa natureza (temperamento). Neurose é modo reativo
(sempre aceitando tudo; ou reagindo agressivamente, sem pensar). No excesso,
estão os transtornos emocionais. O neurótico não apresenta exageradas alterações
do pensamento racional, não fica desorientado no tempo e no espaço, não tem
delírios, nem alucinações – como ocorre com o indivíduo psicótico (gravemente
perturbado). (NEUROSE, O ENCOLHIMENTO DO EU [2], 2017).
Esse canal televisivo e essa religião adventista (cristã) está praticando uma
forma de psicoeducação muito clara, de fato, sem apelos típicos religiosos, sem
excessos espirituais e místicos, trazendo ao conhecimento do seu público
telespectador diferentes teorias psicológicas, a psicanálise, a psiquiatria, a medicina,
de forma quase imparcial (a nosso ver).
O programa televisivo “Claramente” visa oferecer informações científicas
para melhorar a qualidade de vida afetiva dos seus telespectadores (na área física,
mental – pensamentos, sentimentos e volição, e espiritual). César Souza, no
episódio “Saúde mental na visão cristã (1) – qual é a visão cristã sobre a saúde
mental? Quais são as dimensões que compõem o ser humano?”, na condição de
psiquiatra cristão, diz acreditar que há dimensões que esta perspectiva cristã traz
que não são oferecidas por outras teorias. A visão cristã restabelece a necessidade
do cuidado e do desenvolvimento espiritual para alcançar a saúde mental – por meio
da psicoterapia, do estudo, da leitura, da atividade física, da saúde espiritual. Essa
perspectiva vê a religião não como neurótica, ou desagradável, ou como ópio do
povo (reconhece que pode até ser vivida assim, de fato) – como a descreveu Freud
em “O mal-estar na civilização” (1996 [1914]) e em “Totem e Tabu” (1996 [1913]),
mas como um instrumento para ajudar a encontrar saídas para as situações que a
187

vida nos apresenta. Há aspectos genéticos em nosso comportamento e também


aspectos aprendidos (formas de pensar e reagir por imitação ao comportamento dos
pais). (SAÚDE MENTAL NA VISÃO CRISTÃ [1], 2017).
Segundo essa perspectiva, é possível desaprender formas de viver que não
funcionam bem. É possível aprender uma nova forma de viver, segundo a
psicoeducação (treinar um novo comportamento, novas formas de pensarmos e de
reagirmos às circunstâncias externas, pois genética é propensão e não
condenação). Nossa mente é “como um automóvel”, com as duas rodas móveis na
frente equivalentes ao pensar e escolher (decidir) e as duas rodas de trás
equivalentes ao sentir e à fisiologia – como antes referimos, e aqui temos uma
semelhança muito curiosa com o modelo do triune brain (com o réptil-afetivo nas
rodas de trás e com o cérebro lógico-racional-espiritual nas rodas dianteiras, na
direção flexível do nosso organismo). Podemos escolher um novo comportamento
racionalmente (inteligência emocional), por percebermos que talvez seja necessário
mudar a direção de nossos passos (mesmo sem sabermos muito bem como fazer
isso). O processo é começarmos a fazer isso, com uma mente esclarecida
(entendendo que ao nos comportarmos de maneira diferente, as coisas funcionam
melhor – é preciso dar os passos iniciais nesse sentido). Mudamos quando
mudamos (a genética gera uma propensão a ser explosivo, por exemplo, mas não é
condenação). Saúde mental pode ser aprendida. (SAÚDE MENTAL NA VISÃO
CRISTÃ [1], 2017).
Para Cesar Souza, apresentador do programa “Claramente”, psiquiatra
cristão, um “guia geral” para o tratamento das desordens mentais contempla
primeiramente Deus (oração, Bíblia, convívio com a Natureza); depois a prevenção,
com o ensino às crianças do desenvolvimento do autogoverno105: “As lições de
temperança, autonegação, e autocontrole devem ser ensinadas aos filhos mesmo
desde a primeira infância (babyhood)”, conforme Ellen G. White escreve em “Child
Age and Education – Spirit of prophecy compilation” (WHITE, 2011); e, por fim, as
atividades físicas são também necessárias, porque o nosso cérebro é o órgão da
mente (fisioterapia, ginásticas, hidroterapia, vegetarianismo; e antidepressivos e
antipsicóticos, quando necessário, e temporariamente). Parece-nos aproximar-se
muito a perspectiva da autora Ellen G. White do pensamento da nossa médica

105 Referência ao livro de WHITE, E. G. Child Age and Education – Spirit of prophecy compilation.
Tellico Plains, TN, USA, 2011.
188

pediatra espanhola e articulista Inés Merino Villeneuve (2016), já citada neste


trabalho, no Capítulo 1. Saúde mental começa quando a criança é pequena, por
meio de expressões de afeto, colocação de limites, ensinamentos sobre como lidar
com as emoções (medo, raiva), sobre o adiamento das satisfações. (SAÚDE
MENTAL NA VISÃO CRISTÃ [2], 2017).
O imaginário popular coloca o centro das emoções no coração humano.
Pensamos agora que estão de fato localizadas as emoções no coração, porém no
coração do cérebro humano: no lymbic system (no paleomammalian brain).
Na sequência desse programa sobre a “Saúde mental na visão cristã [2]”,
César coloca algumas questões para os seus fiéis telespectadores: Qual a visão que
você tem sobre o ser humano (em termos de suas estruturas)? Você acredita que
temos dimensões física, mental e espiritual? Você acredita que feliz é a pessoa que
sente muitas emoções e vibra muito? Ou você pensa que o melhor para o
comportamento humano (o mais saudável) é termos controle sobre nossas emoções
(não no sentido de repressão impiedosa e neurótica, mas que devemos ter uma
administração dessas emoções feita pela cognição, pelo raciocínio)? Você pensa
que se usar muito sua razão para administrar sua mente, vai ficar uma pessoa muito
robotizada? Como denominamos pessoas muito emocionais? Seriam pessoas
emocionalmente robotizadas? O que é saúde emocional? O que é o equilíbrio entre
a razão e a emoção? Qual o padrão de comportamento humano de equilíbrio entre
essas dimensões? O mais emocional, o mais lógico? A visão judaico-cristã apóia-se
no equilíbrio entre o pensar e o sentir. (SAÚDE MENTAL NA VISÃO CRISTÃ [2],
2017).
A doutora Vaillant (1997), como já referimos, afirma no livro106 “Changing
character: short-term anxiety-regulating psychotherapy for restructuring defenses,
affects, and attachment”, que “saúde mental é você ter as emoções e não deixar que
as emoções tenham você.” (VAILLANT, 1997 apud SAÚDE MENTAL NA VISÃO
CRISTÃ [2], 2017).
César reitera que se trata de um conceito bíblico, pois Paulo fala em uma de
suas cartas: “Mesmo em cólera, não pequeis.” (Efésios 4,26). E repete o Livro de
Salmos 4,5: “Tremei, mas sem pecar; refleti em vossos corações quando estiverdes
em vossos leitos, e calai.” (como antes referimos). Ou seja, tenha raiva, mas não

106 Referência ao livro de VAILLANT, L. M. Changing character: short-term anxiety-regulating


psychotherapy for restructuring defenses, affects, and attachment. (1997).
189

deixe a raiva ter você. Podemos ter as emoções e não deixar que elas tomem conta
de nosso comportamento. Isso é saúde mental. A Bíblia fala que devemos buscar o
fruto do espírito (a temperança, o equilíbrio). Cesar cita o livro de Gálatas 5,22: “Ao
contrário, o fruto de Espírito é caridade, alegria, paz, paciência, afabilidade,
bondade, fidelidade.” (BÍBLIA, 2001 apud SAÚDE MENTAL NA VISÃO CRISTÃ [2]).
A temperança é domínio próprio (administrar emoções) e não apenas
controlar o quê e quanto comemos. Para Ellen G. White, os verdadeiros princípios
da psicologia se encontram nas sagradas escrituras. (WHITE, 2011 apud SAÚDE
MENTAL NA VISÃO CRISTÃ [3], 2017).
Nessa visão cristã da saúde mental, afirma César Souza, qualquer ser
humano tem conflitos em sua estrutura mental (seja ele de qualquer filosofia
religiosa ou ateu). Também faz menção ao método psicanalítico freudiano, ao
afirmar que a escuta terapêutica (técnica) ajuda muito (a palavra influencia o
processo de cura). Há necessidade de falar, desabafar. (BÍBLIA, 2001 apud SAÚDE
MENTAL NA VISÃO CRISTÃ [3], 2017).
As referências que fazemos a esses programas “Claramente” são aleatórias.
Não temos interesse em fazer neste trabalho pregações religiosas de nenhum tipo.
Assim como encontramos elementos do triune brian nas obras freudianas, também
encontramos nelas influências da mitologia, da literatura, da Bíblia e de outras
religiões. Este subcapítulo vem, portanto, repisar a importância das posições
claramente psicológicas de um livro dos mais antigos da humanidade (e de
relevância central na cultura ocidental).
Outro texto bíblico de Jeremias 3,15, diz: “Dar-vos-ei pastores segundo o
meu coração, os quais vos apascentarão com inteligência e sabedoria.” Falar ajuda
a curar – a Bíblia incentiva a fala no Velho e no Novo Testamentos. (BÍBLIA, 2001
apud SAÚDE MENTAL NA VISÃO CRISTÃ [3], 2017). Psicólogos, padres e pastores
escutam confissões e lamentações de seus fiéis.
A psicanálise de Freud também sustenta-se sobre a fala, sobre a associação
livre de ideias, sobre a escuta flutuante (técnicas básicas do método).
A escuta nasce, pensamos, na mesma cena inaugural da associação livre
(que Freud utilizará como regra fundamental da psicanálise por toda a sua vida),
quando a moça Emmy Von N. repete (várias vezes) sua fórmula protetora: “Fique
quieto! – Não diga nada! – Não me toque!”, como consta em seu livro “Estudos
sobre a histeria”. (FREUD, 1996 [1893-1895], p. 89).
190

Ou seria essa prática uma versão da antiga “confissão cristã” (bem mais
antiga), em que o fiel fala e o padre somente escuta, para em seguida prescrever
uma forma de obter-se perdão? Embora, evidentemente, neste caso esteja presente
a ideia de pecado, de culpa, de temor de Deus107.
Há categorias diferentes de sofrimentos emocionais. É importante termos
consciência do tipo de dor que estamos sentindo em determinado momento da vida
(aflição por viver situação difícil, agressividade e impulsividade por descontrole
emocional, tristeza profunda por perda real ou imaginária). Psicoeducação é orientar
as pessoas para que possam compreender o seu sofrimento. Ansiedade, fobia,
depressão. Problemas diferentes, com abordagens diferentes, com especialidades
diferentes. O que estamos sentindo e que nos incomoda? Culpa, medo, tristeza,
irritação? É preciso pararmos para pensar sobre a dor emocional. O que vai mudar o
nosso sofrimento emocional não é a medicação, mas o que nós vamos fazer a partir
da compreensão do que está acontecendo. O psiquiatra Cesar Souza (no programa
“Ansiedade é diferente de depressão [2] – Pelas sensações e sintomas, é possível
diferenciar os dois casos”) declama trecho de um samba de um festival da canção
do Rio de Janeiro (que chamou-nos muito a atenção, por ter conexão com o
mecanismo do triune brain: “(...) eu não posso parar, se eu paro, eu penso, se eu
penso, eu choro (...)”. Parar para pensar sobre o que nos faz sofrer não é fácil, mas
é o caminho! É um momento de reflexão e autoanálise. (ANSIEDADE É DIFERENTE
DE DEPRESSÃO [2], 2017).
Não poder parar (compulsão e atividade motora réptil); parar para pensar
(atividade cognitiva, lógico-racional); pensar e chorar (atividade emocional).
Novamente, o Doutor Cesar cita o apóstolo Paulo e a passagem da Bíblia de
II Coríntios, 13,5: “Examinai-vos a vós mesmos.” Algumas pessoas violam a
consciência o tempo todo (na política, no casamento, com os filhos). Isso também
gera angústia. Transgredir a própria consciência gera uma forte repercussão interna
(conflito). O caminho é escolher uma das muitas dificuldades que temos e começar a
trabalhar com esse aspecto de nossa personalidade a ser aprimorada, orienta seus
telespectadores o psiquiatra apresentador. Agir assim, dar o primeiro passo, por si

107 Como bem observou sobre esse nosso mesmo comentário, à época, o professor Doutor Gustavo
Héctor Brun, em nossa décima-quarta reunião de supervisão. Referência a parágrafo e nota de
rodapé (com adaptações) de nosso “Relatório do estágio básico em psicologia I”, cujo título foi “A
escuta dos velhos – Formação do psicólogo no Lar do Idoso. Escuta, memória e perda como
elementos fundamentais da formação”, Curso de Psicologia, UNIJUÍ (Julho de 2016).
191

só, vai fazer algo mudar em nossa saúde emocional. Vai ajudar a melhorarmos
psiquicamente. Em Salmos 119, 50, encontramos o preceito religioso: “O único
consolo em minha aflição é que vossa palavra me dá vida.” [grifo nosso]. (BÍBLIA,
2001 apud ANSIEDADE É DIFERENTE DE DEPRESSÃO [2], 2017).
A palavra. A linguagem. No início, era o Verbo.
Em “As origens”, consoante o que consta no Gênesis, 1, 24-31, no sexto dia
da Criação dos céus e da terra, Deus criou os seres vivos da terra:

Deus disse: ‘Produza a terra seres vivos segundo a sua espécie: animais
domésticos, répteis e animais selvagens (...) da mesma forma todos os
animais que se arrastam sobre a terra (...) Façamos o homem à nossa
imagem e semelhança. Que ele reine sobre (...) todos os répteis que se
arrastam sobre a terra (...) criou o homem e a mulher (...) enchei a terra e
submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e
sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra (...)’. [grifo nosso].
(BÍBLIA, 2001).

E Deus disse. O Verbo. Homem e mulher criados à Nossa imagem e


semelhança (de Quem os criou) para reinar sobre os animais, em especial sobre os
répteis que se arrastam sobre a terra. Por que o homem reinaria sobre os animais,
peixes, anfíbios, aves, mamíferos e répteis? Ele dispõe da razão. Os demais, não.
Eles dispõem de cérebros instintivos (os que se arrastam) e instintivos-afetivos (os
mamíferos, por exemplo).
A depressão vai ser a segunda doença do mundo em 2020 (segundo a OMS
e a Associação Internacional de Psiquiatria), informa Cesar Souza, em “Depressão,
você pode vencer essa luta [1]” (2017). E já há estudos mostrando que poderá ser a
primeira, em 2030. O aspecto físico do organismo é atingido. O aspecto emocional,
principalmente. Então, falar e desabafar com alguém (preferencialmente um
profissional da saúde), será cada vez mais necessário. Precisamos olhar para nosso
aspecto espiritual (mente sobrecarregada). E precisamos mudar a forma de
pensarmos, melhorar a nossa autoestima para não nos tornarmos alvos de abusos
de outras pessoas, aceitar o apoio de familiares, aprender a conversar com os
outros para obter acordos e entendimento, desenvolver atitude autoprotetora,
reivindicar direitos, extravasar a dor e dar os passos sequenciais para sair dessa
situação sofrida. Como vimos anotando neste subcapítulo, na Bíblia existem vários
registros sobre as emoções humanas, desta vez, em Salmos, 29,6 está escrito:
“Pela tarde, vem o pranto, mas, de manhã, volta a alegria.” (BÍBLIA, 2001 apud
DEPRESSÃO, VOCÊ PODE VENCER ESSA LUTA [1], 2017).
192

Doença psicossomática é desordem física do corpo originada ou agravada


pela psique ou por processos emocionais do indivíduo, explica o médico. Corpo e
mente sempre trabalham juntos: conflitos sociais e familiares ↔ conflitos pessoais →
disfunções de comportamento → sintomas físicos. Saúde é um conjunto de
procedimentos. Adalberto Barreto (Ceará), médico psiquiatra criador da “terapia
comunitária”, de acordo com Cesar Souza (em “Psicossomática – O corpo fala”)
afirma que: “Quando a boca fala, os órgãos saram; quando a boca cala, os órgãos
falam, e adoecem”. A fala calada se expressa no corpo. Uma clara menção
(adaptativa) aos termos do método psicanalítico, que achamos interessante trazer
neste estudo. (PSICOSSOMÁTICA, 2017).
Hipócrates108, grego, pai da Medicina, referido por Cesar Souza, nesse
mesmo programa Claramente, é o autor da frase: “Mais importante do que saber que
doença tem esta pessoa, é saber que pessoa tem esta doença.” Três dimensões
humanas: física, mental, espiritual. Dentro do social, em qualquer país, raça, religião,
condição sócio-econômica-cultural há três partes da condição mental: Pensar, sentir,
agir – repete o médico carioca. Quando há conflito intrapsíquico, o corpo também
participa dessa situação. (PSICOSSOMÁTICA, 2017).
Para o Dr. Herbert Benson109, da Harvard University School of Medicine,
Body-Mind Institute, autor de “Timeless healing – The power and biology of belief”:

Emoções são o resultado natural e a representação no nosso cérebro da


maneira como ele reage pelo que ocorre em nossa vida inteira, dentro e fora
de nós. Elas são muito mais importantes para o funcionamento do cérebro e
determinação de nossa saúde do que nossa sociedade, a qual promove a
razão objetiva, tem imaginado. (...) (emoção) carrega um papel mais crucial
em nossa fisiologia do que a maioria de nós pode compreender. (BENSON,
1996 apud PSICOSSOMÁTICA, 2017).

Embora escrito por professor da Universidade de Harvard, esse poderia ser


considerado um livro de “autoajuda”? Em geral, ouvimos comentários negativos
(especialmente no meio acadêmico) sobre os livros de “autoajuda”. Mas será que
são todos eles literatura descartável? Fazemos nova citação do Doutor Flávio
Gikovate:

Livros de autoajuda não são sempre de má qualidade. A expressão


'autoajuda' foi contaminada por textos com dicas muito simplórias sobre

108 Hipócrates viveu de 460-277 d.C.


109 Referência ao livro de BENSON, H. Timeless healing – The power and biology of belief. New York:
Simon & Schuster. (1996).
193

como resolver problemas. Porém, algumas publicações podem, sim, trazer


boas ideias. (GIKOVATE, 2012).

Se um livro, seja qual for a sua “classificação” por parte dos críticos,
conseguir trazer-nos ao menos uma boa ideia, já terá surtido seu efeito de
comunicação e compartilhamento do conhecimento (é o que pensamos).
Emoções e seu papel crucial: representam como o cérebro reage ao que nos
ocorre. Para Donald Winnicott110:

A doença principal no transtorno psicossomático não é o sintoma clínico ou


o funcionamento doentio (asma, colite, fibromialgia, eczema, diarreia), mas
tem a ver com problemas na organização do Ego da pessoa. Tem a ver com
falta de harmonia emocional interna que acaba afetando o físico dessa
pessoa. (WINNICOTT apud PISCOSSOMÁTICA, 2017).

As desordens psicossomáticas não são fraquezas ou falta de fé (podem


decorrer da vivência de situações traumáticas e estressantes na vida). Os
sofrimentos emocionais são expressões de sofrimento. Desordens psicossomáticas
são defesas utilizadas pelo corpo para tentar aliviar a mente. Corpo e mente sempre
trabalham juntos. (PSICOSSOMÁTICA, 2017). Concordamos com o médico
psiquiatra cristão: reptilian brain, paleomammalian brain, neomammalian brain. O ser
humano é multidimensional. Agir, sentir, pensar.
César cita outros versículos bíblicos do Livro de Salmos 138,23-24:
“Perscrutai-me, Senhor, para conhecer meu coração; provai-me e conhecei meus
pensamentos. Vede se ando na senda do mal, e conduzi-me pelo caminho da
eternidade.” [grifo nosso]. (BÍBLIA, 2001 apud PSICOSSOMÁTICA, 2017).
Referências às dimensões lógico-racional, ao emocional e ao físico (instintivo) do ser
e da mente humanos.
Então, no programa “Autorregulação do pânico” (2017), Cesar sugere
tratamento psicológico com base em diferentes abordagens, de forma clara e direta:
psicodinâmica, cognitivo comportamental, alterações neuroquímicas, estilo de vida e
até ajuda espiritual. É preciso aprendermos a ter autocontrole. A pessoa com pânico
interpreta sensações corporais como sintomas de perigo (mínima aceleração
cardíaca, preocupação, pensamento catastrófico – mais ansiedade, mais adrenalina,
mais taquicardia, mais preocupação, mais medo). (AUTORREGULAÇÃO DO
PÂNICO, 2017).

110 Referência à obra de Donald Woods Winnicott (1896-1971), pediatra e psicanalista inglês.
194

Da Carta I de Pedro 5,7, Cesar Souza destaca o seguinte versículo:


“Lançando sobre Ele toda a sua ansiedade, porque Ele cuida de você”. (BÍBLIA,
2001 apud AUTORREGULAÇÃO DO PÂNICO, 2017).
A noção da existência do cérebro réptil já estava registrada na Bíblia
Sagrada? Na história de comer o fruto da árvore do conhecimento, estaria a
serpente indicando (bondosamente) a necessidade humana de evoluir em seus
cérebros sequenciais e interconectados: réptil – emocional – lógico-racional? Por ter
sido apresentado ao conhecimento, teria o homem sido punido e expulso do Paraíso
(natural e animal), junto da companheira, por não mais fazer parte da natureza pura
do réptil-emocional? Foram ambos desnaturalizados pela linguagem sofisticada?
Temos, em Gênesis 3,1-24, interessantes registros bíblicos sobre a
serpente, o ódio, a inteligência e o conhecimento (vestígios do triune brain na Bíblia
Sagrada, tão utilizada também pelo Doutor Freud em seus estudos sobre a psique):

A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos (...)


Podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que
está no meio (...) não comereis, nem o tocareis, para que não morrais (...)
Oh, não! – tornou a serpente – Vós não morrereis! (...) vossos olhos se
abrirão, e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal. (...)
agradável aspecto, mui apropriado para abrir a inteligência (...) Então os
seus olhos abriram-se; e, vendo que estavam nus, tomaram folhas de
figueira (...) O Senhor Deus disse à mulher: Por que fizeste isso? – A
serpente enganou-me – respondeu ela – e eu comi. (...) Deus disse à
serpente (...) serás maldita entre todos os animais e feras dos campos;
andarás de rastos sobre o teu ventre e comerás o pó todos os dias de tua
vida. Porei ódio entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela.
Esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar. (...) Eis que o homem
se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal. Agora, pois,
cuidemos que ele não estenda a sua mão e tome também do fruto da árvore
da vida, e o coma, e viva eternamente. [grifo nosso}. (BÍBLIA, 2001).

E na sequência, o Gênesis 4,1-26 traz outro confronto entre opostos, o de


Caim e Abel (um mais reptiliano e outro mais emocional), nascidos de Adão e Eva:

(...) Caim ficou extremamente irritado (...) seu semblante se tornou abatido
(...) Por que estás irado? (...) Se praticares o bem, sem dúvida alguma
poderás reabilitar-te. Mas se procederes mal, o pecado estará à tua porta,
espreitando-te; mas tu deverás dominá-lo. Caim disse então a Abel, seu
irmão: “Vamos ao campo.” Logo que chegaram ao campo, Caim atirou-se
sobre seu irmão e matou-o. (BÍBLIA, 2001).

Alguns versículos bíblicos falam claramente sobre os conflitos emocionais


comuns a todos nós humanos. Por exemplo, em Eclesiastes 7,9: “Não cedas
prontamente ao espírito de irritação; é no coração dos insensatos que reside a
195

irritação.” Em Eclesiastes 7,29: “Somente encontrei isto: Deus criou o homem reto
mas é ele quem procura os extravios [as astúcias]”. Em Salmos 18,13: “Quem pode,
entretanto, ver as próprias faltas? Purificai-me das que me são ocultas.” [grifo
nosso]. (BÍBLIA, 2001).
Purificai-me das faltas que me são ocultas? Nosso eu desconhece as
próprias faltas? O conceito de inconsciente já estava escrito no Velho Testamento
da Bíblia Sagrada?

Figura 18 – "Escudo da Trindade" ou diagrama tradicional Scutum Fidei


do simbolismo medieval cristão ocidental, desde o século XII.

Fonte: Wikipédia, Trindade (cristianismo), 2018.

Para não agirmos preconceituosamente com uma extraordinária ferramenta


de pesquisa hoje disponível (e utilizada mundialmente), a Wikipédia (embora cientes
de que consultas a essa fonte desagradam aos mais ortodoxos profissionais da
pesquisa autodenominada científica), procedemos pesquisa simples sobre o tema
“Trindade” (cristianismo) – secundário ao objetivo deste trabalho – e encontramos
rapidamente as seguintes informações sobre a Doutrina Cristã da Trindade (do latim
trinitas “tríade”, de trinus “tripla”):

(...) define Deus como três pessoas consubstanciais, expressões ou


hipóstases. As três pessoas são distintas, mas são ‘uma substância,
essência ou natureza’. (...) Assim, toda a obra da criação e da graça é vista
como uma única operação comum de todas as três pessoas divinas, em
que cada uma delas manifesta o que lhe é próprio na Trindade, de modo
que todas as coisas são "a partir do Pai", "através do Filho" e "no Espírito
Santo". (WIKIPÉDIA, 2018).
196

Em II Coríntios, 3,17, consta o seguinte versículo bíblico: “Ora, o Senhor é


Espírito, e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade”.
Pai, Filho e Espírito Santo.
Por fim, uma questão que nos colocamos sobre a teoria do cérebro triúnico
na interface com a psicanálise e interdisciplinarmente com a psicologia cristã (nesse
programa, psicologia cristã adventista), diz respeito à passagem bíblica que relata o
momento em que Jesus falou, segundo o Novo Testamento a sua, talvez, mais
famosa frase bíblica, em João 8,31-32: “Se permanecerdes na minha palavra, sereis
meus verdadeiros discípulos; conhecereis a verdade, e a verdade vos livrará.”
(BÍBLIA, 2001).
O que será que Jesus quis dizer aos seus contemporâneos?
Será que quando nós, os humanos (que na época de Cristo – há dois mil
anos – éramos ainda mais meio répteis, meio mamíferos, do que somos hoje),
compreendermos essa verdade natural de que somos seres trinitários, triúnicos,
trinos, triunos, triáldicos, tri... três cérebros em um – reptilian, paleomammalian e
neomammalian – instintivo, emocional e lógico-racional, finalmente nos tornaremos
livres de todos os conflitos intrapsíquicos que nos atormentam por toda a história da
humanidade? A verdade psicanalítica contida em Id, Ego e Superego, ou em Real,
Imaginário e Simbólico nos libertará?
Será que, ao menos cientes e convencidos desse fato biológico (e portanto
comprovável cientificamente, como desejava Freud), conseguiremos, como espécie
Homo Sapiens, encontrar o equilíbrio, a harmonia, a paz, o amor, a saúde, a alegria
e uma vida equilibrada aqui na Terra?
A técnica oriental hindu, criticada pelo Doutor Freud, em “O mal-estar na
civilização” (1996 [1914]), da Yôga (ou da meditação, entre outras) poderia conter
uma das chaves para o alinhamento desses centros de comando humanos que tem
agendas evolutivas diferentes? Pode ser.
Se o Pai no Antigo Testamento é primitivo, agressivo e vingativo, por vezes,
como podemos lembrar das notórias histórias bíblicas, o Filho no Novo Testamento
é amor; pode ser também que o Espírito Santo seja, portanto, lógico-racional e, de
fato, espiritual.
197

3 CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS

Que obra-prima é o homem! Como é nobre pela razão! Como é infinito em


faculdade! Em forma e movimentos, como é expressivo e maravilhoso! Nas
ações, como se parece com um anjo! Na inteligência, como se parece com
um deus! A maravilha do mundo! Protótipo dos animais! – do Ato II, Cena II,
de Hamlet. [grifo nosso]. (SHAKESPEARE, 1969).

Neste trabalho levamos em consideração as mitologias, as religiões, as


filosofias, as literaturas, as psicanálises, as ciências e as diferentes linhas teóricas
das psicologias (procurando integrá-las de forma multidisciplinar), pois nosso estilo
de estudo, escrita e visão de mundo respeita todas as vertentes do conhecimento
(sem preconceitos e com base no direito de livre expressão do pensamento, que cria
a inovação, como aprendemos ao longo do curso de psicologia) – importantes são
as ideias e a qualidade delas, e não suas fontes, formais ou não – e tem em alta
conta o ensinamento da hermenêutica de que o pesquisador faz parte e também
está inserido no contexto de sua pesquisa: “A atividade hermenêutica envolve o
reconhecimento de que o observador é normalmente parte (ao invés de estar
separado de) do que está sendo observado”. (BETAN, 1997, p. 353 apud DUTRA,
2001, p. 82).
Nos domínios da psicologia, na interface da psicanálise (que declara suas
raízes na literatura dos grandes autores)111 com o modelo macleaniano (proveniente
das neurociências), não há como escrevermos de forma impessoal, no estilo de um
artigo puramente científico, por essa razão, este texto pode ser considerado híbrido:
artigo-ensaio, que homenageia as obras freudianas.
É necessário integrarmos cognição, emoção, comportamento, biologia,
medicina e inconsciente com urgência nos currículos dos cursos de psicologia (e dos
cursos das outras áreas da saúde), reduzindo naqueles o excessivo papel (de cunho
ideológico/ativista) desempenhado por disciplinas voltadas à Sociologia, Filosofia e
Antropologia. O ser humano não pode ser fragmentado (para ser compreendido).
Diz em seu prefácio, Richard Wilhelm, o tradutor do “I Ching – O livro das
mutações” (um dos livros mais antigos da humanidade, apoio das culturas do
Extremo Oriente, que desenvolveram uma forma diferente de psicologia, mas

111 Freud e a origem da psicanálise na literatura, conforme FRANÇA, 2014; CAMPOS, 2013; e
ROSENBAUM, 2012.
198

igualmente importante para a compreensão dos fenômenos humanos e pouco


conhecida no Ocidente):

[...] No fundo da complexidade aparente do universo, jaz oculta uma


“simplicidade”. Ela consiste em tendências opostas e complementares em
que sempre oscila a mutação. [...] Os fenômenos são incontáveis e distintos
uns dos outros, porém regidos, em suas tendências de mudança, pelos
mesmos e constantes princípios. Aprendendo-os, descobre-se o simples por
detrás do complexo, o que implica também no fácil, que é a trajetória e o
percurso de tudo o que acompanha o ciclo em vigência. (WILHELM, 2009,
p.XII).

Ainda em um segundo prefácio à mesma obra, porém desta vez de C. G.


Jung (já em sua oitava década e pouco impressionado com as volúveis opiniões dos
homens, valorizando mais os pensamentos dos velhos mestres – como Confúcio112
e Lao Tsé – do que os preconceitos filosóficos da mente ocidental), encontramos as
seguintes anotações:

[...] Nossa ciência, entretanto, é baseada no princípio da causalidade, o qual


é considerado uma verdade axiomática. Mas uma grande mudança está
ocorrendo em nosso ponto de vista. [...] Enquanto a mente ocidental
cuidadosamente examina, pesa, seleciona, classifica e isola, a visão
chinesa do momento inclui tudo até o menor e mais absurdo detalhe, pois
tudo compõe o momento observado. [...] O pensamento tradicional chinês
apreende o cosmos de um modo semelhante ao do físico moderno, que não
pode negar que seu modelo de mundo é uma estrutura decididamente
psicofísica. O fato microfísico inclui o observador tanto quanto a realidade
subjacente ao I Ching abrange a subjetividade, isto é, as condições
psíquicas dentro da totalidade da situação momentânea. Assim como a
causalidade descreve a sequência dos acontecimentos, a sincronicidade,
para a mente chinesa, lida com a coincidência de eventos. (WILHELM,
2009, p. 16-17).

É preciso, portanto, durante um atendimento em terapia, ficarmos atentos a


tudo no ambiente analítico; tudo observarmos. Fundamental procurarmos o simples
no complexo (antes de aprofundarmos os estudos na linha psicanalítica). Integrar a
psicologia também é isto: respeitarmos e aprendermos sobre o conhecimento de
povos longínquos. Nosso desconhecimento sobre uma determinada cultura peculiar
não nos autoriza desqualificarmos o seu aprendizado sobre o planeta, sobre a vida e
sobre os fenômenos humanos.

112 “Aos quinze anos decidi aprender. Aos trinta, estava firme na vida. Aos quarenta não tinha mais
dúvidas. Aos cinquenta, compreendi a lei do Céu. Aos sessenta, o meu ouvido estava
perfeitamente afinado. Aos setenta, eu agia conforme mandava o meu coração.” (CONFÚCIO
apud DE MASI, 2014, p. 15).
199

Respeitarmos e atentarmos para a existência de aspectos biofisiológicos


(orgânicos e genéticos), espaciais, temporais e ambientais (incluídos os culturais,
históricos e sociais), em primeiro lugar, nos permite focarmos no que realmente
importa sobre as questões cognitivas, emocionais e inconscientes do indivíduo no
decorrer da análise – por uma psicologia integrativa, inclusive com a Filosofia e com
os estudos psicológicos orientais113.
Coincidência ou não (para nosso contexto investigativo do triune brian),
temos o seguinte registro em “O livro ilustrado dos símbolos”:

O I Ching é um antigo texto divinatório chinês, em que as respostas às


questões são dadas por trigramas; cada um destes consiste em linhas
inteiras (masculinas) ou interrompidas (femininas). Elas formam oito
padrões básicos de três linhas, que, combinados, geram 64 hexagramas
(de seis linhas) diferentes, cada qual com seu significado.

Céu ou paraíso: ≡ [grifo nosso]. (BRUCE-MITFORD, 2002, p. 111).

Ainda descobrimos (antes da arte final deste trabalho de conclusão) que,


embora com divergências entre si e com Freud, Jung e Reich também tinham
modelos tripartites em seus sistemas teóricos: o primeiro, com os conceitos de
persona, sombra e Self; e o segundo com seu “modelo das três camadas” da psique
(superficial, secundária/couraça e âmago). (ZWEIG, 2012, p. 107-110).
Pensamos que a teoria macleaniana (1990) é um modelo de fácil
visualização, principalmente para os leigos.
Freud mesmo sugeriu esta simplificação em “Linhas de progresso na terapia
analítica (1918)”:
Defrontar-nos-emos, então, com a tarefa de adaptar a nossa técnica às
novas condições. Não tenho dúvidas de que a validade das nossas
hipóteses psicológicas causará boa impressão também sobre as pessoas
pouco instruídas, mas precisaremos buscar formas mais simples e mais
facilmente inteligíveis de expressar as nossas doutrinas teóricas.
Provavelmente descobriremos que os pobres estão ainda menos prontos a
partilhar as suas neuroses, do que os ricos, porque a vida dura que os
espera após a recuperação não lhes oferece atrativos, e a doença dá-lhes
um direito a mais à ajuda social. (...) É muito provável, também, que a
aplicação em larga escala da nossa terapia nos force a fundir o ouro
puro da análise livre com o cobre da sugestão direta; e também a
influência hipnótica poderá ter novamente seu lugar na análise, como
o tem no tratamento das neuroses de guerra. No entanto, qualquer que
seja a forma que essa psicoterapia para o povo possa assumir,

113 Estes últimos quatro parágrafos foram adaptados do nosso “Relatório de estágio supervisionado e
seminário em psicologia e processos clínicos I” (Curso de Psicologia, UNIJUÍ, Julho de 2017, sob
a supervisão da professora Mestre Ana Maria de Souza Dias), por bem representarem nossa
posição pessoal sobre a integração de diferentes teorias.
200

quaisquer que sejam os elementos dos quais se componha, os seus


ingredientes mais efetivos e mais importantes continuarão a ser,
certamente, aqueles tomados à psicanálise estrita e não tendenciosa.
[grifo nosso]. (FREUD, 1996 [1918], p. 181).

Formas mais simples. Formas mais facilmente inteligíveis. Psicoterapia para


o povo. Adaptar a nossa técnica às novas condições. Expressar nossa teoria.
Psicanálise não tendenciosa.
Lembramos que o próprio símbolo utilizado para designar a área do
conhecimento humano que denominamos “Psicologia” é uma letra grega que lembra
uma imagem tripartite (o tridente): Ψ (PSI).
Na Índia há um trio de deuses muito poderoso, chamados Brahma, Vishnu e
Shiva, que “criam, protegem e destroem a vida”, em um ciclo de nascimento e
renascimento interminável (BRUCE-MITFORD, 2002, p. 102):

O tridente é o emblema do deus romano do mar, Netuno, talvez


representando passado, presente e futuro. Já o deus hindu Shiva usa um
deles para indicar sua função de criador, preservador e destruidor. Satanás
também tem seu tridente. (BRUCE-MITFORD, 2002, p. 102).

Com a transferência do centro da civilização para o continente, a Grécia


passou a venerar deuses que brigavam e amavam como seres humanos (antes
disso, a religião dos Egeus focava numa deusa mãe – segundo milênio a.C.) – entre
eles, representava o poder das águas um deus do mar que portava um tridente que
simbolizava a criação e a proteção dos navegantes, cujo nome era Posêidon, irmão
de Zeus. Era o mesmo Netuno dos romanos. (BRUCE-MITFORD, 2002, p. 14).

Figura 19 – O tridente dos deuses Netuno (romano),


Posêidon (grego) e Shiva (hindu).

Fonte: “O livro ilustrado dos símbolos” (BRUCE-MITFORD, 2002, p. 102).

Esta letra grega Ψ (PSI) está também na composição das palavras que
indicam as três áreas do conhecimento que ocupam-se mais diretamente da psique,
201

da alma, ou da mente humana (à parte da neurologia, que está mais


especificamente voltada para a medicina e as questões neurológicas): a psicologia,
a psicanálise, a psiquiatria – que tem agendas diferentes. Uma mais voltada para o
intelecto e a cognição; outra para o inconsciente e os impulsos; outra mais para a
química cerebral (biologia), o comportamento e o ambiente, mas todas interessadas
no fenômeno humano. Daí a importância da interdisciplinaridade.

CADUCEU. Segundo a alquimia, Mercúrio, mensageiro dos deuses, atirou


sua vareta mágica entre duas serpentes litigantes. Elas se enroscaram
no bastão, formando o caduceu, símbolo de forças opostas em
equilíbrio.” [grifo nosso]. (BRUCE-MITFORD, 2002), p. 108).

CAJADO DE ESCULÁPIO. Uma serpente enrodilhada num bastão é o


emblema e o símbolo de Esculápio, deus romano da medicina. A relação
com a cura se estabeleceu a partir da troca de pele da cobra, tornando-a
símbolo de renovação e regeneração. Na alquimia, a serpente em torno do
bastão representa o uso do metal mercúrio. (BRUCE-MITFORD, 2002, p.
59).

Por sinal, o caduceu (alado) é o símbolo que identifica a medicina (e a união


de opostos). Na figura, desenhamos um broche com caduceu de diamantes,
representando: o cajado alado de Mercúrio que harmoniza as disputas (na união de
opostos), as asas da transcendência, as cobras gêmeas de brilhantes do bem e do
mal que envolvem um bastão de esmeraldas. Nesse objeto, há também o
simbolismo das pedras (pois o diamante é a mais valiosa e mais dura das pedras e
liga-se à incorruptibilidade e à invencibilidade, sendo também um símbolo de
constância e sinceridade, pela sua pureza e transparência; já a esmeralda é
lembrada como estimulante da memória, do juízo aguçado e da predição do
futuro, além de ser vista como antídoto de venenos). (BRUCE-MITFORD, 2002, p.
40).
Podemos retirar muitos significados para nossa pesquisa a partir desses
símbolos que envolvem (e são envolvidos por) serpentes em conflito (o ódio e o
amor, a ambiguidade constitutiva primordial; o cérebros réptil e mamífero), o número
três no símbolo da medicina (formado por uma coluna vertebral de bastão ou vareta
mágica, que é enrodilhada por forças opostas em equilíbrio, representadas por duas
serpentes gêmeas). Na figura do caduceu alado do exemplo retirado do livro acima
referido, o adendo do diamante como representativo do cérebro lógico-racional
(espiritual): incorruptível, constante e sincero; e da esmeralda como memória, juízo e
projeção do futuro (que podemos traduzir como a capacidade humana cognitiva do
202

planejamento). A forma da letra PSI do tridente repetida no caduceu “alado” (cujas


asas simbolizam a transcendência).

Figura 20 – O caduceu e o esculápio.

Fonte: “O livro ilustrado dos símbolos” (BRUCE-MITFORD, 2002, p. 40 e p. 59).

Muito importante percebermos que o caduceu “alado” de Mercúrio


harmoniza as disputas. O cérebro lógico-racional (espiritual – sobre o cajado há uma
pérola produzida pela ostra, símbolo da beleza e da perfeição, do domínio feminino,
da sabedoria, imortalidade e luz, pérolas seriam as lágrimas dos deuses) parece ter
função semelhante na mente humana. Há outras pérolas nas partes superiores das
serpentes e sob o cajado, também. (BRUCE-MITFORD, 2002, p. 38).
Cabe lembrarmos aqui, novamente, da árvore do conhecimento, símbolo da
tentação que cresce no Paraíso gerando frutos do bem e do mal, sendo que a
serpente nela enrodilhada convence Eva a morder a maçã e a fazer Adão desafiar a
vontade divina, o que resultou na queda; na perda da inocência e da graça; e na
condenação da humanidade. Como Eva culpa a serpente, ela passa a ser um
símbolo do mal na cultura judaico-cristã. Novamente, o bastão (árvore), forças
opostas em conflito, união dos opostos, mal e bem, ódio e amor, sexualidade e
emocionalidade, árvore do conhecimento e vontade divina. Várias são as conexões
com o triune brain.
Há uma energia sexual conhecida como kundaliní, que pode ser despertada,
por exemplo, pela prática da Yôga, uma serpente de fogo (fenômeno bioelétrico) que
sobe pela coluna vertebral e ajuda a desenvolver a paranormalidade e o estado de
hiperconsciência e autoconhecimento (Samádhi) – que é a meta da Yôga; isso
somente após muitos anos de dedicação intensiva às práticas dessa ginástica que
203

atua fortemente sobre as glândulas endócrinas. Escreve De Rose (1995, p. 126), em


seu livro “Tudo o que você nunca quis saber sobre Yôga (e jamais teve a intenção
de perguntar)”: “Quem exagera os perigos da kundaliní pode estar interessado
apenas em manipular o público através da exploração dos seus medos.” Pouco
antes, na mesma página, esse autor registra que: “(...) tais conhecimentos foram
transmitidos por diversas tradições orientais e ocidentais (...)”. Observamos que
seguem sendo praticados mais no Oriente. Há outros meios de despertar kundaliní
(técnicas chinesas taoístas e hinduístas tântricas, por exemplo).
Uma energia sexual, curiosa semelhança com a libido de Freud. Uma
serpente de fogo, curiosa semelhança com o aspecto reptiliano da mente de
MacLean (a coluna vertebral + o encéfalo, simples nos répteis, complexo nos
mamíferos, extremamente complexo no mamífero humano).

Kundaliní (em sânscrito: कुं डलिनी, Kundaliní) é fenômeno bioelétrico, dito


ser uma corrente elétrica que fica concentrada na base da coluna. O termo
é feminino (...) É a energia que transita entre os chakras que são centros de
energia no corpo físico.

Deriva de uma palavra em sânscrito que significa, literalmente,


"enrolada como uma cobra" ou "aquela que tem a forma de uma
serpente". É a energia do Universo ou chi ou Prana em seu aspecto Purna-
Shakti, total, como potencial, sendo o Prana-Shakti o aspecto biológico, ou
físico (...)

É também tema de estudo no campo da psicologia onde a reputam de difícil


condução com a disciplina e maturidade que são requeridas para esse
intento. [grifo nosso]. (WIKIPEDIA, 2018).

Conforme “O livro ilustrado dos símbolos”, a união dos opostos está também
presente no símbolo chinês Yin (negativo, feminino, escuro) e Yang (positivo,
masculino e brilhante), que representam as forças contrárias, complementares e
universais do taoísmo, essenciais no I Ching:

Para muitas culturas o mundo se constituía de dualidades de opostos: vida


e morte, luz e treva, feminino e masculino, céu e inferno. Em outras, os
pares se complementam, como o yin e yang chineses. Dois pode ser
discórdia e conflito, ou equilíbrio e casamento. (BRUCE-MITFORD, 2002, p.
102).

Interessante pensarmos que nessa imagem muito utilizada atualmente pelo


mundo afora ocorre a interação e interpenetração dessas energias criadoras
opostas, mas complementares, que, no entanto, estão circulando (como serpentes
gêmeas) ao redor de um centro (do círculo), de modo que podemos pensar que se
204

trata do mesmo princípio do bastão rodeado pelas forças em equilíbrio do caduceu.


Não parece lógico esse raciocínio?

Figura 21 – Símbolo Yin e Yang – Chinês.

Fonte: “O livro dos símbolos” (BRUCE-MITFORD, 2002, p. 102, 111, 115).

A teoria de dois fatores emocionais (Teoria de Schachter-Singer)


demonstrou que “as sensações físicas são ligadas a emoções – por exemplo, a
forma como o batimento cardíaco e a tensão muscular aumentam antes de as
pessoas sentirem medo – e que a cognição é afetada pelo estado emocional do
indivíduo.” [grifo nosso]. (COLLIN et. al., 2012, p. 338). Esta é mais uma correlação
teórica que parece ajustar-se aos conceitos macleanianos, assim como a
interpretação que fazemos dos símbolos milenares antes mencionados.
Integrar os três cérebros, as três instâncias freudianas e lacanianas, ajuda o
ser humano a reduzir os conflitos internos (no homem singular) e os conflitos
externos (na sociedade, o homem plural) e os conflitos entre indivíduos e sociedade
(também decorrentes do sintoma social gravíssimo que hoje são o abuso de álcool e
drogas) e a obter coerência e congruência entre essas três dimensões, com o auxílio
da razão. São três agendas cerebrais (com metas e objetivos diferentes) que
precisam ajustar-se entre si.
Pensamos sobre o cérebro réptil e sua agressividade estimulada pelo
consumo de álcool em todos nós humanos. E, no Brasil, visivelmente, no caso dos
indígenas brasileiros, porque os índios “não aculturados” permanecem mais
próximos do humano primitivo – conforme Freud, em “Totem e Tabu” e “O mal-estar
na civilização” – vivem em habitat natural mais primitivo e têm seu sistema instintual-
afetivo ainda mais incentivado no propósito egoísta de sobrevivência e procriação
desse núcleo cerebral, quando o organismo está alcoolizado; assim como ocorre
205

com as demais raças e etnias, obviamente. E também pensamos na função


biológica desse mesmo sistema réptil-afetivo na instalação e manutenção dos vícios
em geral, como o vício em jogos de computador e o uso exagerado da tecnologia e
da Internet em civilizações que se acreditam mais racionais e avançadas.
Artigo localizado sobre o tema no site Scielo a respeito do “Alcoolismo e
violência em etnias indígenas: uma visão crítica da situação brasileira” (2007) traz
informações importantes acerca da realidade dessas comunidades, a partir da
referência de vários pesquisadores, nos sentido de que o álcool vem associado ao
aumento do uso de drogas ilícitas entre adolescentes indígenas a partir dos 12 anos
de idade, ao incremento de mortes por causas externas, da violência em geral, da
violência social, da violência seguida de morte, da saúde precária, das já altas taxas
de suicídio, dos índices de desnutrição, da tensão dentro das aldeias, da
sexualidade fora das regras do grupo, da prostituição nos centros urbanos e nas
rodovias, dos acidentes. (GUIMARÃES, 2007, p. 47-48). Segue importante trecho
desse estudo:

O processo de alcoolização, segundo Coloma (2001) é um fenômeno que


acompanha um conjunto de problemas, a maioria das vezes como
catalisador de atos agressivos ou auto-agressivos. Para Niewiadomski
(2004) o alcoolismo, frequentemente, aparece relacionado com ações
delituosas como homicídios, delitos sexuais, maus-tratos, entre outros.
(COLOMA, 2001 apud GUIMARÃES, 2007, p. 47).

Como podemos verificar, são bem amplas a abrangência e a aplicabilidade à


área da saúde do modelo do triune brian macleaniano.
Mais próximos do habitat natural humano primitivo, os povos indígenas estão
mais vulneráveis aos vícios da “civilização” e merecem proteção especial não só da
lei escrita, mas da lei aplicada na prática.
Especificamente sobre o alcoolismo e o abuso de drogas, apresentamos, a
seguir, duas citações do livro “Neurociências: desvendando o sistema nervoso”:

Um outro déficit característico apresentado por estes pacientes é que seu


movimento do dedo é dismétrico: eles não alcançam o nariz ou passam
dele, atingindo a própria face. Você pode reconhecer tais sintomas como
sendo semelhantes àqueles que acompanham a intoxicação por etanol.
Sem dúvida, a maneira desajeitada que acompanha o abuso de álcool é
uma consequência direta da depressão dos circuitos cerebelares.
(BEAR, 2002, p. 489).

O acidente vascular cerebral (AVC, o popular “derrame”) é a terceira causa


de morte nos Estados Unidos. As vítimas de derrame que não morrem,
cerca de 100.000 ao ano, muito provavelmente terão como sequela alguma
206

deficiência física. O custo anual do AVC nos Estados Unidos é de bilhões


de dólares. A dependência de álcool e drogas afeta virtualmente todas
as famílias no país. Os custos em termos de tratamento, perda de salários
e outras consequências chega a 150 bilhões por ano. Estes poucos
exemplos ilustram apenas a superfície do problema. Mais americanos são
hospitalizados por distúrbios neurológicos e transtornos mentais do
que qualquer outro grupo de doenças, incluindo doenças cardíacas e
câncer. (BEAR, 2002, p. 20-21).

Um dos meios de o ser humano obter um acordo entre esses três centros
“desejantes” intracranianos pode ser, de fato, ensinarmos as crianças e os adultos
sobre o autoconhecimento, sobre seu hardware e software cerebrais (desde logo) –
para, novamente, utilizarmos a terminologia (neologismo) de Flávio Gikovate (2012)
– talvez com a forma apresentada pelo pensamento de Victor Frankl (2008), como
bem propõe Villeneuve (2016); talvez com uma forma que respeite todas as teorias
da psicologia até hoje trazidas à luz (indistintamente) e que respeite a colcha de
retalhos que são a mente e a “psique do ser humano” (sempre um ser singular).
(REGO, 2000).
Relembremos alguns trechos do primeiro capítulo deste trabalho.
Em seu breve artigo, a médica pediatra conta a história de um lobo bom e
outro mau, a partir de um conto indígena. A qual deles iremos alimentar? Quem
dirigirá nossas vidas? “El sistema instintivo emocional, o los lobos prefrontales?”.
Cita, então, conhecimento, educação, prática, paciência e perseverança como
armas para ajudar nossas crianças a aprenderem a responder de modo não
automático (tudo aquilo que os antigos filósofos e os grandes e velhos livros da
humanidade sempre disseram e que as tradições racionais e espirituais sempre
apontaram). (VILLENEUVE, 2016).
Para a pesquisadora Villeneuve, as crianças podem ser ensinadas a respeito
desses três cérebros (e dos conflitos entre os objetivos deles) por meio de jogos, e
podem aprender a dar mais valor às decisões mediadas pelo cérebro racional,
deixando aos poucos, por meio da mudança de hábitos, os cérebros instintivo e
emocional em segundo plano, quando estes estiverem se excedendo em suas
funções (essenciais que são, igualmente, para a vida humana na Terra).
(VILLENEUVE, 2016).
Como já referimos anteriormente, Freud não praticou Yôga, mas a criticou,
sendo que tal prática oriental pode ser (segundo um amigo dele lhe confidenciou)
uma das formas de evocarmos em nós mesmos “sensações e cenestesias,
207

consideradas estas como regressões a estados primordiais da mente que há muito


foram recobertos” – esse mesmo amigo lhe informou ter visto “nesses estados uma
base, por assim dizer fisiológica, de grande parte da sabedoria do misticismo”.
(FREUD, 1997 [1929], p. 20).
Ainda sobre a Yôga, ele afirmou, em seu livro “O mal-estar na civilização”,
que “podemos, portanto, ter esperanças de nos libertar de uma parte de nossos
sofrimentos, agindo sobre os impulsos instintivos”, ao procurarmos “dominar as
fontes internas de nossas necessidades”. Vê a Yôga como aniquilamento dos
instintos (a quietude), forma extrema prescrita pela sabedoria do mundo peculiar ao
Oriente. Mas reconhece que o controle (ou “doma”, em palavra dele) dos instintos
primitivos nos traz certa felicidade, podendo ser realizado por meio de “agentes
psíquicos superiores, que se sujeitaram ao princípio da realidade”. (FREUD, 1997
[1929], p. 28).
Será que as práticas milenares da Yôga, da meditação e da respiração
profunda são tão extremadas assim, ou podem ser ferramentas úteis para o controle
de nosso sistema instintivo-emocional? Interessante investigarmos (talvez numa
outra oportunidade de pesquisa).
Assim, temos recursos para o alinhamento desses diferentes desejos
oriundos de diferentes centros cerebrais nas técnicas da Yôga e também em outras
técnicas da psicologia moderna (entre elas inclusive as utilizadas na teoria
comportamental) e da psicanálise autêntica.
Segundo a interpretação do Mestre De Rose (que presidiu a primeira
Universidade de Yôga do Brasil): “Yôga é qualquer metodologia estritamente prática
que conduza ao samádhi.” O samádhi é um estado de hiperconsciência ou
megalucidez, muito além da meditação, que pode ser alcançado pela prática dessa
técnica milenar (da qual há várias formas de interpretação, diferentes escolas e
mestres pelo mundo todo – entre eles, De Rose é apenas mais um autor). O método
é um dos que permite um empuxo evolutivo ao indivíduo, ampliação da expectativa
de vida, com efeitos sobre o corpo (como flexibilidade, força muscular, aumento da
vitalidade, relaxamento e administração do stress, reforço das articulações, órgãos
internos, nervos, glândulas endócrinas, músculos, e do organismo como um todo).
(DE ROSE, 1995).
Defendemos a Yôga como o único caminho de alinhamento desses centros
corporais e cerebrais conflitantes? Não. A psicanálise não tendenciosa trabalha
208

muito bem e obtém bons resultados (mesmo com foco específico na alma humana).
Há vários outros métodos e técnicas integrativas, inclusive a dança, a acupuntura, a
massagem e as artes marciais em geral (a ginástica acrobática, a meditação ativa, o
Tai Chi Chuan, etc.). O fato é que temos um corpo físico (cuja existência é evidente
e que não pode ser negado). É preciso que ele e seu poderoso representante no trio
cerebral (o cérebro reptiliano ou instintivo) estejam sendo ativados e trabalhados
paralelamente aos demais cérebros: emocional e racional (e, conforme artigos
científicos da cardiologia citados neste trabalho, talvez ao aspecto espiritual) para a
saúde mental e física integral do organismo humano. Nesse contexto, a ciência da
nutrição desempenha papel chave também.
O nosso sistema nervoso subdivide-se em central (encéfalo e medula
espinhal) e periférico. O sistema nervoso periférico subdivide-se em somático
(controle voluntário) e autônomo (controle involuntário, visceral, vegetativo). E o
sistema nervoso periférico autônomo, por seu turno, subdivide-se em simpático
(ação, luta e fuga) e parassimpático (repouso e recuperação). (BEAR, 2002; LENT,
2001).
Curiosamente, os subsistemas do sistema nervoso autônomo (simpático e
parassimpático) apresentam reações semelhantes às dos “pares de opostos
complementares” que vimos estudando neste trabalho: de um lado, a produção da
bioquímica hormonal adequada para a ação, a luta e a fuga (simpático); de outro, da
bioquímica hormonal específica para o repouso e a recuperação do organismo
humano (parassimpático).
Podemos estar despertos para a lógica, sonâmbulos para certas emoções;
em contato com nossas emoções e sonâmbulos para nossas condutas e ações;
podemos agir de modo reflexo e reativo e viver como sonâmbulos irracionais (e
assim por diante).
É possível tornarmos o nosso ambiente de tal modo preparado para que o
resultado que desejamos obter ocorra de uma forma ou de outra (inevitabilidade),
como é o caso de manter em casa apenas alimentos saudáveis, quando queremos
controlar o peso, ou manter bom condicionamento físico e saúde. É possível
combinar com um amigo ou colega de trabalho que, caso não consigamos nos
controlar pela nossa própria força da vontade, evitando comer certos alimentos
gordurosos e prejudiciais à nossa saúde integral, iremos pagar a ele determinada
quantia (mantendo-o informado por email sobre nosso cotidiano alimentar – uma
209

forma de contabilidade). Quase formas de condicionamento, mais relacionadas aos


ensinamentos do psicólogo e professor de economia comportamental norte-
americano Dan Ariely sobre os meios pelos quais podemos antecipar e prevenir a
tendência à procrastinação114 de nosso cérebro reptiliano por meio de mecanismos
de autocontrole (como o celular e o cartão de crédito com limite de gastos ou com
penalidades pessoais e automultas, pois a “procrastinação é a causa de todos os
problemas.” (ARIELY, 2008, p. 100-101). Voltaremos a esse livro mais adiante.
Retomando a citação a respeito da “serpente” bíblica, feita em nota de
rodapé deste estudo, tomamos contato recentemente (mediante pesquisa) com
artigo do Padre Paulo Ricardo, publicado em blog online, sob o título “Quem
esmagou a cabeça da serpente? Jesus ou Maria?” (RICARDO, 2012).
O reverendo questiona a tradução sobre essa passagem da Bíblia feita a
partir do grego, transcrevendo palavras do Gênesis: “‘Porei ódio entre ti e a mulher’,
diz o Criador à serpente, ‘entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça,
e tu lhe ferirás o calcanhar’.” (RICARDO, 2012).
Como o livro do Gênesis foi escrito em hebraico, o que se lê no original é
“que é a semente da mulher, a descendência dela que esmagará a cabeça da
serpente, frisando que a palavra semente naquela língua é masculina.” E não neutra
como na língua grega. (RICARDO, 2012).
O padre católico segue em sua interpretação, dizendo que no livro do
Apocalipse (12,9) há menção clara ao “grande dragão” que foi precipitado (a antiga
serpente, chamada o Diabo). Ele perseguiu a mulher que dera à luz o filho homem.
A mulher recebeu duas asas de grande águia para voar ao deserto, seu lugar, por
um tempo, longe da vista da serpente, conforme o mesmo livro (13-14). (RICARDO,
2012).
Escrito por São João, tal livro do Apocalipse (17) ainda prevê que a
inimizade entre o dragão e a Mulher continuou, sendo que aquele foi fazer guerra
contra o remanescente da semente da Mulher (os que guardam os mandamentos de
Deus, e têm o testemunho de Jesus Cristo – os povos do Antigo Testamento, Israel;
e do Novo Testamento, a Igreja). (RICARDO, 2012).
Para o sacerdote blogueiro, segundo podemos apurar da leitura de seu
artigo, Jesus – e não Maria – é que esmaga a cabeça da serpente. Ele escreve

114
Procrastinação: do latim pro, que significa para; e cras, que significa amanhã. (ARIELY, 2008, p. 90).
210

também que: “Os homens é que devem escolher em qual lado lutar. [Se] do lado da
serpente ou se do lado da semente da Mulher – Maria – Mãe de Jesus Cristo, mas
também de cada um.” (RICARDO, 2012).
Muita semelhança com nossa escolha entre darmos livre curso à agenda
primitiva do sistema instintivo-emocional ou tomarmos decisões mediadas pelo
sistema lógico-racional. Muita semelhança com o alerta “é impossível servir a dois
senhores ao mesmo tempo” (freudiano e bíblico) – assunto de que já nos ocupamos
neste trabalho de conclusão do curso de psicologia.
E, nestes momentos, mitologia e religiões, ciência e filosofia unem-se por
não estarem assim tão distantes umas das outras, já que o fenômeno humano é um
só, com várias facetas. Nem o criacionismo parece tão afastar-se tanto assim do
evolucionismo ou de outras teorias sobre a origem do Universo e da vida (esta pode
ser efeito da “criação” de microorganismos que “evoluíram” sobre a Terra, por
exemplo). Não sabemos ainda.
Quem sabe se nossa razão não necessita inspirar-se em aprendizados
ainda mais elevados, de cunho espiritual, como sugerem as grandes religiões
milenares da humanidade? E como, aliás, vêm demonstrando (sobre os efeitos das
práticas espirituais) as recentes pesquisas, antes referidas, da medicina
cardiológica.
Existe uma batalha invisível entre a bipartição e a tripartição cerebral que
nos impede de evoluirmos em compreensão na (e da) condição humana? Parece
que sim.
E a escrita do próprio Freud, em seu texto “Uma dificuldade no caminho da
psicanálise” (1996 [1917]), apóia essa visão hierárquica da mente, ao comentar os
três severos golpes que o narcicismo (egoísmo) da humanidade sofreu das
pesquisas científicas (sendo o primeiro, que a Terra não está no centro do Universo
– com Copérnico, Século XVI; o segundo, que, nós, os humanos, temos
ascendência animal – com Darwin; e o terceiro golpe no amor-próprio do homem – o
que mais fere – é que “o Ego não é o senhor de sua própria casa”:

(...) Em determinadas doenças (...) Os pensamentos emergem de súbito,


sem que se saiba de onde vêm, nem se possa fazer algo para afastá-los.
Esses estranhos hóspedes parecem ser até mais poderosos do que os
pensamentos que estão sob o comando do Ego. Resistem a todas as
medidas de coação utilizadas pela vontade, não se deixam mover pela
refutação lógica e não são afetados pelas afirmações contraditórias da
realidade. Ou então os impulsos surgem, parecendo como que os de
211

um estranho, de modo que o Ego os rejeita; mas ainda assim, os teme e


toma precauções contra eles. O Ego diz para consigo: “Isto é uma doença,
uma invasão estrangeira”. (...) a psiquiatria nega (...) a intrusão (...) de maus
espíritos vindos de fora (...) só consegue dizer com indiferença:
“Degenerescência, inclinação hereditária, inferioridade constitucional!” (...) A
psicanálise procura explicar esses distúrbios misteriosos; empenha-se em
cuidadosas e laboriosas investigações, delineia hipóteses e construções
científicas, até que, finalmente, possa falar assim ao Ego: “Nada vindo de
fora penetrou em você; uma parte da atividade da sua própria mente foi
tirada do seu conhecimento e do comando da sua vontade. Isso,
também, é porque você está tão enfraquecido em sua defesa; você está
utilizando uma parte da sua força para combater a outra parte e é
impossível concentrar a totalidade da sua força como você o faria contra um
inimigo externo. E nem mesmo é a parte pior ou menos importante das
suas forças mentais que se tornou, desse modo, antagônica e
independente de você. A culpa, sou forçado a dizer, está em você
mesmo. Você superestimou sua força quando achou que podia tratar
seus instintos sexuais da maneira que quisesse e ignorar
absolutamente as intenções desses instintos. O resultado é que se
rebelaram e assumiram suas próprias vias obscuras para escapar a essa
supressão; estabeleceram seus direitos de uma forma que você não pode
aprovar. O modo pelo qual conseguiram isso e os caminhos que tomaram
não chegaram ao seu conhecimento. Tudo o que você sabe é a
consequência do trabalho deles – o sintoma que você experimenta
como sofrimento. Assim, você não o reconhece como um derivativo
dos seus próprios instintos rejeitados e não sabe que é uma satisfação
substitutiva para eles. (...) O que está em sua mente não coincide com
aquilo de que você está consciente. (...) Normalmente, a inteligência que
alcança a sua consciência é suficiente para as suas necessidades; e você
pode nutrir a ilusão de que fica sabendo de todas as coisas importantes. Em
alguns casos, porém, como no de um conflito instintual como o que
descrevi, a função de sua inteligência falha. (...) Você se comporta como
um governante absoluto, que se contenta com as informações fornecidas
pelos seus altos funcionários e jamais se mistura com o povo para ouvir
a sua voz. Volte seus olhos para dentro, contemple suas próprias
profundezas, aprenda primeiro a conhecer-se! (...) É assim que a
psicanálise tem procurado educar o Ego. Essas duas descobertas – a
de que a vida dos nossos instintos sexuais não pode ser inteiramente
domada, e a de que os processos mentais são, em si, inconscientes, e
só atingem o Ego e se submetem ao seu controle por meio de percepções
incompletas e de pouca confiança – essas duas descobertas equivalem,
contudo à afirmação de que o Ego não é o senhor da sua própria casa.
(...) Não é de espantar, então, que o Ego não veja com bons olhos a
psicanálise e se recuse obstinadamente a acreditar nela. (FREUD, 1996
[1917], p. 151-153).

Brilhante texto. Por isso, o mantivemos em citação assim alongada. A


psicanálise tem procurado educar o Ego.
Destacamos um equívoco fundamental quando Freud fala na culpa pela
constituição triúnica da mente estar em “nós mesmos”. Não há como “culpar” alguém
pela sua constituição biológica e natural. O primeiro passo nos parece ser o de
explicar essa estrutura natural do encéfalo humano.
Pensamos que Freud pode ter sido, talvez, infeliz no uso do termo “culpa”,
mas deu o seu recado, o mesmo do Oráculo de Delfos: “gnothi seauton” (ou,
212

“conhece-te a ti mesmo”, a inscrição na entrada do Templo de Apolo, que para


Sócrates significava compreender os limites da própria ignorância e remover as
ideias preconcebidas para adquirir conhecimento acerca do mundo e de si mesmo).
(BUCKINGHAM et. al., 2016, p. 49). Sim. E, por conseguinte, dominarás (até onde
possível for) os teus conflitos internos.
O mesmo das antigas filosofias, segundo as quais, por expressões similares:
“O inimigo está dentro de nós mesmos”. Implicar-se (assumir a responsabilidade)
pelo seu próprio sofrimento é um dos princípios da terapia psicanalítica. Os instintos
sexuais (e agressivos) primitivos não podem ser inteiramente “domados”, mas
podem ser aceitos e integrados.
Em “Assim falava Zaratustra”, escreveu o filósofo alemão Friedrich
Nietzsche: “O pior inimigo, todavia, que poderás encontrar és tu mesmo.”
(NIETZSCHE, 2006).
Os orientais (chineses) nos ensinam com sua filosofia e com suas artes
marciais (que unem corpo, emoções, mente e espírito), neste trecho do Poema 33
do Tao Te Ching, de Lao-Tsé, que: “Inteligente é quem outros conhece; sapiente é
quem se conhece a si mesmo. Forte é quem outros vence; poderoso é quem se
domina a si mesmo.” (TSÉ, 2003, p. 89).
Sob o verbete “Filosofia”, a Enciclopédia Barsa apresenta um subtítulo
interessante sobre a “Gênese do pensamento filosófico”, em que inclui informações
sobre a “filosofia” de uma antiga tribo africana:

O homem difere dos seres inferiores pela sua capacidade de criar contextos
explicativos do meio e do universo. Não vive, pois, como os animais, no
mesmo plano que as coisas. O mundo em que realiza sua existência é mais
psíquico que material. A propósito o Pe. Placide Tempels no seu livro La
Philosophie Bantoue nos cita o dito de um baluba, indígena do interior do
Congo: “Pode-se possuir a riqueza, a prosperidade, ter uma numerosa prole
e no entanto, em alguns dias, fica-se atormentado por ‘pensamentos’
(kalunga) ou preso de ‘nostalgia’ (bulanda) e fica-se kuboko pa lubanga, isto
é, com a cabeça apoiada sobre as mãos, sem saber por quê, a não ser
que o coração não está satisfeito”. [grifo nosso]. (ENCICLOPÉDIA BARSA,
1967, v. 6, p. 201).

Outra interessante teoria é a de Lawrence Kohlberg115 - sobre o


desenvolvimento da moral dar-se em seis estágios – também mencionado por Flávio
Gikovate, em várias obras, particularmente em “A arte de educar” (2002), para

115
Doutor pela Universidade de Chicago (1958), professor de Harvard e de Yale.
213

explicar que há pessoas que não sentem culpa (divergindo, nisso da teoria
psicanalítica). Kohlberg escreve que, nos dois primeiros estágios (pré-
convencionais), a conduta moral respeita punição, recompensa e reciprocidade; nos
dois seguintes, considera o que as outras pessoas julgam correto (em respeito à lei
e manutenção da ordem); nos estágios pós-convencionais, o indivíduo é juiz da sua
conduta moral, com sustentação na própria consciência e em princípios morais
universais (não somente a partir de normas sociais). (KOHLBERG apud COLLIN et.
al., 2012, p. 292-293).
É uma observação sobre as pessoas, segundo o que lhes serve de freio
para impedir certas ações tidas como inadequadas. Sobre a culpa, Gikovate
acrescenta que há pessoas que não a sentem. Ele identifica os mesmos seis
estágios de Kohlberg, com adaptações: o primeiro grupo caracteriza-se pela
ausência de medo – podem matar, roubar, agir com violência (por volta de 0,5% da
população); o segundo grupo tem medo de represálias externas, mas não sente
culpa, não tem freio subjetivo, mente com facilidade (cerca de 10% da população); o
terceiro, teme represálias externas e divinas, tem medo de punição, não rouba
mesmo quando não observado (talvez 15% da população); o quarto, tem medo de
represálias e concorda com os valores sociais também pela vergonha e pelo medo
da humilhação (uns 25% da população); o quinto incorporou o “contrato social”, com
valores e regras rígidas da comunidade em que vive, sente dolorosa sensação de
culpa116 quando transgride o combinado (aproximadamente 20% da população); e o
sexto grupo (cerca de 30% das pessoas) entendeu como foi construído o contrato
social, tem efetivo sentido moral e é capaz de “interpretar as leis e adequá-las a
cada situação específica”, possui valores internalizados como o quinto grupo, sendo
parte da metade da população que Gikovate crê ser portadora de uma instância
moral introjetada (ou o Superego freudiano), que sente culpa. Essas pessoas podem
calar-se diante de uma agressão, ou reagir, dependendo das “peculiaridades de
cada caso”. Têm grande domínio de si mesmas, são criaturas justas e determinadas,
que respeitam as demais, mas agem firmemente em defesa de seus direitos.
(GIKOVATE, 2002, p. 33-44).
Esse nos parece um bom corpo teórico sobre a culpa e a moral, somando-se
esse ao trabalho aristotélico, freudiano, piagetiano, entre outros.

116 Culpa: “(...) corresponde a uma tristeza íntima relacionada à ideia de que fomos os causadores de
algum sofrimento imposto indevidamente a outra criatura”. (GIKOVATE, 2002, p. 39).
214

A interface da psicanálise de Freud (e das instâncias de seu “aparelho


psíquico”) com o modelo do cérebro triúnico de Paul MacLean (e as neurociências)
demonstra ainda mais claramente, e em uma base concreta, que, de fato (repetindo
as palavras do próprio Freud, amparadas na base comum dos estudos neurológicos
de Hughlings Jackson):

(...) a mente não é uma coisa simples; ao contrário, é uma hierarquia de


instâncias superiores e subordinadas, um labirinto de impulsos que se
esforçam, independentemente um do outro, no sentido da ação,
correspondentes à multiplicidade de instintos e de relações com o mundo
externo, muitos dos quais antagônicos e incompatíveis (...) Para um
funcionamento adequado é necessário que a mais elevada dessas
instâncias tenha conhecimento de tudo o que está acontecendo e que
sua vontade penetre em tudo, de modo que possa exercer sua
influência. (FREUD, 1996 [1917], p. 151).

Freud reconhece, humildemente, nesse mesmo texto, que a descoberta dos


processos mentais inconscientes se deve aos filósofos precursores, tais como o
grande pensador Arthur Schopenhauer (com seu conceito de vontade inconsciente e
sua advertência à humanidade sobre a importância da tão subestimada ânsia sexual
da espécie humana) – o filósofo alemão fez essas afirmações em “base abstrata”, o
médico psicanalista demonstrou-as “em questões que tocam pessoalmente cada
indivíduo”, forçando-o a “assumir alguma atitude em relação a esses problemas”.
[grifo nosso]. (FREUD, 1996 [1917], p. 153).
Preocupa-nos o senso comum inserto em textos como o do escritor, ator,
diretor e jornalista brasileiro Plínio Marcos (falecido em 1999), em seu livro
“Canções e reflexões de um palhaço” (e disponível em seu blog na Internet) –
respeitada a beleza plástica e metafórica da poesia – porque distorce os fatos
neurológicos dos dois hemisférios cerebrais especializados e, agora, segundo nossa
pesquisa bibliográfica aponta, também distorce a realidade dos três núcleos
cerebrais reptiliano, emocional e lógico, ao escrever (jogando uns perfis psicológicos
contra os outros na sociedade), por exemplo:

(...) Bendito seja quem souber dirigir-se a esse homem que se deixou
endurecer, de forma a atingi-lo no pequeno núcleo macio de sua
sensibilidade, e por aí despertá-lo, tirá-lo da apatia, essa grotesca
forma de autodestruição a que, por desencanto ou medo, se sujeita, e
por aí inquietá-lo e comovê-lo para as lutas comuns da libertação. Os
atores têm esse dom. Eles têm o talento de atingir as pessoas nos pontos
nos quais não existem defesas. (...) Mas, o ator tem que se conscientizar de
que é um Cristo da humanidade e que seu talento é muito mais uma
condenação do que uma dádiva. (...) É preciso que o ator tenha muita
coragem, muita humildade, e sobretudo um transbordamento de amor
215

fraterno para abdicar da própria personalidade em favor da personalidade


de seus personagens, com a única finalidade de fazer a sociedade
entender que o ser humano não tem instintos e sensibilidade
padronizados, como os hipócritas com seus códigos de ética
pretendem. (...) Eu amo os atores nas suas alucinantes variações de
humor, nas suas crises de euforia ou depressão. Amo o ator no
desespero da sua insegurança, quando ele, como viajor solitário, sem a
bússola da fé ou da ideologia, é obrigado a vagar pelos labirintos de sua
mente, procurando no seu mais secreto íntimo afinidades com as distorções
de caráter que seu personagem tem. E amo muito mais o ator quando,
depois de tantos martírios surge no palco com segurança, emprestando seu
corpo, sua voz, sua alma, sua sensibilidade para expor sem nenhuma
reserva toda a fragilidade do ser humano reprimido, violentado. Eu amo
o ator que se empresta inteiro para expor para a plateia os aleijões da
alma humana, com a única finalidade de que seu público se
compreenda, se fortaleça e caminhe no rumo de um mundo melhor,
que tem que ser construído pela harmonia e pelo amor. Eu amo os
atores que sabem que a única recompensa que podem ter – não é o
dinheiro, não são os aplausos – é a esperança de poder rir todos os risos e
chorar todos os prantos. Eu amo os atores que sabem que no palco cada
palavra e cada gesto são efêmeros e que nada registra nem documenta sua
grandeza. Amo os atores e por eles amo o teatro e sei que é por eles que
o teatro é eterno e que jamais será superado por qualquer arte que
tenha que se valer da técnica mecânica. (MARCOS, 1986).

Despertar quem deixou-se endurecer é bendito; bendito é também enaltecer


as alucinantes variações de humor, as crises de euforia ou depressão e o desespero
da insegurança do ator, que vaga pela sua mente labiríntica em busca de afinidades
com as distorções de caráter de seu personagem? Malditos, provavelmente, os
demais, no pensamento desse autor (principalmente aqueles que se valem da
técnica mecânica, os endurecidos, os hipócritas com seus códigos de ética, os
instintivos, os padronizados, os reservados – tudo o que é diferente daquilo que
“somos”, porque nós somos o “ideal humano”). Não estamos tão certos disso. Bela
poesia, no entanto.
Há um livro chamado “Predictably irrational: The hidden forces that shape
our decisions” (que já mencionamos antes), traduzido para o português com o título:
“Previsivelmente irracional: as forças ocultas que formam as nossas decisões”
(2008), de Dan Ariely117, que tem por objetivo ajudar-nos a “repensar a fundo como
agimos, bem como as pessoas a nossa volta”.
Não aprendemos com as consequências dos nossos erros, cometemos os
mesmos erros repetidas vezes. Nossos comportamentos irracionais tem um sentido
e não são aleatórios: somos muito menos racionais do que a teoria econômica
clássica presume, por exemplo. O autor traz algumas experiências da ciência social
117 Dan Ariely é professor de psicologia e de economia comportamental do Media Laboratory do MIT
(Massachussets Institute of Technology) e da Sloan School of Management – Boston – USA.
216

para mostrar como pensamos e como tomamos decisões em diferentes contextos da


vida. Para aprimorarmos nossos comportamentos irracionais, podemos começar por
nos conscientizarmos de nossas vulnerabilidades, por questionarmos nossos hábitos
e nosso comportamento de “rebanho”, os comportamentos repetidos (em especial,
para sabermos se o prazer obtido é tanto quanto pensamos que iríamos obter com
certa compra de veículo, sapatos, sorvete, por exemplo). Precisamos educarmo-nos
(ARIELY, 2008, p. 35).
É necessário também uma atenção especial à primeira decisão sobre
qualquer tema, que pode ter longa duração, com relação às repetições futuras.
Segundo Sócrates (apud ARIELY, 2008, p. 36): “a vida sem exame não é digna de
ser vivida”.
A história de grande sucesso (por motivos óbvios) sobre “O médico e o
monstro”, de Robert Louis Stevenson, surgiu, por exemplo, a partir de um sonho
desse autor, em 1885, quando concluiu que “O homem não é verdadeiramente um
só, porém dois.” O gentil cientista dr. Jekyll (que achava saber como se controlar) e
o assassino senhor Hyde (que assumia o controle). O fascínio da dicotomia entre
repressão x paixão incontrolável). As experiências de Ariely revelaram que não
somente somos iguais a Jekyll e Hyde, mas que erramos ao tentarmos prever como
iremos funcionar sob o efeito de fortes emoções (sobre nosso comportamento) e
também que nossa capacidade de nos compreendermos em outro estado emocional
não melhora com nossos equívocos. (STEVENSON apud ARIELY, 2008, p. 80).
Escreveu Dan Ariely nessa sua importante obra da psicologia atual:

A história era assustadora e imaginativa, mas não era nova. Muito antes de
Édipo Rei, de Sófocles, e de Macbeth, de Shakespeare, a guerra entre o
bem e o mal interiores tem sido assunto de mitos, religiões e literaturas. Em
termos freudianos, cada um de nós abriga um ser de trevas, um Id, um
bruto que pode imprevisivelmente, roubar os controles do Superego. Assim,
um vizinho agradável, amistoso, tomado pela ira na estrada, enterra o carro
em uma van. Um adolescente pega um revólver e atira nos amigos. Um
padre estupra um menino. Todas essas pessoas, boas em outras situações,
presumem que entendem a si mesmas, mas, no calor da paixão, de
repente, com o acionamento de algum interruptor interno, muda tudo.
(ARIELY, 2008, p. 80).

As experiências de Ariely revelaram que não somente somos iguais a Jekyll


e Hyde, mas que erramos ao tentarmos prever como iremos funcionar sob o efeito
de fortes emoções (influenciando, nas paixões, nosso comportamento) e também
que “nossa incapacidade de nos compreender em outro estado emocional” não
217

melhora com nossos equívocos (e experiências de vida). O professor Dan Ariely


demonstra nesse livro que a excitação sexual “anula completamente nosso
Superego e (...) as emoções [pela fúria, fome, medo, excitação] são capazes de
assumir o controle de nosso comportamento”. (ARIELY, 2008, p. 80-81).
Dan Ariely escreve (2008), com relação a uma de suas experiências (em
laboratório de ciências sociais) sobre a irracionalidade previsível do ser humano,
que, mesmo quando se trata de indivíduo inteligente, decente, sensato, bondoso e
digno de confiança, quando “o cérebro reptiliano assume o controle, ele fica
irreconhecível a si mesmo”:

Roy acha que sabe como se comportará quando excitado, mas seu
entendimento é limitado. Ele não entende bem que, quando a motivação
sexual fica mais intensa, pode jogar o cuidado pela janela. Pode arriscar-se
a contrair doenças sexualmente transmissíveis e a uma gravidez indesejada
em troca de gratificação sexual. Quando é tomado pela paixão, as emoções
podem embaçar o limite entre o certo e o errado. Na verdade, nem imagina
que é tão selvagem, pois quando está em um estado e prevê o
comportamento em outro estado, ele erra. (ARIELY, 2008, p. 81).

Para amarmos o Poeta, Favorito (Amante, emocional) ou o Mago, (criativo,


prestidigitador), não precisamos odiar nem desqualificar o Guerreiro, herói (físico e
racional), ou o Rei (lógico) – na terminologia junguiana. Harmonia não será atingida
sem o equilíbrio entre essas bipartições e tripartições – que geram diferentes perfis
psicológicos e que são todas partes do fenômeno humano. Nenhuma delas é melhor
do que a outra. Hão de ser complementares. Como pode ser que também sejam
complementares as diferentes teorias ou enfoques psicológicos sobre o ser humano,
o seu inconsciente, as suas emoções, os seus pensamentos, seu comportamento (o
seu pensar, sentir e agir – assim verbaliza atualmente a psicologia judaico-cristã, de
cujo modelo trouxemos o exemplo adventista estudado no capítulo anterior desta
pesquisa).
Mesmo assim é interessante perguntarmo-nos se verdadeiramente
desejamos corrigir nossas “disfuncionalidades” decorrentes de nossos conflitos
internos (e externos). Corrigir o humano resulta na perda da humanidade? Da
contradição inerente ao ser Homo Sapiens? Seria antiético? Melhorar um pouco
seria menos antiético?
Queremos, de fato, uma psicoterapia que “solucione” todos (ou pelo menos
partes de) os nossos problemas e conflitos? Se positiva a resposta, precisamos
prestar mais atenção àquilo que os pesquisadores tem a nos dizer sobre os
218

resultados de suas investigações sobre o sistema nervoso e sobre a psicologia


humana, sem preferência ou fanatismo por esta ou por aquela teoria, opinião ou
achismo.
Há perfis psicológicos (no mínimo) desses quatro “tipos” junguianos,
circulando por aí – e acreditando que o seu modelo arquetípico é o mais adequado
(para os outros). Sempre “para os outros”, pois “eles é que estão errados”. A solução
pode estar na integração da personalidade, a partir desses modelos propostos (pois
eles inclusive parecem trazer aspectos muito claros e associáveis também à teoria
do cérebro triúnico e à psicanálise).
Em “O jogo das sombras: iluminando o lado escuro da alma” (2000), Connie
Zweig e Steve Wolf, ambos psicólogos pós-doutores, explicam que mudar de
perspectiva pode ser desagradável (e detestável), e que a solução não é
simplesmente seguir a ética, a moral e as diretrizes ditadas por Deus (comportar-se
adequadamente, ajustar os sentimentos, moldar as atitudes, no estilo da visão
“branco x preto”, sem tons de cinza). (ZWEIG, 2000, p. 16-17).
Perspectivas limitadas acabam gerando pessoas que crêem que:

A mente é perigosa, dizem, como um tigre em uma jaula. Abra a porta e


ela produzirá pensamentos cruéis e desumanos. O corpo é selvagem,
afirmam, como uma fera incontrolável. Deixe-o solto e ele fará coisas
terríveis, pervertidas e agressivas. (...) acreditam que precisamos de mais
proteção (...) uma moral mais rígida (...) procuram aumentar a separação
entre o bem e o mal (...) No anseio de permanecer ao lado de Deus,
recusam-se a encarar a escuridão em suas próprias almas. (...) negação da
sombra (...) vem acompanhada de uma estranha obsessão (...) compelidos
(...) a tentar entender o lado escuro de nossa natureza (...) lêem livros
góticos de terror com grande apetite, e visitam regularmente os
domínios da crueldade, da luxúria, da perversão e do crime (...) Ou
sentam-se, durante horas, hipnotizadas por filmes sobre
comportamentos sangrentos, vingativos e frios, que, no mundo real,
seriam considerados desumanos (...) jornais e noticiários televisivos
cotidianos (...) A sombra tanto é perigosa quanto familiar, repulsiva e
atraente, grotesca e tentadora. (...) não podemos negar a besta (...)
precisamos cultivar uma atitude de respeito pela sombra, enxergá-la
com honestidade, sem negá-la nem sermos subjugados por ela. [grifo
nosso]. (ZWEIG, 2000, p. 17-18).

Zweig e Wolf explicam também que todos tentamos nos mostrar inocentes,
corteses, lindos, jovens, inteligentes e gentis para o mundo (como o personagem de
Oscar Wilde em “O retrato de Dorian Gray”), e que “empurramos para a caverna
escura do inconsciente os sentimentos que nos provocam desconforto – ódio, raiva,
ciúmes, ganância, competição, luxúria, vergonha”, além dos comportamentos
219

criticados socialmente (vício, preguiça, agressão, dependência), o que cria o


conteúdo da “sombra”. (ZWEIG, 2000, p. 13-14).
Esse termo, “sombra”, foi criado por Jung para sugerir que precisamos de
“uma reorientação, ou uma mudança fundamental de atitude, uma metanóia, para
podermos olhar a sombra de frente” (por meio do autoconhecimento). Enfrentarmos
“a besta e o pior de nossa natureza” pode nos conduzir a uma vida autêntica.
(ZWEIG, 2000, p. 18).
É necessário, segundo esses autores, compreendermos que “cada pessoa
contém tanto luz quanto sombra” (ZWEIG, 2000, p. 22). Assim, segundo essa
tradição (que é diferente de tantas outras em psicologia), podemos aprender a
“descobrir o próprio conteúdo de sombra, honrando-o, respeitando-o, e acolhendo-o
em [nossas vidas]”. O trabalho com a sombra sugere-nos a autorreflexão, o
autoconhecimento, o registro de sentimentos e pensamentos, o desenho de imagens
e de sonhos, exercícios respiratórios para equilíbrio, auto-observação dos traços da
sombra (sem identificarmo-nos com as emoções). (ZWEIG, 2000, p. 26). O objetivo
dos autores parece ser o de criarmos uma ponte entre esse “anseio de elevação”
humana e o necessário “mergulho para baixo” (da alma), por intermédio do trabalho
com a sombra, visando obtermos mais controle sobre nossas vidas e nossos
comportamentos autossabotadores, mais autenticidade, maior clareza e compaixão
pelos outros seres humanos (que também encontram-se em situação similar).
(ZWEIG, 2000, p. 33).
Numa frase desses autores, encontramos clara conexão entre o trabalho
dessa linha da psicologia com o tema de nosso trabalho que envolve modelos
tripartites da mente e a psicanálise em interface com o modelo do cérebro triúnico
macleaniano (1990 [1970]): “Enquanto o ego tece o mundo, a sombra desenrola o
fio. Enquanto o ego age como catalisador na criação do mundo, a sombra é o
catalisador da destruição. Onde o ego apoia o status quo, a sombra é o agente da
transformação.” (ZWEIG, 2000, p. 36). E o cérebro lógico-racional?
A psicoeducação proposta pela visão cristã no comentado programa
Claramente e pela autora Ellen G. White (2011), a vacina do autoconhecimento
proposta pela pediatra espanhola Villeneuve (2016), e a logoterapia proposta por
Victor Frankl parecem-nos exemplos de boas alternativas para ajudar-nos a lidar
com os conflitos internos que são comuns ao ser humano, ao cérebro triúnico e à
psicanálise. Há a proposta gikovateana que abordamos no caso das fobias. Há
220

muitas outras (como a de Ariely). Por isso pensamos em integração. Nada há de


fantasioso no que propugnam esses autores.
A hermenêutica é ferramenta filosófica importante neste trabalho de
conclusão do curso de psicologia, porque nos permite fazer uso de nossa
capacidade crítica e interpretativa para articular diferentes ideias e teorias tendo em
foco sempre “O ser humano, o cérebro triúnico, a psicanálise e seus conflitos
internos” (conforme nosso projeto do trabalho de conclusão do curso de psicologia),
e também é essencial para que possamos, na condição de humanos,
compreendermos melhor nossos conflitos internos intrapsíquicos e, em caso de
“comunicações perturbadas, torná-las inteligíveis.” (HABERMAS, 1987, p. 26).
A psicoeducação exige o uso da razão, que é tão inerente à condição
humana quanto as nossas emoções e instintos, como nos ensinou Aristóteles:

No processo de classificação, Aristóteles formulou uma forma sistemática


de lógica que aplica a cada espécime para determinar se ele pertence a
certa categoria. Por exemplo, uma característica comum a todos os répteis
é o sangue frio. Então, se um espécime particular tem sangue quente,
não pode ser réptil. Da mesma forma, uma característica comum a todos
os mamíferos é que amamentam seus filhotes. Então, se um espécime é
mamífero, irá amamentar seu filhote. Aristóteles observou um padrão
nessa forma de pensamento: um padrão de três proposições que consistem
em duas premissas e uma conclusão, exemplificando na forma “se As são
Xs, e B é um A, então B é um X”. Essa forma de raciocínio – o “silogismo” –
foi o primeiro sistema formal de lógica concebido e permaneceu como
modelo básico para a lógica até o século XIX. Mas o silogismo era mais do
que simples subproduto da classificação sistemática de Aristóteles do
mundo natural. Ao usar o raciocínio analítico na forma de lógica,
Aristóteles compreendeu que o poder da razão era algo que não se
baseava nos sentidos e que deve, portanto, ser uma característica
inata – parte daquilo que é ser humano. Embora não tenhamos ideias
inatas, possuímos essa capacidade inata, necessária para aprender a
partir da experiência. Quando aplicou esse fato ao seu sistema
hierárquico, Aristóteles percebeu que o poder inato da razão nos
distingue de todas as outras criaturas vivas, colocando-nos no topo da
hierarquia. [grifo nosso]. (BUCKINGHAM et al., 2016).

Já referimos neste trabalho de conclusão do curso de psicologia que,


segundo Gikovate, a razão humana:

(...) é tão biológica quanto qualquer de nossas propriedades instintivas


ou neurofisiológicas. É um dos subprodutos derivados do grande
desenvolvimento das partes externas do cérebro, sendo o que, em nossa
espécie, mais aumentou. [grifo do autor]. (GIKOVATE, 2006, p. 148-149).

Assim, Platão nos ensinou, ao falar das três partes da alma humana (na
metáfora dos cavalos: a alma racional, a alma irascível e a alma concupiscível,
221

que já referimos anteriormente em citações dele, de Freud e de Koestler, com


diferenças entre os autores), pois para o respeitado sábio ateniense: “cabe à
primeira assumir o governo da vida pessoal, a fim de que o homem não descambe
para o desregramento da violência e da força ou da moleza e da intemperança.” O
homem justo é prudente e doma pela fortaleza a sua irascibilidade e pela
temperança a sua molície ou preguiça. (LARA, 1989, p. 115).
O que mais nos surpreende e preocupa – para ficarmos em duas emoções
apenas, entre as várias que nos proporciona nosso lymbic system ou
paleomammalian brain – no entanto, é que encontramos raras menções ao
valiosíssimo modelo macleaniano (1990 [1970]) tanto em artigos da psicologia, como
em artigos das neurociências (em pesquisas online) – também não constam o autor
Paul D. MacLean e sua teoria nas citações da obra “The psychology book”, ou “O
livro da psicologia”, lançado em 2012 pela Editora Globo, no Brasil (COLLIN et. al.,
2012).
Embora emocionalmente chocados com essa realidade (especialmente a
brasileira), racionalmente nosso neocórtex e nossos lobos frontais ainda nos
impulsionam a pesquisar (agirmos por meio de comportamento direcionado a um
objetivo prático no mundo físico). E pesquisarmos sobre a condição humana é
inevitável, pois instintivamente nosso cérebro reptiliano sabe que para
sobrevivermos e procriarmos (para passarmos nossos genes adiante, como espécie)
precisamos de uma nova adaptação ao complexo mundo que habitamos atualmente
– que, paradoxalmente, tememos, embora seja bem menos perigoso do que aquele
ambiente primitivo que há milênios nossos ancestrais (cuja média de vida era uma
fração do que é atualmente) agressivamente exploraram e dominaram. Pesquisar é
preciso!
222

CONCLUSÃO

Apesar de poder ser criticado por isso, pois sei que esta visão não está em
voga, penso que se trata de uma boa forma de pensar, esta de que temos
sim uma alma que surge da autonomia do pensamento em relação ao
cérebro. Na já citada metáfora da informática, o cérebro seria o hardware, e
a alma, o software. A interrelação entre eles é óbvia, e é evidente que
minha preocupação aqui não é saber se a alma, esse elemento imaterial
que nos caracteriza e nos permite todo tipo de ação diferenciada, é ou não
imortal. Ela nasce do corpo, e se ela morre com o corpo ou não, saberemos
oportunamente. (GIKOVATE, 2005, p. 56).

Em conclusão, reiteramos que os homens e as mulheres, de fato, não


sabem o que querem quando os seus três cérebros evolutivos conflitam entre si.
Os seres humanos querem mesmo é o que querem o seu réptil interno
(principalmente exercer a sexualidade e a agressividade animais, sem bloqueios
internos ou externos) e o seu mamífero interno (exercer seus propósitos emocionais
grupais, sem limites ou inibições). O nível civilizatório alcançado (pela aquisição de
conhecimento e de racionalidade superiores) impõe, como ficou claro já na produção
freudiana, proibições e tabus que dificultam a realização desses desejos primitivos e
límbicos. Comer do fruto da árvore do conhecimento gera essa “queda” do Paraíso
animal. Evoluir sobre a Terra traz dor e sofrimento (e também novos prazeres).
Como as demais espécies vivas, animais ou vegetais (e outras formas pouco
conhecidas de vida), viemos ao mundo sem um manual de instruções de uso do
equipamento de que dispomos (que é fantástico), especialmente o cerebral –
excetuadas as “receitas” que vêm sendo identificadas no nível genético e os
“programas” inatos que nos constituem (os softwares que acompanham nossos
hardwares).
A integração das ferramentas de diferentes teorias psicológicas, do modelo
do cérebro triúnico e da psicanálise pode ajudar homens e mulheres a lidar melhor
com seus conflitos internos. Pode trazer mais clareza à estrutura e ao
funcionamento do encéfalo humano. Pode ajudar-nos na conquista de uma clara
mente.
Há, de fato, muitas semelhanças entre as várias teorias tripartites sobre a
mente humana que, desde a Antiguidade vêm inspirando modelos teóricos
psicológicos (entre eles o freudiano e o lacaniano), e que receberam novo impulso
nas neurociências com o modelo do cérebro triúnico de Paul D. MacLean. (1990
[1970]).
223

Diferentes posições teóricas e autores estudados neste híbrido de


ensaio/artigo trazem elementos que corroboram a perspectiva que nos propomos a
investigar no projeto deste trabalho de conclusão do curso de psicologia,
relativamente à interface do teoria do cérebro triúnico com a psicanálise, em
especial Wiest, Lima e Villeneuve (esta última autora, com sua pesquisa aplicada à
pediatria e à psicologia infantil).
Os exemplos retirados de fontes distintas (de diferentes épocas e regiões do
planeta) e os excertos das próprias obras freudianas legitimam e reafirmam nossa
suspeita de que encontraríamos respaldo para a importância do número três e da
triune brain theory (MACLEAN, 1990 [1970]) inclusive na mitologia e na literatura.
Estamos, portanto, convencidos da complementaridade entre a teoria
psicanalítica e o seu contraponto neuroanatômico da triune brain theory macleaniana
(1990 [1970]), de modo que: se o ser humano toma decisões irracionais sem saber o
motivo, o faz influenciado por determinações inconscientes, como bem registrou o
Doutor Sigmund Freud em sua obra pioneira, sendo que a etiologia de nossos
conflitos internos humanos há de estar relacionada à falha de comunicação entre os
nossos sistemas instintivo-afetivo e lógico-racional (para respeitarmos a
nomenclatura de Villeneuve, 2016).
Vamos retomar nesta conclusão alguns trechos do capítulo inicial (em
itálico).
Na origem, o modelo da serpente (espinha dorsal e um micro cérebro, útil
mais para a luta/fuga, sobrevivência, alimentação, procriação/sexualidade). Ele lida
com as funções (conhecidas das neurociências) do cerebelo e adjacências: muitas
delas do sistema nervoso autônomo parassimpático (respiração, frequência
cardíaca, etc.). (VILLENEUVE, 2016).
Somos criaturas de hábitos (rotinas e rituais, condicionáveis) – seres
biológicos (organismos, indivíduos da espécie). Temos um cérebro réptil.
Poderíamos dizer, com Freud: “o ego não é senhor de sua própria casa” (FREUD,
1996 [1917], p. 151-153). Poderíamos dizer: “respiro, logo existo”, como na Yôga.
Respiro, logo existo como um ser vivo (como um organismo, biologicamente).
Após esse “cérebro” primitivo originário, o segundo desenvolveu-se como
um cérebro emocional (o sistema límbico): do qual fazem parte a amígdala, o
hipocampo, o tálamo, o hipotálamo, entre outros componentes. É o cérebro dos
mamíferos, que permite a formação de grupos (estabelecimento de vínculos), dada a
224

emotividade requerida para esse tipo de aglomerado animal, como é o caso dos
mamíferos inferiores, por exemplo, e de vários outros bandos de animais (entre os
quais nossos parentes primatas). Ele ajuda a trabalhar e a mediar o que se passa no
meio exterior com o que se passa no interior do organismo (permite socialização).
(VILLENEUVE, 2016).
Somos seres ambientais (mamíferos, sociais, políticos, histórico-culturais,
comportamentais). Poderíamos dizer, com Lacan: “ou eu não sou, ou então eu não
penso” (penso onde não sou, sou onde não penso). (LACAN, 2008 [1966-67], p.
105). Sou onde não penso racionalmente.
Poderíamos dizer: “sinto, logo existo”, como escreveu o psicólogo gaúcho
Doutor Deroní Sabbi, estudioso das emoções humanas e da inteligência emocional –
que, com nomenclatura diferente daquela do inconsciente freudiano, aposta na
existência de uma instância que denomina subconsciente (SABBI,1999). Sinto, logo
existo como mamífero.
Recobrindo esse cérebro emocional, desenvolveu-se o terceiro cérebro, o
lógico-racional (o cérebro executivo, o neocórtex): essa área que nos permite o
pensamento, a razão, a decisão, o controle dos impulsos, as estratégias e táticas, a
linguagem, a motivação. (VILLENEUVE, 2016).
Somos seres racionais (lógicos, intelectualizados, cognitivos). Poderíamos
dizer, com Descartes: “penso, logo existo”. (DESCARTES, 2009). Penso, logo existo
como um ser humano mais evoluído intelectualmente (do que um simples mamífero,
como um primata mais evoluído do que um macaco).

Figura 22 – “Esquema de um átomo. A liberação de


sua energia revolucionou a história humana.”

Fonte: “A chave da felicidade e a saúde mental” (1972, p. 90).


225

As obras divisoras de águas na história das neurociências do Doutor Paul D.


MacLean: The Triune brain theory – role in paleocerebral functions (1970 [1990]) e
Triune brain in conflict (1977) ajudam-nos a percebermos, claramente, que somos
seres com sérios conflitos internos e a compreendermos o porquê dessa nossa
constituição psíquica complexa e diferenciada.
As mesmas instâncias podem ser vistas por meio de várias perspectivas
diferentes. Pensamos que podemos chamar esse conjunto de instâncias cerebrais
de sistema REL (em homenagem aos cérebros réptil, emocional e lógico detectados
pelo pesquisador norte-americano Paul D. MacLean: reptilian, emotional, logical). A
imagem para representá-lo pode muito bem ser a do átomo, que possui o eixo
central e três elipses circundantes que, como no nó borromeano lacaniano e no
aparelho psíquico freudiano, interpenetram-se. Até porque os maiores avanços que
temos visto nas ciências nos últimos anos tem a ver com as descobertas da física
quântica e das formas de energia sutil que compõem o Universo.
Para a Doutora Inés Merino Villeneuve (2016) é essencial a disseminação do
conhecimento em neurociências. Como referimos no Capítulo 1, ela pensa em dotar
crianças de ferramentas, como o precioso ensinamento de Victor Frankl
(logoterapia) no sentido de observarmos o espaço que existe entre um estímulo
externo e nossa reação, aquele momento em que podemos escolher qual será
nossa resposta mais adequada a cada situação. Isso é privilegiar nosso cérebro
lógico-racional. Essa autora sonha com a passagem de um mundo reativo a um
mundo da razão. Ela propõe disseminar conhecimento, educação, prática, paciência
e perseverança como armas para ajudar nossas crianças a aprenderem a responder
de modo não automático. Como já escrevemos antes, tudo aquilo que os antigos
filósofos e os grandes e velhos livros da humanidade sempre disseram e que as
tradições racionais e espirituais sempre apontaram.
A psicoeducação (desde as escolas infantis) pode ser uma saída,
paralelamente à psicoterapia e outras terapias psicomédicas.
Para as instâncias mais primitivas, técnicas do comportamentalismo podem
ser mais eficientes (em certos casos a punição e o reforço ajudam mesmo a “domar”
o cérebro reptiliano – embora apostemos mais na integração dessas diferentes
instâncias); para a mais recente e sofisticada delas (nosso intelecto) pode funcionar
bem a psicologia cognitiva; e para nossas emoções cambiantes (e bailarinas) o
método psicanalítico produz notáveis efeitos ao vasculhar de modo aprofundado o
226

nosso inconsciente. Cada indivíduo é único, cada caso é um caso. A integração de


nossos centros de energia corporais proposta pela Yôga (e outras artes e técnicas
orientais) pode também ser um dos caminhos evolutivos. Afinal, somos mente e
corpo (se somos também espírito, saberemos oportunamente, conforme Gikovate).
Afinal, o que querem os humanos? A resposta parece estar na própria
pergunta – como sempre – porque sabemos que não sabemos bem ao certo o que
queremos. Agora (após Freud e MacLean) sabemos ao menos que há razões bem
reais para essas flagrantes contradições, incoerências e incongruências internas que
carregamos conosco na condição de seres mortais (onto e filogeneticamente). De
posse dessas informações privilegiadas, cabe a nós aprendermos a pesarmos
melhor nossas decisões e escolhas para valorizarmos muito mais essa instância
racional de que somos dotados e que ainda é muito influenciável por drives de
nossos centros cerebrais mais antigos e voltados aos instintos básicos e às
emoções mamíferas.
O Doutor Flávio Gikovate fala em sua obra “O mal, o bem e mais além” (e
em outros livros) sobre o mais amor, um tipo de amor que pode vir a ser a regra
entre os casais no futuro e que consiste em algo mais próximo da amizade, em que
pessoas com muitas afinidades e de perfil psicológico mais semelhante
(principalmente em temperamento e caráter) optam por unir-se afetivamente
(interligação de afins): “O +amor é mais próximo da amizade do que o amor
tradicional e é facultativo, já que as pessoas livres [da dependência afetiva] não têm
problemas em ficar sozinhas.” (GIKOVATE, 2008, p. 163). Essa nova forma de união
poderá (ou não) vir a substituir os relacionamentos baseados na sobrevivência do
casal, que até o momento têm unido opostos que se complementam mas não se
entendem (pelo menos no médio e longo prazos) – como é o caso dos casais
formados por generosos(as) e egoístas. Essa há de ser forma de escolha mediada
preponderantemente pela razão e pode ser o caminho para um melhor futuro para a
humanidade. Ao menos na utopia (talvez nem tão impossível de realizar-se) do
respeitado psiquiatra e psicoterapeuta paulista (falecido em 2016).
Concluímos o presente trabalho pensando que precisamos aplicar,
efetivamente, na integração da psicanálise com as “psicologias” a recomendação
mais preciosa deixada pelo mestre fundador Sigmund Freud no sentido de que, por
ser a mente humana uma hierarquia de instâncias superiores e subordinadas, com
múltiplos instintos (e impulsos) antagônicos e incompatíveis, o seu funcionamento
227

adequado requer que, dentre todas essas instâncias (registros, sistemas ou


cérebros), a mais elevada tenha ciência de tudo o que ocorre, de modo que sua
vontade tudo penetre para exercer sua poderosa influência. (FREUD, 1996 [1917], p.
151).
Da fórmula primitiva: Reptilian brain → Paleomammalian brian →
Neomammalian brain (Instintos → Emoção → Razão), passamos finalmente ao que
parece ser o próximo degrau evolutivo da humanidade (de tantos outros que hão de
segui-lo, se não optarmos por mais estagnação ou regressão), por meio da inversão
da influência decisória (primitiva) na hierarquia neural e pela integração entre as três
instâncias cerebrais: Neomammalian brain ↔ Paleomammalian brain ↔ Reptilian

brain (Razão ↔ Emoção ↔ Instintos).


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241

APÊNDICE A – VESTÍGIOS DO TRIUNE BRAIN EM “HOMEM DOS RATOS”

“Paradoxo! Aí há um grande paradoxo!”, exclamou Alberto.


“Não tão grande quanto tu imaginas!”, repliquei eu. “Hás de convir comigo
que qualificamos de doença mortal a todas aquelas que atacam com
tanta violência as forças da Natureza a ponto de ou consumir as
energias dessa mesma Natureza ou pô-la fora de ação, de maneira que
uma revolução salutar já não possa mais restabelecer o curso ordinário da
vida. Pois bem, meu caro, apliquemos isso ao espírito. Olha para o homem
em sua limitação e vê como as impressões atuam nele, como as ideias se
fixam nele, até que enfim a paixão sempre crescente o priva de toda a
força de vontade e o lança ao solo. Em vão o homem ajuizado e
razoável contemplará o estado do infeliz, em vão lhe dará seus
conselhos! Da mesma forma que um homem saudável, parado junto ao leito
do enfermo, jamais poderá transmitir-lhe a parte mais insignificante de suas
energias.” [grifo nosso]. (GOETHE, 2006, p. 75-76).

“Não, Carlota!”, exclamou ele. “Nunca mais vos tornarei a ver!”


“Por que isso, Werther?”, replicou ela. “Podeis, deveis tornar a ver-nos,
apenas tendes de vos controlar um pouco! Oh, por que é que nascestes
com esses ímpetos, com esses arrebatamentos indomáveis e ardentes
que dedicais a tudo o que vos toca! Peço-vos”, acrescentou ela pegando-lhe
na mão, “dominai-vos! Vosso espírito, vosso talento, vossos
conhecimentos, quantos prazeres eles não vos garantem! Sede
homem, quebrai essa fatal afeição que tendes por uma criatura que não
pode fazer mais que vos lamentar!” [grifo nosso]. (GOETHE, 2006, p. 157).

Concluindo sua comunicação sobre a neurose obsessiva (“Notas sobre um


caso de neurose obsessiva” – a história clínica do “homem dos ratos”), Freud
registra a impressão de que o suboficial paciente “(...) tinha como que se
desintegrado em três personalidades: em uma personalidade inconsciente e duas
pré-conscientes, entre as quais pudesse oscilar a sua consciência.” [grifo nosso].
(FREUD, 1996 [1909], p. 214). EM TRÊS PERSONALIDADES.
Deixamos de anexar, em apêndice (extenso) a este trabalho, o estudo que
fizemos sobre vestígios do triune brain localizados nessa obra freudiana, e dele
destacamos apenas os pontos seguintes, na expectativa que o conteúdo da mesma
já seja do conhecimento do leitor interessado nas área da psicologia e da
psicanálise (do contrário, vale sugerir a leitura desse texto e a fácil analogia com o
modelo macleaniano).
As manifestações da neurose obsessiva do jovem tenente nessa história
clínica são: desejo de morte do pai e de ver mulheres nuas (pulsão escópica),
ambiguidade de sentimentos pelo pai (amor e ódio, este inconsciente), fuga de seus
desejos (o outro é quem deseja e não ele), temor obsessivo (deseja e usa defesas
contra esse desejo), medo de que algo terrível pudesse acontecer ao pai (já morto) e
242

à sua amada “dama”, presença de dúvidas, presença de dívida do pai, culpa,


identificação com o pai (e com o seu capitão), obsessão em pensamentos e rituais,
amor idealizado.
O mais notável dos indícios do “triune brain” que encontramos neste estudo
psicanalítico introdutório (e clássico) sobre as neuroses nos parece ser que: “O seu
inconsciente abrangia aqueles seus impulsos que tinham sido suprimidos a
uma idade precoce e que se podia descrever como impulsos apaixonados e
impulsos maus.” [grifo nosso]. (FREUD, 1996 [1909], p. 214). Ou seja, o RÉPTIL e
o EMOCIONAL.
Prossegue Freud: “Em seu estado normal, ele era amável, animado e
sensível – um tipo de pessoa esclarecida e inteligente (...)” [grifo nosso].
(FREUD, 1996 [1909], p. 214). Ou seja, o EMOCIONAL e o RACIONAL.
Por fim, registra Freud: “(...) ao passo que em sua terceira organização
psicológica se curvava ante a superstição e o asceticismo.” [grifo nosso].
(FREUD, 1996 [1909], p. 214). Ou seja, o RACIONAL-ESPIRITUAL.
Por isso, para Freud, o paciente militar conseguia ter dois credos e
cosmovisões diferentes sobre a vida. A segunda instância do aparelho psíquico era
composta de formações reativas contra os desejos reprimidos (e isso consumiria a
personalidade normal se a doença prosseguisse instalada).
Sigmund Freud termina esse livro agregando, a essa, a história de uma
paciente mulher tomada por atos obsessivos, com duas personalidades: um ego
oficial (tolerante e alegre), outro excessivamente melancólico e asceta (que a
dominava). Para o médico as duas personalidades acessavam a consciência, mas
atrás da personalidade asceta estava “a parte inconsciente de seu ser” –
consideravelmente desconhecida para ela e “composta de antigos impulsos plenos
de desejo há muito tempo reprimidos” (FREUD, 1996 [1909], p. 215).
Em nota de rodapé (FREUD, 1996 [1909], p. 215), o psicanalista pioneiro
observa que a saúde mental do paciente militar retornou após a análise relatada na
obra. Morreu na Primeira Guerra Mundial.
Novamente, o autor de “Notas sobre um caso de neurose obsessiva”
(FREUD, 1996 [1909]), aponta para o número três (desta vez referindo-se a
personalidades e não instâncias psíquicas, como em outros textos). Mesmo assim,
esse número é-nos muito caro para o contexto estudado neste trabalho. De nosso
ponto-de-vista, o obsessivo é um caso muito bom para a visualização dos três
243

cérebros em conflito (triune brain macleaniano), porque lida com três níveis bem
nítidos de interferências que se interpenetram e se intercruzam dentro do paciente,
gerando ideias e atos obsessivos, defesas, medidas protetivas – o “básico”
instintual, o “intermediário” emocional, o nível “superior” lógico-racional (além de um
plus espiritual supersticioso, que provém da devoção religiosa do paciente, não
verificável assim tão claramente, como Freud nos mostrou, na histeria ou na
psicose).
O neurótico obsessivo nos parece ainda mais confuso em virtude da questão
espiritual (devoção religiosa) conflitando diretamente com os meros desejos e
sentimentos do animal humano (sistema instintivo-afetivo), do que pelo conflitos
destes últimos com o sistema lógico-racional. Nele, a importância de Deus parece
ser central (embora sua poderosa “razão humana” tente negar suas crenças
metafísicas, elas permanecem ativas).
Destacamos o pensamento de Friedrich Nietzsche citado por Bruno
Bettelheim na epígrafe ao Capítulo 22 (“Tornar-se civilizado”) do livro “Uma vida para
seu filho – pais bons o bastante”: “O objetivo de toda civilização é transformar o
homem, uma fera predadora, num animal manso e civilizado”. [grifo nosso].
(NIETZSCHE apud BETTELHEIM, 1988, p. 265).
Se o paciente era devoto, mesmo pensando ser mais racional em sua nova
fase de deslumbramento com o pensamento filosófico (por vezes ateu), tais crenças
não desapareceram assim tão rapidamente.
As culturas e as religiões impõem proibições (“Os dez mandamentos” e os
“Os sete pecados capitais”, por exemplo). O “cérebro réptil” não gosta de limites
externos aos seus desejos (que são muitos, sendo o principal o sexual/agressivo,
pelo qual a biologia concede ao organismo a energia necessária para impor-se no
ambiente externo).
Ocorre que em alguns indivíduos se estabelece um conflito interno muito
intenso. No caso do militar obsessivo, sua razão também não aceitava
completamente deixar-se ser proibida por regras culturais e religiosas (quando
reduziu-se nele sua característica de devoto). Aliaram-se, provavelmente, o cérebro
instintual, emocional e racional na luta contra essas proibições, embora, ao mesmo
tempo estivessem essas três instâncias em permanente conflito (como sempre estão
confrontando-se elas em todos nós, humanos).
244

Um último registro sobre a neurose obsessiva e mais uma conexão entre as


teorias (uma mais psicológica e outra mais “biopsicoevolutiva” – que, em nossa visão
são complementares, como tantas outras no estudo dos fenômenos humanos, e não
excludentes), para (pensarmos sobre e) reforçarmos ainda mais a obviedade da
sequência evolutiva réptil (instintivo), mamífero (afetivo), Homo Sapiens (lógico-
racional): há obsessivos em atos, há obsessivos em afetos, há obsessivos em
pensamentos (ou combinações entre essas diferentes manifestações sintomáticas).
Réptil, emocional, racional.
O ser humano está nessa encruzilhada evolutiva. Parece não saber (está em
dúvida) se segue em frente ou se regride para estágios já superados da história do
desenvolvimento da espécie sobre a Terra (como os períodos primitivos e obscuros,
dominados pelo “caldeirão de pulsões”, pelo caos, pela crueldade e pela anarquia).
De posse dessas informações freudo-macleanianas, essa não nos parece uma
decisão assim tão complexa.
Uma última citação (de uma “história hassídica”), também localizada durante
leituras concomitantes ao processo de elaboração da arte final deste trabalho de
conclusão do curso de psicologia, por oportuna:

O filho de um rabino foi celebrar os ritos de Shabbat numa cidade vizinha. À


sua volta, a família perguntou:

– Eles fizeram algo diferente do que fazemos aqui?


– Sim, é claro – respondeu o filho.
– E qual foi a lição? – perguntaram.
– “Ama o teu inimigo como a ti mesmo.”
– Mas isso é o que dizemos aqui. Por que disseste que era diferente?
– Eles me ensinaram a amar o inimigo dentro de mim mesmo. (ZWEIG,
2012, p. 212).

O gênio de Freud ajudou-nos muito na compreensão dessa forma de


neurose (e de muitos outros distúrbios mentais) e esta pesquisa de interface com o
triune brain pode auxiliar-nos também no entendimento do fenômeno humano.
Esses são os pontos que pretendemos destacar dessa obra freudiana, neste
momento, com relação aos vestígios do “triune brain” nela encontrados.
245

APÊNDICE B – A TERCEIRA LÂMINA (ZÉ RAMALHO)118

É aquela que fere, que virá mais tranquila

Com a fome do povo, com pedaços da vida

Com a dura semente, que se prende no fogo de toda multidão

Acho bem mais do que pedras na mão

Dos que vivem calados, pendurados no tempo

Esquecendo os momentos, na fundura do poço,

Na garganta do fosso, na voz de um cantador

E virá como guerra, a terceira mensagem,

Na cabeça do homem, aflição e coragem

Afastado da terra, ele pensa na fera, que o começa a devorar

Acho que os anos irão se passar

Com aquela certeza, que teremos no olho

Novamente a ideia, de sairmos do poço, da garganta do fosso

Na voz de um cantador

118 Música de autoria do compositor e cantor brasileiro Zé Ramalho, disponível em Cifra Club, site
Terra, inserta neste trabalho de conclusão do curso de psicologia como adendo artístico e poético,
em homenagem ao músico brasileiro, cuja interpretação, à luz da teoria do cérebro triúnico de
Paul Maclean (1990 [1970]) deixamos a critério daqueles(as) que tiveram a paciência de ler este
texto. (RAMALHO, 2018 [1981]).

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