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CENTRADA NA PESSOA
RESUMO
A Cultura de Paz foi proposta para fazer contraponto à cultura de violência, que esvazia a vida de
sentidos e gera medo, insegurança, baixa autoestima, desconfiança nas relações humanas e sofrimento
psíquico. Segundo Pelizzoli (2015), a Cultura de Paz é um guarda-chuva paradigmático e de
inteligências sistêmicas que acolhe ideias e práticas para reconstrução da cultura e do tecido social,
humanização e resgate da Justiça como valor social. Por meio da revisão de literatura dos autores
Howard Zehr (2008) e Carl Rogers (1983, 1997), objetivamos apontar os pontos de convergência
entre os principais conceitos, valores e princípios da JR e da ACP. Situamos a JR e a Abordagem
Centrada na pessoa no âmbito da Cultura de Paz. Encontramos convergências das práticas
restaurativas com os conceitos rogerianos de empatia, acolhimento, escuta, consideração
incondicional e congruência. A ACP nos ajuda a pensar em processos de mudança ocorridos a partir
de experiências inter-humanas, nas quais o acolhimento da alteridade tem um lugar privilegiado.
Ambas as perspectivas trazem uma revolução no modo de pensar a subjetivação da vida mostrando
que a construção da Cultura de Paz passa por mudanças no modo que construímos nossas relações a
partir daquilo que desejamos e podemos ser, manifestando toda nossa potencialidade.
Palavras-chave: Justiça Restaurativa. Abordagem Centrada na Pessoa. Cultura de Paz.
ABSTRACT
The culture of peace was proposed to counterpoint the culture of violence, which empties the life of
senses and generates fear, insecurity, low self-esteem, mistrust in human relations and psychic
suffering. According to Pelizzoli (2015), the Culture of Peace is a paradigmatic umbrella and of
Introdução
Este artigo é resultado da aproximação humana entre os dois autores, que na acontecência
deste encontro puderam conversar sobre suas perspectivas da formação acadêmica em Psicologia e
de que forma esta se articula com o campo de conhecimento da Cultura de Paz, resolução alternativa
de conflitos e Justiça Restaurativa (JR). Na disciplina Ética e Resolução de Conflitos, do mestrado
em Direitos Humanos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), os autores observaram que,
mesmo não referenciados explicitamente, diversos conceitos da teoria humanista de Carl Rogers
emergiam nas discussões, a exemplo de potencialidade humana, consideração positiva, aceitação
incondicional e compreensão empática.
Pensamos que a Psicologia tem muito a contribuir com a construção da Cultura de Paz e pouco
tem se aproximado deste campo. Antagonicamente, o saber “psi” tem dado importantes contribuições
para compreensão dos aspectos da violência nas suas mais diversas facetas como os estudos do
racismo, da homofobia e propriamente da psicologia jurídica. Portanto, as perspectivas da Justiça
Restaurativa e da terceira força das abordagens humanistas da Psicologia guardam grande potência
para repensarmos o paradigma dos laços sociais na atual conjuntura social.
A Organização das Nações Unidas, em sua Resolução 53/ 243, de 06 de outubro de 1999,
profere a Cultura de Paz como um conjunto de valores, atitudes, tradições, comportamentos e estilos
de vida baseados nos princípios do respeito à vida, no fim da violência e na promoção e prática da
não violência por meio da Educação, do diálogo e da cooperação. Baseia-se ainda no respeito pleno
e na promoção de todos os direitos humanos e das liberdades fundamentais, bem como no
compromisso de resolução pacífica dos conflitos, observando, para isso, as necessidades de
desenvolvimento e proteção do meio ambiente das gerações presentes e futuras. Outro fundamento
desta Cultura é a adesão aos princípios de liberdade, justiça, democracia, tolerância, solidariedade,
cooperação, pluralismo, diversidade cultural, diálogo e entendimento em todos os níveis da sociedade
e entre as nações (STAMFORD DA SILVA, 2010).
Neste sentido, o presente artigo é uma revisão de literatura e objetiva apontar os pontos de
convergência entre os principais conceitos, valores e princípios da Justiça Restaurativa (JR) e da
Abordagem Centrada na Pessoa (ACP). Para isso, nos baseamos nas principais referências teóricas
das respectivas abordagens: Howard Zehr (2008) e Carl Rogers (1983, 1997).
Por estar centrada nas pessoas diretamente envolvidas, a Justiça Restaurativa dispensa
“esferas burocratizadas estatais de intervenção para consecução do fim principal, a reconstrução dos
laços que se viram desfeitos pelo rompimento produzido pela relação conflituosa” (SALM; LEAL,
2012, p. 196). O Estado seria, portanto, convidado de honra do processo restaurativo, e não a principal
parte interessada. Válido pontuar, ainda com esses autores, que a abordagem restaurativa se insere
em um contexto de desburocratização dos espaços de tomada de decisão, o que passa necessariamente
pelo fomento de relações dialógicas mais democráticas e de participação social ativa, onde quer que
se busque Justiça (academia, judiciário, polícia, comunidade, igreja, prisões, associações de bairro,
locais de trabalho, etc.). Assim, sejam estes espaços formais ou informais, a ideia é que promovam
importantes questionamentos acerca do próprio paradigma da Justiça, por meio da subversão da
lógica de poder.
Por isso, para Salm e Leal (2012), o modelo de justiça restaurativo profanaria o monopólio do
Estado na construção de sentidos sobre crime e justiça, ao elevar a fala das vítimas e ofensores ao
lugar principal na narrativa do processo judicial. Vemos a suposta neutralidade do discurso jurídico
sendo abandonada, para reafirmação dos compromissos com o resgate do tecido social por meio da
resolução de conflito e a devolução da capacidade de resolução à sociedade. Portanto, idealmente, a
JR deve ser construída pelos próprios autores fora dos espaços estatais oficiais, constituindo-se uma
verdadeira juridicidade alternativa.
Ao longo da vida, Rogers teve diferentes interesses e focos de estudo e sua proposta teórica
acompanhou esse movimento: atitudes do terapeuta, métodos de terapia, experiência ou processos
internos, facilitação do aprendizado, relacionamentos interpessoais e, por fim, processos sociais,
formação e transformação de cultura. Assim, ele foi pouco a pouco transpondo os princípios
terapêuticos a situações de conflitos e processos sociais, a partir de uma interface política.
A abordagem humanista de Carl Rogers “se dedicou ao tema da paz, de modo a inserir, no
panorama acadêmico, reflexões e práticas voltadas à mediação de conflitos transculturais, políticos e
sociais” (SILVA et al., 2017, p. 21). Em sua fase coletiva (MOREIRA, 2010), Rogers propôs uma
metodologia para abordagem de situações de conflito: os grupos de encontro, em diferentes contextos,
a saber: trabalho, igreja, política, relações raciais, tensões internacionais, família e educação
(ROGERS, 2005). Assim, pessoas que, em algum nível, estejam emaranhadas em processos
conflituosos, podem encontrar um ambiente em que se expressem livremente e um clima de aceitação,
confiança e compreensão não defensivas.
Howard Zehr, em sua obra “Trocando as lentes” (2008), apresenta a Justiça Restaurativa a
partir de uma contraposição ao modelo de justiça retributivo. Este último, hegemônico, torna o
processo penal negligente frente às necessidades das vítimas e dos ofensores, por estar focado nos
processos de culpabilização e punição. Na lógica da justiça retributiva, o crime é abordado como
Esse entendimento do crime como violação, baseada na visão bíblica de shalom, leva em conta
sua dimensão interpessoal, por meio da qual concebemos que “ele afeta nossa confiança no outro,
trazendo sentimentos de suspeita e estranheza” (Zehr, 2008, p. 171), ou seja, degrada as relações
interpessoais e comunitárias. E mais, a experiência do crime representa um dilaceramento do
relacionamento vítima-ofensor, criando um vínculo alicerçado na hostilidade mútua. É de se esperar,
naturalmente, que o bem-estar das partes envolvidas sofra impactos significativos, demandando
atenção e cuidado, conforme discutiremos adiante.
Além de interpessoal, o crime abarcaria, uma dimensão social. Por esta razão, a sociedade,
enquanto parte interessada, tem um importante papel a desempenhar. Entretanto, Zehr (2008) nos
alerta que os interesses e necessidades da sociedade não devem ser o centro, tampouco o ponto de
partida do processo: “o crime não é primeiramente uma ofensa contra a sociedade, muito menos
contra o Estado. Ele é em primeiro lugar uma ofensa contra as pessoas, e é delas que se deve partir”
(p. 172).
Carl Rogers (1986) já confiava, ao se referir à tendência atualizante, no potencial humano para
isso:
A pessoa é livre para escolher qualquer direção, mas, na realidade, ela seleciona
caminhos positivos e construtivos. Eu só posso explicar isso em termos de uma
tendência direcional inerente ao organismo humano - uma tendência para crescer, se
desenvolver e realizar plenamente seu potencial (ROGERS, 1986, p.127).
Para Rogers esta atualização é a motivação do ser humano na qual o seu próprio ser, enquanto
organismo, caminha no sentido da busca do equilíbrio, da satisfação, do aperfeiçoamento. É a
tendência que guia a construção da personalidade. Está presente em todos os organismos, mas se
expressa de maneira única em cada um como elemento de vida, portanto é somente na presença ou
ausência deste processo que se pode afirmar que o organismo está vivo ou morto (FREIRE, s/a).
Outro aspecto da tendência atualizante é a sua natureza pró-social, ou seja, ela impulsiona
todo organismo na direção da sociabilidade. Logo, ela promove uma capacidade de empatia e
simpatia, está presente nas atitudes de comunicação e colaboração social, na capacidade do ser
humano de construir regras e acordos sociais, assim como o esforço para cumpri-los (FREIRE, s/a).
A autora ainda acrescenta que a empatia não ocorre no vazio de relação, mas na reciprocidade
que promove aprendizagem e mudança, abre a possibilidade de autocorreção, as pessoas tendem a
vencer os bloqueios de suas personalidades, caminham para um estado de maior integração das partes
de si que estão alienadas, permite que as pessoas possam se integrar aos aspectos de sua experiência
formando terreno para caminhar numa maior congruência/autenticidade.
No âmbito da Justiça, esta nova possibilidade, que surge a partir da experimentação com estas
condições facilitadoras, pode abrir o campo de reconciliação, da resolução do conflito, do encontro
de uma alternativa menos danosa para ambas as partes.
Na aceitação incondicional, aceita-se a pessoa como ela é, com aquilo que se convencionou
chamar de defeitos e qualidades e não se preocupa com como a pessoa deveria ser. Este conceito
Esta experiência pode ou não estar baseada no alinhamento que aponta seu próprio organismo.
Partindo do princípio de que todo ser humano tem a necessidade de amor (aceitação), tende a viver
de forma que possa receber e encontrar esse amor, mas se no seu desenvolvimento o fluxo de amor é
interrompido, e ele viva situações nas quais, para que ele receba este amor seja necessário se distanciar
de seu organismo, isso tende a gerar experiências de incongruência. O eu (self) conforme Silva e
Freire (2014, p. 96) “surge como uma parte do campo da percepção e vai se diferenciando a partir da
experiência valorativa que faz do mundo e de si mesmo, sendo seus elementos aquilo que é controlado
por ele.”
O self vai sendo forjado nesta relação entre o organismo e o ambiente possibilitando que a
pessoa construa uma série de valores e crenças sobre si mesma que são resultados tanto da cultura
que ela está inserida, quanto do funcionamento do organismo. A tendência atualizante segundo Silva
e Freire (2014) caminha de forma unificada quando a experiência do eu e do organismo estão
congruentes, porém tudo aquilo que se desenvolve na pessoa que não esteja na direção desta
congruência aparece como razão importante para “aquilo que se convém chamar de psicopatologia”
(p. 96).
Concordamos com Salm e Leal (2012) quando afirmam que Justiça Restaurativa é “uma
possibilidade de justiça calcada em valores e relações interpessoais (multiplicidade humana e
valorativa) onde se propõe a restauração da responsabilidade, da liberdade e da harmonia que existem
nos grupamentos sociais” (p. 196). Essa perspectiva de Justiça fundamentada numa atitude de
aceitação positiva incondicional que valoriza o humano como pessoa digna de respeito e confiança
tem como fio condutor de toda relação, o desenvolvimento do amor e da aceitação da alteridade a
partir do entendimento que esta diferença é o que enriquece a vida e que em qualquer relação é preciso
incluir o Outro em sua singularidade (SILVA; FREIRE, 2014).
As necessidades das vítimas, reafirma-se, devem ser priorizadas. O autor aponta que elas
demandam apoio, segurança, reparação, justificação, empoderamento, participação, encontrar
significado para o dano e a violação sofridos. O atendimento dessas necessidades passa pela
oportunidade de contar a história repetidamente, criando-se um espaço para ressignificação de
sentimentos e sofrimentos. Nesse processo, a escuta acolhedora revela-se titular de uma função de
grande importância:
Isso demanda a sensibilidade pelo relato da vítima, apreensão e compreensão de seus estados
internos, sem fazer nenhum julgamento de valor sobre sua subjetividade, em um exercício de
aceitação incondicional e compreensão empática, tal como proposta por Rogers.
Para Silva e Freire (2014) em respeito a este outro que apresenta sua versão é necessário
realizar uma escuta profunda e empática acolhendo o que ela traz de portas e janelas abertas para não
correr o risco de distorcer seu campo fenomenológico, o lugar da experiência da pessoa, visto que
sem o desenvolvimento da empatia se escuta “somente aquilo que quer ouvir, as confirmações da
teoria e dos (pre)conceitos já estabelecidos” (p. 100).
Não se deve perder de vista o caráter simbólico da restituição dos danos, que seria, segundo
Zehr, uma reação humana tão fundamental quanto a retribuição. Na perspectiva da vítima, esta
representa, para além da recuperação de perdas, um reconhecimento do erro e uma declaração de
Comunidades têm necessidades similares às da vítima. Considerando que o crime possui uma
dimensão social, conforme discutido anteriormente, a publicidade é uma das mais valiosas. Por esta
razão, o processo judicial criminal não pode ter caráter inteiramente privado, sigiloso. O ofensor, por
seu turno, também não pode ser negligenciado, pois “a identificação e tratamento das necessidades
dos ofensores é um elemento-chave da justiça restaurativa” (ZEHR, 2008, p. 188). É necessário que
sejam estimulados a questionar seus estereótipos e racionalizações sobre a vítima e o evento, e
desenvolvam habilidades laborais ou interpessoais, tais como responsabilidade.
A responsabilização (prestar contas a alguém por um ato cometido) do ofensor envolve, além
do reconhecimento do dano e da ação para corrigi-lo, o compartilhamento da decisão sobre o que
precisa ser feito com a comunidade e a vítima. A responsabilização, portanto, possui várias camadas
e um caráter transformador:
Ressaltamos que em todo processo restaurativo, o ato de fala é pedra angular. Está
intimamente relacionado com a noção de empoderamento, valorização da capacidade discursiva dos
envolvidos. Parte-se da premissa de que as pessoas são profundas conhecedoras de suas próprias
vidas, da comunidade em que se insere, e, seus conhecimentos são, portanto, relevantes. Por isso,
“devem ser assim reconhecidos e trazidos para a arena decisória compartilhada da coprodução de
sociabilidade, de histórias e de justiça (SALM; LEAL, 2012, p. 197).
Considerações finais
Referências
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