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Revista Portuguesa de Psicossomática

ISSN: 0874-4696
revista@sppsicossomatica.org
Sociedade Portuguesa de Psicossomática
Portugal

Vidigal, M. José
Enigma da psicossomática
Revista Portuguesa de Psicossomática, vol. 6, núm. 1, janeiro-junho, 2004, pp. 45-54
Sociedade Portuguesa de Psicossomática
Porto, Portugal

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=28760107

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ENIGMA DA PSICOSSOMÁTICA 45

ENIGMA DA PSICOSSOMÁTICA1
M. José Vidigal*

Resumo Não é nossa intenção apresentar uma ampla


A autora deu o título de "Enigma visão sobre os fundamentos do conceito de psi-
Psicossomático" porque se trabalha com hi- cossomática que hoje em dia nos podem levar à
póteses que não foram totalmente confirma- noção da ausência do paradigma médico clássi-
das e porque são doentes "misteriosos", co. É um tema apaixonante pela sua complexi-
quantas vezes escondendo, sem o "saberem", dade e mistério, em franca expansão ao nível da
uma vida interior rica em emoções. investigação de vários quadrantes sobretudo das
Traça as diferentes vias de desenvolvi- ciências biológicas que sofreram uma explosão
mento do conceito de Psicossomática desde os nestas últimas décadas. No entanto, as suas con-
primeiros escritos de Freud sobre a neurose tribuições e as da psicanálise sobre a psicosso-
actual, com referência à neurastenia, neurose mática "estão esgotadas na sua formulação ac-
de angústia e hipocondria, passando pelas tual, não sendo possível haver pontos de encon-
concepções do Instituto de Psicossomática de tro enquanto se mantiver a mesma metodologia
Paris, que deram ênfase ao "pensamento ope- das respectivas ciências", como fez questão de
ratório". Cita as investigações das interacções sublinhar Jaime Milheiro (2001). E acrescentou
precoces, mesmo pré-natais, havendo um con- que as concepções da psicanálise sobre psicosso-
senso entre os investigadores que as raízes da mática, acentuaram sobretudo as "carências de
psicossomática se vão aí inscrever. A ruptura mentalização" (pensamento operatório, alexiti-
com o sistema de Freud e continuadores vem mias, teoria do impasse), considerando-as como
de Sami-Ali. leituras parcelares, tal como acontece com as
Sublinha-se que a ausência da vida concepções biológicas. O autor procurou desen-
fantasmática não significa necessariamente volver e conceptualizar o "Facto Psicossomático"
que ela não exista, mas, sim que os conflitos e a consequente "Psicossomática Estrutural" que
arcaicos em causa estão armazenados diferen- contrariam e dispensam essa dualidade tradicio-
temente na estrutura psíquica. nal. Embora de acordo com Jaime Milheiro na
As referências conceptuais são confirma- necessidade de descobrir outros caminhos ou o
das através da análise de uma doente com per- que chama "marcadores psicossomáticos", o
turbações psicossomáticas. nosso objectivo é muito menos ambicioso, visto
Palavras-chave: Doentes psicosso- que nos limitaremos a algumas reflexões decor-
máticos; Identidade; Espaço psíquico; Passa- rentes da prática clínica.
gem ao acto; Bolsa autista. Uma outra contribuição importante vem da
aplicação aos sistemas naturais da Teoria Geral
dos Sistemas referida por Mota-Cardoso (2001)
que, ao citar outros autores: "O cérebro funcio-
na como um sistema complexo e pode ser com-
preendido através da Teoria da Dinâmica Não-Li-
near dos Sistemas Complexos ou Teoria da Complexi-
1
Trabalho elaborado a partir das Conferências dade", explica como os sistemas complexos
realizadas na S. P. Psicossomática e na S.P.
Psicanálise (2002). Teresa Flores participou
criam a sua própria ordem, coesão e estabilida-
com a apresentação de um caso clínico. de, isto é, se auto-organizam e, por consequên-
cia, são espontâneos, imprevisíveis, autónomos
* Psicanalista. Psiquiatra de Infância e da Ado-
lescência.
e criativos. Faz também referência ao "notável

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avanço das neurociências, nomeadamente da aumentava tanto a imunidade que não se dei-
ontogenia dos diversos circuitos cerebrais, hie- xavam contaminar. Esta conclusão fez pensar na
rarquicamente organizados, que suportam psi- importância dos benefícios com os contactos cor-
cologicamente o funcionamento mental". Se a porais mães-filhos, mesmo ao nível dos animais.
mente resulta do cérebro, a sua função e estru- Um artigo do psicanalista inglês Peter
tura estão directamente moldadas pela expe- Fonagy (2001) que revela profundos conheci-
riência interpessoal. Assim, o autor enumera 12 mentos das investigações neurobiológicas e ge-
sintagmas fundamentais sequenciais "para um néticas, deu-nos novos argumentos para refutar
paradigma de doença ao nível da Pessoa em Si- atitudes predictivas radicais em matéria de psi-
tuação". São estes aspectos que contrariam o pa- copatologia da criança: em relação à genética (a
radigma médico clássico. história relacional do indivíduo que pode
O estudo das interacções precoces, mesmo inflectir o funcionamento do seu genoma) e em
pré-natais, confrontam-nos com as questões relação ao desenvolvimento, em que não há um
fundamentais sobre o desenvolvimento da vida elo directo entre a natureza da ligação e o futuro
psíquica e colocam-nos na encruzilhada do cor- psicológico e psicopatológico de um sujeito.
po e do espírito, permitindo ultrapassar esses É um artigo importante e prudente face aos
obstáculos. Há um consenso em considerar que "mitos etiológicos" e insiste num modelo
as raízes da psicossomática se inscrevem nas di- polifactorial da psicopatologia, referindo a exis-
ficuldades precoces das interacções mãe-bebé. tência de uma dialéctica muito estreita entre o
Se bem que conhecidas pela psicanálise, desde relacional e o meio, por um lado, e, por outro
há longos anos, a psicologia e a neurobiologia lado, o equipamento neurobiológico e a expres-
do desenvolvimento têm vindo a demonstrar a são genética. Estamos muito longe de um deter-
importância das relações precoces de vinculação minismo só genético ou psicogénico.
e como as interacções comportamentais mãe-fi- Ao fim e ao cabo, os psicanalistas não têm
lho têm efeitos reguladores na neuroquímica do que ter medo dos extraordinários avanços ac-
cérebro da criança em maturação. Deste modo, tuais das neurociências que são facilmente inte-
com as deficiências precoces do meio envolven- grados nos modelos polifactoriais dinâmicos, her-
te podem resultar representações inadequadas deiros do conceito freudiano da "série comple-
do self e dos objectos e de outros sistemas cogni- mentar". Foi sempre o que defendeu Serge
tivos de regulação. Também se podem alterar as Lebovici, com entusiasmo e energia e continua-
expressões genéticas dos sistemas neurotrans- do depois por Golse (2001) que, contra posições
missores, para além de aumentarem a vulnera- extremistas em ciência, cita a redactora chefe do
bilidade biológica e psicológica do indivíduo. American Journal of Psychiatry: "Um dia, no século
A título de curiosidade e não pretendendo XXI, quando o genoma e o cérebro humano esti-
fazer extrapolações simplistas, será relatado um verem completamente cartografados talvez seja
facto ocorrido num laboratório de investigação necessário um plano Marshall invertido para que
científica nos Estados Unidos. os europeus venham salvar a ciência americana".
Os investigadores queriam estudar como se Assim, a questão entre as disciplinas é com-
contaminavam os animais (coelhos) dando co- plexa e passível de discussão, mas a clínica psica-
mida com produtos radioactivos. Qual não foi a nalítica dificilmente pode ficar afastada das in-
surpresa ao constatarem que um dos grupos não vestigações fundamentais. No entanto, um dos
apresentava qualquer contaminação. Repetiram riscos deste conhecimento mútuo necessário, é
vária vezes, tudo igualmente aconteceu: aquele a confusão epistemológica que pode surgir.
grupo não se contaminava. Numa mesma reflexão interessam os estudos
Ao investigarem a causa, verificaram que o transculturais, as mutações das próprias doen-
que o diferenciava, era o carinho com que o ças provavelmente decorrentes das melhores
tratador cuidava deles, não se limitando a dar a condições higiénicas, da utilização de pesticidas,
refeição, mas pegava-os ao colo e acariciava-os. fumos tóxicos, dioxinas, conservantes, resíduos
Esse era o factor, segundo os cientistas, que lhes de fármacos, etc. (Paul Shattock, 2002) sem mi-

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nimizar as que estão ligadas às pressões sociais. Sabe-se que Freud nunca esteve satisfeito
A criança não escapa a estas pressões: por exem- com a sua concepção das neuroses actuais, tendo
plo, verificou-se no Japão uma subida impressio- mesmo confessado numa carta a Ferenczi (citado
nante de úlceras digestivas na criança. De igual por Jones na Biografia de Freud): dela não saiu
modo se verificou um aumento de tumores nada de "coerente", "lacuna sem graça". No en-
intra-uterinos nas mulheres africanas quando tanto, para Sami-Ali (1987), Freud nunca renun-
deslocadas do seu meio natural. Os alergologis- ciou ao modelo bidimensional da somatização.
tas referem um aumento considerável da asma A abordagem psicanalítica não é uniforme e
nestas últimas décadas, considerando-a como a dá origem a discussões. Podemos assim conside-
doença do século XXI. Cada vez mais as doenças rar uma corrente impregnada pelo modelo da
são consideradas de origem polifactorial, e será conversão, como já vimos, desde as teorias que
errado invocar apenas uma causa única. defendem uma continuidade entre a conversão
É na criança pequena, dada a incapacidade histérica, a somatização (Valabrega, 1954), até à
de representação dos conflitos e do sofrimento conversão prégenital das concepções kleinianas
psíquico, que a resposta é psicossomática. De fac- (úlcera gástrica representando a má mãe
to, os doentes adultos parecem ficar fixados num internalizada, por exemplo).
sistema de comunicação precoce, utilizando A comprovação das ligações entre os fenó-
uma linguagem corporal rudimentar para expri- menos psicossomáticos e os sintomas histéricos
mir as emoções primitivas muito violentas, tais é difícil e complicada, na medida em que as ma-
como o desespero, dor, sofrimento e ódio. Quer nifestações psicossomáticas se furtam à observa-
dizer, empregam uma linguagem corporal e um ção clínica. E também porque estas surgem sem
código visceral para exprimir essas emoções in- se anunciarem no decurso de uma análise.
tensas, em lugar de as exprimirem verbalmente. A economia do funcionamento psíquico do-
Será que nestes doentes lhes falta um aparelho minou a teoria psicanalítica, sem no entanto ex-
receptor capaz de perceber as suas sensações cor- cluir os pontos de vista tópico e dinâmico. Neste
porais internas, a fadiga, o esgotamento físico, funcionamento, interessava sobretudo a organi-
faltando-lhes também um decifrador, de que re- zação permanente e o estado actual da primeira
sulta uma inaptidão para descodificar e exprimir tópica, quer dizer, do sistema ICS (inconscien-
as emoções e de um transmissor que lhes permi- te)-PCS (pré-inconsciente)-CS (consciente). A
tisse exprimir os seus sentimentos por palavras e organização da segunda tópica (isto é, do siste-
assim são incapazes de manifestar abertamente ma Id-Eu-Supereu), remete sobretudo para os
os seus conflitos psicológicos em códigos verbais, problemas das neuroses clássicas.
como referiu David Rosenfeld? (1993). Na primeira tópica, o pré-consciente é a pla-
* ca giratória da elaboração mental e é da qualida-
de deste que depende a organização das defesas
Foi da neurose actual (Freud, 1895) que ger- psíquicas face às situações traumáticas. A base
minaram as concepções psicossomáticas moder- da vida operatória é, portanto, um defeito do
nas, que são dominadas pelo ponto de vista eco- funcionamento do pré-consciente e um isola-
nómico. mento do inconsciente. A carga ligada aos afec-
Os textos iniciais de Freud podem ser conside- tos e às emoções, mal veiculada, não elaborada,
rados como os primeiros escritos psicanalíticos no mantém-se fora dos processos da mentalização.
campo da psicossomática. Este conceito referia-se Como diz Michel Fain (1971): "A primeira
a duas categorias clínicas, que caíram em desuso tópica assegura o funcionamento mental, a se-
nos nossos dias: a neurastenia e a neurose de an- gunda anima o drama".
gústia, juntando em seguida uma terceira catego- A outra grande corrente veio da Escola de
ria – a hipocondria. É evidente que, à luz da psica- Chicago. Alexander saiu do impasse da conver-
nálise actual, não se aceita a hipótese de Freud de são e definiu uma série de perfis da personalida-
que a causa das neuroses actuais seja devida à falta de electivos das entidades mórbidas, tais como
de satisfação sexual ou sequela da masturbação. dos hipertensos, ulcerosos, etc., que não veio

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adiantar muito mais para o conhecimento desta pacientes com doenças psicossomáticas. Em
problemática. dezasseis encontraram uma "dificuldade notá-
Entretanto, nasceram as concepções do mo- vel em exprimir ou descrever verbalmente os
vimento que se reuniu na Sociedade Psicanalíti- seus sentimentos, assim como uma ausência ou
ca de Paris, conhecido pela Escola de Paris, com diminuição espantosa de fantasmas". Concluí-
Marty, Fain, C.David, M. de M’Uzan, até à evo- ram que estes doentes apresentavam frequente-
lução do Instituto de Psicossomática de Paris. mente uma perturbação específica das funções
Pierre Marty e a M. de M'Uzan (1963) quan- afectivas e simbólicas que dificultavam a comu-
do publicaram a sua experiência clínica com doen- nicação.
tes psicossomáticos, mostraram que tinham Sifneos (1972) inventou o termo alexitimia
"pensamento operatório", quer dizer, pobreza (a do grego que é ausência de...; lexis: palavra;
ou ausência da vida fantasmática e da vida timos: emoção) para designar esta perturbação
onírica e que as entrevistas eram pobres, com cognitiva-afectiva, sugerindo a existência de um
um discurso factual e colado à realidade. Claro substracto neurofisiológico, atribuído a uma
que daqui se generalizou a todos os pacientes, disgenesia das conexões neuronais entre o siste-
considerando que tinham um pensamento ope- ma límbico e o neocórtice.
ratório e introduziram a hipótese da existência Consideramos no entanto que estes pacien-
de uma personalidade psicossomática específica. tes têm acesso ao simbólico, mas a um simbólico
P. Marty (1958) desde os seus primeiros tra- cheio de "pequenos buracos", utilizando a me-
balhos que atribuiu a origem de certas perturba- táfora de Bernard Durey (in D. Rosenfeld).
ções psicossomáticas a disgenesias antenatais. Ve- No campo da medicina psicossomática, a
remos que para o autor, um alérgico apenas tem alexitimia é considerada hoje como uma das nu-
um desejo único e capital: aproximar-se o mais merosas situações favoráveis ou factor de risco
possível do objecto até se confundir com ele. Esta que parece aumentar a vulnerabilidade à doença
concepção implicava, sem dúvida, um nível de (Weiner, 1992, citado por Douglas). Pelo facto da
fixação muito arcaico, até antes do nascimento. comunicação simbólica estar limitada, a
A qualidade da relação alérgica, dando pou- alexitimia foi descrita como "sendo provavelmen-
co lugar à neurose, no desenvolvimento do su- te o factor particular mais importante que dimi-
jeito, e o sistema regressivo que vai até a uma fase nui o sucesso da psicanálise e da psicoterapia psi-
somática humoral, são argumentos que fazem codinâmica" (Kristal, 1992/93, in Douglas).
pensar num sistema arcaico e sem dúvida pré- A ausência aparente de vida fantasmática,
-natal, da fixação do sujeito a um sistema no não significa necessariamente que ela não exis-
qual ele forma um todo indiferenciado com o ta, mas sim, que os conflitos arcaicos em causa
mundo ambiente. É evidente que são hipóteses estão armazenados diferentemente na estrutura
difíceis de demonstrar. psíquica. Aparecem verdadeiras hemorragias
Houve depois uma correcção desta perspec- psíquicas que se exprimem unicamente através
tiva tão radical e passou-se a descrever a "vida do soma, constituindo um obstáculo importante
operatória" como uma modalidade de funcio- ao processo analítico. Todavia, preservam uma
namento, por vezes permanente, mas muitas vivência arcaica muito importante que procura
vezes episódica, "passagens operatórias", indica- fazer-se representar e para a qual as palavras fi-
dores de uma desorganização, fundamental- cam ainda por encontrar. Este capital psíquico
mente sob a forma de uma depressão essencial não representável deixa como único traço, um
(Kreisler, 1985). espaço morto, que não nos envia a nenhum fan-
Segundo Graeme Taylor (1990) a importân- tasma subjacente nem a nenhum sinal que pos-
cia destas observações só foi avaliada quinze sa testemunhar um recalcamento. O analista fica
anos depois por dois analistas americanos John à escuta dum silêncio. Os efeitos da tensão psí-
Nemiah e Peter Sifneos. quica assim ocultados ora são dispersos no "agir"
Nos anos 70, estes dois autores tinham estu- fora da sessão ora nas manifestações psicosso-
dado minuciosamente as entrevistas de vinte máticas, fora da psique. Por vezes os pacientes

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referem estados que não sabem distinguir se são integrada no seu funcionamento mental e à qual
males físicos ou psicológicos. Uma das minhas não davam continuidade. Em certas situações,
pacientes com uma colite ulcerosa, dizia: "Não quando melhoravam destes comportamentos,
sei explicar o que sinto… também não é medo da mor- depois de uma intervenção familiar de tipo ana-
te… se estou em silêncio não me sinto bem, se falo, não lítico, surgia uma asma gravíssima, por exem-
me sinto bem…”. No entanto, o facto de falar nis- plo. Há uns anos, havia no Instituto de Psicaná-
so, já fazia suspeitar de um conflito psíquico que lise um grupo de discussão, sob a orientação de
procurava fazer-se representar. Muitos doentes Coimbra de Matos, de terapia familiar psicanalí-
psicossomáticos têm uma carapaça psíquica ca- tica, em que participavam: França de Sousa,
paz de os impedir de pensar, de sentir demasia- Orlando Fialho, Raquel Cavaleiro Ferreira. Foi a
do, em todas as circunstâncias em que há o risco partir dessa altura que iniciámos esse tipo de in-
de pôr em perigo o equilíbrio psíquico. A estru- tervenção por nos parecer a mais adequada para
tura defensiva é tal que ignoram a sua fragilida- as perturbações da conduta.
de narcísica, desconhecendo a angústia surda Assim, a descarga no "agir" é o modo privi-
que circula em toda as relações estabelecidas, legiado que permite manter o equilíbrio psíqui-
sendo-lhes possível manter uma vida profissio- co cada vez que este seja ameaçado, quer na ver-
nal intensa, sem a menor suspeita da pressão psí- tente objectal quer na vertente narcísica. Esta
quica contínua que sofrem (Joyce MacDougall, tentativa de evacuar a dor mental através do
1982). acto-sintoma aparece também como elemento
Há uma hipótese etiopatogénica posta por importante na sexualidade perversa e nos com-
Paul Lefebvre (1980) que, no serviço onde fazia portamentos adictivos. Surge também em certas
investigação psicossomática, se observou que a pessoas nos momentos de grande tensão psíqui-
vulnerabilidade à doença estava particularmen- ca que respondem com somatizações ou com di-
te aumentada nos indivíduos que tinham sido minuição das defesas imunológicas. Nestes ca-
expostos a situações traumáticas durante a fase sos, a elaboração mental dos conflitos está redu-
da vida infantil, definida por Mahler (1975) zida ao mínimo ou está mesmo ausente.
como fase da separação/individuação.O pacien- De igual modo, também não se encontra
te que somatiza revelava, no momento da so- nestes pacientes a rêverie diurna (será que não a
matização, um modo de relação de tipo narcísi- possuem ou simplesmente ainda não conse-
co. Toda a confrontação à diferença eu/outro pro- guem revelá-la?).
vocava um impasse relacional e narcísico que Nestas situações, a exploração da vida
suscitava afectos de renúncia, de desistência e intrapsíquica exige muito tempo e faz-se essen-
uma desorganização regressiva que se exprimia cialmente através da análise dos sonhos que,
somaticamente. Com efeito, esta fase de separa- embora não surjam com frequência, quando
ção/individuação representa um ponto nodal na aparecem são reveladores de angústias arcaicas.
evolução futura do desenvolvimento da crian- Também um elemento técnico essencial é a
ça, quer para o normal quer para o patológico, análise da contratransferência e contra-atitudes
mesmo que as fases precedentes tenham sido que permitem traduzir em palavras o dito e o
suficientemente organizadas. não-dito destes pacientes, o impensável, os ele-
A comunicação alexitímica não é específica mentos beta bionianos. Da minha experiência,
dos doentes psicossomáticos e podemos observá- creio ser importante a tomada de consciência do
-la noutras patologias, nomeadamente nas per- ódio do analista em relação a certos pacientes,
turbações do agir, nas toxicodependências. "Se tal como acontece com os doentes psicóticos.
eu pensar, morro!" ou "Eu sou o melhor a não pensar Esta tomada de consciência, não só servirá para
em nada…" dizem-nos adolescentes com dificul- interpretar a projecção, visto que a maior parte
dades gravíssimas do comportamento e com um das vezes só falam através do corpo, mas tam-
discurso pobre e factual. No entanto, ao fazerem bém para que o doente possa entender que está
estas afirmações, implicava já, apesar de tudo, demasiado doente para falar da zanga que pro-
uma certa elaboração psíquica mas que não foi voca no analista e nos outros.

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Prosseguindo: o problema não estará então Michel Soulé (1999) apresentou um estudo
na ausência dos fantasmas e das emoções, mas, sobre a vida fetal, tendo em conta os disfuncio-
na incapacidade ou na grande dificuldade em namentos da tríade biológica placenta-feto-cor-
expressá-las, isto é, passá-las para outro sistema po da mãe e o seu interesse para compreender
de comunicação mais evoluído, que é o da pala- as doenças psicossomáticas. Deste modo, o "pré-
vra, daí a grande dificuldade ou a impossibilida- -natal" merece ocupar na nossa ciência o lugar
de de ir do fantasma à fantasia, à rêverie. legítimo, a do "primeiro capítulo da biografia"
No seu modo de comunicação não apare- verdadeira da pessoa humana e não de preâm-
cem sentimentos, desejos, pulsões. Só surgem bulo ou de pré-história. É preciso então cons-
detalhes dos acontecimentos do exterior, carac- truir uma clínica do desenvolvimento global do
terístico do pensamento operatório. Como se feto para compreender não só a psicopatologia
houvesse um bloqueio ao nível do seu mundo perinatal, mas também as premissas da psicos-
interior, não deixando passar nada. Mas este tipo somática.
de funcionamento não é homogéneo, em bloco, Nos trabalhos de outros autores franceses,
mas sim caracterizado pela mobilidade entre um tais como, Kreisler, Fain, Soulé (1974) estão des-
funcionamento mais arcaico, psicótico e um ní- critas perturbações extremamentes precoces,
vel mais evoluído. que podem surgir logo nos primeiros dias, como
Estes doentes aparecem aparentemente bem por exemplo, as alergias do bebé. E assim, se in-
adaptados à realidade exterior e não se podem vocou a existência de "núcleos psicossomáticos
inscrever numa depressão, isto é, não apresen- originários".
tam um quadro de "depressão manifesta". Kreisler (1974), numa reflexão sobre a ori-
Coimbra de Matos (1999) definiu a personali- gem das defesas mentais face à somatização, de-
dade psicossomática como uma estrutura pré-de- fendeu uma hipótese sobre a existência destes
pressiva dependente de uma falha empática pre- "núcleos" susceptíveis de se organizarem preco-
coce. "O bebé, por falência do continente mater- cemente e inflectirem um desenvolvimento a
no (aparelho psíquico da mãe), não desenvolve a médio ou a longo prazo.
capacidade de intropatia (leitura dos próprios Numa linha de ideias que será complemen-
afectos e interacções), abortando o seu desenvol- tar, Golse (1996) utilizou o termo de "ilhotas psi-
vimento emocional, fantasmático e simbólico. A cossomáticas", que são enclaves psíquicos não
capacidade de reconhecimento do outro, do dife- historicisados nem integrados no psíquico. Pare-
rente e estranho fica, ela também, embotada". ceu-me que queria dizer que são "produções psi-
Assim se desenvolve uma relação "grosseira copatológicas" que se situam no limite do
e indiferenciada (protopática), monótona e psiquismo, isto é, organizações prevalentes de
desinteressante, feita à custa de um esforço experiências corporais que têm valores de "índi-
adaptativo". São pacientes que não vivem a de- ces". Ora estes índices só poderão, progressiva e
pressão. "É como se não tivessem um aparelho dificilmente, adquirir o valor de sinais, com a
psíquico para sentirem os sentimentos – e estes presença ou ajuda dos pais ou dos terapeutas.
não são mentalizados, escoando-se na vertente De acordo com a nossa experiência, não nos
somática, como estados corporais. A insatisfação é difícil aceitar que David Rosenfeld (1993) con-
não é percebida como estado afectivo (alexiti- sidere que, em certos doentes psicossomáticos e
mia) e muito menos reconhecida como ligada toxicodependentes, se encontre, por vezes, na
ao acontecimento insatisfatório (não integração estrutura psicopatológica subjacente, uma com-
afectivo-cognitiva)". ponente autística encapsulada. Segundo
Não tendo uma experiência muito alargada Rosenfeld, estes pacientes puderam sobreviver,
destes casos, considero, no entanto, como mais criando o seu próprio mundo de "sensações",
comum que encontrei nestes doentes, a tendên- descrito nos autistas por Tustin (1986) e são pre-
cia esquizoparanóide e a vulnerabilidade face a cisamente estas "sensações autísticas" geradas no
qualquer modificação do quadro (férias, e pelo seu próprio corpo, que eles tentam recriar,
desmarcação eventual de uma sessão, etc.). quer através das perturbações psicossomáticas

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quer através do consumo das drogas fortes, sempre tidos como equivalentes ao tocar. Não
como forma de protecção do núcleo do self, evi- será que foi o que aconteceu em certas pacien-
tando o aparecimento das angústias psicóticas. tes, em que a sexualidade representou um papel
Assim, os toxicodependentes parecem não utili- fundamental? Era uma sexualidade pura e sim-
zar as drogas como estimulantes, mas sim para ples que não se inscrevia numa relação amoro-
tentar criar um "mundo autístico de sensações". sa, mas sim, numa espécie de procura desse
São pacientes muito mais regressivos e primiti- mundo de sensações, para não perderem a no-
vos do que quaisquer outros. ção da sua própria existência? É o ser ou não ser –
Não haverá uma similitude entre estes eis a questão pungente para muitos destes pa-
enclaves autistas e as chamadas ilhotas psicosso- cientes.
máticas, de que nos fala Golse? Claro que a pes- Provavelmente, encontrando-se perturbada
soa poderá evoluir num sentido ou noutro, de a percepção a distância do mundo exterior, im-
acordo com outros factores subjacentes de vul- pedem que o self se separe do objecto, numa re-
nerabilidade. Só se é autista quando existem, lação de identificação adesiva, produzindo-se
como se sabe, uma conjugação de múltiplos fac- uma forma de pensamento concreto (pensa-
tores, factores esses que não existem no mento operatório), o que dificulta ou pode im-
psicossomático, e daí o facto destes doentes não possibilitar a simbolização (Tustin, 1990).
terem um quadro de autismo instalado, por- Com efeito, parece que certos doentes psi-
quanto nesta situação "o investimento encolhe- cossomáticos não têm a possibilidade de criar um
-se ou retrai-se, face a um objecto não responsivo, mundo interior (num espaço tridimensional),
indiferente ou rejeitante" (C. Matos). Pelo con- em que possa existir um diálogo entre os objec-
trário, no psicossomático há um hiperinvestimen- tos internos e, deste modo, ausência de rêverie
to do objecto narcísico e necessitado, isto é, o "su- diurna. Nós pessoalmente não temos tantas cer-
jeito depara-se com um objecto captativo, que tezas e pergunto-me se isto não poderá corres-
suga investimento amoroso", facto este que apon- ponder ao medo da intrusão do analista por
ta mais para um núcleo melancólico. medo da destruição do seu mundo interno, que
No entanto, o sintoma psicossomático dá a eles preservam a todo o custo, ou medo de des-
estas pessoas uma sensação de identidade (a truir o analista?
sense of being) similar às sensações corporais que Será que as sucessivas relações com homens,
as crianças autistas procuram, através de varia- nos primeiros anos de análise das nossas pacien-
dos processos, tais como esfregar contra o corpo tes, poderão ser acting-outs para não pensar ou
ou agarrar objectos duros, jogos com as fezes, para não se ligarem a uma nova relação? Toda-
com a língua, estereotipias, etc.. Por isso, estes via, não sei até que ponto poderemos dizer que
pacientes psicossomáticos são, em certa medida, os níveis autísticos primitivos se escondiam sob
difíceis de curar, porque o desaparecimento da esta aparência sexual, levando-as à procura in-
perturbação psicossomática equivale ao desapa- discriminada de parceiros sexuais. Seria a forma
recimento de uma noção rudimentar de identi- de não sentirem o vazio, fazendo intervir o con-
dade. E por vezes, quando se curam, pode rea- tacto sexual, para sentir as sensações corporais
parecer uma outra perturbação psicossomática mais primitivas, no fundo mergulhar na senso-
ou um quadro psicopatológico. É da nossa expe- rialidade e sensualidade autistas, para ter o sen-
riência que, algumas crianças que melhoram do timento de existir e, deste modo, colmatar a an-
autismo, aparecem com doenças psicossomá- gústia de morte, de catástrofe, "angústia sem
ticas nomeadamente asmas graves. Grotstein nome", como dizia uma doente. E é esta mesma
(1981) inclui o autismo nas perturbações psicos- doente, aparentemente muito distante e fria e
somáticas. que se enquadra nesta discussão, que utilizava
Tustin ensinou-nos que as crianças autistas um objecto duro que raramente largava, para se
vivem mergulhadas num mundo de sensações sentir mais segura, tal como acontece com as
corporais especialmente o táctil e o sentido crianças autistas.
cenestésico, em que a vista e o ouvido são quase Finalmente, por detrás da aparente distan-

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cia e frieza, o doente psicossomático, é riquíssi- cada vez que se estabelece uma comunicação,
mo em sensibilidade e emoções. Por vezes, tudo se passa como se tivesse criado um pata-
irrompem afectos de amor e ódio, com extrema mar de estabilidade no declive do precipício, per-
violência e intensidade, que são vividos mitindo a modulação da distância entre self e ob-
transferencial e contratransferencialmente. Pos- jecto, sem risco de queda destrutiva. Esses pesa-
sivelmente os doentes psicossomáticos não po- delos, com a evolução da análise, deixaram de
dem suportar as emoções porque vivem senti- ser referidos.
mentos de profundo desamparo, por não terem Ao contrário de uma ideia comum, assente
espaço mental para os conter. Todos nós temos provavelmente no desejo de tratar rapidamente
tendência em somatizar quando as circunstân- estes doentes, as suas análises são muito longas
cias do exterior ou do interior ultrapassam os e laboriosas para permitir pôr em evidência a
nossos modos habituais de resistência como re- existência de uma vida fantasmática muito rica,
feriu Joyce Mc Dougall (1989), com quem esta- que não se adapta de facto com a descrição de
mos inteiramente de acordo. um "pensamento operatório" desprovido de fan-
Se bem que sejam pacientes com uma acti- tasmas. Quer dizer que este pensamento opera-
vidade onírica pouco frequente, é todavia, atra- tório será uma defesa em relação a níveis de an-
vés dos sonhos, que revelam angústias arcaicas, gústias mais profundas carregadas de fantasmas
sendo prevalentes as de fragmentação (perdas muito violentos e primitivos. Como diz Jean
de partes do corpo, dos membros). Bégoin (1981), correspondem a defesas esqui-
Noutro tipo de pesadelos, por vezes, de re- zóides e obsessionais contra elementos psicóticos
petição, manifestam angústias de queda no va- subjacentes e mantidos clivados do resto da per-
zio, de precipitação. São angústias muito preco- sonalidade.
ces, que foram elaboradas por Houzel, aquando Demos o título de "Enigma da Psicossomáti-
do tratamento de crianças autistas e de adultos ca" à nossa comunicação por várias razões: por-
com enclaves autistas. Esta queda no vazio expri- que trabalhamos com hipóteses que não foram
me um "fantasma de nascimento explosivo, vi- totalmente confirmadas; porque são pacientes
vido de modo catastrófico como queda destruti- enigmáticos, não se estabelecendo entre nós ne-
va" (D. Houzel, 2002). Assim há a representa- nhuma corrente emocional, pelo menos no iní-
ção de um gradiente de energia que cria uma atrac- cio; e porque são pacientes que põem à prova o
ção irresistível sentida como violenta e destruti- analista. Como nos ensinou José Flores quando
va que não tem a ver com uma atracção sexual falava dos pacientes narcísicos, exigem paciên-
mas sim com a "cesura" do nascimento. Dá-se a cia, capacidade de funcionar no registo da in-
passagem de um meio líquido, agravitacional, temporalidade, sem pressa, tolerância e atitudes
para um meio aéreo sujeito ao peso da força da não taliónicas, sobretudo devido à violência das
gravidade e da secura do ar. Foi o aspecto da "di- contra-atitudes que são desencadeadas no ana-
nâmica de gradiente" que reteve a atenção de lista.
Houzel e que o levou à hipótese das angústias de Estes doentes falam através do registo somá-
precipitação, considerando que esta dinâmica de tico das experiências frustrantes e portanto é ne-
gradiente não estaria de modo nenhum ausente cessário fazer ligações com o "sentir corporal".
no pensamento de Freud. Ela aparece na 2ª teo- Numa outra doente: "Amanhã é o último dia antes
ria pulsional: instinto de vida/instinto de morte de férias …não sei explicar o mal estar …sinto frio,
(1920). depois calor, frio/calor …braços e pernas doridos…"
O gradiente de energia é, em primeiro lugar, Dir-se-ia que nunca se identificaram ao corpo
sentido como um precipício que atrai irresisti- materno. Isto não quer dizer que os sintomas
velmente para uma queda destrutiva. Para que não desapareçam, por vezes, rapidamente, num
seja possível o encontro com o objecto, é preciso primeiro tempo, podendo mesmo falar-se de –
que o gradiente seja regulado, de modo que pos- "cura pela transferência" – mas que, no entanto,
sa ser superado sem estragos. Essa comunicação nesse primeiro tempo, não há modificação do
psíquica com o objecto vai permitir a regulação: funcionamento mental. No entanto, o trata-

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ENIGMA DA PSICOSSOMÁTICA 53

mento da perturbação subjacente resolve ou desta relação, a qual não é a relação de objecto
pode fazer diminuir significativamente os sinto- da psicanálise, nem tão pouco uma relação defi-
mas psicossomáticos. nida à partida por um sujeito e por um objecto
Os trabalhos sobre o espaço psíquico e a re- redutíveis ao modelo linguístico. É qualquer coi-
lação continente-conteúdo, levaram a pensar sa que reenvia a uma relação original, existente
que as coisas são muito mais complexas e que a antes do nascimento e depois de nascer. Está-se
somatização implica a existência de partes do self em relação desde a concepção, isto é, sem sujei-
que nunca teriam encontrado um objecto conti- to e sem objecto e o sujeito e o objecto vão suce-
nente adequado. Estes pacientes têm uma parte der-se em situações dominadas pelo biológico,
do seu funcionamento a viver num mundo bi- pelo relacional e pelo fisiológico.
-dimensional, utilizando a identificação adesiva Parece haver um colorido poético nesta con-
como modalidade de defesa, através da qual pro- ceptualização e não sei se será assim uma ruptura
cura colar-se à superfície do objecto, numa iden- tão completa com o pensamento de Freud.
tificação profunda e sem limites, numa confu- Escolhemos para as nossas reflexões, casos
são self/objecto, do qual não percebe a profundi- de pacientes que põem problemas importantes
dade, sentindo-o como desprovido de interior. a vários níveis nomeadamente da nossa contra-
Mas nesta situação há um hiperinvestimento transferência e contra-atitudes, que nos permi-
deste objecto, como já vimos, no qual o paciente tem entender o que se passa no seu mundo in-
se apoia, ao contrário do que acontece no pro- terno, dada a pobreza do seu discurso.
cesso autístico. Também é fundamental entrar em linha de
Temos um outro modelo conceptual de conta com o tempo que é necessário para que
"pensar o somático em psicanálise" que entrou estes pacientes possam desenvolver uma rela-
em ruptura com o pensamento de Freud e ção criativa e entrar numa relação separada, po-
continuadores, que é o de Sami-Ali que defen- dendo assim comunicar através da palavra. De
deu a Psicossomática como uma disciplina cien- facto, se a palavra une, ela é também utilizada
tífica e autónoma. para a (ou na) separação. Possivelmente este as-
É um autor que vem com frequência a Por- pecto fusional será defensivo e não o resultado
tugal, a convite do ISPA, que publicou uma edi- de uma paragem da evolução do desenvolvi-
ção portuguesa em 1992 de uma obra sua publi- mento.
cada em França, prefaciada por Frederico Perei- O universo do nosso conhecimento é muito
ra e que contém uma entrevista a Sami-Ali efec- limitado, sendo necessário um contínuo traba-
tuada por Mendes Pedro. lho de investigação e integração dos dados das
Pensar o somático e pensar o psíquico, são outras ciências. A psicanálise não é uma teoria
dois caminhos radicalmente diferentes. Pensar o etiopatogénica mas sim uma teoria do funcio-
psíquico foi o propósito de Freud e pensar o so- namento mental e uma rigorosa disciplina do
mático é específico do que o autor considera pensamento. Há tantas e tantas interrogações,
como domínio da psicossomática. tais como: as origens da psicossomática, a esco-
Para Sami-Ali, a patologia orgânica não pode lha de órgão no processo da somatização ou a
ser integrada nem no modelo histérico, nem no escolha da função, etc., etc..
modelo da neurose actual, nem no modelo da Se bem que a nossa experiência possa ser
psicose. Afastou-se assim dos modelos de Freud restrita, o que tem sido importante nestas pa-
e dos seus desenvolvimentos, para poder reflec- cientes, é a possibilidade de promoverem (e isso
tir sobre a ligação entre o orgânico e o relacional. é bem evidente) o seu crescimento mental, ga-
Parte então do princípio que não há de um lado nharem um insight insuspeitável e serem capa-
o psíquico e do outro o orgânico, mas que as zes de expressarem verbalmente as suas emo-
variáveis psíquicas e as variáveis ditas orgânicas ções. O seu campo vai-se alargando continua-
são de facto duas maneiras de colocar o proble- mente (Bion, 1970), aparecendo a função alfa,
ma da relação – tudo é relacional. Se tudo é rela- com passagem à tridimensionalidade, desenvol-
cional, o problema deve ser posto nos termos vendo o pensamento simbólico e a criatividade.

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Abstract • Fonagy P. Développement de la psychopathologie de l’enfant à l’âge


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