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Roger H aight

DINÂMICA
DATEOLOCIA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) S u MÁRÍO
Haight, Roger
Dinâmica da Teologia / Roger H aight; [tradução Jonas Pereira dos
Santos]. - São Paulo : Paulinas, 2004. - (Coleção repensar)
Titulo original: Dynamics o f theology
ISBN 85-356-1352-8
1. Teologia I. Título. II. Série. PREFÁCIO À SEG U N D A EDIÇÃO
04-3784 CDD-230.01 PR EFÁ C IO .................................................
índice para catálogo sistemático:
IN T R O D U Ç Ã O .......................................
1. Teologia cristã : Teoria 230.01 A teologia como apologética..........
A historicidade social........................
Titulo original da obra: DYNAMICS OF THEOLOGY— A análise transcendental..................
© Roger Haight, S.J., 1999 A ação ....................................................
Publicado por Orbis Books, Maryknoll, NY 10545-0308
A lógica deste tra b a lh o ....................
A f é ....................................................
A rev ela çã o ....................................
Direção-geral: Flàvia Reginatto
Editora responsável: Vera Ivanise Bombonatto A E scritu ra ....................................
Assistente de edição: Cirano Dias Pelin Os símbolos religiosos .................
Tradução: Jonas Pereira dos Santos
Copidesque: Silvia Massimini 0 método em teolo g ia .................
Coordenação de revisão: Andréia Schweitzer
Revisão: Anoar Jarbas Provenzi
Direção de arte: Irma Cipriani
Gerente de produção: Felício Calegaro Neto PARTE I
Capa e editoração eletrônica: Everson de Paula A FÉ

1. A FÉ C O M O DIM ENSÃO D O H U M A N O ..................................................


Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por A fé como fenômeno humano universal..........................................................
qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico ,
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C A pÍTulo

A ESTRUTURA (Ja ÍNTERpRETAÇÃO

assamos agora à discussão do principal tópico final deste livro: a questão do método na

P teologia. Como o teólogo realiza a tarefa da teologia, que consiste em interpretar


ou reinterpretar a realidade com base nos símbolos recebidos do passado? Essa questão é
fundamental. Poder-se-ia desenvolver, compreensivelmente, toda a temática deste livro no con­
texto da presente questão. Por essa razão, muitas das considerações a que se procedeu quando da
discussão dos tópicos relativos à fé, à revelação, à Escritura e aos símbolos religiosos serão reto­
madas aqui como pressupostos ou premissas do debate acerca do método.
A teologia é uma disciplina pluralista. Em termos de conteúdo, existem muitas teologias,
mas nem todas as teologias cristãs estão dizendo a mesma coisa. O pluralismo, no entanto, esten­
de-se para além do conteúdo, porque não há consenso em torno do método da teologia. Como
disciplina, a teologia é bem diferente do que em geral se entende pelo termo “ciência”. A exem­
plo da filosofia, a teologia não tem e provavelmente jamais conformará um extenso conjunto de
pressuposições e de premissas comuns que constituam um paradigma mais ou menos aceito
universalmente, em cujo âmbito laborem todos os operadores da disciplina.
Em vista dessa situação, toda exposição concernente ao método na teologia assume, de
uma forma ou de outra, uma posição contrastiva, relativamente a outros métodos em teologia.
No caso destes dois capítulos, os extremos que estão sendo rejeitados são bastante claros. Por um
lado, à direita, encontra-se um fundamentalismo ou positivismo revelacional que não se presta à
reinterpretação. Em outras palavras, está tão atrelado às palavras e às fórmulas do passado, tal
como se encontram quer na Escritura, quer nos credos dogmáticos, que não consegue refletir
nem a necessidade nem a atualidade da mudança de significado. Por outro lado, à esquerda, acha-
se o que se pode denominar de liberalismo radical. Por essa denominação entendo uma redução,
seja teórica, seja prática, da teologia à antropologia, ou, por outros termos, a recuperação do
significado da experiência humana em qualquer dada época específica que exclui a iniciativa da
revelação de Deus e não admite nenhum papel normativo ou autorizado à tradição do passado.1

1 Mesmo essas caracterizações mais gerais sempre são feitas a partir de alguma posição de um espectro.
Por exemplo, da posição da neo-ortodoxia de meados do século passado, que pendeu para a direita,
era comum julgar as teologias liberal (protestante) e modernista (católico-romana) do século XIX e

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D in â m ic a d a t eo lo g ia
A ESTRUTURA DA INTERPRETAÇÃO

Em contraste com esses dois extremos, não procurarei delimitar pormenorizadamente Essa tese concernente à necessidade de reinterpretação contínua dos símbolos tradicio­
nenhum método específico de alguma escola em particular. O que aqui se busca são princípios nais vai a contrapelo da intuição. Com isso, quero dizer que não é imediatamente evidente. Por
suficientemente gerais para comportar uma variedade de métodos na teologia, embora específi­ que as mesmas doutrinas não podem ser simplesmente repetidas? Por que razão se torna neces­
cos o bastante para proporcionar padrões que possam ser diretivos na tarefa concreta da teologia. sário que seu significado seja reinterpretado? A resposta a essas questões é igualmente direta: a
Uma vez mais, proceder-se-á mediante duas etapas. O primeiro desses capítulos ocupar-se-á da razão é que a repetição das doutrinas passadas em novas situações já interpreta e modifica seu
estrutura da interpretação, ao passo que o segundo abordará mais especificamente, embora ainda significado. Todavia, o reconhecimento desse princípio é uma função da consciência histórica e,
de maneira geral, como essa estrutura é dinamicamente acionada no método da teologia. como tal, deve ser mediado ou explicado. O que se segue, portanto, é tão-somente uma série de
O presente capítulo é um ensaio de hermenêutica, a disciplina que se ocupa dos princí­ considerações que extraem de uma gama de pontos de vista as alterações semânticas inerentes e
pios de interpretação e cuja literatura é extensa. As complexidades dessa disciplina, no entanto, necessárias que a própria história impõe aos dados da tradição.
foram drasticamente reduzidas aqui por um único arcabouço e tópico global. O arcabouço con­ Um primeiro campo de consideração encontra-se nos fundamentos antropológicos da ne­
siste na tensão entre a consciência histórica, de um lado, e o fato cristão da revelação dada em um cessidade de interpretação. A necessidade de reinterpretação contínua decorre da maneira como a
ponto do tempo na história, de outro. A consciência histórica implica a necessidade de desenvol­ existência humana está vinculada ao mundo, ao mundo concreto, físico e histórico, para a totalida­
vimento e de mudança. Uma revelação na história envolve algo especificamente dado que pode de de seu conhecimento. E essa contextualidade de todo conhecimento humano que funda a
perder-se, mas deve ser preservado intacto. A problemática subjacente à interpretação cristã, historicidade de toda expressão lingüística e de toda construção de sentido que, por sua vez, dá
portanto, deve ser enunciada claramente sob a forma de uma indagação: como uma interpretação surgimento à consciência histórica. Os símbolos sagrados, os textos tradicionais que contêm suas
contínua da revelação original pode preservar essa mesma revelação original? Para formulá-la em idéias e valores mais centrais e o próprio núcleo da índole específica da comunidade estão sempre
termos ainda mais incisivos: como a teologia, ao fazer diferentes afirmações, diz a mesma coisa sendo recebidos em contextos e situações sempre novos. Isso inevitavelmente implica que um
que se acha inscrita na revelação original? Dentro desse marco restrito, então, tentaremos estabe­ novo significado está sendo sempre extraído dos símbolos do passado e a eles adicionado pelo fato
lecer princípios fundamentais concernentes, em primeiro lugar, à necessidade de interpretação; mesmo de sua recepção e adequação a novas condições. Nosso passado é continuamente modifica­
em segundo, à possibilidade de interpretação; em terceiro, à estrutura da interpretação; e, em do por novas descobertas, reformas, renascimentos e experiências, por uma série de sucessivos
quarto, ao propósito da interpretação. Com base nesses quatro princípios, deveremos ser capazes “agoras”, de modo que “nosso passado jamais pára de alterar seu significado”.2
de concluir enumerando três critérios metodológicos para a disciplina da teologia.
O movimento da história, portanto, acarreta modificações de sentido que são, estritamente
falando, necessárias. Daí decorre a necessidade do pluralismo no âmbito de uma comunidade am­
pla. Esse pluralismo de interpretações deriva de diferenças da experiência histórica no interior da
A NECESSidAdE dA INTERPRETAÇÃO comunidade, e caracteriza a comunidade em sua evolução temporal, tanto quanto sua existência
em qualquer época dada, à medida que subsiste em diferentes culturas.3 Pelo fato de a experiência
O cristianismo é uma religião de tradição. E moldado pelo conjunto de símbolos que cons­
ser uma função da situacionalidade histórica, as diferenças da experiência contextuai revelam que
tituem sua fundação e constituição. Esses símbolos são interpretados para a comunidade em certo
o significado das afirmações básicas da fé cristã inevitavelmente se altera; a mesma afirmação em
número de doutrinas clássicas formuladas em seu período patrístico, relativamente antigo, e em
períodos subseqüentes. Tais símbolos fundacionais, no entanto, são necessariamente reinterpretados. um contexto diferente não significará a mesma coisa e poderá fazer pouco sentido. Um exemplo
Não se trata de um imperativo moral, e sim de uma necessidade histórica; a comunidade não pode comumente citado a respeito disso, em nossa época, é a doutrina da Trindade, classicamente ex­
deixar de reinterpretar mesmo seus símbolos ou doutrinas mais fundamentais e de natureza auto- pressa na terminologia das três pessoas em um único Deus. Para a cultura ocidental contemporâ­
identificadora. A razão disso é que a experiência hoje, e em qualquer época dada após a geração nea, essa doutrina clássica quase inevitavelmente transmite uma compreensão de três pessoas autô­
desses símbolos, é diferente da experiência original que lhes deu surgimento. nomas, por vezes formando uma comunidade. A doutrina clássica, portanto, transmite a muitos um
triteísmo simplesmente desprovido de sentido para suas vidas. A mudança de significado também
implica que a fórmula clássica tornou-se, então, efetiva e querigmaticamente herética.
do início do século XX, respectivamente, como radicalmente liberais. A meu ver, esse julgamento é
suspeito. Como generalização, precisa ser testado em sua aplicação a essa ou àquela teologia ou teólo­
go e as premissas do julgamento têm de ser examinadas. O problema do pluralismo afeta até a carac­ 2 R ic o e u r, Paul. The Symbolism of Evil. Boston, Beacon Press, 1969. p. 22.
terização do método na teologia; como todo lugar é sempre à esquerda ou à direita de algum outro 3 Ver: S ykes , Stephen. The Identity of Christianity: Theologians and the Essence of Christianity from
lugar, é difícil definir um centro. Schleiermacher to Barth. London, SPCK, 1984. pp. 11-34.

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D in â m ic a d a t eo l o c ia A ESTRUTURA DA INTERPRETAÇÃO

A natureza histórica da existência humana, portanto, acarreta a necessidade de A problemática suscitada por Bultmann pode ser formulada por meio de uma questão. Supo­
reinterpretação; não se pode deixar de interpretar, e a repetição da linguagem tradicional é por si nhamos a existência de pessoas, ou talvez mesmo de um amplo gmpo constituinte de uma subcultura,
só reinterpretativa. Na dicussão a respeito da Escritura, fizemos observar que o fundamentalismo para quem se afigure inadmissível que Deus intervenha na história de forma abertamente miraculosa,
implica uma posição teológica sobre como Deus se faz presente à comunidade por intermédio ou seja, transgredindo os processos normais da natureza e os eventos humanos. Essas pessoas não
dos símbolos e doutrinas escriturísticos, posição que parece indefensável hoje em dia. Vemos podem aceitar uma concepção ou nascimento virginal, não podem admitir os milagres naturais, a
aqui que o fundamentalismo, que se nega a reinterpretar os símbolos e as doutrinas da tradição, ressurreição dos mortos ou o retomo de corpos ressuscitados à vida. Em outras palavras, tais pessoas
está efetivamente reinterpretando-os por sua simples repetição, muito embora possa não ter não podem aceitar, denotativa ou literalmente, as diversas narrativas de eventos miraculosos que
consciência dessa situação. A razão disso é simplesmente que a experiência humana histórica muda proliferam no Novo Testamento. A razão é que os fatos reportados nessas narrativas estão muito além
e as diferenças engendram significados diferentes daquele que originalmente se pretendiam. da própria experiência para que possam contraditar positivamente a concepção que tais indivíduos
Uma segunda esfera de consideração sobre a necessidade de reinterpretação das doutri­ têm da evolução da natureza e da história. Considerando-se essa incapacidade de aceitação, podem
nas do passado pode ser sintetizada sob o princípio da analogia para compreender o passado ou ánda esses indivíduos ser cristãos autênticos e íntegros? Na medida em que tal mentalidade é, como
diz Bultmann, característica de uma cultura modema, não parece correto excluir, com base nesse
outras culturas históricas. O princípio estatui que de fato não se pode afirmar como verdade, fato, uma cultura como essa da autêntica fé cristã. Sem que haja necessidade de defender que uma
nem realmente entender, os dados do passado, a menos que comportem alguma analogia com o apropriação dessas precisa ser alçada a um status de normatividade para outras culturas, pode-se
que é experienciado como significativo e verdadeiro no contexto do próprio conhecimento. Em perceber, entretanto, como toda cultura tem de interpretar o cristianismo em termos que de alguma
outras palavras, esse princípio postula certa consistência e homogeneidade da experiência huma­ forma não simplesmente contradigam premissas básicas como essas. Pois, nesse caso, tais premissas
na ao longo da história, de sorte que dados e significados que não se encaixem perfeitamente na são tomadas como objeto de conhecimento deste mundo, com fulcro na ciência. Por conseguinte, a
experiência atual não possuem de fato base alguma para ser compreendidos ou afirmados. Esse proposta de Bultmann é simplesmente revelar, em termos específicos, a perspectiva segundo a qual as
princípio pode e tem sido utilizado de maneira radicalmente cética, com base na epistemologia expressões religiosas são símbolos que medeiam um encontro com a transcendência, a qual deve ser,
de um empirismo ou racionalismo um tanto quanto estreito. E preciso questionar as premissas ela própria, interpretada no contexto experiencial daqueles que a recebem.
sobre as quais se baseia a analogia. Apesar disso, está ao mesmo tempo efetivamente sempre
atuante em toda forma de investigação crítica. Faz-se necessária alguma forma de experiência Terceiro, a necessidade de constante reinterpretação dos símbolos cristãos pode ser per­
análoga a fim de situar o significado. Esse princípio, portanto, tem a ver com a recepção dos cebida a partir da própria natureza dos documentos fundacionais, quer se trate da Escritura, quer
símbolos cristãos e com a necessidade de interpretá-los. da doutrina universal. Os documentos fundacionais pretendem-se abertos ao futuro. Já vimos a
analogia entre o Novo Testamento e a constituição jurídica de uma sociedade. O cânon do Novo
Um dos usos mais bem conhecidos do princípio da analogia na teologia do século XX é Testamento foi reunido não só para funcionar como a fundação da Igreja no período primitivo,
representado pelo método de interpretação de Rudolf Bultmann, por ele denominado mas para ser sua constituição, à medida que evolui no decorrer da história. Conseqüentemente,
“demitologização”. Um mito, segundo Bultmann, consiste em uma representação de Deus, da a própria natureza dos símbolos que pretendem ter relevância universal requer que se abram às
transcendência e do outro mundo em termos próprios deste mundo.4 E verdade que o termo gerações vindouras nas diversas culturas e situações. A capacidade de desempenhar a função que
"mito” tende a revestir-se de conotações pejorativas em Bultmann que não precisaria assumir. Na lhes é atribuída necessita que sejam interpretados a fim de prover significado em resposta a novas
medida em que todo discurso acerca de Deus é extraído deste mundo e é simbólico, poder-se-ia e diferentes situações. Por outros termos, os símbolos fundacionais do cristianismo são intrinse­
falar de “remitologização”. Todavia, em que pesem as diversas críticas de que foi alvo o projeto camente concebidos para ser reinterpretados.
bultmanniano, ainda é verdade que, em muitos símbolos bíblicos, mito e história parecem con­
fundir-se. Por via de conseqüência, o cerne do simbolismo bíblico parece ser obscurecido por Observando-se prospectivamente a partir da composição dos símbolos escriturísticos ou
antigas concepções ou formas de expressão, cujo significado só pode ser apreendido por meio de doutrinários fundantes, pode-se descrever como essa interpretação efetivamente ocorre. Adqui­
uma interpretação das formas culturais em termos existenciais e históricos contemporâneos. rida a forma escrita, um símbolo torna-se independente da intenção original de seu autor, tanto
quanto do significado que foi recebido por seus primeiros destinatários. Quando uma idéia é
congelada, por assim dizer, em um símbolo textual, adquire vida autônoma por conta própria.5
Rudolf. New Testament and Mythology. Kerygma and Myth (ed.: H. W Bartsch; trad.:
4 B u ltm a n n ,
Reginald H. Fuller). London, SPCK, 1953. p. 10. A definição hultmanniana de mito inclui, implicita­
mente, a idéia de que os “termos deste mundo” são concebidos de maneira objetiva, literal e não Paul. Interpretation Theory : Discourse and the Surplus of Meaning. Fort Worth, TX, Texas
5 R ic o e u r ,
simbólica. Christian University Press, 1976. pp. 23-37.

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D in â m ic a d a t é o io c ia A ESTRUTURA DA INTERPRETAÇÃO

Passa a ser interpretada em diferentes contextos e é acolhida por diferentes públicos, às voltas Quando os símbolos cristãos tornam-se opressivos e começam a contradizer a própria mensagem
com problemas e questões bem diversos daqueles aos quais originalmente se aplicava. Frases, cristã, a única maneira de solucionar o problema é pela via da crítica e da reinterpretação.
idéias e proposições assumem nova relevância, diferente daquela que o autor tinha em mente Em suma, portanto, a reinterpretação é uma necessidade histórica, e a própria repetição
quando as concebeu e formulou. Uma vez mais, portanto, a própria recepção e repetição de um é reinterpretação. Os símbolos tradicionais necessariamente modificam seus significados à pro­
símbolo que possuía uma intenção específica, relativamente ao contexto em que foi gerado, porção que a comunidade avança ao longo da história. Essa necessidade histórica impõe a exigên­
suscita necessariamente novas interpretações em diferentes comunidades e até mesmo em novas cia moral de que a tarefa de reinterpretação seja apropriada de maneira consciente, reflexiva e
situações. crítica. Para o teólogo cristão, entretanto, isso suscita a questão da possibilidade de uma nova
Essa mesma lógica também pode ser exemplificada a partir do ponto de vista da pessoa interpretação que seja a um só tempo diferente da revelação original e, no entanto, fiel a ela.
ou da comunidade hoje, que, retrospectivamente falando, por assim dizer, é confrontada com
símbolos bíblicos ou eclesiais. O que se busca nos símbolos da tradição? A resposta mais profun­
da a essa questão é que certamente não se trata daquilo que se buscava no passado. Pelo contrá­
rio, a comunidade procura necessariamente no símbolo uma resposta às próprias questões que A p o ssib ilid A d E dA ín te rp re ta ç Ã o
seja significativa para sua própria situação no mundo. O que explica o retorno à escritura e à
tradição da doutrina não é a curiosidade histórica — “Que pensavam naquela época” — , mas o Admitindo-se que a interpretação da tradição constitui uma necessidade, será ela possí­
sentido que têm para a atualidade — "Que verdade nos reservam aqui e agora?”. Por conseguinte, vel? Pode a contínua reinterpretação ser fiel ao significado da revelação original? O problema
uma vez mais, o distanciamento histórico impõe a necessidade de apreender o significado pela surge por causa da natureza histórica da revelação cristã. Dada no tempo e codificada em formu­
via da reinterpretação. lações clássicas que também são historicamente específicas, essa revelação pode corromper-se e
até mesmo perder-se no processo histórico. Se o cristianismo não é concebido como um movi­
Por último, a hermenêutica da suspeita provê um quarto conjunto de considerações que mento na história que é completamente aberto e sujeito a toda possível concepção nova, deve-se
requerem constante reinterpretação da doutrina cristã. De certa forma, os princípios aqui expos­ explicar como novas e diferentes interpretações do cristianismo podem também preservar o
tos entram em rota de colisão com o princípio da analogia e devem ser mantidos em tensão com significado intrínseco da revelação original.
ele. O foco de atenção aqui incide na função social dos símbolos religosos. Vimos como as doutri­
nas moldam e expressam a consciência e o comportamento coletivos da comunidade religiosa. Atese aqui proposta é que a interpretação é possível, que se pode reinterpretar as doutri­
Desde o Iluminismo, uma série de pensadores importantes suspeita, com base em fundamentos nas cristãs e manter fidelidade a seu significado original e intrínseco. Isso porque, em primeiro
antropológicos, que a religião em geral é alienante. Criticam o cristianismo em particular por lugar, as doutrinas cristãs do passado são expressões formuladas pelos seres humanos, e portanto
alhear as pessoas da vida deste mundo, levando-as a projetar sua verdadeira morada em um outro podem ser compreendidas como tais, ou seja, como asserções humanas. Em segundo lugar, essas
mundo; acusam-no de manietar a liberdade humana, postulando uma dependência radical em afirmações cristãs desvelam realidades que podem ser e são experienciadas hoje. Todavia, em
relação a Deus; censuram-no por fomentar os valores da passividade, da obediência e da humil­ terceiro lugar, tais realidades são transcendentes e simbolicamente mediadas. Por conseguinte, a
dade, estiolando assim a responsabilidade humana. Já outros pensadores, baseados em fatores estrutura dialética dos símbolos e da comunicação simbólica permite explicar a identidade e a
histórico-sociais, mostram que o cristianismo tende a alinhar-se às forças da lei, à ordem e às diferença em novas interpretações quando comparadas com os símbolos originais. Mais uma vez,
classes dominantes da sociedade, em desfavor dos pobres e dos segmentos oprimidos da popula­ essa resposta afigura-se a contrapelo da intuição. Como pode o que é diferente ser o mesmo? Via
ção. Nessas análises, o cristianismo é retratado como radicalmente desumanizador, por tolher a de regra, a reinterpretação dos símbolos cristãos clássicos é alvo de profunda resistência. Na
criatividade do espírito humano ou por dispensar efetivo beneplácito sacral à opressão e às estru­ seqüência, portanto, explicitarei essa resposta inicial ao problema nas três etapas que acabamos
turas iníquas. de esboçar.
Um número cada vez maior de cristãos hoje percebe algum mérito nessas críticas, não em Primeiro, a forma mais radical do problema relativo à possibilidade da reinterpretação
princípio, mas de fato. Já observamos que, como qualquer outra estrutura social, os símbolos que em linha de continuidade com o passado manifesta-se como a questão de saber se, afinal, é
moldam a consciência cristã podem tornar-se socialmente corrompidos. Não faltam exemplos possível comunicar-se com o passado. Por exemplo, nossa experiência cultural atual da realidade
históricos de símbolos cristãos que emprestam seu peso social à opressão e às estruturas da desi­ será tão radicalmente diferente da de outras culturas passadas que não possa haver comunicação
gualdade, mesmo em nossa época. Em algumas esferas do pensamento e da conduta social, como alguma entre elas? Mesmo no mundo de hoje, não raro temos ocasião de experienciar o enorme
as relações entre os sexos e o controle da natalidade, os exemplos são gritantes e escandalosos. hiato que separa a experiência e a compreensão ocidentais das de outras culturas. O senso da

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A ESTRUTURA DA INTERPRETAÇÃO
D in â m ic a d a t eo l o c ia

historicidade e da relatividade histórica pode ser tão onicompreensivo que não permite nenhum tarefa da interpretação teológica tal experiência, pelo menos sob a forma rudimentar de um
reconhecimento das afinidades na forma como duas culturas tão díspares experienciam a realida- questionamento. Isso ocorre porque só a interpretação religiosa dos símbolos religiosos será uma
de. Nessa situação cultural, antropólogos e historiadores podem mostrar-se muito relutantes em interpretação adequada. Dessa forma, pelo princípio da analogia, a possibilidade de interpretar
admitir até a possibilidade de comunicação entre culturas, para não falar de qualquer questão de acuradamente os símbolos religiosos pressupõe que o intérprete chegue à tarefa da interpretação
homologia ou de identidade de experiência. com alguma experiência e compreensão prévia daquilo que está sendo comunicado pelos símbo­
los. Não se poderia apreciá-los ou entendê-los como símbolos religiosos sem alguma experiência
Em face dessas experiências, pode-se afirmar ainda a possibilidade de comunicação hu­ ou interesse pela transcendência. Entretanto, com essa experiência já se tem uma medida da
mana em termos universais, quaisquer que sejam as diferenças culturais. É possível porque, de compreensão daquilo que os símbolos medeiam. Em outras palavras, aquilo que é mediado pelos
fato, ocorre, ainda que não com muita freqüência. E ocorre porque, de alguma maneira funda­ símbolos do passado pode ser e é encontrado hoje no mundo contemporâneo.7
mental, todos os seres humanos compartilham uma humanidade comum. Por trás da interco­
municação humana, deve-se postular uma unidade do gênero humano. Em algum nível fundacional, Esse princípio geral aplica-se a jortiori no caso do intérprete ou teólogo cristão. Nenhum
pode-se dizer que os seres humanos compartilham uma natureza humana comum. Se a idéia de teólogo cristão chega aos símbolos da tradição sem alguma experiência e compreensão prévias do
uma natureza humana afigura-se como um conceito por demais estático, então se pode falar sentido e do conteúdo transcendentes dos símbolos que interpreta. Naturalmente, isso deriva
de constantes antropológicas que tipificam a existência humana em qualquer ponto da história. sobretudo da filiação à tradição.8 Mas decorre igualmente do fato de que o teólogo é um ser
Muito embora só possam ser formuladas em termos gerais, essas características comuns são, no humano que está aberto à transcendência. A própria experiência que o teólogo tem da transcen­
entanto, tão essenciais à existência humana como tal, que servem como elos transcendentais da dência é igualmente condicionada e determinada por seu ser no mundo, pela situação histórica
unidade e da comunicação. Por exemplo, todos os seres humanos desejam conhecer e todos geral e pelo contexto imediato da vida. Por conseguinte, a interpretação não implica decidir o
pensam, compreendem e fazem julgamentos; todos os seres humanos são contingentes e devem significado dos símbolos passados a partir de fora do funcionamento dos próprios símbolos. A
facear a morte; todos se encontram na história e devem encarar o futuro e a questão do destino interpretação desenrola-se a partir de dentro do contexto de uma experiência de transcendência
último; todos os seres humanos experienciam o sofrimento, que pode colocar em xeque o senti­ que caracteriza a consciência do intérprete. O teólogo cristão tem uma compreensão prévia, uma
do da própria existência; em virtude da liberdade radical que constitui um espírito humano crença elementar, pelo menos sob a forma de um questionamento, e um compromisso, pelo
reflexivo, todos estão abertos à possível experiência da transcendência; todos são religiosos, na menos sob a forma de uma preocupação, com aquilo para o qual aponta o símbolo, muito embora
acepção radical de ter de decidir o que é de importância e preocupação última. essa resposta também seja determinada pela própria situação cultural do teólogo. Em síntese, o
intérprete experiencia hoje, agora, a realidade que o símbolo medeia.
Esse reconhecimento dos aspectos comuns ou transcendentais da existência humana é
essencial a toda teoria hermenêutica. Tais aspectos definem o fundamento de possibilidade da Terceiro, resta ainda por explicar a identidade e a continuidade entre a interpretação
comunicação humana e, portanto, a possibilidade de compreender os símbolos de uma outra teológica presente e os símbolos e doutrinas tradicionais. Visto ser bem claro que a teologia atual
cultura e até nosso próprio passado remoto. A antropologia transcendental é a ponte, por assim difere da do passado, e necessariamente tem de diferir, é impossível postular a pura identidade.
dizer, entre culturas e entre o presente e o passado, e toda interpretação através dele.6 No capí­ A identidade de significado só pode ser uma identidade na diferença. Essa idéia de identidade e
tulo seguinte, que versa a respeito do método teológico, verificaremos de que maneira esses diferença requer que façamos distinções. Um procedimento comum de estabelecer uma distin­
aspectos transcendentais da natureza humana podem seT considerados como uma antropologia ção é em termos de forma e conteúdo, em que forma é a forma finita da expressão humana, ao
que expande o significado dos símbolos passados e provê também um critério para aferir a ade­ passo que conteúdo é aquilo que é transcendente. O mesmo conteúdo pode ser expresso de
quação de seu constructo. diferentes formas, estilos de apresentação, linguagens ou gêneros. Pode-se comunicar o mesmo
objeto ou assunto de diferentes modos. Conquanto essa distinção não seja completa ou só o seja
Segundo, os símbolos religiosos do passado expressam e medeiam a transcendência. A em um nível abstrato formal, pois o conteúdo é sempre carreado e influenciado pela forma, é
natureza e a função específicas de um símbolo religioso consistem na capacidade de desvelar esse possível estabelecer uma distinção. Ademais, é útil no esclarecimento do que se passa em uma
nível de experiência. O intérprete desses símbolos pode experienciar a transcendência. Todos os
seres humanos estão abertos à questão religiosa. Todavia, além disso, o intérprete deve aportar à
7 Ibid., pp. 72-74.
8 G a d a m er , Hans-Georg. Truth andMethod. New York, Seabury Press, 1975. p. 262. [Ed. bras.: Verda-
6 Bultm ann, Rudolf. The Problem of Hermeneutics. New Testament and Mythology and Other Basic de e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3. ed. Petrópolis, Vozes, 199 ].
Writings (ed. e trad.: Schubert M. Ogden). Philadelphia, Fortress Press, 1984. pp. 75-76.

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A ESTRUTURA DA INTERPRETAÇÃO

interpretação fiel. A diferença encontra-se na forma conceituai de uma nova interpretação, mas Em suma, a distinção entre o símbolo ou doutrina e a experiência que é mediada e
o conteúdo, aquilo que é expresso, é o mesmo.9 Simultaneamente, no entanto, essa distinção comunicada por ele é uma exigência absoluta para a teologia cristã. Sem ela, as pessoas sempre se
comporta problemas inerentes, porque tende a lidar com o conteúdo dos símbolos cristãos, ou mostrarão descrentes da iniciativa teológica. Da mesma forma, sem ela não pode haver nenhuma
seja, seu significado transcendente, em termos objetivos. Na realidade, porém, não se pode isolar teologia, nenhuma reinterpretação, e o cristianismo estará condenado, paradoxalmente, quer a
e distinguir o conteúdo dos símbolos religiosos de sua forma de expressão em termos objetivos. uma ininteligibilidade associada ao arcaísmo, quer a uma mudança indiscriminada. Entretanto,
A chave para a questão da identidade e da diferença na reinterpretação dos símbolos quando essa compreensão da possibilidade de interpretação fidedigna se conjuga com o reconhe­
tradicionais encontra-se na estrutura dialética dos próprios símbolos. Essa estrutura dialética há cimento da necessidade de interpretação, evidencia-se que os símbolos tradicionais devem ser
que ser compreendida em termos de um dinâmico processo comunicacional. O símbolo não é a reinterpretados a fim de preservar a identidade da verdade da revelação cristã. O propósito da
coisa simbolizada, pois tal coisa é transcendente e díspar. Não obstante, o símbolo torna presente interpretação não é tão-somente reproduzir ou repetir símbolos, fórmulas e doutrinas tradicio­
e medeia o transcendente que se encontra na experiência religiosa. O elemento de identidade nais, e sim reexpressar e comunicar aquilo que assinalam. A fidelidade da reinterpretação, por­
não pode ser reduzido a qualquer fórmula objetiva. Seu conteúdo, afinal, deve residir na experiência tanto, deve ser julgada em termos da experiência do transcendente que os símbolos medeiam e
existencial, um encontro que transcende toda fórmula simbólico-lingüística, e portanto está dis­ não exclusivamente em termos dos próprios símbolos tradicionais, embora não sem referência a
ponível para expressar-se em uma pluralidade de fórmulas simbólicas. Por conseguinte, os sím­ estes, já que constituem os dados para a reinterpretação. Examinemos mais detidamente agora a
bolos tradicionais estão abertos à crítica, à reinterpretação e a diferentes explicações em que a estrutura dessa reinterpretação.
nova simbolização medeia uma experiência do mesmo encontro com uma presença divina trans­
cendente, pessoal, amorosa e magnânima.10
Essa distinção que permite a reinterpretação pode ser ilustrada por exemplos da cristologia A ESTRUTURA dA ÍNTERpRETAÇÃO
neotestamentária. Será Jesus o profeta definitivo, o operador de milagre, o ungido por Deus
como Espírito, a personificação da sabedoria, o messias, o Filho do Homem ou o novo Moisés? De certa forma, a diferença e a identidade da interpretação atinente à tradição passada
Todos são completamente diferentes. Entretanto, todos expressam, de diferentes formas e por­ representam sua estrutura. Em virtude da historicidade, o significado e a compreensão dos sím­
tanto medeiam à e na experiência cristã, que Jesus é ele mesmo o mediador da salvação de Deus. bolos e doutrinas cristãos necessariamente modificam-se e tornam-se diferentes. Apesar disso,
E caso se diga hoje que Jesus é libertador, dando-se a entender com tal designativo que Jesus é o como a revelação original é histórica e deve ser preservada, a interpretação procura apreender,
mediador da salvação de Deus, expressa-se fidedignamente a mesma experiência dos redatores essencialmente, o mesmo significado e verdade transcendentes, a despeito da nova concepção
do Novo Testamento. dos próprios símbolos. Na discussão que se segue, essa estrutura será mais bem esquematizada
em termos de elementos ou dimensões envolvidos no processo de interpretação. A mesma estru­
tura será descrita mais dinamicamente no capítulo seguinte, que discorrerá sobre o método na
teologia. A fim de proporcionar um contexto para a enumeração das dimensões do processo
Paul. Systematic Theology, I. Chicago, University of Chicago Press, 1967. p. 64. [Ed. bras.:
9 T il l ic h ,
hermenêutico, fornecerei primeiro um exemplo de interpretação e, em seguida, um modelo
Teologia sistemática, São Leopoldo, Sinodal, 2000]. teorético para todo o processo.
10 Mas como saber se se trata da mesma experiência, se é expressa de maneira diferente? Isso não
pressupõe o que não se pode defender hoje, ou seja, que a experiência de alguma forma pode ser
separada da linguagem que medeia? Absolutamente não. Não se pode separar o significado da experiên­ Um E X E M p lo
cia do símbolo que a expressa. A experiência depende da forma histórica ou lingüística do símbolo
que a medeia. Tampouco se pode sustentar que essa identidade existe sem diferença. O encontro com Começamos comum exemplo de interpretação extraído da psicologia que deve ser razoa­
a transcendência só pode ser considerado idêntico no âmbito da diferença. Pode-se, entretanto, dis­
tinguir entre símbolos finitos e a transcendência que é mediada por eles. A própria referência à velmente reconhecível e claro, além de poder servir como analogia para a discussão da interpre­
transcendência implica essa distinção. Naturalmente, continuidade e identidade sempre estarão aber­ tação teológica. Um jovem de 18 anos recebeu indicação para consultar-se com um psicólogo
tas à discussão. Em última análise, porém, a identidade ou a fidelidade aos símbolos passados não clínico. O histórico e a sintomatologia do caso foram bem explicitados: o rapaz odiava o próprio
pode ser avaliada simplesmente pela comparação de um símbolo com um outro símbolo. Deve-se
achar, afinal, no bojo da experiência de encontro com um objeto transcendente. Também há outros pai; dissera-o claramente e fora capaz de aduzir as razões de seu sentimento. A aversão manifes-
indicadores além da linguagem para aferir a fidelidade de um tal encontro, como a concepção de outra tara-se seis ou sete anos antes, e fora atestada por seu comportamento em geral, pelas conversas
realidade, padrões de comportamento, adoração, e assim por diante. com os amigos mais próximos, pelo diário que mantinha e pelos relacionamentos intrafamiliares.

2 0 0 20)
A ESTRUTURA da interp retação
D in â m ic a d a t e o id c ia

O psicólogo trabalhou com o jovem durante seis meses, adotando o seguinte padrão: formulação blemática ou tema que centraliza a interação. Em terceiro lugar, o diálogo consiste em um toma-
de questões relativas ao conjunto da sintomatologia; revisão e análise crítica do comportamento lá-dá-cá, um vaivém, em que os interlocutores se inteiram a respeito do objeto da conversação.
do paciente que conduziu aos seis anos de sentimentos mais intensos e nesse período subsistiu; Em quarto lugar, o cerne do diálogo é a convergência em torno de uma melhor compreensão da
sabia que existia um bloqueio interior que impedia todo tipo de reação, de interpretação, de verdade do tema que se discute. Por conseguinte, em quinto lugar, o resultado do processo
desejo e de emoção. Por fim, de posse de todos os dados e informações, chegou à conclusão de dialógico é uma nova e mais adequada compreensão da realidade em pauta. O breve desenvolvi­
que o rapaz não odiava o pai; pelo contrário, na realidade o amava apaixonadamente. Em uma mento de cada um desses pontos que apresentamos na seqüência deve ser entendido dentro
sessão de duas horas, o psicólogo expôs suas conclusões ao paciente. As sessões prosseguiram, e desse modelo geral de diálogo. Podem ser exemplificados analogamente quer na interpretação
ao final de três semanas o rapaz informou que queria interromper a terapia. Havia mudado. Com psicológica, quer na teológica.
efeito, odiara o pai durante todos aqueles anos, mas agora a aversão que sentira havia-se dissipado
repentinamente. Estava em condições agora de conviver bem com o pai, e todos os sintomas de As diMENSÕES dA ÍINTERpRETAÇÃO
então pareciam ter desaparecido.
O primeiro elemento da interpretação concerne ao tema. E absolutamente crucial para que
Esse caso é um exemplo do processo hermenêutico, embora alguns ajustes tenham de ser se tenha idéia exata daquilo de que se trata. Do ponto de vista do psicólogo, pode parecer que o
feitos ao compará-lo com a interpretação dos símbolos religiosos do passado. Por si só, esse tema a ser interpretado são as palavras e as atitudes do jovem. E verdade que, em uma situação
exemplo suscita algumas questões interessantes. Presumamos que seja possível distinguir ódio de dialógica, os interlocutores devem prestar a máxima atenção, a fim de entender o que se está
amor, o que por vezes se revela difícil. Teria o rapaz efetivamente odiado ou amado o próprio pai? dizendo. Todavia, a intenção maior desse limitado objetivo é entender o tema em torno do qual gira
Os sintomas e os símbolos estão dados, mas podem ser interpretados de diferentes maneiras. a conversação. Nesse caso, o tema consiste na síndrome mais profunda, e as palavras e atos do rapaz
Qual será a verdade do caso? O historiador ou o biógrafo aceitará o testemunho direto dos dados? são símbolos e dados que franqueiam o acesso à realidade. Dá-se o mesmo com a interpretação dos
Ou, estudando-se a análise do psicólogo, deve sua interpretação ser aceita? Dever-se-ia dizer que símbolos teológicos do passado. Muito embora se fale da interpretação de símbolos do passado, a
não faz nenhuma diferença, pois só o testemunho, só o que foi dito, é importante? Ou não se verdadeira intenção é interpretar a realidade para a qual apontam esses símbolos. O tema da inter­
pretenderá saber o que de fato se passava abaixo da superfície? Esse caso ilustra que a interpreta­ pretação teológica não são os símbolos do passado; esses símbolos são os depoentes, os testemu­
ção é uma questão de elaboração dos dados. Ilustra também que uma interpretação que aparen­ nhos simbólicos para interpretar o objeto da interpretação que é a própria realidade.12
temente contradiz o sentido histórico manifesto dos dados pode ser-lhe mais adequada.
Seria difícil enfatizar mais a importância crítica dessa percepção. De certo modo, o erro
do fundamentalismo pode ser situado precisamente nesse ponto. A razão é que o fundamentalismo
Um mcxJ e Io diAlóqico dE i interpretação ou o confessionalismo acredita encontrar-se a verdade nos próprios símbolos, em fragmentos de
A narrativa que acabamos de apresentar é um exemplo do processo de interpretação. papel, em textos, em proposições reveladas, em crenças mascaradas de fé. Os objetos de inter­
Desenrolou-se mediante os procedimentos de consulta, conversação e diálogo. À luz desse exemplo, pretação são os próprios símbolos. Mas a verdade é uma categoria existencial; a verdade é uma
podemos descrever a estrutura do processo de interpretação como dialógica; o processo desen­ qualidade de como a subjetividade humana se relaciona com a realidade, ou seja, de uma maneira
volve-se no diálogo; sua estrutura é dialógica, no sentido de que é mediado por um toma-lá-dá-cá, que corresponda ao modo como a realidade é. Os símbolos do passado dão testemunho dessa
pelo vaivém da conversação.11 A analogia de uma conversação ou diálogo interpessoal fornece um realidade. O significado intrínseco dos símbolos passados atesta o modo como essa realidade
enquadramento ou contexto para a compreensão do próprio processo de interpretação; nele se deve ser concebida. O processo de interpretação implica ouvir o passado, no que diz respeito ao
revelam muitos dos mecanismos fundamentais que se encontram em ação. Antes de mais nada, objeto ao qual remetem tais símbolos, ou seja, o tema.
há o objeto da própria conversação. Em segundo lugar, esse objeto é determinado por uma pro-

12 G a d a m er , Truth
and Method, pp. 335-336, 341. Ver também Ricoeur, Interpretation Theory, pp. 19-
22, para sua distinção entre sentido ou significado e referência, ou seja, entre o que é dito e o que é
11 T racy ,David. The Analogical Imagination: Christian Theology and the Culture of Pluralism. New dito sobre. A linguagem é referencial; refere-se a um mundo extralingüístico exterior. “A linguagem
York, Crossroad, 1981. pp. 101-102; G a d a m er , Truth and Method, pp. 330-331. Nessa discussão não é um mundo auto-referencial” (p. 20). “É porque existe primeiramente algo por dizer, porque
sobre interpretação, enfocamos o diálogo entre o intérprete e os dados. No capítulo sobre o método temos uma experiência por trazer à linguagem, que, inversamente, a linguagem não se dirige apenas a
na teologia, veremos que deveria haver também um diálogo entre intérpretes e entre interpretações. significados ideais, mas se refere também ao que é” (p. 21).

205
202
D in â m ic a d a t eo l q c ia A ESTRUTURA DA INTERPRETAÇÃO

Em segundo lugar, a interpretação sempre se pauta por uma questão que tematiza o nando, em primeiro lugar, o sentido original dos símbolos a serem interpretados.19 Em outras
diálogo acerca do objeto.13 Dissemos que alguma forma de experiência participativa é precondição palavras, a interpretação não é livre interpretação, mas interpretação desses dados. Não se pode
necessária para compreender a própria espécie de temática que os símbolos religiosos medeiam. interpretar Nicéia sem saber o que disse Nicéia nem por que o disse no nível histórico manifesto.
No diálogo hermenêutico, essa previsão é direcionada por uma questão. Pode ser uma questão Se a interpretação deve ser fiel ao passado, os símbolos do passado devem ser entendidos primei­
decorrente do desconhecimento, mas nunca de um total desconhecimento, pois a própria ques­ ramente em seus próprios termos e contexto. O psicólogo deve estudar e atualizar os dados
tão revela haver consciência da temática. A questão pode emanar ainda de um amplo contexto de históricos desse jovem, porque esse é o caso que está tentando entender.
participação. Em qualquer caso, a questão deriva de alguma forma de negatividade, de algum O estudo histórico dos símbolos religiosos do passado deve ser crítico. A tentativa de
déficit de conhecimento, de alguma anomalia, de alguma incongruência.14 Conseqüentemente, a entender os símbolos religiosos em seu próprio contexto histórico deve ela própria ser um estudo
interpretação é sempre tematizada, e a temática, abordada a partir de uma certa direção. A inquiridor, reflexivo e analítico. O estudo do passado não é mera recepção passiva e cronológica
questão comanda a interpretação porque se espera que os dados concernentes à temática produ­ dos dados, mas deve ser ele próprio um esforço por entender o que se sucedeu na formação dos
zam uma resposta a uma questão específica.15 As questões formuladas pelo psicólogo não eram símbolos religiosos. Durante os meses de relato do histórico do caso do jovem, o psicólogo não
pedidos neutros de informação aleatória. E a interpretação teológica sempre refletirá questões assumiu uma posição meramente passiva; pelo contrário, esteve sempre atento às causas e efei­
decorrentes da situação vital histórica do intérprete. Mesmo quando não focadas, são operativas. tos, às razões e reações, aos motivos e interpretações.
Em terceiro lugar, o caráter dialógico da interpretação implica atenção ao testemunho do A crítica no estudo da história é cmcial para a interpretação. De certa forma, a crítica é o
outro. Poder-se-ia dizer que existe um contínuo questionamento recíproco no processo de interpre­ que possibilita a ocorrência da interpretação. Por um lado, a história crítica estabelece um
tação.16 No caso do psicólogo, o que o paciente efetivamente está dizendo compõe os próprios distanciamento entre o símbolo religioso do passado e o intérprete no presente. Quanto mais um
dados que precisam ser interpretados para que se compreenda a temática; no caso da teologia, símbolo do passado for compreendido em seu contexto prístino, mais distante afigurar-se-á do
isso implica transcender o eu e, por assim dizer, colocá-lo na situação do passado, a fim de intérprete. O intérprete pode ter-se familiarizado com a linguagem da tradição. Todavia, quando
apreciar o outro como outro.17
revelada em seu contexto histórico passado, a linguagem adquire uma qualidade mais remota de
Uma verdadeira interpretação dialógica dos símbolos religiosos do passado requer, por­ alteridade; toma-se, a um só tempo, mais bem compreendida e menos familiar, na medida em que
tanto, conhecimento histórico e exegético. Não se pode interpretar o conteúdo desses símbolos é situada em seu próprio contexto histórico. É um produto do passado e pode ser considerada mais
religiosos sem primeiro estudá-los historicamente. As doutrinas religiosas devem ser entendidas objetivamente. Por outro lado, a recuperação histórico-crítica acentua o aspecto simbólico dos
primeiramente em seu próprio contexto histórico, em sua formação, gênese e florescimento.18 símbolos religiosos do passado. O que na superfície pode assemelhar-se a explicações ou exposições
Essa é a função da história com relação à teologia, qualquer que seja a variedade de formas que tal históricas objetivas revela-se como representações simbólicas. Por exemplo, a narrativa da criação
estudo histórico da escritura ou da doutrina possa assumir. A exegese e a reconstituição histórica parece ingenuamente explicar de que maneira o mundo foi criado, bem como a razão da existência
integram a interpretação sistemática do significado desses símbolos para a atualidade, determi­ do pecado no mundo. O relato da concepção virginal ingenuamente parece explicar como Deus
veio a tomar-se o Pai de Jesus. A crítica pode afigurar-se destrutiva porque mina essa função explicativa
ingenuamente concebida dos símbolos religiosos. Entretanto, ao destruir essa função explicativa, a
crítica sublinha a natureza simbólica dos símbolos religiosos e, portanto, favorece mais a possibilida­
13 O papel da questão será mais bem desenvolvido no capítulo seguinte, que versa sobre o método, mas de e a necessidade de uma nova interpretação crítica.
algo precisa ser dito aqui a seu respeito, em virtude do papel fundamental que desempenha na estru­
tura do processo hermenêutico. No caso do intérprete psicólogo, esse distanciamento crítico, essa objetividade, bem como
14 G a da m er , Truth and Method, pp. 329-330.
o reconhecimento de que os sintomas não são explicações, mas símbolos, permite-lhe começar a
15 “Portanto, o sentido da questão é a direção na qual a resposta só pode ser dada se for significativa. A pensar em uma interpretação que possa ser diferente daquela inicialmente ligada aos dados. Na in­
questão situa o que é questionado em uma perspectiva particular. A emergência da questão revela, por
assim dizer, o ser do objeto. Dessa forma, o Logos que estabelece esse revelação já é uma resposta. Seu terpretação teológica dos símbolos religiosos, há um mecanismo semelhante em ação. A linguagem e
sentido encontra-se no sentido da questão” (ibid., p. 326). Ver também Bultmann, New Testament
and Mythology and Other Basic Writings, pp. 72-73.
16 G a da m er , Truth and Method, pp. 336-337.
17 Ibid., p. 270. 19 Ibid., p. 270. Ver David H. Kelsey, The Uses of Scripture in Recent Theology (Philadelphia, Fortress
18 Ibid., pp. 300-302. Press, 1975), pp. 197-201, para uma visão matizada de como a exegese integra a atividade teológica.

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D in â m ic a d a t eo lo g ia A ESTRUTURA DA INTERPRETAÇÃO

a lógica do passado perfilam-se diferentes da linguagem e da lógica do presente. Os símbolos reve­ pela interação. E o que é comunicado torna-se novamente compreendido a partir do interior do
lam-se símbolos que não explicam, mas expressam e medeiam uma experiência de transcendência. contexto de um maior alargamento da experiência, da consciência e do conhecimento para ensejar
A exemplo das parábolas, os símbolos pretendem desvelar uma realidade transcendente que, por um entendimento mais adequado da verdade da temática. A interpretação do psicólogo é infor­
ser transcendente, não pode ser reduzida à realidade histórica em termos de causa e efeito. O mada quer pelo histórico dos sintomas, quer por uma familiaridade crítico-moderna com as
símbolo não é o simbolizado; um símbolo medeia alguma outra coisa que com ele não se confunde. atividades do subconsciente. A situação é semelhante ao que ocorre na reinterpretação atual do
Entender um símbolo religioso como narrativa histórica é usurpar-lhe o valor simbólico e transcen­ testemunho dos símbolos religiosos do passado. Pela fusão dos horizontes da consciência, a com­
dente.20 O que é verdade em relação às narrativas simbólicas é igualmente verdadeiro no tocante às preensão reinterpretada do tema não abandona o passado, mas o projeta em uma interpretação
doutrinas arrazoadas. Podem assemelhar-se a explicações teológicas, mas na realidade são símbolos. que preserva a verdade afirmada em um marco restrito do passado dentro de um contexto da
Nicéia não é uma explicação da divindade de Jesus, mas um símbolo teológico que expressa e consciência contemporânea mais ampla e, no entanto, aberta.
medeia coletivamente a experiência e a crença nessa realidade transcendente. Quinto, o último elemento da interpretação é a própria interpretação, a reexpressão dos
Em suma, esse terceiro momento ou elemento no processo de interpretação é tão sutil dados transcendentes em novos termos simbólicos. Essa reinterpretação é, de um lado, um ato
quanto crucial. Os efeitos do estudo histórico-crítico são paradoxais. Por um lado, esse estudo teórico imaginativo e construtivo. De outro lado, também é um ato concreto e prático.
assegura fidelidade ao passado e, por outro, cria o distanciamento que possibilita nova interpre­ Paul Ricoeur sintetiza o processo de interpretação, como exercício teórico, mediante o
tação. E uma das etapas que garantem identidade, embora na mesma medida proporcione os aforismo segundo o qual os símbolos dão surgimento ao pensamento.22 A base da teologia cristã
fundamentos da novidade e da diferença na compreensão hodierna. são os símbolos de sua tradição pretérita. Esses símbolos são um dado; são aceitos como intrínse­
Quarto, o intérprete não pode senão interpretar a partir da perspectiva da experiência e da cos à própria experiência cristã. Comunicam no nível primário, informando nossa memória e
mundividência de sua própria situação. Isso significa que, no contexto do diálogo, os dados estão nossa experiência. Mas também dão surgimento ao pensamento, e em nossa cultura historica­
sempre sendo inseridos no horizonte da consciência do intérprete e de seu mundo.21 Esse fato é tão mente consciente esse só pode ser um pensamento crítico. Com a crítica, o caráter simbólico dos
crucial quanto evidente e inescapável; não podemos viver em um outro mundo que não o nosso. símbolos do passado é ressaltado; são recebidos agora não acriticamente, mas sim, em um nível
Isso, entretanto, quer dizer que a interpretação é uma tomada de posição no presente, no tocante mais reflexivo, como símbolos. 0 fato de darem origem ao pensamento significa também que
à matéria mediada pelos símbolos. A questão do significado e da verdade definitivos mediados estimulam mais a percepção interpretativa. Tornam-se criticamente reinterpretados de uma for­
pelos símbolos não pode ser determinada pelo testemunho passado; só pode ser interpretada e ma que combina experiência e conhecimento do mundo atual. As concepções críticas do mundo
julgada definitivamente agora e no contexto do horizonte da consciência contemporânea. que conformam o arcabouço da consciência intelectual, as categorias e a linguagem que definem
Essa fusão de horizontes é manifesta no caso da interpretação do psicólogo. Após a con­ a experiência hoje, tomam-se os novos veículos e símbolos de nova interpretação. Também ava­
sideração e a compreensão do testemunho do outro em sua alteridade específica, esses dados são liamos criticam ente nosso mundo contemporâneo à luz desses símbolos e, ao fazê-lo,
transpostos para o mundo de sua prática e conhecimento. Seu mundo experiencial é expandido reinterpretamos os próprios símbolos.
Todavia, esse ato imaginativo e criticamente reflexivo também é eminentemente prático.
Gadamer equipara a interpretação teológica ao ato de julgamento na interpretação da lei.23 Após
The Symbolism of Evil, p . 3 5 0 .
20 R ic o e u r , o estudo da história da gênese e do significado da lei, a interpretação do juiz relaciona-se com sua
21 Gadamer define a situação da consciência humana como “um ponto de vista que limita a possibilidade aplicabilidade. Mas essa aplicabilidade não é meramente conseqüencial ao significado integral,
de visão . O horizonte próprio de consciência "é o espectro de visão que inclui tudo quanto possa ser universal e abrangente da lei, que pode ser historicamente estabelecido pelo estudo do passado.
visto a partir de um ponto de observação específico’’. “Uma pessoa sem horizonte algum é aquela que Pelo contrário, o verdadeiro significado e valor de uma lei passada ainda válida reside em sua
não vê longe o suficiente e, portanto, superestima o que lhe está mais próximo. Em contrapartida, ter
um horizonte significa não ser limitado ao que está mais próximo, mas ter a capacidade de ver além aplicabilidade no presente. Em outras palavras, a compreensão do significado e da verdade do
desse ponto. Uma pessoa que tem horizonte conhece a significação relativa de tudo o que se acha no passado é constituída precisamente pela compreensão de seu alcance e relevância para a vida
âmbito desse horizonte, esteja perto ou esteja longe, seja grande, seja pequeno.” Truth andMethod, p.
269. Uma fusão de horizontes, em cujo âmbito se dá a interpretação, significa que o horizonte do
passado é deslocado para o horizonte atual de consciência, que é igualmente constituído pelo passado.
Todavia, isso significa que, mesmo que se distinga o passado como passado, não há como escapar ao
próprio horizonte atual; mesmo a apropriação do passado como passado é uma apropriação a partir do 22 R ic o e u r , The Symbolism
of Evil, pp. 347-357.
ponto de vista do presente. Ver pp. 271-274. 23 Ver Gadamer, Truth and Method, pp. 274-305.

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D in â m ic a d a t eo l o c ia A ESTRUTURA DA INTERPRETAÇÃO

nessa situação aqui e agora.24 A verdade dos símbolos do passado é decidida pelo julgamento de no passado. Querem continuar a comunicar-se, no futuro contínuo da comunidade, à vida histó­
sua praticabilidade para a vida atual. rica da comunidade, à medida que se vê diante de novas situações. O propósito dos símbolos
Para sintetizar, podemos dizer que o processo dialógico de interpretação produz uma religiosos, portanto, é gerar nova compreensão e potencializar continuamente a nova vida, em
estrutura dialética. A estrutura dialética é de identidade e de diferença, de continuidade com o situações sempre novas. Essa é sua lógica interna e sua função no seio da comunidade.
passado, e a novidade, conservadora do significado transcendente original e da mudança nesse De conformidade com essa intenção intrínseca e lógica histórica, deve-se falar do signifi­
significado. Essa estrutura é estritamente dialética, pois ambos os elementos são afirmados si­ cado dos símbolos religiosos não simplesmente como algo que lhes está por trás, mas também e
multaneamente. Não se pode afirmar a simples identidade entre o significado original e o signifi­ sobretudo diante deles.25 O significado que está por trás de um símbolo, de um texto ou de uma
cado reinterpretado dos símbolos; tampouco se pode afirmar a absoluta alteridade e diferença. A doutrina deflui da experiência histórica que lhe deu origem. Como se observou anteriormente,
identidade, não obstante, deve ser situada “abaixo” ou "acima” do nível de compreensão temática. essa experiência pode ser revelada pelo estudo histórico-crítico, não no sentido de reproduzi-la
Subsiste no encontro experienciado com a transcendência como transcendente, porque a com­ psicologicamente, mas no de compreendê-la em termos de situação histórica objetiva e de causas
preensão conceituai é precisamente aquilo que se altera na reinterpretação. Essa estrutura dialética do passado.26 Por conseguinte, o que é determinado é aquilo para o qual o símbolo aponta, mas
não pode ser destruída ou superada. As tentativas nesse sentido conduzem sempre a extremos na linguagem ou forma conceituai historicamente condicionada de uma época passada. O signifi­
incoerentes de fundamentalismo ou de positivismo revelacional, de um lado, ou à redução da cado diante do símbolo, em contraste, reside na experiência que o símbolo descerra aos outros
teologia à antropologia psicológica, de outro. no futuro imediato e contínuo. Mas aquilo para o qual aponta o símbolo e que o torna presente é
sempre experienciado em novas circunstâncias. Isso implica necessariamente novidade e dife­
rença na própria experiência como condicionada pela situação histórica. Essa compreensão e
verdade sempre contemporâneas são coincidentes com a aplicabilidade e a relevância, e o signi­
O objETÍVO dA iNTERpRETAÇÃO ficado diante dos símbolos passados é constituído pela interpretação contínua.
Descrita a estrutura da interpretação, concluímos agora considerando seu objetivo. O Dadas as qualidades intrínsecas dos símbolos históricos e sua função na comunidade,
objetivo da disciplina da reinterpretação teológica deve cingir-se intrinsecamente à natureza mesma podemos formular agora o objetivo da interpretação. Visto que os símbolos projetam-se no futu­
dos símbolos cristãos. Para determinar o objetivo da teologia, devemos nos voltar para os próprios ro e geram significados sempre novos para a comunidade em todo futuro, o objetivo da interpre­
símbolos cristãos e extrair de sua natureza e lógica a intencionalidade intrínseca dos símbolos tação é iluminar e potencializar a comunidade em cada período. Os próprios símbolos religiosos
religiosos em geral e, mais especificamente, dos símbolos cristãos originais. pretendem comunicar transcendência e, portanto, iluminar e potencializar a comunidade. O
objetivo da interpretação, portanto, é desvencilhar do passado aquilo que é simbolizado e liberá-
Para começar, os símbolos religiosos têm por propósito comunicar. Mais exatamente,
lo na consciência contemporânea. Os símbolos do passado são um dado no interior da comunida­
pretendem mediar a realidade transcendente. O objetivo dos símbolos religiosos não é comuni­ de. Por seu intermédio, a comunidade entende o objeto de sua lealdade e de seu compromisso. O
car fatos a respeito deste mundo nem eventos históricos. Se assim fosse, não seriam símbolos
papel da interpretação é elaborar o significado atual daquilo que é simbolizado na consciência da
religiosos. E possível que o significado transcendente esteja atrelado a certos dados históricos, comunidade hoje. Na medida em que torna os símbolos inteligíveis, a interpretação permite-lhes
como é verdade especificamente no caso de Jesus. Entretanto, na medida em que se estão lidan­
funcionar na imaginação da comunidade para colmatar a experiência atual da realidade de sentido
do com símbolos religiosos, as referências históricas sempre comportam o apelo ao reconheci­
mento e à participação da história interior na transcendência. Como tais, os símbolos religiosos
pretendem mediar uma experiência de transcendência. Além disso, tal mediação da transcen­
dência é sempre orientada para o futuro, não apenas o futuro imediato, mas especialmente o 25 T racy ,David. Blessed Rage for Order: The New Pluralism in Theology. New York, Seabury Press,
futuro indefinido e de longo prazo. Os símbolos religiosos não tencionam exaurir seu significado 1975. pp. 77-78; The Analogicallmagination, pp. 122-123. Ver também a discussão sobre a revelação
por trás e em face da Escritura, no capítulo 4.
26 Não se pode recriar, dentro de si próprio, na época atual, a experiência psicológica pessoal de um
tempo passado porque existe sempre uma fusão de horizontes, e não é possível, por assim dizer,
24 “O significado da aplicação que se acha envolvido em todas as formas de compreensão está claro escapar ao próprio ponto de vista, experiência e horizonte concretos. Todavia, precisamente com base
agora. Não se trata da aplicação subseqüente de um dado universal a um caso concreto que entende­ na analogia da experiência humana e na capacidade autotranscendente de entender as expressões objetivas
mos ser primeiro por si mesmo, e sim da compreensão atual do próprio universal que o texto dado de uma outra cultura como realidade distante e diferente da própria, é possível comunicar-se e apreciar
constitui para nós.” Ibid., p. 305. a experiência do passado.

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D in â m ic a d a t ío ij Oc ia

significativo e relevante. Por conseguinte, o objetivo da interpretação é também transformar e


potencializar a ação. Busca abrir novas possibilidades para a vida humana, para a liberdade huma­
CApÍTulo 10
na e para a ação humana. Esse objetivo da interpretação teológica é intrínseco à vida religiosa da
própria comunidade. Não advém de fora da comunidade para ser-lhe imposta. Pelo contrário,
essa intencionalidade da interpretação teológica decorre da natureza interna da comunidade e de
O MÉTodo NA TEoloqiA
seus próprios símbolos. A interpretação pretende ampliar a liberdade humana a partir de dentro,
pela formulação, em termos inteligíveis, do que já está implicitamente presente no âmbito da
liberdade da comunidade, na medida em que é moldada pelos símbolos de sua tradição.
A guisa de conclusão, pode-se observar, a partir dessa exposição a respeito da estrutura
da interpretação, três princípios que servirão de critérios para a teologia no seio da comunidade om este capítulo, passamos das considerações sobre a teoria da interpretação para o
cristã. A interpretação deve ser fiel, inteligível e potencializadora: fiel aos símbolos da Escritura
e à história da doutrina, que são elementos constitutivos da comunidade;27 inteligível em um
horizonte contemporâneo de consciência;28 e aplicável ao presente e ao futuro imediato da comu­
nidade, de forma a engendrar e a alavancar sua práxis.29 Todos esses princípios são necessários.
C modo como a teologia efetivamente executa a atividade interpretativa. No capítulo
anterior, discutimos a estrutura da interpretação; na seqüência, examinaremos mais
detalhadamente a dinâmica da interpretação. O que aqui se afirma acerca do método da teologia
deve, por isso, corresponder à teoria geral que acabamos de expor e manter consistência também
A interpretação que é fiel e inteligível, mas não potencializa a liberdade humana, é irrelevante. A com as posições tomadas em relação à fé, à revelação, à Escritura e aos símbolos religiosos.
interpretação que é fiel e potencializadora, mas ininteligível, é demagógica e representa uma
contradição da liberdade cristã. A interpretação que é inteligível e potencializadora, mas infiel às A questão do método da teologia é absolutamente fundamental para a própria disciplina.
origens cristãs, é por definição, nessa medida, não cristã. Esses três critérios da teologia, porém, hão Via de regra, a discussão acerca do método é recebida com certa frustração: "Depressa com isso".
de ser mais bem desenvolvidos no capítulo subseqüente, que versa sobre o método na teologia. Entretanto, considerando-se que a forma de entendimento determina a própria compreensão,
pois a própria compreensão é gerada por seu método, o “depressa com isso”, sem uma apreensão
reflexiva do que se passa, só pode produzir resultados superficiais. Em contrapartida, quando se
percebe aonde um teólogo quer chegar metodologicamente, pode-ser fazer uma apreciação razoá­
vel, antecipadamente, daquilo que serão suas conclusões. Pois o método atinge o conteúdo da
teologia para configurar a própria compreensão do tema. Uma apreciação da forma como se
entende teologicamente é em parte uma compreensão teológica fundacional a título próprio.
A centralidade e a importância da questão do método são ponderadas quando se conside­
ra por um momento o pluralismo extravagante dos métodos predominantes na teologia da atua­
lidade. A teologia, de fato, distancia-se muito daquelas ciências que compartilham um amplo
conjunto de premissas, axiomas e princípios funcionais comuns. Na melhor da hipóteses, trata-se
de uma disciplina que dispõe de vários métodos. Tais métodos, entretanto, parecem tão
27 A fidelidade corresponde à “adequação” [appropriateness] de Schubert Ogden e à “aptidão” [aptness] dessemelhantes que se pode cogitar se os teólogos cristãos realmente conseguem se comunicar
de David Kelsey. Ver Kelsey, The Uses of Scripture, pp. 192-197, e Schubert M. Ogden, On Theology entre si. Teologia é o que fazem os teólogos, e eles estão fazendo uma tal quantidade de coisas
(San Francisco, Harper and Row, 1986), pp. 4-5 e 45-68, em que o critério de adequação à Escritura díspares que quem quer que se aproxime da disciplina só consegue deparar, em um primeiro
é mais bem matizado.
28 “Inteligível” corresponde à “credibilidade” [credibility] de Ogden e à “adequação” [adequacy] de momento, com uma aparente confusão.
Tracy, ou seja, à coerência e correspondência com a experiência humana comum. O g d e n , On Theology, Alguns deles são teólogos bíblicos para quem uma compreensão crítica da Escritura é
pp. 4-6 e passim; T racy , Blessed Rage for Order, pp. 64-87.
29 A potencialização corresponde ao critério metziano de práxis: a máxima apologia da verdade cristã é a imediatamente relevante para nossa época. Alguns teólogos bíblicos combinam a exegese com
práxis. Ver: M et z , Johann Baptist. Faith in History and Society: Toward a Practical Fundamental uma complexa teologia da revelação que tenta explicar como o registro do passado relaciona-se
Theology. New York, Seabury Press, 1980. p. 7 e passim. [Ed. bras.: A fé em história e sociedade. São com a vida atual. Outros, por sua vez, utilizam reflexões da filosofia lingüística e da teoria
Paulo, Paulus, 1981].

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