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22409/1984-0292/v31i_esp/29001
Dossiê Psicologia e epistemologias contra-hegemônicas - Artigos
plo discurso parte-se do principal postulado da Etnop- história, determinadas sociedades passam a ser nomeadas
siquiatria: o da universalidade psíquica na singularidade de primitivas, selvagens ou mesmo bárbaras, em oposição
da cultura. Diante da correspondência entre psíquico e àquelas ditas civilizadas. Essa postura de observar outras
cultural e dos desafios inerentes à alteridade, destaca-se culturas em função da sua própria, tomando-a como pa-
a necessidade de modificação das formas de pensar e de drão para valorizar e hierarquizar as restantes, denomina-
fazer relativas ao tratamento terapêutico (MORO, 1992). -se etnocentrismo (BOAS, 2004).
A justificativa do duplo discurso surge da concepção Franz Uri Boas (1858-1942), antropólogo alemão
de que a cultura é como a face externa dos processos psí- incomodado com os limites científicos do argumento
quicos. Do âmago do psiquismo individual às conquistas biológico para compreender os costumes sociais, e da
civilizatórias mais elevadas, a cultura é como a pele que plasticidade do conceito de raça, aponta que não há sen-
reveste e contém o sujeito do nascimento até a morte. Um tido em adotar uma postura metodológica comparativis-
reservatório de possibilidades da humanidade, a cultura ta em relação às diferentes culturas. Em sua perspectiva,
é o que torna o real suportável, na medida em que lança particularista, é um equívoco falar em uma única cultura
no simbólico a experiência ainda sem representação. Na humana, pois diante de toda a pluralidade verificada nas
qualidade de suas funções ela pode evitar a confusão e a expedições de observação, estaríamos diante de inúmeras
perplexidade ao carregar consigo muitas das explicações culturas. Elas até podem ter semelhanças e mesmo equi-
e predições acerca dos eventos da vida e das possibili- valências entre si, mas compará-las seria improdutivo,
dades terapêuticas em caso de adoecimento (LAPLAN- pois uma cultura só pode ser apreendida em seu particula-
TINE, 1998; MARTINS-BORGES; POCREAU, 2009). rismo histórico. O relativismo cultural pontuado por Boas
Assim, este artigo visa apresentar o histórico dos não invalida o conceito proposto por Tylor, mas a sua for-
princípios precursores que levaram Georges Devereux à ma de utilização. O que Boas critica duramente é a postu-
síntese teórica e à criação da respectiva disciplina; busca ra etnocêntrica dos pesquisadores ao se defrontarem com
ainda expor as considerações da experiência adquirida na uma organização cultural estranha a sua e, por conseguin-
aplicação da disciplina por meio da metodologia interven- te, subordiná-la à sua própria concepção (CUCHE, 1999).
tiva proposta por Tobie Nathan (França) – e multiplicada Em uma perspectiva psicodinâmica compreende-se a
por outros clínicos, com destaque para Marie-Rose Moro cultura como uma realidade compartilhada, uma herança
(França), Jean-Bernard Pocreau e Lucienne Martins-Bor- social, e não genética, transmitida pela educação formal e
ges (Québec, Canadá) (LECOMTE; JAMA; LEGAULT, informal. É um sistema dinâmico, em constante mutação,
2006). Para tanto, inicia-se com o breve resgate do advento devido à influência de fatores internos e/ou externos que
do conceito científico de cultura para as Ciências Huma- possibilitam adequação às experiências da vida. Ou, ainda,
nas e os seus desdobramentos nas teorias psicodinâmicas, um sistema de símbolos e de significados próprios de um
destacando a indissociabilidade entre os processos cultu- grupo, cujos diferentes elementos relacionam-se entre si, de
rais e psíquicos na organização e expressão do sofrimento forma coerente, e estão em constante interação (GUERRA-
humano. Por fim, sustenta-se a posição epistemológica e o OUI; PIRLOT, 2011). Portanto, seja sob a ótica antropoló-
direcionamento metodológico clínico da Etnopsiquiatria. gica, seja sob a ótica psicodinâmica, a cultura configura-se
Histórico como elemento organizador do social. Ao mesmo tempo
que fornece as possíveis direções para a existência, contém
O conceito de cultura apresenta grande amplitude e todo o tesouro de produções de um grupo.
complexidade dada a sua vasta utilização em diversas áre-
Para compreender os elementos utilizados por De-
as do conhecimento. Não cabe uma análise exaustiva da
vereux para a síntese da sua teoria baseada no comple-
evolução do conceito e nuances de uso, e sim a transmis-
mentarismo, cabe rever alguns nomes que marcaram a
são de elementos suficientes para compreensão do papel
história, a começar por Freud (1856-1939). O diálogo
da cultura para a formulação da Etnopsiquiatria. Edward
entre Etnologia e Psicanálise inicia-se quando da publi-
Burnett Tylor (1832-1917), antropólogo britânico e re-
cação de Totem e Tabu (FREUD, 1912-1913/1974), texto
presentante do pensamento evolucionista, apresenta em
por meio do qual Freud pretendia apontar para a universa-
sua obra Cultura Primitiva (1871), o primeiro conceito
lidade do conceito de complexo de Édipo pela descrição
científico de cultura, o que lhe concede o título entre os
dos significados de totem e tabu em culturas da “psico-
seus pares de pai do conceito moderno de cultura. Para
logia dos povos”. Dessa forma, Freud defende nesse tex-
Tylor (1871, p. 1 apud CUCHE, 1999, p. 35), a cultura é
to a premissa de que, assim como ocorre nas sociedades
compreendida como um “conjunto complexo que inclui
ocidentais, as organizações nas sociedades “primitivas”
o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os
também se davam pela proibição implícita do incesto e
costumes e as outras capacidades ou hábitos adquiridos
do assassinato do pai. Para tanto, ele descreve os modos
pelo homem enquanto membro da sociedade”. Cabe sa-
como isso ocorria nesses grupos culturais, baseando-se,
lientar que essa conceituação se situa dentro de uma pers-
para criar suas hipóteses teóricas, numa compreensão
pectiva evolucionista de metodologia comparativista; o
filogenética darwinista e nos elementos culturais ofere-
que permite, dentro desse paradigma, pensar a cultura
cidos por tais sociedades “primitivas” (FERMI, 2008;
como experiência única e universal e, portanto, categori-
ROUDINESCO; PLON, 1998). Em críticas à proposta
zada em diferentes níveis de desenvolvimento. Ao subor-
de diálogo entre a Psicanálise e a Etnologia teorizada por
dinar a cultura à uma noção linear do desenvolvimento da
Freud em Totem e Tabu, o antropólogo inglês Malinowski
(1884-1942) defendia a ideia de que uma produção cien- Posterior a Roheim, Georges Devereux (1908-1985),
tífica somente pode ser reconhecida quando se utiliza um ou Gyorgy Dobo – seu nome de nascença –, distingue-se
método baseado em fatos que podem ser observados di- na história como quem unificou a teoria elaborada por
retamente pelo pesquisador e que podem ser descritos de psicanalistas, antropólogos e etnopsicanalistas que o pre-
modo exato (ROUDINESCO; PLON, 1998). Dado que cederam e a sua experiência clínica como psicanalista e
Freud não teve acesso direto aqui, por observação, às cul- antropólogo, tornando-se o fundador da Etnopsiquiatria.
turas utilizadas para a demonstração de sua teoria, Ma- Nascido no território atualmente reconhecido como a
linowski sustentava sua discordância de que existia um Romênia, Devereux, judeu, imigrante, era filho de mãe
complexo de Édipo universal, comum a todas as culturas, alemã e pai húngaro. Em 1947, no contexto de pós-guer-
uma vez que a diversificação das funções desempenhadas ra no território dos Estados Unidos, Devereux tem seu
pelos indivíduos pertencentes aos grupos das sociedades primeiro e único paciente, Jimmy Picard, um indígena
primitivas não correspondia às configurações sociocultu- norte-americano do grupo Blackfoot. Naquele momento,
rais europeias já observadas (FERMI, 2008). Devereux, já colocava em questão a compreensão úni-
Com o objetivo de responder às críticas feitas por ca do normal e do patológico, baseando-se na hipótese
Malinowski e de reunir elementos que baseassem a teoria de que o sintoma é codificado culturalmente. Com seu
da universalidade do complexo de Édipo, alguns teóricos paciente, Devereux coloca em prática a posição daque-
da psicanálise – Freud, Ferenczi, Wilma Kovacs e Ma- le que não sabe, daquele que vai apreender o mundo do
rie Bonaparte – propõem que alguém com formação em outro e com ele compreender os significados que estrutu-
Psicanálise e Etnologia (Etnopsicanálise) vá a campo co- ram o seu universo simbólico-cultural. Essa experiência
letar dados por observação direta e, com as informações e suas considerações sobre ela são base para o que mais
colhidas, elaborar um estudo do que observou, uma vez tarde se formaliza como a Etnopsiquiatria.
que, dada a sua formação, poderia ser a pessoa mais com- Destaca-se que nessa época os especialistas norte-
petente para um diálogo entre as disciplinas (FERMI, -americanos tinham grande reconhecimento graças aos
2008). Nesse contexto, Geza Roheim (1891-1953) lan- tratamentos que ministravam aos soldados que retorna-
ça-se em viagem exploratória em 1928. Roheim nasceu vam ao país com sintomas pós-traumáticos. Devereux foi
em 1891, em Budapeste; descendente de judeus, era filho enviado ao encontro de Jimmy Picard devido à ineficácia
único de uma família de comerciantes húngaros. Desde dos tratamentos até então ofertados a este paciente (NA-
pequeno era muito curioso por obras literárias. Aos 12 THAN, 2014). Devereux estudou em Paris com Mauss
anos, tinha uma conta aberta em uma das mais impor- (1872-1950), etnólogo francês responsável pela funda-
tantes livrarias de Budapeste, e, aos 19 anos, apresentou ção do Instituto de Etnologia e pesquisador de temáti-
seu primeiro trabalho, sobre a mitologia da lua, para a cas como a relação entre a religião e o sagrado; realizou
Sociedade Etnográfica Húngara. Escreveu trabalhos so- seu doutorado em Antropologia nos Estados Unidos, em
bre o folclore húngaro e era considerado bastante liga- 1961, quando pesquisou sobre os Mohave, povos nativos
do às expressões pela arte que envolviam sua cultura de norte-americanos (ROUDINESCO; PLON, 1998) e “de-
origem (ROUDINESCO; PLON, 1998). Com passagem monstrou que as teorias e as práticas referentes à angústia
por Yêmen e Djibouti, ele permaneceu durante nove me- e os adoecimentos próprios aos universos culturais não-
ses em um grupo social da ilha de Normanby. Utilizando -ocidentais são sensatas, coerentes, lógicas e eficazes”
elementos obtidos em sua experiência de campo, Roheim (GRANDSARD, 2009, p. 47). Em 1963, Devereux re-
elabora uma teoria segundo a qual cada cultura tem seu torna à França, a convite de Claude Lévi-Strauss (1908-
trauma infantil específico. Nesse sentido, Roheim (apud 2009) e Roger Bastide (1898-1974), com o qual estudou;
FERMI, 2008, p. 63, tradução nossa) afirma que começa a lecionar na École Pratique des Hautes Études e,
se fosse possível ter um conhecimento psicanalítico apro- em 1970, funda a Etnopsiquiatria.
fundado de todas as culturas, o que existiria de semelhante Na tese de Devereux, percebe-se ainda a influência
entre elas é uma situação infantil específica, de angústia da antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss, a qual
infantil ou tendência libidinal que possuem uma função de- busca as “invariantes” dos materiais culturais, ou seja,
terminada em cada cultura. aqueles princípios duradouros e indispensáveis para vida
Pela noção de trauma infantil singular a cada cultura, em sociedade. Para Lévi-Strauss, tendo em vista a uni-
Roheim sustentava a premissa de que não há discurso ab- dade do psiquismo, os particulares de uma cultura não
soluto que corresponda à leitura única do normal e do pa- podem ser compreendidos sem referência às “categorias
tológico, uma vez que cada sociedade tem um sofrimento e estruturas inconscientes do espírito humano” (CUCHE,
que é próprio dela (FERMI, 2008). A teoria da univer- 1999, p. 95). No ensaio Eficácia Simbólica, o autor des-
salidade do trauma infantil, que ocorre na singularidade creve um ritual xamânico de cura para a resolução de um
de cada cultura, tornou-se, mais tarde, essencial para a parto difícil e chega à conclusão de que, independente-
constituição da Etnopsiquiatria, visto que a disciplina uti- mente da mitologia xamã corresponder a uma lógica e re-
liza a cultura como dimensão norteadora para a compre- alidade objetiva ocidental, ela funciona. Funciona, pois, a
ensão da constituição do sujeito e, por conseguinte, para parturiente, submetida ao ritual e à sociedade da qual ela
a compreensão de seu sofrimento psíquico (POCREAU; é membro acreditam na mitologia e na figura do xamã,
MARTINS-BORGES, 2013). membro da mesma cultura. Esse exemplo ilustra como o
universo simbólico do homem organiza-se pela cultura,
e mostra que quando existe coerência entre o internali- de defesa que o psiquismo; assim, cultura e psiquismo
zado pelo sujeito e a intervenção à qual ele é submetido, funcionam em dupla, como organizações a que, por meio
a eficácia se comprova (LÉVI-STRAUSS, 2012). O que do conhecimento etnológico e psicológico, se pode ter
evidencia o papel do antropólogo francês nas referências acesso. Ao encontro disso, “o aparelho psíquico funciona
da Etnopsiquiatria no que concerne às pesquisas antro- enquanto máquina criadora de ligações, autorregulando-
pológicas acerca da eficácia de tratamentos em culturas -se sobre outra máquina similar, mas de origem externa:
não-ocidentais (MORO, 1992) a cultura” (NATHAN, 1993, p. 299, tradução nossa); ele
Salienta-se que o nome Etnopsiquiatria não foi criado atua nos mesmos processos e utiliza-se dos mesmos re-
por Devereux, mas tomado emprestado de Louis Mars cursos dos mecanismos de defesa que a cultura faz uso.
(1906-2000), psiquiatra haitiano. A escolha de Devereux Dessa forma, fica explícita a justificativa da necessidade
no emprego dessa expressão deve-se ao fato do termo Et- de se recorrer ao discurso etnológico e psicanalítico para
nopsiquiatria referir-se à relação entre sintoma e cultura, a compreensão do humano enquanto ser partícipe de uma
assim como, à eficácia das terapias tradicionais (ou seja, cultura. Esta é a noção do complementarismo da Etnop-
não-ocidentais) tanto quanto à eficácia – já reconhecida siquiatria, em outras palavras, cultura e psiquismo são
– das terapias ocidentais. Assim, o uso do termo corres- estruturalmente coemergentes.
ponde à tentativa de uma geopolítica da psicopatologia, Para esta exposição, pode-se definir cultura como um
visto que os saberes não-ocidentais eram igualmente sistema composto por diferentes elementos que fornecem
considerados um saber, um conhecimento, independen- ao sujeito indicações de como agir e pensar de forma co-
temente dos critérios científicos ocidentais que pejorati- erente (MORO, 2015). Metaforicamente, é possível rela-
vamente os classificavam como “crenças”. Esses saberes cionar a cultura com uma bússola que orienta o sujeito no
tradicionais são conhecidos por integrantes às próprias curso de sua vida. Ela é composta por elementos significa-
culturas tradicionais/não-ocidentais, pessoas que ocupam tivos, que, dotados de propriedades e de funções – e estru-
um lugar de cuidado no grupo cultural e que dominam turados de forma dinâmica e autorregulada –, possibilitam
diferentes técnicas de tratamento – as quais podem ser a construção de sentido às vivências e eventos da vida
ensinadas e mesmo teorizadas, experimentadas, adapta- (MORO, 2001). Assim, os elementos culturais referem-se,
das e utilizadas em dispositivos clínicos pertencentes a por exemplo, aos valores; às práticas; aos hábitos; às for-
outros contextos (NATHAN, 2005). mas de composição familiar; às formas como se organizam
Sucessor de Devereux e responsável pela criação do e do que são feitos os rituais – de passagem, de alimen-
modelo de intervenção clínica da Etnopsiquiatria, Tobie tação (refeição, de preparo); à lógica de funcionamento
Nathan realiza em 1979, no Hospital Avicenne (Bobyg- e organização de uma sociedade (hierarquias, funções
ny), França, seu primeiro atendimento em Etnopsiquia- sociais), etc. Referem-se, ainda, os objetos terapêuticos,
tria. A principal diferença entre a clínica psicanalítica como orações, cantos, plantas (NATHAN, 1998). Enfim,
tradicional e a Etnopsiquiatria é o lugar que esta concede a cultura, que consiste num conjunto de símbolos que per-
à especificidade cultural enquanto base teórico-metodoló- mite ao bebê humanizar-se, representa uma ponte entre o
gica. Se a cultura constitui uma parte do sujeito de “ser/ sujeito e o seu ambiente, entre o mundo interno e o mundo
estar no mundo” (NATHAN, 1993), é indispensável a re- externo, proporcionando possibilidades de ser e de fazer,
corrência a ela para a compreensão da expressão do so- possibilidades de cuidado e de transmissão social por meio
frimento psíquico (FERRADJI, 2010). O ponto essencial dos significados (GUERRAOUI, 2011; MARTINS-BOR-
da Etnopsiquiatria é que não existe homem sem cultura. GES; POCREAU, 2009; MORO, 2001).
Em uma metáfora, Nathan (1993) afirma que o homem, Se a cultura significa esse conjunto de produções
assim como possui um fígado, possui uma cultura. Nesse humanas, compartilhado e transmitido pelas relações,
sentido, a Etnopsiquiatria propõe-se a evidenciar as liga- infere-se que ela é implícita e pré-existente à chegada
ções existentes entre o psiquismo e a cultura por meio do de novos membros a um grupo cultural. Relativamente
argumento de que esta possui papel essencial na constitui- à constituição psíquica, a cultura expressa-se nas signi-
ção do sujeito (MORO, 2001). Há uma equivalência entre ficações dos pais em relação ao bebê antes mesmo da
ter cultura e ser dotado de psiquismo (NATHAN, 1993). chegada deste ao mundo. Assim, ela é transmitida pelos
Assim, a teoria da Etnopsiquiatria é baseada no postulado primeiros investimentos afetivos, pelos primeiros vín-
da universalidade psíquica do sujeito, que se dá na sin- culos estabelecidos, estruturando o funcionamento psí-
gularidade da cultura de origem (LAPLANTINE, 1998) quico. A cultura proporciona aos membros de um grupo
Cultura e Psiquismo continência e proteção frente ao real, como se fosse um
envelope (MARTINS-BORGES; POCREAU, 2009).
A relação entre cultura e psiquismo é tão intrínseca Nesse sentido, destaca Grandsard (2009, p. 47), sobre a
que se pode pensar que em cada indivíduo há dois siste- teoria de Nathan, “este envelope é indispensável para a
mas redundantes de estrutura homóloga: um de origem construção e o equilíbrio psíquico dos indivíduos [...], e
interna – o aparelho psíquico; outro de origem externa – a consiste em um conjunto de códigos e de práticas que
cultura; ambos os sistemas coexistem e têm consequên- permitem que o mundo seja compreensível para o sujeito
cias lógicas importantes na estruturação do sujeito (NA- e mesmo previsível, de modo a proteger os humanos da
THAN, 1994). Nathan (1986) sustenta que a cultura se perplexidade e do medo”. Desse modo, pela compreen-
utiliza dos mesmos elementos, processos e mecanismos são da função da cultura e da sua intrínseca relação com o
psiquismo, é possível deduzir que a separação do sujeito frimento, à sua etiologia e as possibilidades de tratamen-
de seu contexto cultural de origem pode levar à ruptura to. Na medida em que a coerência se restabelece, lutos
desse envelope cultural protetor (GRANDSARD, 2009). são elaborados e novas ligações são estabelecidas; o que
Ainda em termos de suas funções, Guerraoui e Pirlot possibilita novos vínculos, diminuição do sofrimento,
(2011) ressaltam que é a cultura que delimita o que é nor- pertencimento e retomada da continuidade de si.
mal e desviante dentro de determinado contexto. Betts Considerações finais
(2013) afirma que todas as culturas têm em seu funda-
A Etnopsiquiatria é uma disciplina que trata das
mento aquilo que lhe é de “dentro”, ou seja, familiar; e
exceções. Essa prerrogativa de ocupar-se de exceções
aquilo que lhe é de “fora”, ou seja, estranho às lógicas
surge no momento em que abordagens baseadas em ló-
dominantes do contexto. Assim, o autor pontua que a
gicas ocidentais da psiquiatria foram insuficientes para
diferença reside no âmago de toda construção cultural.
construir uma hipótese que pudesse explicar o mal-estar
Observa-se que o que é definido como estranho, externo
vivido por pessoas originárias de grupos culturais tradi-
à cultura, tem geralmente representação hostil, é amea-
cionais. Também, como estes expressavam tal sofrimento
çador e, portanto, deve ser excluído. É justamente nessa
e como poderiam, por meio da intervenção terapêutica,
diferença vivida na relação com o outro, o não-semelhan-
reativar seus recursos culturais.
te, que reside a potência da Etnopsiquiatria, pois, em vez
de excluir o estranho e tentar ignorar a alteridade, é no Nesse sentido, para preencher a lacuna que a lógica
reconhecimento da diferença que está alicerçada a poten- da psiquiatria ocidental deixou, eis a noção da posição de
cialidade de suas investigações e intervenções. aprendizagem da Etnopsiquiatria. Aquele que vai tratar
assume que não tem todo o conhecimento necessário e
Codificação do Sintoma se coloca na posição de aprendiz: vai junto com o ou-
Na compreensão da Etnopsiquiatria, a articulação en- tro, nesse encontro intercultural, construir uma hipótese
tre a cultura e o psiquismo é dinâmica e permanente. A coerente culturalmente, uma hipótese que acolha o sujei-
cultura serve de base para o funcionamento psíquico; ela to, assim como seu sofrimento, quando houver. Nathan
possibilita a mediação entre a realidade externa e o mun- (1993) alude a Etnopsiquiatria como o desconhecido que
do psíquico, permitindo ao sujeito dar sentido a esse real se encontra na fronteira das ciências. Tal afirmação, para-
e, assim, suportar a existência (MARTINS-BORGES; lela ao discurso científico enquanto algo ocidental, cons-
POCREAU, 2009). O distanciamento do sujeito de seu titui, por si só, um importante obstáculo epistemológico
contexto cultural pode levá-lo a um estado de vulnera- para a Etnopsiquiatria (NATHAN, 1986), que no rol das
bilidade psíquica, uma vez que o equilíbrio possibilita- ciências ocupa o lugar de aprendiz.
do pela articulação entre a realidade externa e o mundo Longe de buscar uma única, a Etnopsiquiatria se
psíquico é fragilizado pela separação do quadro cultural apresenta enquanto possibilidade epistemológica de in-
de referência. Se antes, no contexto cultural de origem, clusão. A diversidade cultural não deve ser adaptada às
existia uma coerência na decodificação dos significados, teorias e práticas de saúde mental existentes, mas, pelo
diante do afastamento, tal coerência e as estratégias de contrário. É a ciência e as práticas de saúde que devem
defesa podem se tornar, naturalmente, menos eficazes. A seguir o rumo dessa diversidade.
falta de coerência seria um resultado das diferenças en-
contradas no novo contexto cultural, em que o local, as Informações sobre os autores:
pessoas, as lógicas de organização social modificaram-se
significativamente. No caso de um afastamento involun- Lucienne Martins Borges
https://orcid.org/0000-0003-4323-116X
tário, por exemplo, isso se acentua mais ainda em razão
http://lattes.cnpq.br/3388192539897247
do caráter forçado do distanciamento cultural e das vi-
Professora da École de travail social et de criminologie da
vências traumáticas pelas quais passam aqueles que dei- Université Laval (Québec, Canadá) e Docente do Programa de
xam seu contexto de origem. A continuidade e a coesão Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa
encontram-se partidas, o que dificulta a esse sujeito de se Catarina (UFSC). Integrante da equipe de pesquisa ÉDIQ -
reconhecer em si mesmo (MARTINS-BORGES, 2017). Équipe de recherche en partenariat sur la diversité culturelle et
l?immigration dans la région de Québec (Canadá) e colaboradora
A noção do sintoma enquanto uma formação de com-
do Núcleo de Estudos sobre Psicologia, Migrações e Culturas
promisso do psiquismo com as exigências da realidade (NEMPsiC/UFSC). Doutora em Psicologia (Ph.D., Université
faz dele uma produção singular. Assim, a sua expressão du Québec à Trois-Rivières - Canadá), possui graduação em
está condicionada aos elementos culturais a disposição, Psicologia pela Universidade Católica de Goiás (1991), mestrado
uma vez que é a cultura que fornece a materialidade para em Estudos Literários - Université du Quebec, Canadá (1996) e
o sintoma se constituir e ser interpretado. Para Laplan- mestrado em Psicologia - Université Laval, Canadá (2000). Co-
fundadora do Service d’Aide Psychologique Spécialisée aux
tine (1998, p. 73), “os mecanismos psíquicos nada mais Immigrants et Réfugiés (Université Laval/CIUSSS-CN, Québec,
são do que a face interna dos processos culturais que po- Canadá). Líder do Grupo de Pesquisa “Psicologia, cultura e saúde
dem ser, desse ponto de vista, qualificados de externos”. mental”. Interessa-se principalmente pelos seguintes temas:
Logo, a escuta do sintoma para a Etnopsiquiatrianão se Psicologia clínica intercultural, Etnopsiquiatria, migrações,
limita na busca de um quadro diagnóstico – por mais im- refúgio e saúde mental.
portante que seja o diagnóstico estrutural – mas também
na escuta do sintoma como possibilidade de acesso ao so-