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TOMÁS DE AQUINO & A TRANSCENDÊNCIA DE DEUS

TOMÁS DE AQUINO &


A TRANSCENDÊNCIA DE DEUS

Luis Carlos Silva de Sousa


Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke (www.carolekummecke.com.br)

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


S725t Sousa, Luis Carlos Silva de
Tomás de Aquino & a transcendência de Deus [recurso eletrônico] /
Luis Carlos Silva de Sousa. – Porto Alegre : Fi, 2023.
135p.

ISBN 978-65-5917-681-6
DOI 10.22350/9786559176816
Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Teologia – Deus – Transcendência – Tomás de Aquino. 2.


Filosofia. I. Título.

CDU 2-1/-9:101
Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto – CRB 10/1023
LISTA DE ABREVIAÇÕES

Comp. theol. Compendium theologiae

De pot. Quaestiones disputatae De potentia

De spir. creat. Quaestio disputata De spiritualibus creaturis

De subst. sep. De substantiis separatis

De ver. Quaestiones disputatae De veritate

In Boet. De hebd. Exposito libri Boetii De hebdomadibus

In De causis In librum De causis exposito

In De div. nom. In librum Beati Dionysii De divinis nominibus expositio

In Metaph. In XII libros Metaphysicorum Aristotelis expositio

In Peri Herm. In libros Peri hermeneias Aristotelis expositio

In Physic. In XIII libros Physicorum Aristotelis expositio

In Post. Anal. In libros Posteriorum Analyticorum Aristotelis expositio

In Sent. Scriptum super IV Libros Sententiarum

ScG. Summa contra gentiles

Sth. Summa theologiae

Super Boet. De Trin. Super Boetium De Trinitate expositio


SUMÁRIO

PREFÁCIO 11
Dom Bruno Lira, osb

INTRODUÇÃO 16
PARTE I
O HOMEM DIANTE DE DEUS: METAFÍSICA E RELIGIÃO

1 24
TRAÇOS BENEDITINOS NA VOCAÇÃO DOMINICANA
1. VIDA RELIGIOSA. ................................................................................................................................................ 24
2. COMENTÁRIOS A ARISTÓTELES. ................................................................................................................... 28
3. O PLANO DA SUMMA THEOLOGIAE. ........................................................................................................... 30
4. CRONOLOGIA BÁSICA. ..................................................................................................................................... 30

2 33
A RELIGIÃO E O FIM ÚLTIMO DO HOMEM
1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................................... 33
2. BEATITUDO COMO VISÃO DA ESSÊNCIA DIVINA (STH. IA-IIAE, Q. 3, A. 8). ....................................... 36
2.1 A DUPLA FELICIDADE. ................................................................................................................................... 37
2.2 CONHECIMENTO DE DEUS E A FELICIDADE PERFEITA. ....................................................................... 42
3. A RELIGIÃO E O FIM ÚLTIMO DO HOMEM (STH. IIA-IIAE, Q. 81, A. 1). ............................................... 47
CONCLUSÃO ........................................................................................................................................................... 55

3 57
A NOÇÃO DE EXCESSUS: SOBRE O ALCANCE DO CONHECIMENTO HUMANO DE DEUS
(STH. Iª., Q. 84, A. 7 AD 3M)
1. CONTEXTUALIZAÇÃO: CONHECIMENTO NEGATIVO E TRANSCENDÊNCIA DE DEUS. ................... 57
2. CONHECIMENTO NEGATIVO E A NOÇÃO DE EXCESSUS. ........................................................................ 60
3. CONHECIMENTO DE DEUS COMO DESCONHECIDO: METAFÍSICA APOFÁTICA. ............................. 63
4. A NOÇÃO DE EXCESSUS NA SUMMA THEOLOGIAE (Iª, Q. 84, A. 7 AD 3M). ........................................ 70
CONCLUSÃO ........................................................................................................................................................... 79
PARTE II
CAMINHO PARA O REALISMO: QUESTÕES METAFÍSICAS
SOBRE DEUS

4 81
O PROÊMIO DO COMENTÁRIO À METAFÍSICA DE ARISTÓTELES (IN METAPH.): O
PROBLEMA DA RELAÇÃO ENTRE O UNO E O MÚLTIPLO
1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................................... 81

5 86
ENS COMO PRIMEIRO TRANSCENDENTAL E O ESSE SUBSISTENS (DE VERITATE, Q. 1, A. 1)
1. RESOLUTIO E AS NOÇÕES PRIMEIRAS .......................................................................................................... 86
2. A DOUTRINA DO TRANSCENDENTAIS. ........................................................................................................ 88
3 SCIENTIA E REFLEXÃO TRANSCENDENTAL. .................................................................................................. 91
4. DO ENTE TRANSCENDENTAL AO ACTUS ESSEDI. ...................................................................................... 96

6 100
ESSE SUBSISTENS E AS RAZÕES ETERNAS (STH. Iª, Q. 84, A 5)
1. TOMÁS DE AQUINO E AS RAZÕES ETERNAS .......................................................................................... 100
2. RAZÕES ETERNAS: PARTICIPAÇÃO E TRANSCENDÊNCIA .................................................................... 108

7 119
REVISITANDO A NOÇÃO DE EXCESSUS EM TOMÁS DE AQUINO

REFERÊNCIAS 127
FONTES .................................................................................................................................................................. 127
BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................................................... 128
PREFÁCIO
Dom Bruno Lira, osb 1

Prefaciar um livro sobre as reflexões de São Tomás de Aquino é


uma dádiva de Deus que me veio através do convite do Luís Carlos Silva
de Sousa, autor da presente obra o qual, gentilmente, convidou-me para
redigir este texto que introduz o leitor em suas reflexões teológicas so-
bre a transcendência de Deus.
O leitor irá encontrar aqui reflexões filosóficas e teológicas sobre
o único Deus, o homem, a criação como um todo.
O Tomismo foi uma retomada, no século XIII, do pensamento de
Aristóteles numa perspectiva cristocêntrica à luz da doutrina da Igreja
Católica. São Tomás de Aquino aborda o seu ideário dentro da sua Suma
Teológica, que foi escrita, provavelmente, entre os anos 1265 – 1273, tra-
zendo meditações sobre Deus, a natureza humana e a moral cristã.
Muito bem dissertada pelo autor, as características básicas do To-
mismo, como o caminho da salvação relacionado com o livre-arbítrio e
a prática das boas obras; a integração entre o pensamento aristotélico e
neoplatônico com os ensinamentos e doutrinas da Bíblia; a harmonia
existente entre fé e razão, ou seja, as crenças cristãs e a ciência (o raci-
onalismo aristotélico); a prevalência do intelecto sobre a vontade.

1
Sacerdote Beneditino; Doutor em Educação; Mestre em Ciências da Linguagem (UNICAP); Licenciado
em Letras (UFPE), em Filosofia e Teologia pela Escola Teológica do Mosteiro de São Bento de Olinda.
Membro da Academia Olindense de Letras. Diretor da Escola do SESC Santo Amaro, em Recife-PE.
Secretaria de Educação de Pernambuco. Publica livros nas áreas da Liturgia, Espiritualidade, Linguística
e Educação, pelas Editoras: Paulinas, Vozes, Paulus e Liceu.
12 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

O autor, também, demonstra que até os dias atuais encontramos


pensadores filiados ao Tomismo aristotélico, destacando Reginald Gar-
rigou-Lagrange, Étienne Gilson, Cornelio Fabro, o filósofo e pedagogo
francês Jacques Maritain, Vittorio Possenti.
Na presente obra encontraremos uma narração argumentativa so-
bre o poder falar de Deus, referir-nos a Ele como um Ser Subsistente,
Absoluto e Transcendente mesmo diante da perspectiva niilista do
nosso tempo, que deseja desconsiderar a dimensão metafísica do ser hu-
mano, pois oferece, partindo dos ensinamentos de Tomás de Aquino,
uma explicação racional e até mesmo quase científica de uma metafísica
da criação, em que todo ente é criado por Deus, fazendo com que a fé
cumpra o seu papel de genitora da razão, pois esta conexão (fé e razão)
é fundamental para entendermos a Transcendência de Deus conforme
o ensinamento do Tomismo. Toda a proposta está situada na perspec-
tiva do teocentrismo cristão medieval, trazida para os dias de hoje pelos
seguidores de Tomás de Aquino, que oferecem luz às reflexões deste li-
vro.
O autor, ainda, apresenta o pensamento de Karol Wojtyla (o papa
São João Paulo II), que se mantém fiel à doutrina cristã católica, mesmo
diante dessa perspectiva secular do mundo. Em confronto com uma fi-
losofia estritamente medieval, continua firme com as bases da fé Cristã.
Na primeira parte encontramos os capítulos que tratam da forma-
ção cristã de São Tomás (a influência beneditina e a vocação
dominicana); da religião como caminho fundamental para a concepção
do fim último dos seres humanos e o aprofundamento da transcendên-
cia de Deus. Já na segunda, o Luís Carlos reflete sobre a metafísica de
inspiração cristã, mostrando a religião como motivadora para o enten-
dimento da experiência da transcendência, pois a religião nos religa ao
Luis Carlos Silva de Sousa • 13

Deus único, onipotente e onisciente, Ser por si mesmo subsistente, pois


é a Perfeição de todas as perfeições. A religião, portanto, ordena todo o
culto divino, que é o momento privilegiado do Encontro com Ele; daí a
importância de uma Liturgia bem celebrada e, para isso, torna-se fun-
damental o entendimento teológico e filosófico do rito que é o cerne do
culto cristão.
Considero prefaciar este livro, como um presente do autor, já que
eu sou um monge beneditino. Foi, portanto, o Mosteiro a primeira ex-
periência cristã formalizada do nosso protagonista São Tomás de
Aquino, que foi oferecido pelo seu pai à Abadia de Monge Cassino (Itália)
fundada por São Bento e que, ainda hoje, é o coração da nossa Ordem de
São Bento. No capítulo 59 da Regra de Bento (RB) encontramos como
deve ser feita esta entrega das crianças, filhas de nobres, para a vida
monástica: “Se porventura, algum nobre oferece o seu filho a Deus no mos-
teiro, se o jovem é de menor idade façam os seus pais a petição de que
falamos acima; e envolvam na toalha do altar essa petição e a mão do me-
nino junto com a oblação, e assim o ofereçam. Prometam na presente
petição, sob juramento, que nunca, por si, nem por pessoa interposta, lhe dão
coisa alguma, em qualquer tempo, nem lhe proporcionam ocasião de possuir;
ou então, se não quiserem fazer isso e, como esmola, desejam oferecer ao
mosteiro alguma coisa para a própria recompensa, façam a doação das coi-
sas que querem dar ao mosteiro, reservando o usufruto para si, se assim o
desejarem. E dessa forma, todos os caminhos estarão impedidos, de modo
que no menino nenhuma esperança permaneça, pela qual - que isso não
aconteça - venha a ser enganado e possa perecer; eis o que aprendemos por
experiência” (RB 59, 1-7).
É, pois, na primeira parte da obra que encontramos a alma benedi-
tina de Tomás, já que, conforme o autor, ele nunca deixou de sentir e
14 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

comportar-se como um beneditino, a ponto de trazer na sua vida,


mesmo como dominicano, os traços da RB, como: “a pureza de coração,
a oração contínua e o gosto pelo silêncio, na solidão, ao procurar a intimi-
dade com Deus”.
Para os seus contemporâneos, que desconheciam o fim último do
homem, Tomás de Aquino trata de explicar que este fim consiste na
plena beatitude, a felicidade perfeita, ou seja, a visão da essência divina.
Por isso que, pedagogicamente, divide a sua Suma Teológica em três
grandes e densos blocos: Deus e a sua obra de criação (primeira parte);
o Homem e sua obra de liberdade (a segunda parte); Cristo e sua obra de
salvação (a última parte). Cristo constitui mesmo o centro da sua expe-
riência com a essência de Deus, pois pelo Mistério da sua Encarnação e
Redenção recria o mundo e dota o ser humano da verdadeira liberdade
na conquista diária da salvação.
Assim, com a leitura atenta da presente obra, veremos que o nosso
Deus vai se desvelando a partir da razão, sempre auxiliada pela fé, e
mostrando a sua proximidade com o ser humano. Em tese, com todos os
dados filosóficos de Aristóteles e Platão, o nosso protagonista do To-
mismo vai descortinando a proximidade do nosso único e onipotente
Deus, enquanto mantém a sua infinita transcendência.
Foi isso que o autor desse livro, agora noviço beneditino, o irmão
Tomás de Aquino, pretendeu nos apresentar neste texto, de maneira ló-
gica, racional, filosófica e com base na fé cristológica. Isto ele faz,
também, com didática e maestria, trazendo uma corrente de pensadores
que dão base científica às suas linhas.
Ao querido autor e seus leitores, desejamos: FELICITER, TEMPORA
BONA HABEATIS AD MULTOS ANNOS, em Deus que é a plena beatitude!
Luis Carlos Silva de Sousa • 15

E viva São Tomás de Aquino, o Doutor Angélico, declarado assim


pelo papa São Pio V, no dia 28 de janeiro de 1567, dia de sua Memória
Litúrgica!
Boa leitura e reflexões conduzidas pelo Divino Espírito Santo.

Recife-PE, 14 de dezembro de 2022.


Memória Litúrgica de São João da Cruz,
na quarta-feira da Terceira Semana do Advento.
INTRODUÇÃO

O propósito desta breve pesquisa consiste em examinar o problema


da transcendência de Deus em Tomás de Aquino (1224/5-1274). Um as-
pecto central do problema diz respeito ao modo como devemos conceber
o papel da Religião e sua relação com a Metafísica, na consecução do fim
último do ser humano.
A Religião ordena o homem para a perfecta beatitudo (a perfeita fe-
licidade), que é a visão da essência de Deus. Por isso, a busca pela perfecta
beatitudo (que é o fim último do homem) desemboca na consideração
metafísica sobre a totalidade dos entes e, de modo particular, no modo
como o próprio homem tem acesso à transcendência de Deus. Daí o
“problema da transcendência de Deus”. Ora, se o homem deve prestar
culto a Deus, surge a pergunta: será possível algum conhecimento do
que Deus é – ou melhor: do que Deus não é, de acordo com o momento
apofático da metafísica de Tomás de Aquino 1? Como seria possível pres-
tar culto a um ser cuja essência nos é completamente desconhecida?
Ressalte-se que Tomás de Aquino vê como problemática a referência a
Deus - o que nos faz pensar o problema sobre o alcance do conhecimento
humano acerca de Deus sob diferentes perspectivas 2. Mas, como irei ar-
gumentar, Tomás de Aquino defende que podemos nos referir a Deus;

1
ScG I, c. 30; Sth. Iª, q. 3, prol. ROCCA, Gregory P. Speaking the Incomprehensible God: Thomas Aquinas on
the Interplay of Positive and Negative Theology. The Catholic University of America Press, Washington
D. C., 2004.
2
FABRO, Cornelio. L’Uomo e il Rischio di Dio. Roma: Editrice, Studium, 1967; PROUVOST, Géry. Thomas
d’Aquin et les thomismes: Essai sur l’histoire des thomismes. Paris: Les Éditions du Cerf, 1996.
Luis Carlos Silva de Sousa • 17

podemos falar acerca Dele, como Ser Subsistente, absoluto e transcen-


dente - o problema será entender como isso ocorre, contra a perspectiva
niilista de nosso tempo, que pretende desconsiderar a dimensão meta-
física do ser humano.
Há dois aspectos que desejo sublinhar, acerca do pressuposto bá-
sico desta linha filosófica especificamente cristã:
(1) Que o mundo seja criado por Deus é, em primeiro lugar, uma
verdade proveniente da fé. Por isso, a noção de criação é teológica por
sua origem histórica na Revelação, mas é filosófica por seu conteúdo ra-
cional, que pode ser expresso em categorias metafísicas. Isto não
significa que a noção de criação, como causalidade ou participação, tenha
surgido apenas a partir do cristianismo, mas sim que o vocabulário cris-
tão e, em particular, a linguagem utilizada por Tomás de Aquino para
descrever a origem temporal das coisas (principium originis), nunca
tenha como proveniência direta os “filósofos pagãos”. É verdade que a
noção de criação pode ser encontrada, ao menos implicitamente, nos
escritos de autores antigos, entendida de modo restrito como depen-
dência causal (Aristóteles) ou participação (Platão). Mas, em Tomás de
Aquino, o sentido da noção cristã de criação (que implica um início na
duração, um começo temporal) deve ser visto como um artigo de fé 3 e
está vinculado à noção de Esse subsistens incausado, que produz efeitos
ex nihilo 4.

3
VELDE, Rudi te. Participation and Substantiality in Thomas Aquinas. Leiden: Brill, 1995, p. 134-159;
AERTSEN, Jan. Nature and Creature: Thomas Aquinas’s Way of Thought. Leiden: E. J. Brill, 1988, p. 202-210;
GILSON, Étienne. L’Esprit de la Philosophie Médiévale. 2ª ed. Paris: Vrin, 1944, p. 39-84.
4
Este ensaio, como se verá, não se compromete com o enfoque panenteísta de Lorenz B. Puntel e sua
noção de criação. PUNTEL, B. Lorenz. “A criação como o pôr-no-Ser [ins-Sein-Setzen] da dimensão
contingente dos entes”. In: Ser e Deus: Um enfoque sistemático em confronto com M. Heidegger, É. Lévinas
e J. L. Marion. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 2011, p. 228-231; “O pensamento de Tomás de Aquino
como pensamento sumário-irrefletido sobre o Ser e a analogia”. In: Em busca do objeto e do estatuto
18 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

Neste contexto, para uma maior compreensão da nova perspectiva


criacionista, em contrapartida ao pensamento antigo, seria previa-
mente necessário realçar duas teses fundamentais que sustentavam o
edifício da metafísica clássica: (1) a insuficiência do sensível para satis-
fazer todas as exigências (morais e físicas) do inteligível – o que
produziu a reflexão sobre o que é transcendente ao imediato sensível, e
expresso pela metáfora náutica da “segunda navegação” (Platão)-, e,
além disso, (2) a prioridade metafisica do inteligível sobre o sensível, na
medida em que este deve ser justificado por aquele, cujo acesso cognos-
citivo ocorre através de uma ascensão intelectual que parta do sensível
e vise o inteligível. Em linhas gerais, porém, no que se refere a uma ex-
plicação racional sobre a noção de criação em Tomás de Aquino, a
metafísica de Aristóteles deve ser vista como integrada à especulação
neoplatônica sobre a causalidade transcendente do ser. Neste caso, To-
más de Aquino usa, em particular, o termo (platônico) “participação”
para expressar a noção de criação 5.
Assim, na medida em que a metafísica do esse (ser) de Tomás de
Aquino 6 supõe estruturalmente o problema da criação como justificação
metafísica dos entes relativos (com recurso às noções de essência e
existência, ser e participação, ordem e finalidade), ela corretamente
pode também ser entendida como uma Metafísica da Criação 7. Todo ente

teórico da filosofia: Estudos críticos na perspectiva histórico-filosófica. São Leopoldo, RS: UNISINOS, 2010,
p. 106-131.
5
De pot. q. 3, a 5 c; Sth. Ia, q. 44, a. 2 c. FABRO, Cornelio. La Nozione Metafísica di Partecipazione secondo
S. Tommaso d’Aquino. Torino: Editrice, 2. ed., 1950; Participazione e Causalità secondo S. Tommaso
d’Aquino. Torino: Editrice, 1960.
6
GILSON, Étienne. L’Être et L’Essence. 10ª éd.. Paris: J. Vrin, 1962; Le Thomisme. Introduction a la Philosophie
de Saint Thomas D’Aquin. 6. éd. Paris: J. Vrin, 1997; A Existência na Filosofia de S. Tomás. Trad. Geraldo
Pinheiro Machado; Gilda Mellilo; Yolanda Ferreira Bacão. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1962.
7
VELDE, Rudi te. Aquinas on God: The ‘Divine Science’ of the Summa Theologiae. England/USA: Ashgate,
2006, p. 123-146.
Luis Carlos Silva de Sousa • 19

é criado por Deus 8. A fé cumpre o papel de geratriz da razão. Daí a pos-


sibilidade de se ver aqui, sob a perspectiva da metafísica do esse, o cerne
de uma terceira navegação 9, a partir do criacionismo bíblico e da inteli-
gibilidade fontal do actus essendi (ato de ser).
A experiência de transcendência de Deus deve ser vista, aqui, me-
todologicamente, a partir de uma perspectiva hermenêutica que
preserve o horizonte metafísico de compreensão dos textos medievais 10.
Com efeito, se quisermos compreender o sentido da transcendência de
Deus para o ser humano, de acordo com Tomás de Aquno, não podemos
prescindir desta conexão estrutural entre Fé e Razão 11.
(2) Um segundo aspecto, a ser destacado, diz respeito ao modo
como os problemas levantados por Tomás de Aquino serão expostos
nesta obra. O método corrente e normal da Metafísica, segundo Aristó-
teles e Tomás de Aquino, segue a via resolutionis ou analítica, que
caminha do complexo ao simples, mas isto não significa renunciar à
dialética ens-essentia-esse, que está na base da relação uno-múltiplo,
participado-participante etc. 12. Ressalte-se que a proposta de Tomás de

8
STh. Ia, q. 44, a. 1.
9
POSSENTI, Vittorio. Terza Navigazione. Nichlismo e metafisica. Roma: Armando, 1998. A tradução norte-
americana da obra fundamental de Vittorio Possenti inverte o título e o subtítulo: Nihilism and
Metaphysics: The Third Voyage. Transl.: Daniel B. Gallagher. State University of New York, 2014. Ver
também, do mesmo autor: Il Realismo e la Fine della Filosofia Moderna. Roma: Armando, 2016, p. 105, n.
33.
10
COSTA. Ricardo da. “O Conhecimento Histórico e a Compreensão do Passado: O Historiador e a
Arqueologia do Passado”. In: Visões da Idade Média. 2ª ed. Santo André, SP: Armada, 2020, p. 317-334.
11
JOÃO PAULO II. Fides et Ratio, Carta Encíclica aos Bispos da Igreja Católica sobre as Relações entre Fé
e Razão. São Paulo: Paulinas, 1999; VELDE, Rudi te. Aquinas on God: The ‘Divine Science’ of the Summa
Theologiae, op. cit, 2006, p. 1-7; MACINTYRE, Alasdair. “Philosophy recalled to its tasks: a Thomistic
reading of Fides et Ratio”. In: The Tasks of Philosophy: Selected Essays, Volume 1. Cambridge, NY: Cambridge
University Press, 2007, p. 179-196.
12
POSSENTI, Vittorio. Ritorno all’Essere: Addio alla metafisica moderna. Roma: Armando Editore, 2019, p.
38-40; AERTSEN, Jan. “Was heisst Metaphysik bei Thomas von Aquin?” In: CRAEMER-RUEGENBERG/SPEER,
A. (Eds.). Scientia und Ars im Hoch- und Spätmittelalter (Miscellanea Mediaevalia 22), Berlin/New York 1994,
p. 217-239.
20 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

Aquino está situada na perspectiva do teocentrismo cristão medieval.


Convém observar, além disso, que a ordem do discurso metafísico, a ser
apresentada a seguir, na leitura dos textos de Tomás de Aquino, pre-
tende destacar a prioridade real do Esse Subsistens em relação à
inteligibilidade relativa dos esse finitos 13. Pretende-se mostrar que o
pensamento de Tomás de Aquino apresenta, entre outros elementos im-
portantes de seu realismo, uma solução paradigmática ao problema
clássico da relação entre Uno e Múltiplo, no contexto de sua filosofia do
ser (actus essendi/esse ipsum per se subsistens) 14.
No que segue, portanto, a quaestio veritate está vinculada ao tema
da religio, e a discussão acerca do problema da transcendência de Deus
deve mostrar como a metafísica do esse de Tomás de Aquino pode ir
além da “segunda navegação” de Platão (Fédon, 99b 2-d 3), na direção de
uma “terceira navegação”: uma posição metafísica que supõe a Reve-
lação cristã e recupera a antiga aliança socrático-mosaica, isto é, o
acordo entre Fé e Razão: a Revelação não é algo extrínseco à verdade e
a razão é capaz de ter acesso a Deus 15.
O trabalho está dividido em duas partes: (1) O homem e a transcen-
dência de Deus e (2) o caminho realista do ser (esse). Considero realista,
em termos gerais, toda filosofia que assume o ser/o real como causa e
conteúdo do conhecer. Para o realismo, o ser é a medida do conceito; o
primeiro transcendental é o ens, não o verum.

13
VELDE, Rudi te. Participation and Substantiality in Thomas Aquinas, op. cit., p. 119-125.
14
GILSON, Étienne. Il Réalismo, metodo della filosofia. Roma: Ed. Leonardo da Vinci, 2008; MARITAIN,
Jacques. Distinguer pour Unir ou Les Degrés du Savoir. 5 éd. Paris: Desclée de Brower, 1946; POSSENTI,
Vittorio. Il Realismo e la Fine della Filosofia Moderna. Roma: Armando, 2016.
15
POSSENTI, Vittorio. “A Aliança Socrático-Mosaica: Pós-Metafísica, Deselenização, Terceira Navegação”.
Síntese- Rev. de Filosofia, v. 36, n. 116, (2009): 325-353; “Rinnovare la filosofia. Riflessioni sulla Fides et ratio
15 anni dopo”. Síntese- Rev. de Filosofia, v. 40, n. 128, (2013): 481-498.
Luis Carlos Silva de Sousa • 21

Na primeira parte apresentarei alguns traços da estrutura reli-


giosa presente na metafísica de Tomás de Aquino: irei fazer uma breve
introdução ao seu pensamento, a partir de elementos de sua vida e obra,
acentuando a experiência pessoal de iniciação à vida cristã, destacando
os traços beneditinos na sua vocação dominicana (Capítulo I); em se-
guida, mostrarei como a Religião permanece fundamental em seu modo
de conceber o fim último do ser humano (Capítulo II); por fim, irei expor
a noção de transcendência de Deus (Capítulo III), algo central para o res-
tante do trabalho.
A segunda parte trata de alguns aspectos do itinerário da metafí-
sica do esse (ser/actus essendi) de Tomás de Aquino, com destaque para
o modo de resolução do problema metafísico clássico da relação entre
Uno e Múltiplo (Capítulo IV), a primazia do ens como primeiro transcen-
dental (Capítulo V), e a tensão entre participação e transcendência no
contexto das razões eternas de Deus, isto é, a partir de uma metafísica
de inspiração cristã (Capítulo VI). O capítulo que trata das razões eter-
nas pretende sumarizar o percurso, como ápice da teologia filosófica de
Santo Tomás de Aquino. Por fim, na forma de um simples adendo, irei
retomar a noção de excessus e apontar para sua repercussão no contexto
de parte do tomismo contemporâneo (Capítulo VII). No transcurso des-
ses capítulos está em jogo uma leitura de Tomás de Aquino que se
orienta pela intenção de repensar a filosofia do ser sob a perspectiva de
uma hermenêutica intensiva, isto é, com base na noção metafísica de par-
ticipação 16.
A Religião será vista como a grandeza histórico-espiritual privile-
giada que, durante séculos, tornou possível a experiência da

FABRO, Cornelio. Appunti di un Itinerario: Versione integrale dele tre stesure con parti inedite. A cura di
16

Rosa Goglia e Elvio Fontana. Italia: Editrici del Verbo Incarnato, 2011.
22 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

transcendência. É preciso recordar (sob pena de distorções conceituais)


que o pensamento de Tomás de Aquino recolhe o essencial das raízes
clássicas da transcendência medieval 17. A Religião nos (re)liga ao Deus
único e onipotente; ela ordena ao culto divino. A Religião ordena o ho-
mem só para Deus, que é seu fim último 18. É possível ver nesta questão
uma dimensão antropológica, que se refere ao culto e também às virtu-
des. Estas virtudes estão associadas ao ato de religião (as obras de
misericórdia etc.) 19. Seria possível examinar o culto divino, portanto,
também sob enfoque moral, pois a Religião é uma virtude moral (não
teologal), anexa à virtude da justiça. Entretanto, como alternativa a es-
ses legítimos enfoques, pretendo examinar como a Religião ordena o
homem ao seu fim último, sobretudo nos termos da noção de transcen-
dência (ὕπεροχή, excessus, preeminência ou ultrapassamento) que
orienta o conhecimento humano acerca de Deus (Parte I). A seguir, irei
estender a discussão a alguns outros textos de Tomás de Aquino, tendo
por finalidade saber, mais especificamente, qual a noção de transcen-
dência está presente na busca que o homem faz, nesta vida, para ver a
essência divina como esse ipsum per se subsistens (Ser por si mesmo sub-
sistente), pois, em Deus, a essência é seu ser, perfeição de todas as
perfeições 20. Ora, o fim último do homem consiste em ver a essência de
Deus; por isso, a questão da transcendência pode ser considerada a par-
tir de um enfoque metafísico (Parte II).

17
COSTA, Ricardo da. “As Raízes Clássicas da Transcendência Medieval”. In: Impressões da Idade Média.
São Paulo: Livraria Resistência Cultural Editora, 2017, p. 161-182.
18
STh. IIa-IIae, q. 81, a. 1.
19
STh. IIa-IIae, q. 81, a. 1 ad 1.
20
In de div. nom. c. 5, lect 1, n. 629; De pot. q. 7, a. 2 ad 9; STh. Ia, q. 3, a. 4; STh. Ia, q. 4, a. 2.
PARTE I

O HOMEM DIANTE DE DEUS: METAFÍSICA E RELIGIÃO


1
TRAÇOS BENEDITINOS NA VOCAÇÃO DOMINICANA

1. VIDA RELIGIOSA.

A data aproximada do nascimento de Sto. Tomás de Aquino cal-


cula-se a partir de sua morte, na manhã de 7 de março de 1274 1. Seu
primeiro biógrafo, Guilherme de Tocco (1240/50-1323 aprox.), nos in-
forma que Tomás de Aquino teria morrido antes de completar 49 anos
de idade 2. Neste caso, situar-se-ia seu nascimento em 1225. Entretanto,
seu segundo biógrafo antigo, Bernardo Gui (1261/1262-1331), que escre-
veu alguns anos depois, assevera que ele tinha completado 49 anos e
teria começado no 50º o jubileu da glória eterna 3. Assim, a monumental
biografia de Jean-Pierre Torrel, OP (1927- ) 4 - até o momento não supe-
rada- lembra que outras fontes secundárias não descartam 1226 ou 1227,
mas que parece haver hoje certo consenso em estabelecer o nascimento
de Tomás de Aquino em torno de 1224/1225. O castelo familiar de Roc-
casecca, na Itália meridional, é reconhecido pelos historiadores, hoje,
como o lugar de nascimento de Tomás de Aquino. A situação geográfica
do castelo –aproximadamente a meio caminho de Roma a Nápoles, e

1
PRÜMMER, Dominicus (Org.) Fontes Vitae S. Thomae Aquinatis notis historicis et criticis illustrati. Toronto:
PIMS-University of Toronto, 1912. Disponível em: https://archive.org/details/fontesvitaesthom
00pr/page/n9/mode/2up. Acesso em agosto de 2022.
2
GUILLAUME DE TOCCO. Ystoria Sancti Thome de Aquino de Guillaume de Tocco (1323). Toronto: PIMS,
1996; L’histoire de Saint Thomas d’Aquin. Paris: Cerf, 2005; “Vita S. Thomae Aquinatis auctore Guilleume
de Tocco”. In: PRÜMMER, Dominicus (Org.) Fontes Vitae S. Thomae Aquinatis notis historicis et criticis
illustrati. Toronto: PIMS-University of Toronto, 1912, (fasc. 2), p. 56-160.
3
BERNARDO GUI. “Vita S. Thomae Aquinatis auctore Bernardo Guidonis”. In: PRÜMMER, Dominicus (Org.)
Fontes Vitae S. Thomae Aquinatis notis historicis et criticis illustrati. Toronto: PIMS-University of Toronto,
1912, (fasc. 3), p. 160-258.
4
TORRELL. Jean-Pierre. Initiation à Saint Thomas d’Aquin: Sa personne et son oeuvre. Paris: Éditions du
Cerf, 1993.
Luis Carlos Silva de Sousa • 25

próximo também da disputada Abadia de Monte Cassino (Abbazia di


Montecassino)- conduziu a disputas políticas: a família De Aquino (daí o
sobrenome de Tomás, um patronímico do condado de Aquino) tinha
seus domínios nos limites dos Estados do papa Inocêncio IV e do impe-
rador Frederico II (que governava o Império da Alemanha à Sicília), o
que proporcionava à família De Aquino um oscilar constante entre
questões referentes às esferas política e religiosa, transformando a Itá-
lia em campo de batalhas durante algumas décadas. Landolfo, pai de
Santo Tomás, era partidário do Imperador. Não pertencia ao ramo mais
poderoso da família, mas esposou, em data indeterminada, a senhora
Teodora, de família napolitana. Com ela teve pelo menos nove crianças:
quatro meninos e cinco meninas. De acordo com o costume da época,
por ser o caçula da família, Tomás foi destinado à Igreja. Landolfo ofe-
receu seu filho, então entre cinco a seis anos de idade, à Abadia de Monte
Cassino, com a esmola que acompanhava a oblatura dos filhos de nobres,
segundo a Regra de São Bento (RB 59, 1-8). A abadia beneditina encon-
trava-se, então, em situação precária, mas ainda proporcionava um rico
benefício eclesiástico, simbólico e material, e sua localização era estra-
tégica, o que aumentava a disputa entre o Papa e o Imperador. Landolfo
fez uma doação generosa, para os padrões da época, talvez com a inten-
ção de que um dia o jovem Tomás se tornasse Abade. Esta iniciação à
vida religiosa beneditina deixou alguns traços visíveis em sua obra; e,
de certo modo, Tomás de Aquino nunca deixou de sentir e comportar-
se como beneditino 5.

5
GILSON, Étienne. A Existência na Filosofia de S. Tomás, op. cit., p. 13; LIMA VAZ, Henrique C. de. “Tomás
de Aquino e o nosso tempo: O problema do fim do homem”. In: Escritos de Filosofia I: Problemas de
fronteira. 2 ed. São Paulo: Ed. Loyola, 1986, p. 70.
26 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

A partir de 1236, diante da iminente agitação política e depois de


refletirem, os pais enviaram o adolescente a Nápoles, para maior desen-
volvimento de seus estudos. Tomás de Aquino deixou o Mosteiro em
1239, com catorze ou quinze anos. Não há documento atestando que ele
teria prestado juramento no ordo monasticus, mas é, sim, provável que
Tomás tenha sido monge, pois a oblatura supunha um voto, embora
condicional e temporário. Ao inscrever-se no jovem Studium Generale de
Nápoles, em 1239, Tomás iniciou sua formação, como de costume, pelo
estudo das Artes Liberais: o Trivium (Gramática, Dialética ou Lógica e
Retórica) e o Quadrivium (Aritmética, Geometria, Música ou Acústica e
Astronomia). Acrescente-se a tudo isto, é claro, a Filosofia. Esta era uma
etapa obrigatória na formação daquele que iria estudar Teologia. Nesta
época havia nas cidades italianas de Palermo, Salerno e Nápoles uma
intensa vida cultural, impulsionada por traduções de obras da ciência
aristotélica, da astronomia árabe e da medicina grega. O estudo de Aris-
tóteles era florescente desde 1230. Com isso Tomás de Aquino pôde, já
nesta época, familiarizar-se com a filosofia natural e a metafísica de
Aristóteles, embora seu estudo ainda fosse formalmente proibido em
Paris. Também em Nápoles Tomás conheceu a Ordem dos Pregadores
(OP) de São Domingos de Gusmão, os Dominicanos. Tomás recebeu o há-
bito dos Pregadores provavelmente em 1244, e seu ingresso na nova
ordem religiosa comprometia definitivamente os planos de seus pais em
vê-lo Abade de Monte Cassino. Pelo menos dois dos irmãos de Tomás
fizeram parte de uma operação de captura do jovem, sob a permissão do
Imperador Guilherme II. Eles retiraram Tomás do convento domini-
cano, mas não conseguiram lhe tirar o hábito. Posto sobre um cavalo,
levaram-no rapidamente a Monte San Giovanni Campano, um castelo da
família ao norte de Roccasecca. É provável que tenha ocorrido, neste
Luis Carlos Silva de Sousa • 27

percurso, o episódio sobre o qual tanto se especulou: a introdução, junto


a Tomás, de uma prostituta para tentá-lo, a fim de que ele pudesse de-
sistir de sua vocação. A família De Aquino – sobretudo sua mãe- estava
realmente empenhada em fazê-lo mudar de ideia, mas seria falso pen-
sar que Tomás fora maltratado ou aprisionado. Dedicou então seu
tempo a orar, ler toda a Bíblia e a estudar os Quatuor libri sententiarum
de Pedro Lombardo (ca. 1100-1160). Após um ano, reconhecendo a reso-
lução do jovem religioso, a família enfim consentiu em seu retorno a
Nápoles. Embora Sto. Tomás preserve durante toda sua vida uma pro-
funda estima pelo ideal beneditino, bem cedo percebeu que, naquele
contexto, sua inclinação aos estudos seria mais bem satisfeita na ordem
dominicana - pois, se é bom contemplar as coisas divinas, melhor ainda
seria contemplá-las e transmiti-las. Eis o que ele mesmo diz: “Sic ergo
gradum in religionibus tenent quae ordinantur ad docendum et praedican-
dum” 6. Ademais, se considerarmos a vida beneditina em Cassino naquela
época, devemos acrescentar um ponto que amiúde permanece desper-
cebido em sua escolha: o desejo de uma vida pobre, isto é, a defesa da
pobreza mendicante na vida religiosa, o que também motivará sua crí-
tica posterior ao mestre secular Guilherme de Santo-Amor, em 1250,
que fazia apologia à riqueza do clero. “A rejeição de Monte Cassino é, em
Tomás de Aquino, a réplica exata do gesto de Francisco de Assis” 7. Em
todo caso, são patentes alguns traços beneditinos, preservados na voca-
ção dominicana de Santo Tomás de Aquino: a pureza de coração, a

6
“Por conseguinte, entre as vidas religiosas ocupam o lugar mais alto as que se ordenam ao ensino e à
pregação” (STh. IIa-IIae, q. 188, a. 6)
7
CHENU. Marie-Dominique. St. Thomas d’Aquin et la théologie. “Maîtres spirituels 17”. Paris: Éditions
Points, 1959, p.11.
28 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

oração contínua e o gosto pelo silêncio, na solidão, ao procurar a inti-


midade com Deus.

2. COMENTÁRIOS A ARISTÓTELES.

É imensa a lista de comentários de Tomás de Aquino às obras de


Aristóteles. Bastaria isto para termos uma vaga ideia sobre a intensi-
dade e rapidez de seu trabalho, marcado em primeiro lugar pela
concisão e a clareza. Entretanto, os adversários de Tomás dividem opi-
niões sobre a qualidade de sua obra como comentador. Em geral, o
problema diz respeito à fidelidade a Aristóteles e o modo como ele apli-
cava a noção de scientia à Teologia 8. De fato, os mais rígidos defensores
de Tomás admitem que ele “prolongara” o Filósofo. Estes fazem parte
de um primeiro grupo de intérpretes de Tomás, que enfatiza a objetivi-
dade e a fidelidade do comentador. De acordo com eles, os comentários
de Tomás raramente apresentam algum traço de opinião pessoal, que
aliás permaneceria oculto. Por outro lado, contra esta primeira posição,
há outro grupo que acentua a novidade de Tomás, que não se privaria
de exprimir seu posicionamento pessoal, ao retificar e ampliar Aristó-
teles quando considerava necessário. Um terceiro grupo de intérpretes
- dentre os quais se destacam Martin Grabmann (1875-1949), Étienne
Gilson (1884-1978) e M.-D. Chenu (1845-1990)- entende que há uma fide-
lidade objetiva básica nos comentários, mas que também seria possível
encontrar, nestes textos, a própria interpretação de Santo Tomás, e as-
sim poderíamos utilizar esses comentários para reconstruir seu
pensamento acerca de temas justapostos em outras obras. Este último
modo de situar o problema era usual até o segundo quarto do século XX,

8
VELDE, Rudi te. Aquinas on God: The ‘Divine Science’ of the Summa Theologiae, op. cit, 2006, p. 23-28.
Luis Carlos Silva de Sousa • 29

mas hoje as questões levantadas sobre a originalidade da exegese de To-


más de Aquino e sua fidelidade a Aristóteles tornaram-se ainda mais
críticas. Por um lado, é preciso dizer que Tomás não inventou a exegese
literal: ela já era praticada pelo menos desde 1230, na Faculdade de Artes
de Paris; quanto à fidelidade a Aristóteles, cumpre reconhecer que, em-
bora sua interpretação seja profunda e muitas vezes literal, os
historiadores das doutrinas apontam que Tomás acabou por repensar
em pontos decisivos o pensamento aristotélico. Isto teria ocorrido não
apenas em seu comentário sobre a Ética (In Ethic.), sobre a Metafísica (In
Metaph.), mas também – e sobretudo- nas Sumas (ScG; STh.), sob a pers-
pectiva do princípio explicitamente cristão da visão beatífica, ao
confrontar-se com o aristotelismo a partir de uma metafísica criacio-
nista, que era inteiramente estranha a Aristóteles. Neste sentido, a
expressão sumária de que Sto. Tomás “batizou” Aristóteles revela al-
cance limitado. Dito isto, porém, resta acrescentar que muitos
equívocos seriam realmente evitados se considerássemos o verdadeiro
propósito de Sto. Tomás: ele pretende, na verdade, alcançar a intentio
auctoris, o que o autor “quis dizer”. Tomás de Aquino não espera recons-
tituir historicamente o pensamento aristotélico; ele pretende, em suma,
explicitar o que Aristóteles nem sequer poderia ter pensado, mas que,
de certo modo, estaria de acordo com seu espírito - por carecer da luz
da Revelação divina. De fato, não apenas no que se refere a Aristóteles,
mas também em relação a todos os filósofos da Antiguidade, Sto. Tomás
se mostra sensível e compartilha da angústia dos grandes espíritos que
desconheciam o fim último do homem, a saber: sua beatitudo ou felicidade.
Trata-se de exprimir o que eles “intencionavam dizer”, na busca da vida
feliz, isto é, a visão da essência divina.
30 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

3. O PLANO DA SUMMA THEOLOGIAE.

Ao apresentarmos Tomás de Aquino como filósofo estamos, de


certo modo, apresentando-o contra sua intenção, pois ele era um doctor
catholicae veritatis, isto é, um doutor da verdade católica, isto é, um teó-
logo, ainda que um teólogo filosofante: ele nunca pretendeu construir um
edifício filosófico independente, apesar de encontrarmos em sua obra
uma quantidade magistral de teses filosóficas. Neste contexto, ressalte-
se que há um plano clássico de leitura da Summa theologiae, à luz do es-
quema neoplatônico do exitus (saída) e do reditus (retorno) 9: a Prima pars
trataria da criação das coisas a partir de Deus, considerado como prin-
cípio; a Secunda pars se refere ao retorno a Deus como fim último (o
homem como imago Dei) e a Tertia pars se refere ao retorno através da
mediação de Cristo (reditus per Christum). Entretanto, a “verdade cató-
lica” pode ser melhor expressa – tal como a compreendemos - não
através do esquema neoplatônico exitus-reditus, mas considerando, de
modo mais preciso, os três agentes implicados no movimento interno
da Summa theologiae: Deus e sua obra de criação (Prima pars); Homem e
sua obra de liberdade (Secunda pars); Cristo e sua obra de salvação (Ter-
tia pars) 10.

4. CRONOLOGIA BÁSICA.

1224/1225 – Tomás de Aquino nasce no castelo de Roccasecca.


1226 – Morte de São Francisco de Assis.

9
CHENU. Marie-Dominique. “Le plan de la somme théologique de Saint Thomas”. In: Revue Thomiste 47
(1939), p. 97-107; Introduction à l’étude de Saint Thomas d’Aquin. Paris: Éditions du Cerf, 1950.
10
VELDE, Rudi te. Aquinas on God: The ‘Divine Science’ of the Summa Theologiae, op. cit, 2006, p. 9-35.
Luis Carlos Silva de Sousa • 31

1230 – Tomás inicia seus estudos na Abadia de Monte Cassino, fun-


dada por volta de 529, por São Bento de Núrsia (c. 480-547). A Abadia de
Monte Cassino é o berço da Ordem de São Bento (Ordo Sancti Benedicti,
OSB).
1240 – Alberto Magno começa a lecionar em Paris e faz comentá-
rios às obras de Aristóteles.
1241 – Morte do Papa Gregório IX. Assume Inocêncio IV.
1244 – Fundação da Universidade de Roma. Tomás de Aquino in-
gressa na Ordem dos Pregadores (Ordo Praedicatorum, O.P.), fundada por
São Domingos de Gusmão (1170-1221), em 1216.
1245 – Estuda em Paris até 1248, como discípulo de Alberto Magno
(c. 1193-1280), O.P.
1248 – Os dominicanos criam um Studium Generale em Colônia.
Santo Aberto Magno, já com grande reputação, será designado para en-
sinar nesta cidade. Leva consigo Tomás de Aquino, que assiste
atentamente aos seus cursos sobre Os Nomes Divinos de Dionísio (Super
Dionysium De divinis nominibus) e sobre a Ethica Nicomachea de Aristóte-
les (Super Ethica). A estada em Colônia, até 1252, constitui etapa decisiva
na formação de Santo Tomás.
1252-1259 – Primeiros anos de ensino em Paris. O Mestre Geral dos
dominicanos solicitou a Alberto Magno a designação de um jovem teó-
logo a ser nomeado bacharel em Paris. Tomás de Aquino foi indicado
por Alberto, apesar de ter apenas 27 anos (a idade mínima exigida era
de 35 anos), pois era considerado suficientemente avançado in scientia
et vita.
1256-1259 – Magister in Sacra Pagina (Teologia): legere, disputare,
praedicare. Escreve o Comentário sobre os quatro livros das Sentenças de
Pedro Lombardo (In Sent.) e o Comentário ao Tratado da Trindade de
32 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

Boécio (In Boeth. De trin). Escreve o opúsculo O Ente e a Essência (De ente).
Inicia a Suma contra os Gentios (ScG, 1258-1264).
1259-1268. Primeiro ensino na Itália. Em Nápoles (1259-1261) con-
tinua a Suma contra os Gentios (1258-1264). Em Orvieto (1261-1265)
elabora seu Comentário sobre Os Nomes Divinos de Dionísio (In De div.
nom) e continua a escrever a Suma contra os Gentios. Em Roma (1265-
1268) escreve o Compêndio de Teologia (Comp. Theol.) e a Primeira Parte
(Ia) da Suma de Teologia (S.th.).
1268-1272. Segundo ensino em Paris. Comentários aristotélicos so-
bre Os Segundos analíticos (In Post. Anal.), a Física (In Phys), a Metafísica
(In Metaph.), a Ethica Nicomachea (In Ethic.) e o Livro das Causas (In De
caus., pseudo-aristotélico). Escreveu também diversas Questões disputa-
das (sobre o mal, sobre as virtudes em geral, sobre a união do Verbo
Incarnado etc.). Escreveu as disputas sobre temas livres, sobre o que
quer que alguém deseje, os Quodlibets I-VI e XII. Elabora a Segunda Parte
(IIa) da Suma de Teologia e vários opúsculos (a unidade do intelecto contra
os averroístas, as previsões astrológicas, o governo dos judeus etc.).
1272-1274. Comentário ao livro dos Salmos e comentários aristoté-
licos inacabados: Tratado do céu (In De caelo) e outros. Deixa inacabada
também a Terceira Parte (IIIª) da Suma de Teologia. Escreve as Substân-
cias Separadas (De subst. separ.).
1274. “Não posso mais. Tudo o que escrevi me parece palha perto
do que vi”: Tomás de Aquino falece a 7 de março, em Fossanova.
1323. É canonizado pelo Papa João XXII.
2
A RELIGIÃO E O FIM ÚLTIMO DO HOMEM

1. INTRODUÇÃO

Uma perspectiva hermenêutica adequada acerca de Tomás de


Aquino tem como uma de suas tarefas confrontar-se com a tradição ne-
oplatônica presente em seus escritos, e o modo como esta tradição foi
situada em seu quadro conceitual aristotélico. Neste ponto fundamental
o neotomismo da virada do século XIX e início do século XX certamente
não lhe rendeu justiça: nunca será demais insistir que Tomás de Aquino
não é uma espécie de “Aristóteles cristão”, a despeito do Estagirita ser o
autor mais citado na Summa theologiae e da manualística “tomista” que
antecedeu ao Concílio Vaticano II (1962-1965). Talvez uma das mais im-
portantes conquistas do período pós-conciliar, no contexto da Igreja
Católica, tenha sido justamente a ampliação histórica de suas fontes. A
distinção, presente em Tomás de Aquino, entre praeambula ad articulos
fidei e articuli fidei, deve ser revisitada, a fim de compreender seus pres-
supostos e avaliar sua validade, sobretudo para que se evite o fideísmo
presente em teólogos contemporâneos que foram influenciados por su-
cessores pós-modernos de Martin Heidegger (1889-1976). Por outro
lado, uma hermenêutica dos textos de Tomás de Aquino deve não ape-
nas lhe reconhecer a presença de fontes neoplatônicas, mas também
considerar em que medida a sua filosofia desautoriza uma visão racio-
nalista de plena autonomia da razão, na linha de Spinoza (1632-1677) a
Hegel (1770-1831). A tradição da via platonica está presente em Tomás de
Aquino, e nela também encontramos um momento de “metafísica nega-
tiva”, que acentua a limitação estrutural do conhecimento intelectual
34 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

humano e sua dependência da esfera sensível. As coordenadas de sua


“metafísica apofática” se definem a partir de duas teses básicas, que
também orientam nossa pesquisa: (a) o objeto próprio do intelecto hu-
mano é a quididade do ente material; (b) nas substâncias, materiais e
imateriais, suas diferenças específicas nos são desconhecidas. Há uma
consciência muito clara em Tomás de Aquino sobre o alcance da razão
humana acerca da essência divina, em sentido mais crítico do que ami-
úde se pretende 1. Por outro lado, será preciso ter cautela: Tomás de
Aquino não renuncia ao caráter realista de suas teses.
Nas obras de Étienne Gilson (1884-1978) permanece uma tensão en-
tre a ideia de “filosofia cristã” e a realidade histórica da Filosofia na
Idade Média. É verdade que, ao considerarmos o tema da beatitudo como
fim último do homem e o papel da religião neste percurso, será preciso
reconhecer que Tomás de Aquino não pretende atenuar - mas, ao con-
trário, acentuar- seu teocentrismo cristão. Isto não significa, porém,
negar a presença de uma ordem filosófica própria, no interior dos escri-
tos teológicos de Tomás de Aquino. Importa justamente destacar a
perspectiva transcendental do pensamento de Tomás de Aquino, isto é,
sua referência à unidade das noções transcendentais (ens, unum, verum,
bonum), sem perder de vista o quadro teórico de sua filosofia cristã. Este
é apenas um aspecto do projeto antropológico e metafísico mais amplo
que culmina na abordagem da religião como virtude moral.
Irei examinar, a seguir, a relação entre as noções de beatitudo e re-
ligio na Summa theologiae de Tomás de Aquino. De modo particular, a
conexão entre essas noções será analisada a partir de dois textos fun-
damentais: (a) o artigo 8º da questão 3ª da Primeira Parte da Segunda

1
SCRUTON, Roger. Confissões de Um Herético. Âyiné, 2017.
Luis Carlos Silva de Sousa • 35

Parte da Summa theologiae [STh. Ia-IIae, q. 3, a. 8] e (b) o artigo 1º da


questão 81ª da Segunda Parte da Segunda Parte da mesma obra [STh.
IIa-IIae, q. 81, a. 1]. No “jogo das autoridades” que compõe a elaboração
de seu próprio discurso filosófico, Tomás de Aquino não se compromete
apenas com Aristóteles. Há, como acentuamos ao longo deste livro, um
núcleo da tradição neoplatônica no pensamento de Sto. Tomás que não
pode ser negligenciado. Se a influência de Agostinho parece evidente já
a partir do tema proposto, menos conhecida e apreciada, porém, revela-
se a presença do Dionísio Pseudo-Areopagita nos escritos de Tomás de
Aquino. Este é um aspecto fundamental de nossa leitura, sobretudo no
que se refere ao papel que a religião irá exercer na consecução da beati-
tudo. Por outro lado, na busca de uma síntese equilibrada, a religião foi
vista por Tomás de Aquino no contexto da moral aristotélica das virtu-
des. De um modo talvez insuspeito para a mentalidade contemporânea,
a religião não é considerada por Sto. Tomás como virtude teologal, mas
sim como virtude moral.
Irei considerar, inicialmente, a concepção de felicidade (beatitudo)
como visão da essência divina (Ia-IIae, q.3, a. 8). A compreensão da noção
de beatitudo em Sto. Tomás está estruturalmente vinculada à sua con-
cepção negativa do conhecimento intelectual humano (como vimos,
especialmente, nos capítulos 5-7 deste livro). A pergunta levantada pelo
artigo 8º da quest. 3ª (Utrum beatitudo hominis sit in visione divinae es-
sentiae) 2 conduz diretamente a essa vinculação, pois se refere de forma
sintética ao problema do “desejo natural” do homem de ver a Deus. Ar-
gumentarei que, nesta vida, de acordo com Tomás de Aquino, a visão da
essência de Deus excede a nossa capacidade humana de conhecimento.

2
“Se a felicidade do homem está na visão da essência divina” (STh. Ia-IIae, q. 3, a. 8)
36 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

Neste sentido, para responder à pergunta levantada na questão 3ª sobre


“o que é a beatitudo” (Quid sit Beatitudo), a noção de excessus, proveniente
da influência neoplatônica de Dionísio, cumpre um papel fundamental
na resposta de Tomás de Aquino. Em certa medida, o oitavo artigo pode
ser considerado o ápice do tratado da beatitudo (qq. 1-5) da Primeira
Parte da Segunda Parte da Summa theologiae.
A exposição está dividida basicamente em duas partes. A primeira
parte trata da noção de beatitudo (seção 1) e a segunda parte trata da
noção de religio, em conexão com o que Tomás de Aquino entende como
o fim último do homem. Ao tratar da religião e de sua relação com o fim
último do homem estarei pressupondo as diferenciações conceituais
anteriores, presentes na noção de beatitudo, com base na concepção me-
tafísica de participação em Deus (seção 3). A partir da análise do artigo
1º da questão 81ª (Utrum religio ordinet hominem solum ad Deum 3) consi-
derarei os pontos fundamentais dos outros artigos desta questão (art.
2-8), mas isto somente na medida em que se referem ao problema pro-
posto pelo primeiro artigo. A conclusão do capítulo levanta um
questionamento à contribuição de Tomás de Aquino acerca do fim úl-
timo do homem, e pergunta pela pertinência de uma concepção
antropológica da Moral em sua abertura à Metafísica.

2. BEATITUDO COMO VISÃO DA ESSÊNCIA DIVINA (STH. IA-IIAE, Q. 3, A. 8).

O primeiro momento da exposição, sobre a noção de beatitudo, di-


vide-se em dois passos: de início tratarei da diferença entre felicidade
imperfeita (natural, in via) e perfeita (sobrenatural, in patria), sobretudo
em confronto com a noção de eudaimonia aristotélica, que situa a

3
“Se a religião ordena o homem só para Deus” (Sth. IIa-IIae, q. 81, a. 1).
Luis Carlos Silva de Sousa • 37

felicidade humana na perfeita contemplação (seção 2.1); em seguida, tra-


tarei da questão sobre como compatibilizar uma perspectiva que, por
um lado, privilegia o conhecimento negativo de Deus (através dos efei-
tos) e, por outro lado, afirma a possibilidade da felicidade perfeita como
visão da essência divina (seção 2.2).

2.1 A DUPLA FELICIDADE.

Tomás de Aquino distingue dois tipos de felicidade humana. No Co-


mentário ao Tratado da Trindade de Boécio 4, por exemplo, ele fala de
duplex felicitas hominis: por um lado, a felicidade imperfeita nesta vida
(in via), que é identificada com a eudaimonia da vida filosófica de Aristó-
teles; por outro lado, a felicidade perfeita (in patria), que consiste na
visão da essência de Deus. A felicidade, no primeiro sentido, é a máxima
perfeição na ordem da natureza, enquanto que, no segundo sentido de
felicidade, supõe-se a mensagem da salvação e a fé do homem como ou-
vinte da palavra de Deus. Ora, a distinção entre essas duas formas de
felicidade põe um problema hermenêutico: uma vez que por “felicidade”
designamos a última perfeição do homem, resta saber em que sentido
se dá este caráter “último” de nosso fim como entes racionais, já que
“todos os homens por natureza desejam conhecer”. Tomás de Aquino
apresenta uma reformulação da visão aristotélica de que o homem de-
seja naturalmente conhecer, em conexão com a ideia de circulatio, de
proveniência neoplatônica: Deus é a origem e também o fim da Criação.
O fim último do homem é também um retorno a Deus. Na verdade, a be-
atitudo de toda substância intelectual consiste em conhecer a Deus 5.

4
In Boeth. De trin.,VI, a. 4 ad 3.
5
ScG III, c. 25.
38 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

Mas se o homem tende naturalmente ao conhecimento de Deus, por que


a distinção entre as duas formas de felicidade?
Ora, a hierarquia de bens na determinação do fim último do ho-
mem é estabelecida pela estrutura geral: há um ser perfeito e há entes
que dependem deste ser como causa primeira. A criatura de Deus é con-
siderada com base na diferença entre os modelos de predicação: per
essentiam e per participationem. Como sabemos, a influência da tradição
platônica sobre a metafísica de Sto. Tomás deixou uma marca profunda,
evidente em sua noção de participação. Por outro lado, neste ponto não
devemos acentuar, mais do que é necessário, o peso da tradição neopla-
tônica sobre o pensamento metafísico de Sto. Tomás. De fato, será
preciso situar, explicitamente, a noção de participação, segundo Tomás
de Aquino, no contexto da doutrina da criação 6. Somente assim ela al-
cançaria seu verdadeiro sentido. O termo “criação”, em Tomás de
Aquino, significa em primeiro lugar, a dependência do ser criado em rela-
ção a seu princípio 7. A referência do mundo a Deus traz uma significação
metafísica, na medida em que se considera a pergunta pela causa para o
ser dos entes 8. É preciso que tudo que é finito tenha sua origem segundo
um modo de feitura com base no primeiro princípio, não como tendo
seu ser participado em outro, mas que seja ser por si. Há uma resolução
dos seres participados ao ser subsistente 9. Por essa perspectiva, Deus é
concebido como princípio e causa de todos os entes. Deus é conceitual-
mente identificado como ipsum esse subsistens, que se refere a uma

6
VELDE, Rudi, Participation and Substantiality in Thomas Aquinas. Leiden, Brill, 1995, p. ix.
7
ScG. II, c. 18, n. 952; STh. Ia, q. 44-49.
8
GILSON, Ètienne Le Thomisme: Introduction a la philosophie de Sait Thomas d’Aquin. Paris: J. Vrin, 6 éd.,
1997, p. 193-207; TORREL, Jean-Pierre. Santo Tomás de Aquino: Mestre espiritual. São Paulo: Ed. Loyola,
2008, p. 277.
9
De subst. separ, c. 9.
Luis Carlos Silva de Sousa • 39

realidade absoluta e autossuficiente. Assim, participatio significa a cau-


salidade de Deus com relação a todas as coisas, “principium rerum et finis
earum” 10. Em linhas gerais, portanto, podemos dizer que Tomás de
Aquino concebe “criação” nos termos da tradição metafísica que tema-
tiza a noção de participação. Esta noção é concebida como uma síntese
das noções de ato e potência de Aristóteles e da noção de participação
em Platão, a partir, sobretudo, do influxo da tradição neoplatônica de
Dionísio e de Proclo. Com isso, a própria expressão creatio ex nihilo pode
ser interpretada em termos de participação, isto é, na medida em que os
entes são predicados como criaturas de Deus 11. Assim entendido, por-
tanto, “criação” identifica-se com “ente por participação” 12. Uma
formulação emblemática da diferença entre os modelos de predicação
per essentiam/per participationem encontra-se na seguinte passagem da
Summa theologiae: […] solus Deus est ens per essentiam suam; quia eius es-
sentia est suum esse; omnis autem creatura est ens participative, non quod
sua essentia sit eius esse 13.
O fim último ou o soberano bem da vida humana, porém, não pode
ser alcançado plenamente nesta vida. Por mais inquietante que essa
afirmação possa parecer, ela está na base da Moral de Tomás de Aquino.
Mas essa afirmação não deve nos conduzir a uma conclusão niilista
acerca de nossa existência. Pelo contrário, ela faz parte tão somente de
nossa condição de seres criados por Deus. A relação complementar en-
tre Fé e Razão, que caracteriza a vera beatitudo em Tomás de Aquino, já

10
“[...]começo e fim de todas as coisas” (STh. Ia, q. 2, prol.).
11
STh. Ia, q. 44.
12
AERTSEN, Jan. Nature and Creature: Thomas Aquinas’s Way of Thought. Leiden: E. J. Brill, 1988, p. 123.
[...] só Deus é ente por sua essência, porque sua essência é seu ser; ao passo que toda criatura é ente
13

por participação, uma vez que sua essência não é seu ser.”( STh. Ia, q. 104, a 1).
40 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

se encontraria na fórmula que remonta a Agostinho: credo ut intelligam


e intelligo ut credam. O problema próprio da filosofia greco-romana
acerca da busca da felicidade recebe, assim, uma resolução emblemática
na sabedoria cristã. Segundo Agostinho, esta sabedoria evita os erros dos
filósofos pagãos, identificando a eudaimonia com a visão de Deus 14. É sob
esse aspecto que o estudo de nossa moralidade não pode ser isolado da
Metafísica, que lhe fornece o fundamento adequado: há um paralelismo
rigoroso, na argumentação de Sto. Tomás, entre a moralidade das ações
humanas e a concepção de Deus como causa primeira 15.
É verdade que a Metafísica tem como subiectum próprio a quidi-
dade dos entes materiais, segundo o Comentário à metafísica de
Aristóteles (Capítulo IV, infra). Entretanto, tal como é expresso na Summa
contra Gentiles, se esse subiectum for analisado sob o ponto de vista do fim
último ou da causa primeira dos entes, então podemos considerar as coi-
sas divinas como princípios do sujeito da metafísica (ciência divina ou
teologia dos filósofos). Mas não é possível tematizar Deus, sob todos os
seus aspectos acessíveis ao homem, sem considerá-lo como criador,
pois todo ente é criado por Deus. Ora, tudo o que é distinto de Deus não
é seu ser, mas participa do ser 16. Assim, como criaturas racionais, as
nossas ações são morais à medida que, voluntariamente, tendem a um
certo fim captado pelo intelecto. Este fim é o bem incriado, transcen-
dente à ordem do finito, isto é, à ordem dos entes por participação.
Contudo, há uma inclinação natural a esse fim último, que é imanente
às criaturas racionais. Essa inclinação é chamada por Sto. Tomás de

14
SANGALLI, J. O Fim Último do Homem: da eudaimonia aristotélica à beatitudo agostiniana. Porto Alegre:
EDPUCRS, 1998.
15
STh. Ia-IIae, q. 1, a. 4; ScG III, c. 2.
16
STh.Ia, q. 44, a. 1.
Luis Carlos Silva de Sousa • 41

appetitus naturalis 17. A moralidade pode então ser concebida, de certo


modo, como prolongamento da criação, na medida em que Deus é não
apenas princípio, mas fim e regente de tudo 18.
Nesse movimento em direção ao fim último Tomás de Aquino vê
possível integrar o ideal aristotélico de contemplação ao cerne da moral
cristã. Esse processo de assimilação é bastante amplo, e excede ao meu
propósito examinar aqui todos os seus aspectos. Tendo em vista a noção
de beatitudo, porém, importa considerar apenas o seguinte: como Tomás
de Aquino desenvolve a sua própria noção de felicidade, uma vez que,
na Ethica Nicomachea, Aristóteles já se refere à necessidade de uma ver-
dadeira eudaimonia? O esclarecimento desse problema não pode
esquivar-se de uma distinção fundamental já encontrada em Aristóte-
les, a saber: a distinção entre felicidade perfeita e imperfeita 19. Sto. Tomás
identifica, com Aristóteles, a noção de felicidade imperfeita referente
àquilo que podemos obter nesta vida. Ao tratar do tópico da felicidade
imperfeita, além da filosofia grega representada por Aristóteles (livros
IX e X da Ethica Nicomachea), Tomás de Aquino reúne, em síntese pes-
soal, a tradição cristã representada por Agostinho (Confissões I, 1) e
Boécio (Consolação da filosofia, livro III, prosa 10, n. 10). No que se refere
ainda a Agostinho, o que está dito em De Beata Vita a esse respeito, deve
ser visto à luz das Retractationes. De acordo com a perspectiva cristã

17
STh. Ia, q. 80, a. 1. Um aspecto da expressão appetitus corresponde ao termo “tendência”, por dirigir-
se a um fim. Esta perspectiva põe, em primeiro plano, a tendência da vontade para o bem, como objeto
da finalidade (transcendência “horizontal”). Ressalte-se que - na linha personalista aberta por Karol
Wojtyla -, com base na simples análise das volições, em seus diversos aspectos (por ex., no que se refere
à noção tradicional de appetitus), não se alcança a estrutura interior da pessoa em seu dinamismo
próprio de autodeterminação, isto é, sua transcendência “vertical”: a transcendência da pessoa na ação.
WOJTYLA, Karol. Persona y acción. Edición de: Juan Manuel Burgos y Rafael Mora. Prólogo: Juan Manuel
Burgos. Traducción del polaco: Rafael Mora. 2ª ed. Madrid: Ediciones Palabra, 2014, p. 191-195.
18
GILSON, Étienne. Saint Thomas Moraliste. Paris: J. Vrin, 1974. 1974, p. 18.
19
VELDE. Rudi te. Aquinas on God: the ‘Divine Science’ of the Summa Theologiae. Ashgate, 2006, p. 155-160.
42 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

(isto é, a concepção do homem enquanto imago Dei), recebemos de Deus


mesmo a promessa da felicidade perfeita, cujas implicações, do ponto
de vista moral, exigem um tratamento específico acerca do modo de
consecução da vida contemplativa como vida plenamente feliz 20.

2.2 CONHECIMENTO DE DEUS E A FELICIDADE PERFEITA.

Na Prima Secundae da Summae theologiae, Tomás de Aquino afirma


que a perfecta beatitudo do homem consiste na visão da essência divina 21.
Esta afirmação parecerá talvez estranha, pelo menos de início, se con-
siderarmos que, para Sto. Tomás, “quod est maxime cognoscibile in se,
alicui intellectui cognoscibile non est, propter excessum intelligibilis supra
intellectum: sicut sol, qui est maxime visibilis, videri non potest a vespertili-
one, propter excessum luminis.” 22. Como, então, um intelecto criado pode
ver a Deus em sua essência, se o objeto próprio ao intelecto humano
consiste na quididade dos entes materiais 23? A consideração da felicidade
do homem, portanto, em Tomás de Aquino, tem como ponto de partida
o problema acerca do fim último da vida humana. Importa esclarecer,
porém, a conexão entre o nosso conhecimento de Deus e a noção de fe-
licidade.
O tratado sobre a felicidade (beatitudo), por assim dizer, está divi-
dido em cinco questões. A primeira questão pergunta pelo fim último
do homem; a segunda questão examina em que consiste a felicidade do

20
Sth. Ia-IIae, q. 3, a. 2 ad 4; Sth. Ia-IIae, q. 3, a. 5.
21
Sth. Ia-IIae, q. 3, a. 8.
22
“[…] o que é ao máximo cognoscível em si mesmo, não é cognoscível por um intelecto, por exceder
em inteligibilidade o intelecto: assim como o sol, que é ao máximo visível, não pode ser visto pelos
morcegos em razão do excesso de luz.” (Sth. Ia, q. 12, a. 1) Seria, em todo caso, pertinente uma
comparação dessa passagem com a conhecida metáfora aristotélica sobre os olhos do morcego (Meth.
II, 1, 993b9-10).
23
STh. Ia, q. 84, a. 7.
Luis Carlos Silva de Sousa • 43

homem, ou antes, naquilo em que ela não consiste (riquezas, honrarias,


fama, poder etc.); a terceira questão trata propriamente do que é a feli-
cidade do homem; a quarta pergunta sobre o que se requer para
obtenção da felicidade; a quinta questão trata da aquisição da felicidade,
isto é, se podemos alcançá-la nesta vida. A questão 3ª da Prima Secundae
contém oito artigos. Essa questão pode ser considerada a mais impor-
tante, inclusive em relação às duas posteriores, pois é aqui onde Tomás
de Aquino melhor esclarece sua noção de felicidade. O artigo 8º da ques-
tão 3ª é, por sua vez, o ápice dos artigos anteriores deste tratado.
Tendo assentado que o fim último do homem e de todas as criatu-
ras é Deus, e que a felicidade consiste precisamente na aquisição desse
fim último 24, é preciso então considerar se o intelecto humano pode re-
almente alcançar essa última perfeição. De fato, no primeiro capítulo da
Teologia Mística, Dionísio parece interditar, de forma antecipada, a pos-
sibilidade da visão da essência divina: “Dicit enim Dionysius, in 1 cap.
Myst. Theol., quod per id quod est supremum intellectus, homo Deo coniun-
gitur sicut omnino ignoto 25.”. Este texto, citado por Sto. Tomás, pode ser
confrontado com uma outra passagem do mesmo Dionísio, também
acerca de nosso conhecimento de Deus, extraída do primeiro capítulo
de Os Nomes Divinos: “Dionysius etiam 1 cap. de Div. Nom., loquens de Deo,
dicit: ‘neque sensus est eius, neque phantasia, neque opinio, nec ratio, nec
scientia’” 26. Em consequência, a última perfeição do intelecto não pode-
ria consistir na visão da essência divina. Essa primeira objeção se
apresenta como uma poderosa limitação ao nosso conhecimento, pois

24
STh. Ia-IIae, q. 2, a. 8.
25
“Com efeito diz Dionísio [Teologia Mística, c.1]: ‘Por aquilo que é o mais elevado do intelecto, o homem
se une a Deus como ao totalmente desconhecido’” (Sth. Ia-IIae, q. 3, a. 8, obj. 1)
26
“Por sua vez Dionísio, falando de Deus [Os Nomes Divinos, c. 1], diz: ‘Nem os sentidos o atingem, nem a
fantasia, nem a opinião, nem a razão, nem a ciência [itálico, no original]’” (Sth. Ia, q. 12, a. 1 obj. 1)
44 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

há algo que excede a capacidade de nosso intelecto e permanece “supra


omnem intellectum” 27. A assim chamada “teologia negativa” de Dionísio,
portanto, não obstante a forte influência que pode ser encontrada em
Sto. Tomás, especialmente sobre sua concepção das “três vias” de acesso
a Deus 28, parece antes impossibilitar a aquisição da perfeita felicidade.
Entretanto, para Tomás de Aquino, essas passagens de Dionísio deve-
riam ser interpretadas noutro sentido. Elas indicam apenas o
conhecimento daqueles “qui sunt in via, tendentes ad beatitudinem” 29, não
daqueles que têm uma “visione comprehensionis” de Deus 30. A outra obje-
ção, suposta por Sto. Tomás, é a seguinte: “[…] altioris naturae altior est
perfectio. Sed haec est perfectio divini intellectus própria, ut suam essentiam
videat. Ergo ultima perfectio intellectus humani ad hoc non pertingit, sed
infra subsistit 31. Para esclarecer em que medida essa objeção não pro-
cede, convém retornarmos a uma importante distinção, apresentada
por Sto. Tomás no artigo 8º da primeira questão da Prima Secundae,
acerca da noção de fim. Com efeito, o fim pode ser entendido de duas
maneiras, inspirando-se no que diz Aristóteles no livro II da Física e no
livro V da Metafísica: (1) o fim do qual, que se refere à coisa desejada; (2)
o fim pelo qual, que se refere à consecução dessa coisa 32. Portanto, de
acordo com Sto. Tomás, o fim da natureza superior (Deus) é mesmo di-
verso do fim da natureza inferior (homens, anjos), considerando a
distinção precedente: “Sic igitur altior est beatitudo Dei suam essentiam

27
“[…] acima de qualquer intelecto” (Sth. Ia, q. 12, a. 1, obj. 2)
28
Sth. Ia, q. 84, a. 7 ad 3.
29
“[…] que estão em via, tendentes à felicidade” (Sth. Ia-IIae, q. 3, a. 8 ad 1).
30
“[…] visão compreensiva” (Sth. Ia, q. 12, a. 1 ad 1).
31
“[…] é próprio de uma natureza mais elevada, uma perfeição mais elevada. Mas essa é a perfeição
própria do intelecto divino: ver a sua essência. Logo, a última perfeição do intelecto humano a isso não
atinge, e permanece em grau inferior” (Sth. Ia-IIae, q. 3, a. 8 obj. 2).
32
Sth. Ia-IIae, q. 1, a. 8.
Luis Carlos Silva de Sousa • 45

intellectu comprehendentis, quam hominis vel angeli videntis, et non com-


prehendentis” 33. É fundamental a concepção de que podemos - ao menos
em princípio- ver a essência de Deus, pois disto depende a nossa plena
felicidade (ver adiante, seção 3). Por isso, a distinção proposta por Aris-
tóteles será mobilizada contra a aparente interdição de Dionísio. Mas
essa distinção aristotélica conduz igualmente para além de Aristóteles,
como veremos a seguir. Antes disso, porém, consideremos brevemente
dois aspectos relativos ao nosso conhecimento da essência divina, apre-
sentados na resposta do artigo 8º da questão 3ª. Essas considerações
devem esclarecer melhor a noção de felicidade perfeita.
Uma primeira consideração é a seguinte: “quod homo non est per-
fecte beatus, quandiu restat sibi aliquid desiderandum et quaerendum.” 34
Isto diz respeito à consecução do fim. A outra consideração, ou seja, “que
a perfeição de uma potência se considera segundo a razão de seu objeto”,
diz respeito à coisa mesma desejada. Com isso, Sto. Tomás preserva a es-
trutura da distinção aristotélica, no que se refere à noção de fim, mas
enxerta em tal estrutura um novo quadro interpretativo, com uma intenção
que já não mais se identifica com a de Aristóteles. Tomás de Aquino tam-
bém se serve, para propósitos pessoais, da afirmação aristotélica no
livro III do De Anima: “o objeto do intelecto é aquilo que é (quod quid est)”.
Deste modo, a consequência é clara: a perfeição do intelecto consiste no
conhecimento da essência de uma coisa. Ora, para Sto. Tomás, somente
conhecemos nesta vida a essência dos efeitos, não a essência da causa, a
saber: o que é a causa. Através dos efeitos, podemos conhecer apenas se

33
“Donde ser mais elevada a felicidade de Deus ao compreender com o intelecto a sua essência, do que
a felicidade do homem ou dos anjos, que veem mas não compreendem” (Sth. Ia-IIae, q. 3, a. 8 ad 2).
34
“[…] o homem não é perfeitamente feliz quando ainda lhe fica algo para desejar ou querer.” (Sth. Ia-
IIae, q. 3, a. 8, resp.)
46 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

há causa (causa an sit), e não o que é a causa (causa quid est). Apoiando-
se, portanto, em Aristóteles, é possível dizer que, ao conhecer o efeito,
o homem se admira, e naturalmente permanece nele o desejo de conhe-
cer a causa. Assim, o desejo natural (appetitus naturalis) de investigar a
causa não encontrará repouso enquanto não se conhecer a essência
dessa causa. Na perspectiva de Sto. Tomás, a causa última a ser alcan-
çada é Deus mesmo. Por isso, o intelecto humano trata, neste contexto,
da essência do efeito criado. O fim último de nosso intelecto é a própria
causa que possibilita a consecução desse efeito. Tomás de Aquino parte
do princípio de que “[…] impossibile sit naturale desiderium esse inane
[…]” 35. Nenhuma substância criada pode, pela sua própria potência na-
tural, chegar a ver a Deus em sua essência 36. Por exceder à capacidade
do intelecto humano, é preciso considerar, então, a necessidade de um
influxo da luz divina para se ver a Deus em sua essência 37. Desta forma,
a possibilidade de se conhecer a primeira causa em sua essência de-
pende já da própria participação no intelecto divino. Portanto, o influxo
da luz divina sobre o intelecto criado é uma condição indispensável para
que a essência de Deus seja vista 38.
Esses tópicos, longamente desenvolvidos na Summa contra Gentiles,
são supostos por Sto. Tomás ao examinar o artigo 8º da questão 3ª do
tratado da felicidade na Summa theologiae. A distinção entre as noções
de felicidade perfeita e imperfeita pode ser esclarecida devidamente ape-
nas quando analisamos – com base no movimento intrínseco de nosso

35
[…] é impossível que o desejo natural seja vão [...]” (ScG III, c. 51).
36
COSTA, Ricardo da; SILVEIRA, Sidney. “Como Deus é ciente em sua essência divina: A presciência de
Deus em Santo Tomás de Aquino e no Livro da Contemplação (c. 1271-1273) de Ramon Llull”. In:
Trans/Form/Ação, Marília, v. 38, n. 2, p. 9-34, Maio./Ago., 2015.
37
ScG III, c. 52.
38
Sth. Ia, q. 12, a. 4 c.
Luis Carlos Silva de Sousa • 47

desejo natural - o modo como conhecemos a essência divina - uma dis-


tinção que, em Sto. Tomás, supõe a dualidade natureza/graça 39. A
felicidade perfeita é, portanto, a visão da essência divina 40 (Sth. Ia-IIae, q.
3, a. 8c). Mas, como podemos inferir, a felicidade perfeita ocorrerá somente
na outra vida, não nesta, quando então o intelecto humano poderá atingir a
essência da primeira causa. É ainda com base na concepção de fim último
do homem que, em Sto. Tomás, será permitido encontrar um fio condu-
tor entre as noções de beatitudo e religio.

3. A RELIGIÃO E O FIM ÚLTIMO DO HOMEM (STH. IIA-IIAE, Q. 81, A. 1).

Iniciemos com o artigo único da questão 80ª (“De partibus potenti-


alibus iustitiae” 41) da Segunda Parte da Segunda Parte da Summa
Theologiae, onde já encontramos uma definição de religião, quando
Santo Tomás analisa a enumeração das virtudes anexas à justiça. Este é
o primeiro passo, antes de considerar diretamente meu objetivo aqui: o
texto do artigo 1º da questão 81ª.
Segundo Cícero (De invent. rhet., I, II, c. 53), há seis virtudes anexas
à Justiça: Religião, Piedade, Gratidão, Punição, Veneração e Verdade.
Entretanto, Cícero omite outras virtudes que podem ser apresentadas
também como anexas. É o caso, por exemplo, da enumeração de Macró-
bio (super Somnium Scipionis, livro I, c. 8), que admite sete (Inocência,
Amizade, Concórdia, Piedade, Religião, Afeição e Humanidade). Para que
uma virtude seja considerada anexa a uma principal é preciso (a) que
essa virtude tenha algo em comum com a principal e (b) que lhe falte

39
Sth. Ia, q. 62, a.1; LUBAC, Henri de Surnaturel, études historiques. (Théologie, 6). Paris: Aubier, 1946;
VELDE. Rudi te. Aquinas on God: the ‘Divine Science’ of the Summa Theologiae, op. cit., 2006, p. 155.
40
Sth. Ia, q. 62, a.1.
41
“Das Partes Potenciais da Justiça” (Sth. IIa-IIae, q. 80).
48 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

algo da virtude principal para que sua noção seja perfeita. Na medida
em que a justiça é uma virtude que se refere ao outro, as virtudes que
também se referem ao outro poderão ser consideradas como partes po-
tenciais da justiça. Ora, a justiça é sempre relativa ao outro 42 e sua noção
consiste precisamente em dar a cada o que lhe é devido 43. Assim, uma vir-
tude anexa é deficiente em relação à noção de justiça de dois modos: (a)
por lhe faltar a noção de igualdade ou (b) por lhe faltar a noção de de-
vido. Há virtudes anexas que consistem em dar ao outro o que lhe é
devido, mas não de acordo com a noção de igualdade. Mas não se pode
retribuir em igualdade aquilo que recebemos de Deus. O homem deve
tudo a Deus, inclusive seu ser. Com efeito, a própria lei divina procura
tornar os homens virtuosos e o fim da lei divina é o amor de Deus 44. Com
efeito, no homem há duas coisas pelas quais ele pode unir-se a Deus: o
intelecto e a vontade 45. O fim da lei divina é formar homens bons e o
homem é tido por bom quando tem uma vontade boa. Ora, a vontade é
boa na medida em que deseja o bem, principalmente o Sumo Bem.
Tomás de Aquino retém a definição de Cícero, segundo a qual a
religião consistiria em “superioris cuiusdam naturae, quam divinam vo-
cant, curam caeremoniamque vel cultum affert” 46. Esta será a mesma
definição apresentada em sentido contrário (sed contra) às objeções do
artigo 1º da questão 81ª da Summa Theologiae 47. Ao conceber a religião
como parte potencial da justiça, porém, Tomás de Aquino está longe de

42
STh IIa-IIae, q. 58, a. 2.
43
STh, IIa-IIae, q. 58, a. 11.
44
ScG. III, c. 116.
45
ScG. III, c. 116.
46
“[…] apresentar cerimônias e culto à natureza superior designada pelo nome de divina” (Sth. IIa-IIae,
q. 80, art. unicus, resp.)
47
STh. IIa-IIae, q. 81, a .1.
Luis Carlos Silva de Sousa • 49

fazer dela uma virtude secundária. Pelo contrário, há uma ampla expo-
sição sobre esse tópico na Summa Theologiae (IIa-IIae, q. 81-100), onde
podemos observar o esforço de Sto. Tomás em sintetizar elementos das
tradições éticas (gregas e romanas) e os dados da revelação bíblica. A
religião é, por assim dizer, uma “virtude-eixo”, chamada a ordenar o
homem como um todo. Ela tem como objeto não Deus em si, mas o culto
que o homem deve prestar a Deus. Entretanto, como já foi dito, o re-
torno do homem a Deus, nesta vida, não pode ser alcançado plenamente.
O homem não se ordena à comunidade política segundo todo seu ser 48.
Daí a necessidade da Revelação e das virtudes teologais. Recordemos
que padre Chenu usou a famosa expressão “ontologia da graça”, a pro-
pósito da segunda parte da Summa Theologiae 49. Para a virtude da
religião, Deus mesmo não é objeto, mas fim. Trata-se de uma virtude
especial, pois o bem que é objeto da religião consiste em dar a Deus a
honra devida, por causa de sua excelência, como princípio e fim último.
Assim, o tipo de relação entre o homem e Deus, que Tomás de Aquino
entende existir na tradição cristã, supõe uma exigência não apenas li-
túrgico-cultual, mas também moral. A religião é vista pela perspectiva
cristã como ordenando em sentido amplo, isto é, referindo-se ao ho-
mem como tal, em vista do fim último, absoluto. De fato, a religião como
virtude moral tem por objeto o que se ordena a Deus como ao fim. Uma
importante novidade deste modo de conceber de Sto. Tomás, se tomar-
mos Aristóteles como parâmetro, é que a referência a Deus através da
religião excede o plano natural dos bens relativos e envolve o homem como
pessoa.

48
Sth. Ia-IIae, q. 21, a. 4 ad 3.
49
CHENU, Marie-Dominique. Introduction à l’étude de saint Thomas d’Aquin. Paris: J. Vrin, 1950, p. 270.
50 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

A questão 81ª (De religione) da Segunda Parte da Segunda Parte da


Summa Theologiae, composta de oito artigos, ocupa um lugar de desta-
que no tratado da religião de Tomás de Aquino. É possível encontrar,
nesta questão, os elementos fundamentais que serão, depois, retomados
e desenvolvidos nas outras questões desta parte da Summa Theologiae.
Meu propósito não consiste em enfatizar a religião como virtude moral
- embora não possamos prescindir deste aspecto, como se verá adiante-
mas, sobretudo, examinar como a religião ordena o homem para a beati-
tudo, que é a visão da essência de Deus. No primeiro artigo da questão 81ª,
Tomás de Aquino pergunta: “Utrum religio ordinet hominem solum ad
Deum” 50. Em sua resposta, Sto. Tomás confirma a interpretação do
termo religio por Agostinho, seja no sentido de reeleger (uma nova elei-
ção) a Deus, a quem por negligência perdemos (De Civitate Dei, X, c. 3,
2) 51, seja no sentido de religar a Deus único e onipotente 52. Para tornar
compatível sua perspectiva com a de Agostinho (354-430), Tomás de
Aquino reinterpreta o que escreve Isidoro de Sevilha (c. 560-636) na obra
Etymologiae (livro X, n. 234): “Religioso (adjetivo derivado de religião) é
definido por Cícero [De nat. deor., I, II, c. 28] como aquele que repassa e,
por assim dizer, relê o que se refere ao culto divino”. O religioso relê o
culto divino no sentido de uma reflexão sobre Deus. O culto é refletido
no coração do fiel, uma releitura que é também reeleição. Ora, reeleição
ou religação implicam orientação para Deus como princípio, “para
quem, além disso, nossa eleição se deve dirigir continuamente, como
para o último fim” [ad quem etiam nossa electio assidue dirigi debet, sicut

50
“Se a religião ordena o homem somente para Deus” (Sth. IIa-IIae, q. 81, a .1).
51
GILSON, Étienne. Introduction à l’étude de Saint Augustin. Paris: J. Vrin, 1943, p. 3.
52
STO. AGOSTINHO, De Vera Religione, c. 55, n. 113. Disponível em: http://www.augustinus.it/latino/
vera_religione/index.htm. Acesso em setembro de 2022.
Luis Carlos Silva de Sousa • 51

in ultimum finem] 53. Através do culto, portanto, manifesta-se a religação


a Deus. Como em Agostinho, vê-se também que, para Tomás de Aquino,
o termo religio assume um caráter mais amplo e radical do que amiúde
se pensa, pois diz respeito ao modo especial da relação do homem com
Deus. A religião supõe uma dupla ação: ação produzida pelo homem (sa-
crificar, adorar etc.), que o orienta somente para Deus, e ação produzida
mediante as virtudes, que ordenam à reverência divina. Virtudes como
a temperança, por exemplo, são ordenadas à reverência divina pelo ato
da religião. Isto porque, como diz Sto. Tomás, à virtude da religião per-
tence o fim, enquanto as outras virtudes são orientadas ao fim sob a
ordenação da religião. Daí a religião não se aplicar a nada que não seja
o culto divino. Como criatura racional, o homem é conduzido de modo
especial pela providência divina, que governa para o próprio bem do ho-
mem. Em seu governo, Deus não visa somente o bem comum da espécie
humana; visa cada homem em particular. O homem é chamado a unir-
se a Deus por amor. Mas, é claro, há uma desproporção entre o homem
e Deus, e a virtude pela qual reconhecemos ter para com Deus uma dí-
vida de reverência é a virtude da religião. É preciso acrescentar que a
bondade de Deus não é apenas maior do que a dos seres finitos, mas
essencialmente diferente. Por isso mesmo, a religião não se confunde
com nenhuma outra virtude. Ela consiste na religação (religio/religare) a
Deus como fonte contínua de nosso ser e fim último de nossas decisões.
A bondade divina transcende todas as coisas, o que nos faz render a Deus
a homenagem que devemos somente a ele.
Os sete artigos seguintes se relacionam ao artigo 1º em proporção
semelhante ao que será representado pela questão 81ª para as outras

53
STh. IIa-IIae, q. 81, a. 1.
52 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

questões do tratado da religião. Encontram-se, no primeiro artigo, os


elementos essenciais que irão depois ser retomados e desenvolvidos.
A religião é uma virtude 54. Com efeito, segundo Tomás de Aquino,
“virtude é o ato que torna bom quem a tem e boa a sua obra”. Assim,
todos os atos bons pertencem à virtude. Ora, pertence à noção de bem
pagar o que está em débito, restabelecendo-se com isso uma relação de
conveniente proporção com o outro e ordenando-se convenientemente
com ele. Neste ponto também, Sto. Tomás segue a afirmação de Agosti-
nho (Natura Boni, c. 3), para quem à noção de bem pertencem a ordem,
o modo e a espécie (ordo, modus, species). “Logo, como pertence à religião
prestar a devida honra a alguém, isto é, a Deus, torna-se evidente que a
religião é uma virtude.” [Cum igitur ad religionem pertineat reddere hono-
rem debitum alicui, scilicet Deo, manifestum est quod religio virtus est] 55. O
único motivo pelo qual devemos reverência a Deus consiste no seguinte:
Deus é o primeiro princípio da criação e do governo das coisas. Como, se-
gundo Sto. Tomás, pertence à religião reverenciar um só Deus, ela deve
ser considerada uma só virtude 56, já que os hábitos distinguem-se pelos
objetos 57.
A referência primeira de Tomás de Aquino a Cícero, para a defini-
ção de religião, parece sugerir um importante aspecto de seu
pensamento: a virtude da religião não está conectada exclusivamente
nem necessariamente à revelação cristã 58. De fato, Tomás de Aquino
acentua o caráter especial da virtude da religião. A virtude é ordenada

54
STh. IIa-IIae, q. 81, a. 2.
55
Sth. IIa-IIae, q. 81, a. 2.
56
STh. IIa-IIae, q. 81, a. 3.
57
STh. Ia-IIae, q. 54, a. 2 ad 1.
58
GILSON, Ètienne Le Thomisme: Introduction a la philosophie de Sait Thomas d’Aquin, op. Cit., 1997, p. 409.
Luis Carlos Silva de Sousa • 53

ao bem, e, onde há uma especial noção de bem, há uma virtude especial


. O bem para o qual a religião remete consiste em dar a honra devida a
Deus. Esta honra especial ocorre pela excelência de Deus, que a tudo
transcende. Tomás de Aquino se serve da noção de excessus da tradição
neoplatônica de Dionísio para acentuar a infinita transcendência de
Deus 59.
Há múltiplas excelências das pessoas e lhes cabem diferentes hon-
ras (uma aos pais, outra ao rei etc.). No caso de nossa relação com a
excelência de Deus, por seu caráter singular, é necessário que a virtude
que ordena a esse bem seja especial. Com efeito, o objeto da honra ou da
reverência é a excelência de Deus, por isso o culto não é um ato que
atinge o próprio Deus: ele não é o objeto da religião, mas o seu fim. Daí
a afirmação de Sto. Tomás: a religião não é uma virtude teológica, cujo
objeto é o próprio fim último, mas uma virtude moral 60.
Por outro lado, a Religião é superior às outras virtudes morais 61. O
que é orientado para o fim é bom na proporção de sua aproximação a
esse fim. Deste modo, tanto mais próximo do fim está uma virtude mo-
ral, tanto mais ela é superior às outras. A religião está mais próxima de
Deus, já que suas ações direta e imediatamente são ordenadas para a
honra divina. É importante observar que estamos aqui bem distantes do
meio termo exigido pela virtude da justiça: não há igualdade perfeita em
nossa retribuição a Deus. Permanece sempre uma desproporção em
nossa referência ao divino. Mas para Tomás de Aquino o louvor da vir-
tude está na vontade, não no poder 62. Assim, a nossa desproporção em

59
STh. IIa-IIae, q. 81, a. 4.
60
STh. IIa-IIae, q. 81, a. 5.
61
STh. IIa-IIae, q. 81, a. 6 c.
62
STh. IIa-IIae, q. 81, a. 6 ad 1.
54 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

retribuir a Deus conforme sua excelência não diminui o louvor da vir-


tude, exceto se houver defeito na vontade. É a intenção da vontade que
fornece à virtude da religião seu mérito. De fato, o culto religioso supõe
atos interiores, através dos quais reconhecemos nossa submissão a Deus
e afirmamos a sua glória. Estes atos são essenciais à religião. Neste sen-
tido, a crítica de Spinoza ao “ritualismo judaico” de seu tempo não
atinge Sto. Tomás, pois o culto ao qual este se refere é bem diferente
daquele que foi criticado no Tratado Teológico-Político 63. Não por acaso,
na ordem da exposição da parte sobre a moral de Sto. Tomás, É. Gilson
faz seguir “O Fim Último” (c. VI) do capítulo sobre “A Vida Religiosa” (c.
V) 64.
Para Tomás de Aquino a nossa mente é elevada a Deus através dos
sentidos (seção 2.1), pois é somente por eles que se inicia o conheci-
mento intelectual humano. Assim, o próprio Deus providenciou para
que a mente humana fosse reconduzida às coisas divinas, uma vez que
não podemos contemplá-las em si mesmas (seção 2.2). Em razão desse
limite, os homens introduziram sacrifícios oferecidos a Deus, não por-
que Deus deles necessite, mas para que o homem reconheça seu dever
para com Ele. Assim, os atos exteriores da religião, que lhe são secun-
dários, são ordenados aos atos interiores, que lhe são essenciais 65.
Tomás de Aquino conclui o bloco dos oito artigos que tratam da
religião em si mesma perguntando se a religião se identifica com a san-
tidade. Há uma dupla consideração de “santidade”, que Sto. Tomás
retoma de Isidoro: como pureza, para elevar o espírito a Deus, pois no

63
GILSON, Ètienne Le Thomisme: Introduction a la philosophie de Sait Thomas d’Aquin, op. Cit., 1997, p. 410.
GILSON, Ètienne Le Thomisme: Introduction a la philosophie de Sait Thomas d’Aquin, op. Cit., 1997, p. 429-
64

435.
65
STh. IIa-IIae, q. 81, a. 7.
Luis Carlos Silva de Sousa • 55

culto divino, “não só os homens, mas também os templos, os vasos sa-


grados etc., são ditos santos”; como firmeza, para que o espírito se una
a Deus, fim último e primeiro princípio de tudo. Daí a busca pelo fim
último pressupor, de algum modo, também a busca da santidade, uma
vez que, através da religião, mais se aproxima o espírito humano de
Deus 66.
Neste sentido, religião e santidade basicamente não se distinguem.
Se antes Tomás de Aquino afirmara que a santidade e a justiça forma-
vam partes da religião, isto não significa uma distinção real, mas apenas
de razão 67.

CONCLUSÃO

A abordagem da religião como virtude moral por Tomás de Aquino


supõe, entre limites, a possibilidade de se alcançar a beatitudo. De
acordo com Tomás de Aquino, através da religião o homem reconhece
sua submissão ao bem supremo, e nisto consiste a nossa perfeição como
seres humanos. Esperamos ter acenado para o esforço de compreensão
por parte de um autor medieval sobre o fim último da vida humana: ele
consistiria na visão da essência divina, e a religião contribui, através das
manifestações do culto, à consecução deste fim. Neste percurso Tomás
de Aquino pretende recolher os ensinamentos de Aristóteles, Agostinho
e Dionísio no sentido de articular a busca da beatitudo na visão da glória
de Deus.
Qual a relevância da religião, hoje, para a realização plena da vida
humana, isto é, para a perfecta beatitudo do ser humano? Não há mais

66
STh. IIa-IIae, q. 81, a. 8.
67
STh. IIa-IIae, q. 81, a. 8 ad 3.
56 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

hoje, como no tempo de Tomás de Aquino, um consenso tácito sobre o


papel positivo da religião na formação da cultura. Se é verdade que To-
más não visava apenas o cristianismo em sua discussão sobre a noção
de religião como virtude moral, não deixa de ser relevante, para a men-
talidade moderna, o fato de que, sob pretexto de defesa da fé cristã,
atrocidades foram praticadas em nome da religião. No contexto atual,
marcado pelo processo de secularização em curso, há cada vez mais uma
enorme desconfiança sobre se a ética mantém ainda ligações estrutu-
rais com a religião. A concórdia entre felicidade (beatitudo) e religião
(religio) está longe de ser evidente para o homem moderno (ou pós-mo-
derno). Ora - afirma-se com frequência-, renunciar à religião não seria
renunciar à moral, pois esta não dependeria daquela. A moral – e isto é
verdade- não seria inteligível somente no contexto da religião. Está em
curso uma forma específica de secularização da moral, que traz consigo
a proposta de uma fundamentação “pós-convencional”, isto é, uma mo-
ral não mais amparada na religião. No caso de Tomás de Aquino, porém,
há uma noção de beatitudo que permitiria compatibilizar –distinguindo
para unir- moral e religião, na medida em que pensa a própria religião
como uma virtude moral.
3
A NOÇÃO DE EXCESSUS: SOBRE O ALCANCE DO
CONHECIMENTO HUMANO DE DEUS (STH. Iª., Q. 84,
A. 7 AD 3M)

1. CONTEXTUALIZAÇÃO: CONHECIMENTO NEGATIVO E TRANSCENDÊNCIA


DE DEUS.

O que se deve entender por excessus, em Tomás de Aquino (Sth. Iª,


q. 84, a. 7 ad 3m), está situado no todo de sua compreensão acerca do
conhecimento intelectual humano. O termo excessus é a versão latina do
grego ὕπεροχή (preeminência, transcendência ou ultrapassamento),
para indicar a via de eminência (via eminentiae, per excessum) de nosso
conhecimento da plenitude das perfeições de Deus, isto é, a “transcen-
dência” das perfeições próprias de Deus. O termo está situado na
confluência de diversas tradições, que vincula aspectos filosóficos e te-
ológicos de inspiração neoplatônica, desde os Padres da Igreja, e que
alcança significativa projeção a partir do tratado De divinis nominibus de
Dionísio.
Para uma maior compreensão da noção de excessus cumpre desta-
car alguns aspectos centrais que balizam o conhecimento intelectual
humano - e, nele, o aspecto negativo de acesso a Deus. O modo de pro-
ceder deste conhecimento foi afirmado muitas vezes, em diversos
textos, como tendo um caráter negativo. Consideremos o que é dito, a
princípio, em algumas passagens mais conhecidas, que mostram um fio
de continuidade a respeito do tema:
58 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

Non enim de Deo capere possumus quid est, sed quid non est, et qualiter
alia se habeant ad ipsum 1.

No prólogo da questão 3ª da Primeira Parte da Summa theologiae


podemos observar como Tomás de Aquino advoga uma versão de teolo-
gia negativa (presente também na passagem anterior da Summa contra
Gentiles), cujo representante mais expressivo, no Ocidente Latino, era
Dionísio (como hoje sabemos, Pseudo-Dionísio ou Dionísio Pseudoare-
opagita):

Cognito de aliquo an sit, inquirendum restat quomodo sit, ut sciatur de eo


quid sit. Sed quia de Deo scire non possumus quid sit, sed quid non sit, non
possumus considerare de Deo quomodo sit, sed potius quomodo non sit. 2

Tomás de Aquino menciona constantemente Dionísio e suas obras,


no que se refere ao conhecimento de Deus. Nunca será demasiado insis-
tir na importância de Dionísio para o pensamento de Tomás de Aquino,
em particular no que se refere à afirmação de que há uma triplex via ou
modo de conhecer a Deus, nesta vida presente: per viam negationis, cau-
salitatis e supereminentiae (por ultrapassamento [per excessum]). Nosso
intelecto aproxima-se de Deus, paradoxalmente, sem diminuir a distân-
cia infinita de sua Transcendência. Neste ponto Tomás de Aquino pode
ser visto como um herdeiro de Dionísio, ao integrar o enfoque negativo
no todo de sua epistemologia de caráter não exclusivamente aristoté-
lico.

1
“Com efeito, não podemos captar a respeito de Deus o que é, mas o que não é e como o resto se refere
a Ele” (ScG I, c. 30)
2
“Conhecido de algo se é, resta investigar como é, para que se saiba a seu respeito o que é. Ora, como
não podemos saber a respeito de Deus o que é, mas o que não é, não podemos considerar a respeito
de Deus como é, mas antes como não é” (Sth. Iª, q. 3, prol.)
Luis Carlos Silva de Sousa • 59

Essa perspectiva não deixou de suscitar alguma controvérsia na


“história dos tomismos” do século XX, no contexto geral da discussão
sobre as relações entre a metafísica de Tomás de Aquino e a tese da on-
toteologia 3. O debate entre Antoine D. Sertillanges (1863-1948) e Jacques
Maritain (1882-1973) sobre o escopo de nosso conhecimento de Deus (“Ce
que Dieu est”) tornou-se emblemático, e aponta para supostas antino-
mias (inscritas na própria “raison thomiste”) no que se refere ao alcance
desse conhecimento. Uma forma específica de conflito de interpreta-
ções produzida por aquilo que devemos entender por “conhecimento
humano de Deus”, em Tomás de Aquino, diz respeito justamente ao es-
tatuto da noção de excessus, e que norteou parte central da crítica de
Cornelio Fabro (1911-1995) a Karl Rahner (1904-1984) 4.
Na intenção de retornar ao próprio texto de Tomás de Aquino, con-
vém observar, acerca da transcendência divina, que a compreensão da
noção de excessus parece não prescindir do caráter negativo do conhe-
cimento intelectual humano e do reconhecimento de uma metafísica
apofática que lhe é constitutiva. Noutras palavras, a metafísica de To-
más de Aquino culmina em apofatismo, em teologia negativa – o que
não significa niilismo 5. O viés apofático da noção de excessus deve ser
posto em relevo - e, como veremos, está vinculado à importância meto-
dológica fundamental da triplex via do conhecimento humano de Deus.

PROUVOST, Géry. Thomas d’Aquin et les thomismes: Essai sur l’histoire des thomismes. Paris: Les Éditions
3

du Cerf, 1996.
4
RAHNER, Karl. Geist in Welt: zur Metaphysik der endlichen Erkenntnis bei Thomas von Aquin, 3. Aufl.,
München: Kösel, 1964; FABRO, Cornelio. La Svolta Antropologica di Karl Rahner, Milano: Rusconi, 1974;
SOUSA, Luís Carlos Silva de. Epistemologia e Transcendência: Duas leituras de Tomás de Aquino sobre o
alcance do conhecimento humano de Deus. Fortaleza: Edições UFC, 2015.
5
MARITAIN, Jacques. Distinguer pour Unir ou Les Degrés du Savoir. 5 éd. Paris: Desclée de Brower, 1946, p.
468-478; POSSENTI, Vittorio. Nihilism and Metaphysics: The Third Voyage. Transl.: Daniel B. Gallagher. State
University of New York, 2014.
60 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

2. CONHECIMENTO NEGATIVO E A NOÇÃO DE EXCESSUS.

A problemática acerca da noção de excessus (transcendência ou ul-


trapassamento) está situada no contexto geral do alcance de nosso
conhecimento intelectual sobre as perfeições de Deus. O enfoque meta-
físico dessa questão deve levantar a pergunta fundamental sobre como
Tomás de Aquino entende nosso acesso aos entes materiais e imateriais:
no cerne da discussão sobre a transcendência divina está a afirmação de
que nosso conhecimento ocorre por um processo de ultrapassamento
das perfeições existentes nos entes materiais, o que nos leva ao extremo
de conhecermos a Deus apenas como desconhecido (seção 3). O acesso
ao que é estudado pela Metafísica – na medida em que o sujeito (subjec-
tum) desta ciência é o ente enquanto ente-, ocorre através do juízo
negativo: por um penoso e gradual processo de remoção das notas ca-
racterísticas do ente de natureza sensível (matéria e movimento),
passamos à noção (ratio) de ente precisamente como ente. O juízo nega-
tivo possibilita uma abertura à noção de ente material sem fornecer um
modo positivo de apreensão do ente imaterial.
O aspecto negativo do conhecimento humano– a ser ressaltado-
diz respeito, em primeiro lugar, ao próprio ente material, pois suas di-
ferenças essenciais nos são desconhecidas 6. Isto parece colidir com uma
outra tese central de Tomás de Aquino, que afirma ser o objeto próprio
do intelecto humano, unido ao corpo, a quididade ou natureza existente
na matéria corporal - e que somente assim podemos ascender do que é
visível às coisas invisíveis 7. Entretanto, as duas teses são simultanea-
mente afirmadas. Por um lado, no ponto de partida de nosso

6
De ente, c. 5, nº 67.
7
STh. Iª, q. 84, a 7.
Luis Carlos Silva de Sousa • 61

conhecimento intelectual, no presente estado de peregrinação terres-


tre, estão as fantasias (phantasmata), que constituem a base de tudo que
cai sob nossa consideração. Mas, por outro lado, há algo que excede tanto
o que cai sob o sentido como o que cai sob a imaginação: o que não de-
pende em nada da matéria (nem de acordo com a coisa, nem de acordo
com nosso intelecto). O acesso ao divino ocorre por um juízo negativo de
separação (separatio). Daí a lição proveniente de Dionísio, que sustenta
modos de conhecer o divino a partir dos sentidos: o conhecimento que
alcançamos a partir do ente material, de acordo com o juízo, não deve
ser terminado nem na imaginação nem no sentido. Com base no que é
apreendido pelo sentido ou pela imaginação, chegamos a algum conhe-
cimento do divino, quer pela via da causalidade (pois a partir do efeito
considera-se a causa que não é comensurada com o efeito, mas que lhe
é superior), quer por ultrapassamento, quer por remoção (isto é, quando
separamos das coisas tudo o que o sentido ou a imaginação apreende).
Para uma visão específica sobre a transcendência de Deus, considerada
a partir das perfeições presentes nos entes materiais, devemos trazer à
baila a noção de excessus, situada na triplex via de Dionísio, de tal modo
a nos conduzir a algum conhecimento acerca das coisas divinas 8.
A importância da teologia negativa de Dionísio pode ser conside-
rada, em particular, no que se refere à noção de excessus, quando
examinamos os traços fundamentais da epistemologia negativa de To-
más de Aquino, inserida no quadro conceitual da tradição aristotélica.
Ao analisar o modo de proceder da teologia filosófica no artigo 2º da
questão 6ª do In Boeth. De trin., vê-se que Deus só pode ser conhecido
negativamente, tal como será expresso na Summa theologiae (Iª, q. 84, a

8
In Boeth. De trin., q. 6, a 2.
62 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

7, ad 3), incorporando tanto o conhecimento metafísico como o revelado


(seção 4). O processo de ultrapassamento ocorre em virtude de nossa
incapacidade de acesso à definição essencial de Deus, algo que a isso
nem mesmo a revelação nos capacita. Em sua profunda veneração a Di-
onísio, Tomás de Aquino vai acomodando pouco a pouco os conceitos do
Areopagita a uma linguagem mais precisa e sóbria, que se inspira em
Aristóteles. Com Dionísio, nosso conhecimento intelectual só poder
chegar de algum modo a Deus per excessum, isto é, indo além de si
mesmo 9. É ainda com base em Dionísio que Tomás de Aquino pensa as
semelhanças das coisas sensíveis, transferidas para as substâncias ima-
teriais, como que equivocadamente 10. Esta estrutura negativa da
metafísica de Tomás de Aquino impossibilita um saber do que é (quid
est), seja pela via do conhecimento natural, seja também pela via da re-
velação. Conhecemos apenas se é (an est), seja a partir dos efeitos das
criaturas (razão natural), seja pelas semelhanças tomadas dos sensíveis
(revelação). Este conhecimento “por ultrapassamento” (per excessum) é
o mesmo que encontramos na Summa theologiae (Iª, q. 84, a 7 ad 3), e
também ali constatamos a presença do juízo negativo 11.
Na Summa theologiae a via negationis seu remotionis está intima-
mente vinculada à via causalitatis, enquanto a via excessus seu
eminentiae parece mais inclinada à edificação da Sagrada Doutrina. Mas
aqui se deve distinguir (para unir) dois modos de conhecimento em

9
In Boeth. De trin., q. 6, a 3.
10
In Boeth. De trin., q. 6, a 3 e 4; ScG. I, c. 33; Sth. Ia, q. 13, a 5 ad 1; Ia, q. 88; In De div. nom., VII, lec. 4.
MONTAGNES, Bernard. La doctrine de l'analogie de l'être d'après saint Thomas d'Aquin, Louvain-Paris, 1963;
MCINERNY, Ralph. Aquinas and Analogy, Washington, D.C., 1996; ROCCA, Gregory P. Speaking the
Incomprehensible God: Thomas Aquinas on the Interplay of Positive and Negative Theology, op. cit., 2004.
11
Sth. Ia, q. 85, a 1; NASCIMENTO, Carlos Arhur R. do. “Metafísica Negativa em Tomás de Aquino”. In:
Mediaevalia, v, 23, 2004, p. 249-258; “S. Tomás de Aquino e o Conhecimento Negativo de Deus”. Revista
Portuguesa de Filosofia, v. 64, 2008, p. 397-408.
Luis Carlos Silva de Sousa • 63

Tomás de Aquino: (a) por um lado, o conhecimento autenticamente teó-


rico-conceitual (per cognitionem), pelo uso perfeito da razão, e, (b) por
outro lado, o conhecimento de afinidade ou conaturalidade com o divino
(per connaturalitatem), que nos é dado pela caridade que nos une a Deus,
como dom do Espírito Santo. Neste caso, também sob influxo de Dioní-
sio, é permitido dizer que aquele que julga o que é perfeito no divino,
com conaturalidade de essência, não apenas apreende o divino, mas o
padece 12.

3. CONHECIMENTO DE DEUS COMO DESCONHECIDO: METAFÍSICA


APOFÁTICA.

A noção de excessus/transcendência deve ser situada no contexto


geral da recepção da teologia negativa de Dionísio por parte de Tomás
de Aquino. A problemática da transcendência foi um tema central na
história da metafísica de inspiração cristã, em especial na tradição oci-
dental latina. No cenário filosófico contemporâneo, há quem diferencie
duas correntes principais acerca da problemática da transcendência em
Tomás de Aquino: uma corrente dita extrema (apofática, teologia nega-
tiva) e outra moderada (que se apoiaria na doutrina da analogia) 13. Mas
esta não parece ser uma diferenciação adequada, com base nos textos.
Tomás de Aquino, na verdade, deve ser situado na corrente apofática,
ainda que se possa ver nele uma versão moderada de apofatismo.

12
STh. IIa-IIae, q. 45, a 2; PIEPER, Josef. Que é Filosofar? Trad.: Francisco de Ambrosis Pinheiro Machado.
São Paulo: Ed. Loyola, 2007, p. 68-69.
13
PUNTEL, B. Lorenz. Ser e Deus: Um enfoque sistemático em confronto com M. Heidegger, É. Lévinas e J.
L. Marion. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 2011, p. 239-243; PUNTEL, B. Lorenz: “O pensamento de
Tomás de Aquino como pensamento sumário-irrefletido sobre o Ser e a analogia”. In: Em busca do objeto
e do estatuto teórico da filosofia: Estudos críticos na perspectiva histórico-filosófica. São Leopoldo, RS:
UNISINOS, 2010, p. 106-131.
64 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

Tomás de Aquino adota o modelo aristotélico de investigação para


a definição do subjectum de uma ciência. Esse modelo levanta a pergunta
pela definição da essência (quid est). Mas, estritamente, não há demons-
tração ou definição de Deus, pois a forma discursiva de conhecimento
intelectual humano limita-se aos entes materiais 14. No que se refere às
essências simples não há conhecimento por definição. Tomás de Aquino
reordena discretamente as viae de Dionísio, em termos aristotélicos, ao
ponto de parecer propor uma transformação metodológica no que diz
respeito ao acesso de nosso conhecimento de Deus, isto é, não a partir
da análise categorial positiva das essências, mas negativamente, indi-
retamente: não sabemos o que Deus é; sabemos apenas o que Ele não é 15.
Deus excede a compreensão de todo intelecto humano. Daí o caráter ina-
cessível de Deus, mistério incompreensível para o ser humano.
Nesta vida não temos uma intuição da essência ou quididade de Deus;
não temos um conhecimento adequado sobre o que Deus é 16. Neste
ponto, malgrado a justa autoridade que cerca o nome de Jacques Mari-
tain como “tomista” (com opções filosóficas não menos legítimas que as
de Sertillanges) 17, e no sentido de matizar seu “realismo direto” 18, deve-
mos enfatizar o seguinte: sem saber de Deo quid est, não temos
igualmente nem mesmo um conhecimento imperfeito (por analogia) da
essência de Deus 19. Em todo caso, embora Tomás de Aquino negue que

14
In Boeth. De trin. q. 6, a 3.
15
ScG, c. 14.
16
WIPPEL, John. “Quidditative Knowledge of God and Analogical Knowledge”. In: The Metaphysical
Thought of Thomas Aquinas, Washington D.C.: The Catholic University of America Press, 2000, p. 501-575;
“Quidditative Knowledge of God”. In: Metaphysical Themes in Thomas Aquinas. Washington D.C.: The
Catholic University of America Press, 1984, p. 220-222.
17
PROUVOST, Géry. Thomas d’Aquin et les thomismes: Essai sur l’histoire des thomismes, op. cit., 1996, p.
165.
18
POSSENTI, Vittorio. Il Realismo e la Fine della Filosofia Moderna. Roma: Armando, 2016, p. 25-60.
19
MARITAIN, Jacques. Distinguer pour Unir ou Les Degrés du Savoir, op. cit., 1946, p. 827-828.
Luis Carlos Silva de Sousa • 65

possamos conhecer o que Deus é (quid est), ele não está sugerindo que
seja impossível algum conhecimento de Deus. Nosso conhecimento na-
tural tem sua origem nos sentidos e se estende ao limite do que é
sensível, através dos entes materiais. Podemos ter apenas um conheci-
mento negativo de Deus. O problema, agora, consiste em saber se o
“conhecimento negativo” pode ser afirmado como um conhecimento
real. Como seria propriamente um conhecimento negativo, ou seja,
acerca do que Deus não é? Qual a natureza dessa dimensão negativa?
O uso do termo “apofatismo” (apophasis) será tomado aqui como
equivalente a “teologia negativa” (theologia apophatike). Na epistemolo-
gia teológica de Tomás de Aquino, o aspecto negativo do conhecimento
intelectual humano permanece incontornável 20. Isto deve ser acentu-
ado, mesmo diante da seguinte passagem, amiúde apresentada para
fundamentar argumentos contra o enfoque apofático em Tomás de
Aquino 21:

Intellectus negationis semper fundatur in aliqua affirmatione […] unde nisi


intellectus humanus aliquid de Deo affirmative cognosceret, nihil de Deo
posset negare 22.

Esse enunciado não contradiz o que vem sendo tratado como cará-
ter apofático do conhecimento de Deus. É certo que podemos conhecer
algo positivo de Deus, mas não o que Deus é (quid est). A razão humana

20
ROCCA, Gregory P. Speaking the Incomprehensible God: Thomas Aquinas on the Interplay of Positive
and Negative Theology, op. cit., 2004, p. 77-195.
21
VELDE, Rudi te. Aquinas on God: The ‘Divine Science’ of the Summa Theologiae. England/USA: Ashgate,
2006, p. 74, n. 25; PUNTEL, B. Lorenz. Ser e Deus: Um enfoque sistemático em confronto com M.
Heidegger, É. Lévinas e J. L. Marion. op. cit., 2011, p. 240.
22
“A compreensão da negação sempre está fundada numa afirmação […]; portanto, se o intelecto
humano não pudesse conhecer nada positivo de Deus tampouco poderia negar algo em Deus.” (De pot.
q. 7, a. 5).
66 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

não pode captar o que é uma forma simples, mas pode a respeito dela
conhecer se é (an est) 23. O modo de proceder do enfoque negativo deve
ser precisamente diferenciado de acordo com outra afirmação, também
relevante sobre a transcendência de Deus, e baseada na estrutura modus
significandi (modo de significação) - res significata (coisa significada):

Licet nomina, quae intellectus ex talibus conceptionibus Deo attribuit, sig-


nificent id quod est divina substantia, non tamen perfecte ipsam significant
secundum quod est, sed secundum quod a nobis intelligitur. 24

A defesa do caráter apofático do conhecimento de Deus não signi-


fica, necessariamente, recusar afirmações positivas acerca Dele. Isto
não contradiz a doutrina da analogia, pois de Deus temos, é claro, algum
conhecimento real se é (an est): a doutrina da analogia não elimina o ca-
ráter negativo do conhecimento humano de Deus. No discurso sobre
Deus an est os enunciados negativos não são exclusivamente considera-
dos. Não é isto o que caracteriza uma metafísica como apofática ou
negativa. A teologia negativa não é uma teologia da negação. O ponto
básico de delimitação, o critério para admitir-se uma versão de teologia
negativa em Tomás de Aquino consiste em ver como ele considera nosso
conhecimento acerca da quididade de Deus (quid est) 25. Neste caso, ad-
mitido esse critério, há sim um apofatismo integral em Tomás de
Aquino, pois ignoramos completamente o que são as perfeições em
Deus 26. Os enunciados acerca de Deus são, em geral,

23
STh. Iª, q. 12, a. 12 ad 1.
24
“Embora os nomes que o intelecto atribua a Deus, a partir de tais conceitos, signifiquem o que é a
substância divina, eles não propriamente a significam de modo perfeito, segundo o que ela é, mas
apenas segundo o modo como podemos conhecê-la.” (De pot. q. 7, a. 5c)
25
WIPPEL, John. “Quidditative Knowledge of God”. In: Metaphysical Themes in Thomas Aquinas, op. Cit.,
1984, p. 228.
26
In De div. nom., VII, nº. 732.
Luis Carlos Silva de Sousa • 67

predominantemente negativos, embora Dele possamos falar positiva-


mente (an est), no modo como podemos conhecer; mas, no que se refere
ao discurso sobre a essência de Deus (quid est), em si mesmo, nossos
enunciados são exclusivamente negativos. Daí a enérgica fórmula de
Tomás de Aquino: conhecemos a Deus per ignorantiam nostram 27, na me-
dida em que conhecer a Deus consiste em ignorar o que Ele é em si
mesmo 28. Esta leitura permanece situada na linha da teologia negativa.
Tomás de Aquino reafirma, com Dionísio, o remetimento ao em-
prego da linguagem negativa acerca de Deus:

Ad quam etiam cognitionem de Deo nos utcumque pertingere possumus:


per effectus enim de Deo cognoscimus quia est et quod causa aliorum est ,
aliis supereminens, et ab omnibus remotus. Et hoc est ultimum et perfec-
tissimum nostrae cognitionis in hac vita, ut Dionysius dicit, in libro de
Mystica Theologia, cum Deo quasi ignoto coniungimtur: quod quidem contin-
git dum de eo quid non sit cognoscimus, quid vero sit penitus manet
ignotum.. 29

Essa passagem parece moderar o caráter “agnóstico” do pensa-


mento de Dionísio, ao modificar o uso do termo “omnino”, da versão
original, para “quasi”, no que se refere à natureza desconhecida de
Deus 30. Em parte por essa razão, alguns intérpretes tendem a acentuar

27
In De div. nom., VII, nº 731.
28
PEGIS, Anton C. “Penitus Manet Ignotum”. In: Mediaeval Studies 27 (1965) 212-226; OWENS, Joseph.
“Aquinas – 'Darkness of Ignorance' in the Most Refined Notion of God”. In: The Southwestern Journal of
Philosophy, Norman, Oklahoma, 5 (1974): p. 93-110.
29
“A este conhecimento de Deus nós também podemos chegar: pelos efeitos conhecemos que Deus é,
que é causa dos demais, supereminente a todos e distante de todos. Isto é o que há de supremo e
perfeitíssimo do nosso conhecimento nesta vida, como disse Dionísio, no livro Teologia Mística, visto
que a Deus nos unimos como desconhecido”: isto acontece quando conhecemos sobre ele o que não é,
ficando-nos totalmente desconhecido o que é.” (ScG. III, c. 49)
30
O'ROURKE, Fran. Pseudo-Dionysius and the Metaphysics of Aquinas. Leiden: Brill, 1992, p. 55: “Aquinas
rejects, however, an outright negativism or agnostic attitude. The aim and intention of his negative
theology is eminently positive and requires initially a posite foundation. St. Thomas thus reduces at
68 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

o enfoque positivo da concepção de Tomás de Aquino em contraponto a


Dionísio, na direção de uma versão mais moderada da problemática da
transcendência 31.
A ênfase no aspecto negativo do conhecimento de Deus, é certo,
não deveria ser extrapolado, ao custo da relação de causalidade entre as
criaturas e Deus, isto é, sobre como Deus pode ser conhecido a partir
dos efeitos. A triplex via não prescinde da causalidade divina 32.

[…] naturalis nostra cognitio a sensu principium sumit: unde tantum se


nostra naturalis cognitio extendere potest, inquantum manuduci potest per
sensibilia. Ex sensibilibus autem non potest usque ad hoc intellectus noster
pertingere, quod divinam essentiam videat: quia creaturae sensibiles sunt
effectus Dei virtutem causae non adaequantes. Unde ex sensibilium cogni-
tione non potest tota Dei virtus cognosci: et per consequens nec eius
essentia videri. Sed quia sunt eius effectus a causa dependentes, ex eis in
hoc perduci possumus, ut cognoscamus de Deo an est; et ut cognoscamus de
ipso ea quae necesse est ei convenire secundum quod est prima omnium
causa, excedens omnia sua causata. Unde cognoscimus de ipso habitudinem
ipsius ad creaturas, quod scilicet omnium est causa; et differentiam crea-
turarum ab ipso, quod scilicet ipse non est aliquid eorum quae ab eo
causantur; et quod haec non removentur ab eo propter eius defectum, sed
quia superexcidit 33.

every opportunity the negative or 'agnostic' character of Dionysius'thought where this appears
exaggerated. Thus, referring to the Mystical Theology where Dionysius states that we are united to God
τω παντελως δέ άγνώστω – translated by both Eriugena and Sarracenus as OMNINO autem ignoto -
Aquinas modifies the negative tone: QUASI ignoto coniungimur. A similar correction is introduced in the
Summa Theologiae. Such modification indicates an important reappraisal of the role of negative
theology and presents a more balanced theory of our knowledge of God.”
31
FABRO, Cornelio. L’Uomo e il Rischio di Dio. Roma: Editrice Studium, 1967, p. 95; HUMBRECHT, Thierry-
Dominique. “La théologie négative chez saint Thomas d'Aquin”. In: Revue Thomiste 93 (1993): p. 535-566;
94 (1994) p. 71-99.
32
VELDE, Rudi te. Aquinas on God: The ‘Divine Science’ of the Summa Theologiae. op. cit, p. 74-75.
33
“[…] nossa cognição natural deriva sua origem dos sentidos: portanto, nosso conhecimento natural
pode apenas estender-se na medida em que pode ser guiado por coisas sensíveis. Mas das coisas
sensíveis nosso intelecto não pode chegar ao ponto de ver a essência divina: porque as criaturas
Luis Carlos Silva de Sousa • 69

Entretanto, o enfoque apofático se sobrepõe, embora moderado


por enunciados positivos com base na causalidade divina (analogia/par-
ticipação): nossa ignorância sobre o que Deus é não cessa nem mesmo
com a revelação cristológica e trinitária, e a Causa, em si, permanece
desconhecida 34:

“[…] Unde quando in Deum procedimus per viam remotionis, primo nega-
mus ab eo corporalia; et secundo etiam intellectualia, secundum quod
inveniuntur in creaturis, ut bonitas et sapientia; et tunc remanet tantum in
intellectu nostro, quia est, et nihil amplius: unde est sicut in quadam con-
fusione. Ad ultimum autem etiam hoc ipsum esse, secundum quod est in
creaturis, ab ipso removemus; et tunc remanet in quadam tenebra ignoran-
tiae, secundum quam ignorantiam, quantum ad statum viae pertinet,
optime Deo conjugimur, ut dicit Dionysius, et haec est quaedam caligo, in
qua Deus habitare dicitur.” 35

Retornemos ao prólogo da questão 3ª da Summa: “Non enim de Deo


capere possumus quid est, sed quid non est [...]”. Um tópico a ser relem-
brado é o seguinte: o alcance de nosso conhecimento acerca da noção de
ente enquanto ente - até mesmo de ente material - revela-se

sensíveis são os efeitos de Deus, não iguais ao poder da causa. Portanto, pelo conhecimento das coisas
sensíveis, todo o poder de Deus não pode ser conhecido: e, consequentemente, sua essência não é
vista. Mas como seus efeitos dependem da causa, podemos ser levados a isso por eles, para que
possamos saber de Deus se Ele é; e para que possamos Dele conhecer o que necessariamente Lhe
pertence, pois Ele é a causa primeira de tudo, a saber, que transcende todos os seus efeitos. Daí
sabermos da relação Dele com as criaturas, isto é, causa de todas as coisas; e a diferença entre Ele e as
criaturas, isto é, que Ele não é uma daquelas coisas que são seus efeitos. Enfim, que todas essas coisas
Lhe são removidas não por seu defeito, mas por sua excelência.” (Sth. Iª, q. 12, a.12 resp.).
34
PROUVOST, Géry. Thomas d’Aquin et les thomismes: Essai sur l’histoire des thomismes, op. cit., p. 171, n.
2.
35
“[…] Quando procedemos para Deus pela via da remoção [per viam remotionis], primeiro lhe negamos
o que é corporal, e, depois, até o que é intelectual conforme se encontra nas criaturas, como a bondade
e a sabedoria. Então, resta apenas no nosso intelecto que é, e nada mais: daí se encontrar como que
numa certa confusão. Finalmente, este ser mesmo, tal como está nas criaturas, também removemos
dele, e então permanece em certa treva de ignorância, de acordo com a qual nos unimos a Deus da
melhor maneira, na medida em que cabe ao estado de peregrinação, como diz Dionísio, e esta é certa
escuridão na qual se diz que Deus habita.” (In I Sent., dist. 8, q. 1, a. 1 ad 4)
70 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

estruturalmente real, mas limitado. Daí seu aspecto negativo. É o caso


também de nosso conhecimento acerca do ente imaterial:

Et quia in istis substantiis quiditas non est idem quod esse, ideo sunt ordi-
nabiles in praedicamento, et propter hoc invenitur in eis genus et species
et differentia, quamvis earum differentiae propriae nobis occultae sint. In
rebus enim sensibilibus etiam ipsae differentiae essentiales ignotae sunt,
unde significantur per differentias accidentales, quae ex essentialibus
oriuntur, sicut causa significatur per suum effectum, sicut bipes ponitur
differentia hominis. Accidentia autem propria substantiarum immateria-
lium nobis ignota sunt; unde differentiae earum nec per se nec per
accidentales differentias a nobis significari possunt 36.

4. A NOÇÃO DE EXCESSUS NA SUMMA THEOLOGIAE (Iª, Q. 84, A. 7 AD 3M).

[1] Ad tertium dicendum quod incorporea, quorum non sunt phan-


tasmata, cognoscuntur a nobis per comparationem ad corpora
sensibilia, quorum sunt phantasmata. Sicut veritatem intelligimus ex
consideratione rei circa quam veritatem speculamur; [2] Deum autem,
ut Dionysius dicit, cognoscimus ut causam, et per excessum, et per re-
motionem; alias etiam incorporeas substantias, in statu praesentis
vitae, cognoscere non possumus nisi per remotionem, vel aliquam com-
parationem ad corporalia. [3] Et ideo cum huiusmodi aliquid

36
“E, visto que nestas substâncias [imateriais] a quididade não é o mesmo que o ser, por isso são
classificáveis no predicamento; e, por isso, encontram-se nelas gênero, espécie e diferença, embora suas
diferenças próprias nos sejam ocultas. De fato, também nas coisas sensíveis, as próprias diferenças
essenciais nos são desconhecidas; donde serem significadas por diferenças acidentais que se originam
das essenciais, assim como a causa é significada por seu efeito, assim como bípede é posto como
diferença do homem. Ora, os acidentes próprios das substâncias imateriais nos são desconhecidos;
donde suas diferenças não poderem ser por nós significadas, nem por si, nem pelas diferenças
acidentais.” (De ente, c. 4, nº. 69875)
Luis Carlos Silva de Sousa • 71

intelligimus, necesse habemus converti ad phantasmata corporum, licet


ipsorum non sint phantasmata 37.
Para uma breve análise desta passagem - da resposta ao terceiro
argumento do artigo 7º da questão 84ª da Primeira Parte da Summa the-
ologiae-, no texto latino foram destacadas três seções:

[1] Os incorpóreos, dos quais não há fantasias, são conhecidos por nós por com-
paração com os corpos sensíveis, dos quais há fantasias. Assim como
inteligimos a verdade pela consideração da coisa acerca da qual investigamos a
verdade.
[2] Conhecemos, porém a Deus, como diz Dionísio, como causa, por ultrapassa-
mento [per excessum] e por remoção. Também não podemos conhecer as demais
substâncias incorpóreas, no estado da vida presente, senão por remoção ou al-
guma comparação com o que é corporal.
[3] Quando inteligimos algo do que é deste tipo, necessariamente temos de nos
voltar para as fantasias dos corpos, embora daquele algo não haja fantasias.

[1] A questão 84ª está dividida em oito artigos, e busca dirimir o


problema: “Quomodo anima coniuncta intelligat corporalia quae sunt infra
ipsam” 38. O artigo 7º, em particular, examina “Utrum intellectus possit
actu intelligere per species intelligibiles quas penes se habet, non conver-
tendo se ad phantasmata” 39. Vinculado ao tópico sobre a origem sensível
do conhecimento intelectual humano (com seu caráter sucessivo e

37
“[1] Ao terceiro cumpre dizer que os incorpóreos, dos quais não há fantasias, são conhecidos por nós
por comparação com os corpos sensíveis, dos quais há fantasias. Assim como inteligimos a verdade pela
consideração da coisa acerca da qual investigamos a verdade. [2] Conhecemos, porém a Deus, como
diz Dionísio, como causa, por ultrapassamento e por remoção. Também não podemos conhecer as
demais substâncias incorpóreas, no estado da vida presente, senão por remoção ou alguma comparação
com o que é corporal. [3] Por isso, quando inteligimos algo do que é deste tipo, necessariamente temos
de nos voltar para as fantasias dos corpos, embora daquele algo não haja fantasias.” (Sth. Iª, q. 84, a.7 ad
3m)
38
“Como a alma unida ao corpo conhece o que é corporal, que lhe é inferior” (Sth. Iª, q. 84)
39
“Se o intelecto pode inteligir em ato pelas espécies inteligíveis que tem em si, não se voltando para
as fantasias” (Sth. Iª, q. 84, a 7)
72 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

progressivo), no bloco das questões 84-89 da Primeira Parte da Summa


theologiae, há também a questão de seu objeto. O uso da palavra “objeto”,
aliás, ocorre nos textos filosóficos a partir do século XIII e é de se res-
saltar que o termo aparece apenas neste artigo7º 40. A questão 84ª se
ocupa com o conhecimento das coisas materiais, e implica várias no-
ções, como a comparação do que é formado pelo intelecto com o real, a
percepção da verdade e a realidade objetiva do que é conhecido. O artigo
7º estabelece que a operação do intelecto humano depende das fanta-
sias. Segue o argumento, de acordo com os passos habituais: “Videtur
quod intellectus possit actu intelligere per species intelligibiles quas penes
se habet, non convertendo se ad phantasmata” 41. Três objeções são apre-
sentadas. Na terceira objeção - que, aqui, exclusivamente nos interessa-
, diz-se que, se o nosso intelecto não pudesse inteligir algo em ato senão
voltando-se para as fantasias, então não seria possível inteligir algo in-
corpóreo. Mas isto parece falso, pois inteligimos a verdade, Deus e os
anjos. Em sentido contrário, mobilizando a autoridade de Aristóteles (de
Anima, III): “nihil sine phantasmate intelligit anima” 42. Na resposta do ar-
tigo Tomás de Aquino se refere ao objeto próprio do conhecimento
intelectual humano: a essência dos entes materiais. O intelecto humano,
unido ao corpo, tem como objeto próprio “quidditas sive natura in mate-
ria corporali existens; et per huiusmodi naturas visibilium rerum etiam in
invisibilium rerum aliqualem cognitionem ascendit” 43. Entretanto, quando

40
DEWAN, Lawrence. “’Objectum” .Notes on the invention of a Word”. Archives d’Histoire Doctrinale et
Littéraire du Moyen Âge. Paris: v. 48, p. 37-96, 1981.
“Parece que o intelecto pode inteligir em ato pelas espécies inteligíveis que tem em si, não se voltando
41

para as fantasias” (Sth. Iª, q. 84, a 7)


42
“A alma nada intelige sem fantasias” (Sth. Iª, q. 84, a 7 sed contra)
43
[…] quididade ou natureza existente na matéria corporal; e pelas naturezas deste tipo, ascende das
coisas visíveis a algum conhecimento das coisas invisíveis.” (Sth. Iª, q. 84, a.7 resp.)
Luis Carlos Silva de Sousa • 73

fala em “quididade ou natureza” Tomás de Aquino não está afirmando


que podemos ter, no atual estado de vida corpórea, uma apreensão di-
reta da essência dos entes materiais, pois desconhecemos as diferenças
específicas dos seres materiais e imateriais. Não podemos construir de-
finições essenciais por gênero e diferença acerca dos entes, apenas
definições descritivas 44. Assim, podemos conhecer algo dos incorpóreos
apenas por comparação com os corpos sensíveis, dos quais há fantasias.
Inteligimos a verdade pela consideração da coisa acerca da qual inves-
tigamos: há uma adequação entre o intelecto e a coisa inteligida. Mas
não podemos ter conhecimento primeiro e direto da essência das subs-
tâncias imateriais criadas (anjos), menos ainda inteligir a essência da
substância incriada (Deus).

[2] Conhecemos a Deus, de acordo com Dionísio, como causa, por


ultrapassamento [per excessum] e por remoção. Não podemos também
conhecer as demais substâncias incorpóreas, no estado da vida pre-
sente, senão por remoção ou alguma comparação com o que é corporal.
Em particular, a via de eminência (via eminentiae, per excessum) perfaz o
nosso conhecimento da plenitude das perfeições, isto é, a “transcendên-
cia” das perfeições próprias de Deus. As perfeições de todas as coisas
que se encontram nas múltiplas criaturas preexistem em Deus na uni-
dade e na simplicidade. Mas o procedimento de passagem do
conhecimento do ente material ao imaterial ocorre somente através da
triplex via indicada por Dionísio. Como vimos (seção 2), esse conheci-
mento é predominantemente negativo, na medida em que os efeitos são
desproporcionais às causas e, portanto, não temos acesso às perfeições

44
De ente, c. 5, nº 67; In Post. Anal., I, 4, p. 22, lin. 292-310.
74 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

infinitas de Deus. A problemática sobre as perfectiones de Deus levanta


uma miríade de problemas, assim como o tópico acerca de nosso conhe-
cimento do infinito. Ora, Tomás de Aquino diz expressamente que não
temos o conhecimento do infinito formal, que é Deus - por si conhecido,
mas desconhecido para nós 45. No estado da vida presente, nossa aptidão
natural consiste em conhecer o que é material. Ressalte-se que o apofa-
tismo não é a ausência de toda determinação, mas seu ultrapassamento.
Afirmar um limite ao conhecimento da essência divina não significa in-
correr em contradição performativa. Não podemos descrever a essência
divina. Daí a relação assimétrica da atribuição de nomes entre o ser hu-
mano e Deus, com recurso a metáforas, pois nenhum nome pode ser
atribuído univocamente a Deus e às criaturas 46. Com isso a atribuição
analógica das “perfeições” vem como que em jogo cruzado com a metá-
fora 47, e a significação da palavra pode ser vista como ponto de
intersecção de uma analogia que pende mais para a equivocidade do que
para uma predicação unívoca. Compreendemos a coisa significada
acerca do ser humano, mas, quando atribuímos um nome a Deus, a coisa
significada permanece incompreendida, pois Ele ultrapassa a significa-
ção do nome. Há apenas, por assim dizer, um conhecimento como signo
do incognoscível 48. Essas distinções e o senso agudo sobre os limites de
nossos conceitos também se estende à compreensão de esse: “Hoc quod
dico esse est actualitas omnium actuum, et propter hoc est perfectio omnium

45
Sth. Iª, q. 86, a 2.
46
Sth. Iª, q. 13, a 5; ROCCA, Gregory P. Speaking the Incomprehensible God: Thomas Aquinas on the
Interplay of Positive and Negative Theology, op. cit., 2004, p. 318.
47
Sth. Iª, q. 13, a 6; RICOEUR, Paul. “Estudo VIII: Metáfora e discurso filosófico”. In: A Metáfora Viva. Trad.:
Dion Davi Macedo. São Paulo: Ed. Loyola, 2000, p. 394-482.
48
PROUVOST, Géry. Thomas d’Aquin et les thomismes: Essai sur l’histoire des thomismes, op. cit., p. 172.
Luis Carlos Silva de Sousa • 75

perfectionum” 49. No que se refere à questão de Deus, no apofatismo de


Tomás de Aquino o esse se diferencia claramente de toda “entidade”
(como ente entre outros entes, ente primeiro e máximo), pois Ele é afir-
mado como ato de ser (actus essendi) e, depois, mais propriamente como
Ser que subsiste por si mesmo (Ipsum Esse per se Subsistens) - ao contrário
da acusação posterior, de acordo com a tese de ontoteologia imposta à
totalidade da metafísica ocidental. Entretanto, por essa diferenciação
dos “fatores ontológicos” (ens, essentia, forma, subjectum etc.) frente ao
esse, no contexto da filosofia contemporânea tem-se levantado a per-
gunta, sumariamente assim expressa: Tomás de Aquino teria pensado o
esse em sentido abrangente, tal como, posteriormente, Heidegger teria
proposto (Ser como dimensão que abrange, em unidade absoluta, subje-
tividade e objetividade)? Se o que Tomás de Aquino diz do esse não
corresponde, de acordo com a perspectiva atual de Lorenz Puntel, à di-
mensão que realmente abrange tudo, o esse assim entendido não
permaneceria inadequado (de modo unilateral e irrefletido), passível de
ser atingido pela crítica ao esquecimento do Ser de Heidegger? (A partir
da perspectiva “sistemático-estrutural” de L. Puntel, Heidegger teria
pretendido pensar o Ser no sentido absolutamente abrangente, o que
não significa que tenha obtido êxito em sua conceitualidade) 50 Ainda de
acordo com essa posição, Tomás de Aquino teria visado com o esse tam-
bém um “sentido compreensivo”, pressuposto em algumas passagens de
sua obra, para além do que é dito pelo actus essendi, isto é, como uma
estrutura triádica: non esse in aliquo (não ser em outro), esse quid (ser algo

49
“O que chamo de Ser é a atualidade de todos os atos e, em consequência, é a perfeição de todas as
perfeições.” (De pot. q. 7, a 2 ad 9)
50
PUNTEL, B. Lorenz. Ser e Deus: Um enfoque sistemático em confronto com M. Heidegger, É. Lévinas e
J. L. Marion, op. cit., 2011, p. 57-62.
76 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

determinado), esse in actu (ser em ato) 51. Este seria o sentido global de
esse em Tomás de Aquino, sua “intuição” original, mas que teria perma-
necido não tematizada, mesmo na tradição moderna de recepção de seu
pensamento - Bernard Montagnes (1924-2018), na resenha do livro de
Cornelio Fabro, Participation et causalité selon Saint Thomas d’Aquin
(1960), teria sido um dos poucos intérpretes 52 a vislumbrar a questão,
ainda que sem atentar para todo o alcance da tríade aludida por Puntel 53.
Esse sentido global de esse, apenas implícito e irrefletido em Tomás de
Aquino -nos termos da filosofia sistemático-estrutural-, apontaria para
a interconexão de todas as interconexões, isto é, a dimensão absolutamente
universal do Ser (Ser primordial) 54. É preciso não esquecer que há uma di-
ferenciação fundamental entre duas espécies de perfectiones: (a) uma
perfeição que, em linguagem escolástica posterior, será dita mista (de
acordo com o modo imperfeito de participação das criaturas na perfei-
ção divina), que não se aplica a Deus em sentido próprio 55, mas apenas
metaforicamente, e (b) um sentido próprio de perfeição, como ente, bom,
vivente etc (res significata). Mas, como L. B. Puntel reconhece, em Tomás
de Aquino predomina o modo de significação (modus significandi), a par-
tir de um procedimento humano, imperfeito, orientado à forma finita
das perfeições no ente 56. É certo que, como pensador medieval, Tomás
de Aquino tende a privilegiar, em suas análises, o polo objetal – a saber:
sem considerar efetivamente o ser humano em suas articulações como

51
ScG, IV, 11.
52
MONTAGNES, Bernard. La doctrine de l’analogie de l’être d’après Saint Thomas d’Aquin, op. cit., 1963.
53
PUNTEL, B. Lorenz. Ser e Deus: Um enfoque sistemático em confronto com M. Heidegger, É. Lévinas e
J. L. Marion, op. cit., 2011, p. 57-62.
54
Ibid., p. 241, n. 30.
55
Sth. Iª, q. 13, a 3 ad 1.
56
PUNTEL, B. Lorenz. Ser e Deus: Um enfoque sistemático em confronto com M. Heidegger, É. Lévinas e
J. L. Marion. op. cit., 2011, p. 241.
Luis Carlos Silva de Sousa • 77

sujeito, como ser de linguagem etc. Mas, do ponto de vista estritamente


histórico, devemos avaliar um autor medieval não a partir do que vem
depois, mas a partir dele mesmo, isto é, de sua própria intenção e estru-
tura conceitual. De nossa parte, porém, ressaltamos que, no caso de
Tomás de Aquino, há uma coerência interna admirável em sua metafí-
sica apofática, quando vista a partir de seus próprios pressupostos, a
saber: ao considerar o procedimento ascendente do finito ao infinito, às
realidades transcendentes, à “perfeição de todas as perfeições” como
ocorrendo somente a partir do ente material e sensível: com a noção de
excessus não se pretende um acesso compreensivo e abrangente ao co-
nhecimento de Deus; pelo contrário, na via de eminência há o
entrecruzamento do conhecimento negativo e as perfectiones que, ana-
logicamente, atribuímos a Deus, segundo a distinção entre o modo
humano de significação (modus significandi) e a coisa significada (res sig-
nificata). A substância incriada permanece absolutamente
transcendente. Das infinitas perfeições de Deus não temos nenhuma ex-
periência além do que podemos conhecer por negação, por causalidade
e por ultrapassamento 57.

[3] Quando inteligimos algo das substâncias incorpóreas, necessa-


riamente temos de nos voltar para as fantasias dos corpos, embora
daquele algo não haja fantasias. Nosso acesso às substâncias incorpó-
reas, à noção dos entes não materiais, ocorre somente por mediação dos
entes materiais 58. (Neste ponto, as posturas de Tomás de Aquino e Kant
podem ser vistas como homólogas, mas apenas entre limites - se

57
In De div. Nom., 7, lec. 3.
58
In Boeth. De trin., q. 6, a 3-4; Sth. Iª q. 88; In De div. Nom., 7, lec. 4.
78 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

admitirmos, na linha de Jacques Maritain, que a filosofia kantiana tende


a desconsiderar a intencionalidade e a intuição intelectual humana (abs-
trativa) 59. No que se refere às consequências modernas da crítica
kantiana à metafísica clássica e às pretensões de acesso à “coisa em si”
(Ding an sich), houve tentativas de superação propostas por vários auto-
res, em diálogo com Tomás de Aquino. Em particular, a reinterpretação
de aspectos fundamentais da teoria do conhecimento de Tomás de
Aquino, feita por Karl Rahner (à luz do papel exercido pela mediação da
subjetividade transcendental já sob influxos de Joseph Maréchal e Mar-
tin Heidegger), provocou a pertinente crítica de Cornelio Fabro: a noção
de excessus não pode ser interpretada como Vorgriff (antecipação, pré-
compreensão), mas como transcendência/ultrapassamento (a partir da
triplex via de Dionísio) 60. A esse respeito, seja-nos permitida uma obser-
vação pontual, na forma complementar: a postura de se recorrer a uma
“pré-compreensão do Absoluto no dinamismo intelectual” 61, vista como
implícita nos textos de Tomás de Aquino, supõe também uma recons-
trução que parece extrapolar os marcos de sua metafísica do esse (cuja
dimensão apofática lhe é constitutiva), ao apresentar uma projeção teó-
rica – inspirada, sobretudo, na linha aberta por Fichte e Hegel- mais que
uma interpretação histórica de seu procedimento argumentativo.). No
estado da vida presente, por causa da fraqueza de nosso intelecto, nossa
aptidão natural consiste em conhecer o que é material: as realidades
transcendentes são visadas, mas sobre elas nosso conhecimento

59
POSSENTI, Vittorio. Nihilism and Metaphysics: The Third Voyage, op. cit., 2014, p. 75-76.
60
FABRO, Cornelio. La Svolta Antropologica di Karl Rahner, op. cit., 1974, p. 226-234.
61
MARÉCHAL, Joseph. Le Point de Départ de la Métaphysique. 2ª éd. Cahier V. Bruxelas-Paris: L’Édition
Universelle-Desclée, 1949; LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de Filosofia III: Filosofia e Cultura. São Paulo:
Ed. Loyola, 1997, p. 332; SOUSA, Luís Carlos Siva de. “Conhecimento e Participação nas Razões Eternas
em Tomás de Aquino: Duas leituras”. In: Síntese- Revista de Filosofia. Belo Horizonte, v. 48, n. 151,
Mai./Ago (2021): 327-355.
Luis Carlos Silva de Sousa • 79

permanece estruturalmente negativo: conhecemos que são, não o que


são; conhecemos, enfim, apenas o que não são. Na outra vida, pela glória,
poderemos ver a Deus em sua essência, mas ainda sem compreensão 62.

CONCLUSÃO

O objetivo deste capítulo consistiu em analisar a noção de excessus


(ultrapassamento, transcendência), na Summa theologiae de Tomás de
Aquino (STh. Iª, q. 84, a. 7 ad 3m). A exposição enfatizou o conhecimento
negativo (não-quididativo) acerca de Deus e sua relação com a tríplice
via da tradição neoplatônica de Dionísio: no estado de vida presente po-
demos ter apenas um conhecimento indireto do que as naturezas
imateriais não são. A noção de excessus está conectada ao papel que o
juízo negativo cumpre no processo do conhecimento intelectual hu-
mano acerca de Deus. O processo de ultrapassamento (per excessum)
ocorre através das perfeições presentes nos entes materiais.

62
Sth. Iª, q. 86, a 2, ad 1m.
PARTE II

CAMINHO PARA O REALISMO:


QUESTÕES METAFÍSICAS SOBRE DEUS
4
O PROÊMIO DO COMENTÁRIO À METAFÍSICA DE
ARISTÓTELES ( IN METAPH. ): O PROBLEMA DA
RELAÇÃO ENTRE O UNO E O MÚLTIPLO

1. INTRODUÇÃO

Para iniciarmos este novo percurso com Tomás de Aquino, irei


propor uma breve comparação entre o In Metaph. (Proemium) e o Super
Boet. De Trin (Quest. 5, art. 3-4), a fim de destacar algumas questões so-
bre o papel da separatio e a metafísica do esse (ser).
O proêmio do comentário de Tomás de Aquino à Metafísica de Aris-
tóteles foi, ele próprio, analisado por vários autores, sob diversas
perspectivas. Não é minha intenção trazer aqui nada mais que uma
breve nota, na forma de um breve contato sobre algumas questões pres-
supostas no texto, e que nele são apresentadas de maneira bastante
compacta, mas suficientemente clara e fundamentada. Isto nos fornece
a oportunidade de destacar um aspecto central do pensamento de To-
más de Aquino, isto é, sua concepção de Metafísica. O texto do In Metaph.
data de sua segunda estada em Paris (1268-72), embora não se descarte
uma redação final em Nápoles (1272-73). No que segue, estarei mais in-
teressado na doutrina da obra comentada do que na sua exposição
literária ou historiográfica.
No que se refere ao texto do proêmio, sigo aqui a divisão em três
grandes partes, de acordo com a frase final do próprio autor: “Sic igitur
patet quid sit subiectum huius scientiae, et qualiter se habeat ad alias
82 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

scientias, et quo nomine nominetur” 1. Importa observar, porém, que a or-


dem de exposição dos tópicos, segundo o plano do proêmio, não
corresponde ao que é indicado na frase.
[1] Tomás de Aquino inicia o proêmio sobre o relacionamento desta
ciência de que se trata com as outras ciências. Ele toma como ponto de
partida, no texto, que se trata de uma ciência primeira e suprema, pois
se os vários são ordenados a algo, é necessário que um deles seja regu-
lador ou diretor e os demais regulados ou dirigidos, assim como a alma
ordena o corpo e as potências da alma dirigidas pela razão. “Ora, todas
as ciências e técnicas ordenam-se a algo uno, isto é, à perfeição do ho-
mem que é a sua felicidade (beatitudo). Donde, ser necessário que uma
delas seja ordenadora de todas as outras, a qual reivindica com razão o
nome de sabedoria, pois, compete ao sábio ordenar os demais.” A tese
de que a ciência é a perfeição dos seres humanos não é desenvolvida no
proêmio, mas parece claro que ela provém da afirmação aristotélica de
que “todo ser humano por natureza deseja conhecer” (Metafísica, 980 a
21). A ciência é um bem para o ser humano. Assim, de acordo com Tomás
de Aquino, todo conhecimento científico (scientia) é bom. Mas, resta sa-
ber qual seria esta ciência primeira e suprema. Ela só pode ser a ciência
ao máximo intelectual e que trata do que é mais inteligível. Neste ponto,
em particular, há uma enorme uma distância entre a visão de Tomás de
Aquino e a de pensadores modernos que identificam o “especulativo”
como algo além de toda experiência. Para Tomás de Aquino a metafísica
tem como subjectum o que transcende o que é material e móvel, mas
esse processo está direcionado ao que é mais inteligível, e isto significa
que o máximo inteligível pode ser apreendido por uma operação do

1
“Fica, portanto, explicado qual seja o sujeito [subjectum, tema] desta ciência, como se relaciona com
as demais ciências e por que nome é denominada”. (In Metaph.-Proemium, nº 3)
Luis Carlos Silva de Sousa • 83

intelecto humano. Eu penso que essa perspectiva “cognoscitiva” da me-


tafísica seja um dos aspectos mais relevantes desse proêmio. O “máximo
inteligível” pode ser entendido de três modos: (a) segundo a ordem de
intelecção das causas, uma linha de argumentação que provém de Aris-
tóteles (Segundos Analíticos, I, c. 2). No Super Boet. De Trin (q. 5, art. 4),
que data de sua primeira estada em Paris (1252-1259), já encontramos a
mesma ideia sobre a ciência suprema como conhecimento dos primei-
ros princípios ou causas. (b) Segundo a comparação do intelecto com os
sentidos: aos sentidos pertence o conhecimento dos particulares, en-
quanto o intelecto compreende os universais (o uno e o múltiplo, o ato
e a potência). E como todos os gêneros de ente dependem desses univer-
sais para seu conhecimento, resta que sejam “tratados por uma ciência
comum que, sendo ao máximo intelectual, é reguladora das demais”. (c)
Segundo o próprio conhecimento intelectual, por serem ao máximo in-
teligíveis aquelas coisas que são ao máximo separadas da matéria. “De
fato, é necessário que o inteligível e o intelecto sejam proporcionados e
do mesmo gênero, pois, o intelecto e o inteligível são um no ato de inte-
lecção”. Daí a seguinte formulação: “é ao máximo separado da matéria
aquilo que abstrai totalmente da matéria sensível e não só da matéria
singularizada” (ciência natural), e não só quanto à concepção, como no
que é matemático, mas quanto ao ser, como Deus e as inteligências”
(substâncias separadas).
[2] Neste sentido, a esta ciência suprema cabe investigar o ente em
geral e as substâncias separadas. Entretanto, o subjectum da metafísica,
seu tema de estudo, consiste apenas no ente em geral (ens commune).
“Pois, de fato, é tema na ciência aquilo cujas causas e propriedades pro-
curamos, não porém as próprias causas do gênero investigado. De fato,
84 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

o conhecimento das causas de um gênero determinado é o fim ao qual


chega a consideração da ciência”.
[3] A divisão que remonta a Aristóteles do tríptico das ciências teó-
ricas (Metafísica, VI, 1, 1026a13-b1; De Anima, I, 1, 403b9-19) já era
bastante conhecida na Europa latina, através de Boécio (De Trinitate, 2).
As três ciências teóricas são as seguintes: ciência natural ou física, ma-
temática e teologia. Mas, para Tomás de Aquino, já no Super Boet. De Trin.
(q. 5, art. 4) seria necessário distinguir uma dupla teologia ou ciência
divina: a teologia filosófica e a teologia da Sagrada Escritura: uma, na
qual as coisas divinas são consideradas não como sujeito de ciência, mas
como princípios do sujeito (metafísica), e a outra que considera as coisas
divinas por si mesmas, como sujeito de ciência (teologia da Sagrada Es-
critura). Ao finalizar o proêmio do Comentário à Metafísica de
Aristóteles, esta ciência recebe três nomes, e a teologia ou ciência divina
é a sua primeira denominação, na medida em que considera as substân-
cias separadas. Esta ciência recebe também o nome de Metafísica, na
medida em que considera o ente em geral e o que lhe é consequente, ao
encontrar o transfísico em uma marcha analítica (via resolutionis, do
menos geral ao mais geral). Por fim, ele também é chamada Filosofia
Primeira, na medida em que considera as causas primeiras das coisas.
Talvez o mais importante aspecto do proêmio de Tomás de Aquino te-
nho sido justamente a síntese sobre diferentes considerações de
Aristóteles sobre o sujeito da Filosofia Primeira. Ele aplica o modelo de
scientia desenvolvido por Aristóteles à sua própria visão de Metafísica.
Um segundo elemento comum ao proêmio e ao Comentário ao tratado
da Trindade de Boécio me parece ser sua concepção não teológica de
Metafísica (no sentido já indicado), isto é, sua concepção de que o sub-
jectum da metafísica não é o divino, mas o ente em geral. Para Tomás de
Luis Carlos Silva de Sousa • 85

Aquino, em sua análise sobre o tranfísico, desempenha um papel central


a sua doutrina dos transcendentais (ens, unum, verum, bonum). Um ter-
ceiro elemento de comparação entre o proêmio e o Super Boet. De Trin.
(q. 5, art. 3) diz respeito à ciência divina ou metafísica, quando usa o
termo separatio: “Embora o tema desta ciência seja o ente em geral, diz-
se ela no seu todo referente ao que é separado da matéria segundo o ser
e a concepção”, o que incluiria não apenas Deus, mas o ente em geral.
Alguns comentadores modernos de Tomás de Aquino viram neste tópico
o argumento para a seguinte tese: não seria possível tematizar o ente
em geral (subjectum da metafísica) sem o pressuposto do conhecimento
da substância separada. Assim, de acordo com essa tese, o conhecimento
do Ser transcendente seria condição prévia para a consideração acerca
do ente em geral. Ora, como vimos pela análise do prólogo, a transma-
terialidade não é o critério exclusivo para a inteligibilidade metafísica.
A tese proposta por alguns intérpretes de Tomás inverte a ordem, pois
o conhecimento das substâncias imateriais é o fim do processo de reso-
lução e não o pressuposto da investigação metafísica. O que está
realmente pressuposto no proêmio parece ser antes a “reductio ad
unum” que já provém de De veritate (Q. 5, art. 9), na análise do pensa-
mento greco-ocidental, pelo menos desde Parmênides: “a intenção
comum de todos foi reduzir a multidão à unidade e a variedade à uni-
formidade, na medida do possível”. O proêmio aponta para que tipo de
unidade é visado pelo intelecto humano. Não basta a unidade transcen-
dental com o ente, onde persiste a cisão entre o mesmo e o outro. Em
Tomás de Aquino não podemos apreender esta unidade suprema em sua
plenitude, uma unidade que reconcilia os polos e os supera como condi-
ção de possibilidade dos mesmos.
5
ENS COMO PRIMEIRO TRANSCENDENTAL E O ESSE
SUBSISTENS ( DE VERITATE, Q. 1, A. 1)

1. RESOLUTIO E AS NOÇÕES PRIMEIRAS

O texto de De veritate q. 1, a. 1 tem como questio primeira “que é a


verdade (quid sit veritas)? Essa mesma questão foi posta por Felipe o
Chanceler, da Universidade de Paris, que usou o termo “communissima”
aplicado às noções primeiras, formulando com isso o primeiro tratado
das noções transcendentais (ente, uno, verdadeiro, bom) em sua Summa
de Bono, q. 2 (1225-1228). Retomada depois por Alberto Magno, em sua
obra De Bono (q.1, a.8), essa questão será tratada no contexto geral das
definições de verdade advindas da tradição. Tomás de Aquino assumirá
uma perspectiva menos descritiva do que a de Sto. Alberto, levantando
a pergunta pelas condições cognoscitivas da convertibilidade entre as
noções de uno, verdadeiro e bom, a partir do que é primeiro conhecido,
isto é, o ente.
Certas noções generalíssimas são pressupostas para o conheci-
mento das coisas. Tomás de Aquino concebe a pergunta pelo que é
verdadeiro como resultado de uma convertibilidade a partir do ente.
Mas, antes de se explicitar como ocorre a convertibilidade das noções
transcendentais – o que não pretendemos fazer aqui-, cumpre saber
como chegamos a essas noções primeiras:

Dicendum, quod sicut in demonstrabilibus oportet fieri reductionem in ali-


qua principia per se intellectui nota, ita investigando quid est
unumquodque; alias utrobique in infinitum iretur, et sic periret omnino
scientia et cognitio rerum. Illud autem quod primo intellectus concipit
Luis Carlos Silva de Sousa • 87

quasi notissimum, et in quod conceptiones omnes resolvit, est ens, ut Avi-


cenna dicit in principio suae metaphysicae. Unde oportet quod omnes aliae
conceptiones intellectus accipiantur ex additione ad ens.” 1.

Sto. Tomás estabelece uma comparação, em De veritate q.1, a.1, en-


tre a redução (reductio ou resolutio) aos princípios evidentes à
inteligência (do ponto de vista da razão teórica, particularmente com
base no princípio de não-contradição) e a redução às noções primeiras
do conhecimento das coisas (os transcendentais, particularmente com
base na noção de ente).
Em sua análise, portanto, Tomás de Aquino segue o método da re-
solução, como um procedimento específico ao conhecimento humano
das coisas e do modo de se fazer ciência. Felipe o Chanceler e Alberto
Magno usaram já o termo resolutio como descrição dos transcendentais,
pois, efetivamente a resolução do nosso intelecto é concluída nestas no-
ções primeiras. Esta perspectiva será mantida por Sto. Tomás em De
veritate q. 1, a. 1. Contudo, observa-se em Tomás de Aquino um maior
esforço em distinguir certos aspectos da ideia de redução aos princípios
do conhecimento racional. Há duas formas de aquisição do conheci-
mento: (1) a demonstração de proposições, específica à ordem da
scientia; (2) a pergunta sobre o que é algo, isto é, sua essência ou quidi-
dade, específica à ordem da diffinitio. Essas duas ordens são concebidas
como paralelas e ambas supõem um procedimento de redução. Em am-
bos os casos não seria possível um regresso ao infinito, porque disso

1
“Assim como no que pode ser demonstrado é necessário operar uma redução a um certo número de
princípios evidentes ao intelecto, o mesmo ocorre ao investigarmos o que é cada um. Do contrário se
iria, tanto em um caso como em outro, ao infinito, o que tornaria totalmente impossíveis a ciência e o
conhecimento das coisas. Ora, aquilo que o intelecto concebe por primeiro, como o mais conhecido, e
ao qual reduz todas as concepções, é o ente, conforme afirma Avicena no início de sua Metafísica. Daí
que seja preciso que todas as outras concepções do intelecto sejam obtidas por adjunção ao ente.” (De
veritate, q. 1, a. 1)
88 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

resultaria que a ciência e o conhecimento das coisas não ocorreriam. A


redução aos princípios per se de nosso intelecto é comparada, mas não
confundida, com a redução aos transcendentais como fundamento do
quid est das coisas.
As razões para esse modo de conceber o método da resolução po-
dem ser mais bem esclarecidas se recorrermos ao Comentário de Tomás
de Aquino ao Tratado da Trindade de Boécio (q. 6, a. 4). Neste texto, Sto.
Tomás trata das possibilidades e dos limites do conhecimento intelec-
tual humano, refletindo sobre o estatuto das ciências especulativas 2.
Em De veritate q.1, a.1, de fato, Sto. Tomás parte de uma premissa
implícita indispensável que recebe um tratamento mais completo em De
Trinitate, q. 6, a. 4: a investigação científica procede “de algo previa-
mente conhecido”. Essa ideia básica de ciência deriva da lógica
aristotélica (Segundos Analiticos, 71a 1), chamada de analytica ou resolu-
toria, e pressupõe, de modo geral, a teoria da ciência desenvolvida por
Aristóteles 3.

2. A DOUTRINA DO TRANSCENDENTAIS.

É preciso diferenciar a noção de transcendental em Tomás de


Aquino daquilo que, posteriormente, será compreendido no contexto da
filosofia moderna, a partir da “reviravolta” de Kant 4.

2
NASCIMENTO, Carlos A. Ribeiro do. “Tomás de Aquino, a Metafísica e a Teologia”. In: Frutos de Gratidão.
Homenagem a Francisco Catão em seus oitenta anos, Centro Universitário Salesiano de São Paulo (Org.),
Paulinas, São Paulo, p. 115-145.
3
ARISTÓTELES, Posterior Analytics, I, 2, 71b 9-10. (Transl. H. Tredennick), Loeb Classical Library, Harvard
Univ. Press, 1960; Sobre a noção de “ciência apodítica” em Aristóteles, ver BERTI, Enrico. As Razões de
Aristóteles, (Trad.: Dion D. Macedo), Ed. Loyola, São Paulo, 1998, p. 3.
4
FABRO, Cornelio. “Il trancendentale moderno (Kant-Heidegger-Rahner) e il transcendentale classico
(san Tommaso)”. In: La Svolta Antropologica di Karl Rahner. Milano: Rusconi Editori, 1974, p. 87-97.
Luis Carlos Silva de Sousa • 89

A doutrina dos transcendentais cumpre um papel de importância


fundamental na metafísica de Tomás de Aquino 5. No século XX, este
ponto foi destacado sobretudo por Jan Aertsen, analisando o pensa-
mento transcendental em Sto. Tomás, no contexto da Filosofia
Medieval 6.
O termo “transcendental” é geralmente tomado no sentido pro-
posto a partir de Kant. Mas Kant reconhece que essa noção tem já uma
longa tradição, falando expressamente, na Crítica da Razão Pura (B 113),
de “filosofia transcendental dos antigos”, representada pela proposição
dos escolásticos: quodlibet est unum, verum, bonum. Entretanto, em Kant,
a doutrina dos transcendentais é subvertida conjuntamente àquilo que
será a “reviravolta copernicana” do pensar. Por “transcendental” Kant
entende todo conhecimento que em geral se ocupa não tanto com os
objetos, mas com as condições de possibilidade de constituição dos ob-
jetos enquanto objetos, através da mediação da subjetividade e na
medida em que tal conhecimento seja a priori. Segundo Kant, a “filosofia
transcendental dos antigos” supõe ingenuamente que poderíamos obter
predicados transcendentais das coisas, enquanto na verdade não seriam
senão “exigências e critérios lógicos de todo conhecimento das coisas
em geral” (B 114). Para Aertsen, a perspectiva kantiana afetou

5
Na enumeração tradicional, as noções transcendentais são as seguintes: ens, unum, verum, bonum. Em
De veritate 1, a 1, Tomás de Aquno acrescenta as noções de res e aliquid.
6
AERTSEN, Jan. Medieval Philosophy and the Transcendentals: The case of Thomas Aquinas. Leiden: E. J.
Brill, 1996. Ver também, do mesmo autor, “What is First and Most Fundamental? The Beginnings of
Transcendental Philosophy”. In: Miscellanea Mediaevalia 26 (1998) 177-192. Houve, no entanto, estudos
anteriores a Aertsen. Ver, por exemplo, B RETON, S. L’idée de transcendental et a la genèse des
transcendentaux chez Saint Thomas d’Aquin“. In: J. JOLIF et al. (Orgs.). Saint Thomas d’Aquin aujourd’hui.
(Recherches de Philosophie 6). Paris: Desclée De Brouwer, 1963, p. 45-74; KNITTERMEYER, Hinrich. Der
Terminus Transzendental in seiner historischen Entwicklung bis Kant, Marburg, 1920; SCHULEMANN,
Günther. Die Lehre von den Transzcendentalien in der scholastischen Philosophie (Forschungen zur
Geschichte der Philosophie und der Padagogik, vol. IV, 2), Leipzig, 1929; POUILLON, Henri. “Le premier
traité des propriétés transcendantales: La ‘Summa de bono’ du Chancelier Philippe”. In: Revue
néoscolastique de philosophie, 42 (1939) 40-77.
90 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

fortemente o estudo do pensamento transcendental como foi proposto


na Idade Média 7. Ora, autores como Tomás de Aquino e Duns Scot de-
senvolveram diferentes noções de transcendentalidade que não podem
ser confundidas. Com efeito, não seria historicamente correto conceber
em bloco o pensamento transcendental dos escolásticos, tal como su-
gere a formulação kantiana. A leitura de Kant acerca da doutrina dos
transcendentais já ocorre segundo o clima espiritual moderno, e a con-
cepção de “transcendental” que ele empreende é “lógico-
transcendental”. Na verdade, seria mesmo possível considerar a própria
concepção de Filosofia Medieval de acordo com um certo modo trans-
cendental de pensar. A doutrina dos transcendentais de Tomás de
Aquino foi frequentemente negligenciada por seus intérpretes 8.
A discussão sobre o estatuto de “transcendental” em Sto. Tomás
tem, por isso, uma história relativamente recente, se comparada à re-
cepção do pensamento scotista em torno dessa mesma questão 9. Ora, é
preciso reconhecer que há uma clara relação entre a doutrina dos trans-
cendentais e a metafísica de Tomás de Aquino 10. É verdade que Sto.
Tomás nunca escreveu um tratado em separado sobre os transcenden-
tais. Mas este fato não o distingue de seus predecessores ou
contemporâneos. Por si a ausência de um tratado específico sobre os
transcendentais entre seus escritos não significa que esse tema lhe seja
menos importante. Também a problemática em torno da noção

7
AERTSEN, Jan. Medieval Philosophy and the Transcendentals, op. cit., 1996, p. 22.
8
Cf. J. AERTSEN, Medieval Philosophy and the Transcendentals, op. cit., 1996, p. 23.
9
HONNEFELDER, Ludger. “Die Rezeption des scotischen Denkens im 20. Jahrhundert. In: Theologische
Realenzyklopädiel IX (1982): 233. É importante observar que Sto. Tomás não utiliza o termo
“transcendental” e sim outras expressões como: transcendens, transcendere, de transcendentibus etc.
KREMPEL, Antoine. La doctrina de la rélation chez saint Thomas d’Aquin: exposé historique et
systématique, Paris, 1952, p. 66.
10
AERTSEN, Jan. Medieval Philosophy and the Transcendentals, op. cit., 1996, p. 114.
Luis Carlos Silva de Sousa • 91

metafísica de participação de Tomás de Aquino não resultou de um tra-


tado à parte. Mas é possível reconstruir os elementos essenciais da
doutrina da participação em Sto. Tomás, como demonstraram os estu-
dos de L. -B. Geiger e de Cornelio Fabro 11. De forma análoga, no que se
refere à doutrina dos transcendentais, as noções de ente, uno, verda-
deiro e bom são examinadas em diversos lugares na obra de Sto. Tomás.
Contudo, três textos apresentam essa doutrina em sua unidade: (1) In I
Sent., d. 8, q. 1, a. 3; (2) De veritate, q. 1, a. 1; q. 21, a.1. Dentre esses “textos
básicos”, De veritate, q. 1, a. 1 é certamente o mais completo e o que de
melhor podemos reter do pensamento transcendental de Tomás de
Aquino 12.

3 SCIENTIA E REFLEXÃO TRANSCENDENTAL.

O termo latino scientia é traduzido por “ciência” e amiúde se es-


quece de que o uso medieval do termo guarda um sentido muito
específico, que difere da moderna noção de ciência. Por scientia, se-
gundo Sto. Tomás, entendia-se tanto um sistema de proposições como
um habitus mental 13, algo característico do que é produzido por uma

11
FABRO, Cornelio. La Nozione Metafísica di Partecipazione secondo S. Tommaso d’Aquino, op. cit. 1950;
GEIGER, Louis-Bertrand. La Participation dans la Philosophie de S. Thomas d’Aquin. 2.ed. Paris: J. Vrin, 1953;
ELDERS. Leo. La Métaphysique de Thomas d’Aquin dans une Perspective Historique. Paris: J. Vrin, 1994, p.
248-262; VELDE, Rudi te. Participation and Substantialy in Thomas Aquinas. Leiden: Brill, 1995.
12
Para uma referência direta ao texto De veritate, q. 1, a. 1: FABRO, Cornelio. Partecipazione e Causalità
secondo S. Tommaso d’Aquino, op. cit., 1960, p. 62; 170; 172; 217; 231.
13
In I Post. Anal., lect. 4: “cum scire nichil aliud esse uideatur quam intelligere ueritatem alicuius
conclusionis per demonstrationem”. Ver também In VI Ethic., lect. 3: scientia est habitus demonstrativus,
id est ex demonstratione causatus”. AERTSEN, Jan. Medieval Philosophy and the Transcendentals, op. cit.,
1996, p. 75. Este aspecto, por si mesmo, mereceria um desenvolvimento mais amplo do que nos
permitimos aqui. Para um tratamento mais específico sobre a noção de “ciência demonstrativa” em
Tomás de Aquino, ver SERENE, Eileen. “Demonstrative Science”. In: KRETZMANN et al. (Editors), The
Cambridge History of Later Medieval Philosophy. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1984, p. 496. Ver
igualmente MACDONALD, Scott. “Theory of Knowledge” In: N. KRETZMANN & E. STUMP (Editors), The
Cambridge Companion to Aquinas, Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1996, p. 188-189, n. 13.
92 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

demonstração. Isto nos permite falar de uma dupla face da scientia em


Tomás de Aquino 14.
Ao expor a teoria de Aristóteles acerca da scientia demonstrativa,
os filósofos medievais do século XIII interpretaram e criticaram esta te-
oria a partir de suas próprias concepções e doutrinas. Em causa estava
a lealdade àquilo que tradicionalmente se chamou “o ideal aristotélico
de ciência demonstrativa” 15. Na verdade, a teoria da ciência demonstra-
tiva que Aristóteles apresenta nos Segundos Analíticos (I, c. 13, 78a 20)
pode ser facilmente identificada, mas sua compreensão e avaliação exi-
giram grande esforço dos filósofos medievais 16. Tal esforço
interpretativo provocou certa maleabilidade quanto ao modo de conce-
ber a noção de “ciência demonstrativa” por parte desses filósofos, frente
ao “ideal aristotélico”. Ora, o ideal aristotélico de ciência demonstrativa
tinha como parâmetro a matemática –particularmente a geometria. O
ideal da certeza matemática, portanto, deveria guiar a demonstração ci-
entífica. Contudo, Aristóteles reconhecia claramente a necessidade,
acerca das ciências, de se manter um “pluralismo epistemológico” 17: se-
ria uma falta de instrução, uma apaideusia, alguém querer exigir um
mesmo grau de certeza em todos os campos do conhecimento humano.
Ocorre que Aristóteles já estava diante de casos de metábasis em seu
tempo, tal como era feito sobretudo na astronomia, mas também na

14
NASCIMENTO, Carlos A. Ribeiro do. “As Duas Faces da Ciência de acordo com Tomás de Aquino”. In: L.
A. DE BONI (Org.), A Ciência e a Organização dos Saberes na Idade Média. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p.
177-190.
15
SERENE, Eileen. “Demonstrative Science”. op. Cit., 1984, p. 496-497.
16
Com base na distinção proposta nos Segundos Analíticos de Aristóteles entre “conhecimento do fato”
e “conhecimento da razão”, os medievais formularam a distinção entre ‘demonstratio quia’ e
‘demonstratio propter quid’.
17
NASCIMENTO, Carlos A. Ribeiro do. “Monismo e Pluralismo epistemológico”. In: Maria Lúcia Martinelli
et al. (Orgs.). O Uno e o Múltiplo nas relações entre as áreas do saber. São Paulo: Ed. Cortez/educ, 1995, p.
26.
Luis Carlos Silva de Sousa • 93

acústica e na ótica (as mais físicas das matemáticas, que Tomás de


Aquino denominará ciências intermediárias). Na Idade Média houve um
progressivo desrespeito a esse interdito de Aristóteles, em parte pelo
levantamento da questão sobre a possibilidade de se estender os crité-
rios da scientia demonstrativa ao mundo natural. Daí a necessidade de
um exame mais rigoroso sobre o estatuto epistemológico das “ciências
intermediárias” 18, pois elas não são nem puramente físicas nem pura-
mente matemáticas, desestruturando assim a tripartição aristotélica
das ciências teóricas. É através desse exame da relação entre ciência su-
balternante e ciência subalternada que Tomás de Aquino pode
estabelecer o estatuto da teologia revelada como ciência. As ciências in-
termediárias, afirma Tomás de Aquino, são assim chamadas “por
aplicação dos princípios matemáticos às coisas materiais” 19.
Para nossos propósitos, convém apenas observar o fato de que,
quando Tomás de Aquino fala de ciência ou conhecimento demonstra-
tivo, sua intenção consiste em manter ainda a distinção aristotélica
entre conhecimento e opinião 20. Por outro lado, ao considerar o caráter
demonstrativo da ciência de acordo com o grau de necessidade ou de
certeza, Sto. Tomás sabia que nem todo conhecimento demonstrativo
deveria ser alcançado através do tipo científico de “justificação inferen-
cial” 21.
Um conhecimento obtido através de silogismos demonstrativos re-
cebe certamente o nome de scientia. Trata-se de um conhecimento

18
NASCIMENTO, Carlos A. Ribeiro do. De Tomás de Aquino a Galileu. 2. ed. Campinas-SP: UNICAMP/IFCH,
1998.
19
In I Post. anal., lect., 25, nº 3.
20
Cf. E. SERENE, “Demonstrative Science”. op. cit., p. 505.
21
MACDONALD, Scott. “Theory of Knowledge”, op. cit., p. 163.
94 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

seguro, partindo de proposições previamente conhecidas. Este tipo de


conhecimento ocorre, portanto, a partir de uma derivação das premis-
sas do silogismo, chegando-se a uma conclusão. Tomás de Aquino tinha
consciência plena desses elementos estruturais da scientia: ela é de-
monstrativa e derivativa. Entretanto, este sentido de scientia apresenta
um problema que a filosofia contemporânea qualifica como “fundacio-
nismo”, que supõe uma fundamentação para o conhecimento humano.
Hans Albert, na linha do “racionalismo crítico” de K. Popper, considera
como inaceitável a idéia de fundamentação para um conhecimento su-
posto “científico”. Ora, segundo H. Albert, toda tentativa de
fundamentar nossas proposições cai no seguinte trilema: (1) regresso ao
infinito; (2) círculo lógico no procedimento de demonstração; (3) parada
arbitrária e dogmática no processo de fundamentação.
Ora, o problema acerca da estrutura demonstrativa da ciência já
havia sido tematizado no primeiro livro dos Segundos Analíticos (c. 3). As
objeções de H. Albert são antecipadas por Aristóteles, que concebe o
processo de redução como nos conduzindo a princípios per se inde-
monstráveis e não-hipotéticos. Segundo Aristóteles, não podemos ter
ciência de tudo, pois nem todo conhecimento é propriamente demons-
trativo: o conhecimento acerca de princípios tem uma natureza diversa
daquele que trata acerca de conclusões. Portanto, o conhecimento dos
primeiros princípios tem uma característica diversa daquele encon-
trado a partir de proposições 22.
Sto. Tomás tem consciência de que o próprio Aristóteles trabalha
com um outro tipo de demonstração (apódeixis), ao fundamentar a ob-
jetividade do princípio de não-contradição no livro IV da Metafísica (c.3,

22
Cf. J. AERTSEN, Medieval Philosophy and the Transcendentals, op. cit., 1996, p. 76.
Luis Carlos Silva de Sousa • 95

1005b 14) 23. Mas em Tomás de Aquino o método da resolutio é o mesmo,


seja para a ordem da ciência seja para a ordem da formação das defini-
ções. Podemos nos perguntar se o próprio Aristóteles não tinha mesmo
idéia desse paralelismo das duas ordens de conhecimento. Mas essa
idéia não se encontra inteiramente explícita em Aristóteles. Ora, essa
perspectiva é essencial em Tomás de Aquino, pois ele estende o método
de resolução dos primeiros princípios, tal como se encontra nos Segun-
dos Analíticos, ao conhecimento das definições 24.
Na ordem das definições, portanto, chegamos a conceitos primei-
ríssimos, porque também aqui um regresso ao infinito tornaria a
formação das definições algo impossível. A afirmação de Tomás de
Aquino é, em suma, a de que há certas noções primeiras de todas as de-
finições. Neste sentido, a redução das definições às primeiras noções,
em De veritate q.1, a.1, talvez possa ser concebida como “transcendental”
em uma acepção apenas próxima a de Kant. É verdade que, em Tomás
de Aquino, as noções transcendentais são pressupostas como condição
de possibilidade de todo conhecimento humano. Entretanto, em Tomás
de Aquino, os transcendentais assumem uma relevância metafísica que
será rejeitada pela filosofia kantiana da subjetividade. Por outro lado,
nem o princípio de contradição nem o ente são inatos ou fazem parte da
estrutura do intelecto humano. O ente é o que por primeiro (na ordem
lógica e de natureza, explicitamente e na ordem genética

23
Sobre a “demonstração elenktica” em Aristóteles, ver E. BERTI, As Razões de Aristóteles, op. cit., p. 93;
LIMA VAZ, Henrique. C de. Escritos de Filosofia III: Filosofia e Cultura. São Paulo: Ed. Loyola, 1997, p. 329;
MARÉCHAL, Joséph. Le Point de Depart de la Métaphysique: Le thomisme devant la philosophie critique.
2ª éd. (Cahier V). Paris: Desclée,1949, p. 86; AERTSEN, Jan. Medieval Philosophy and the Transcendentals,
op. Cit., 1996, p. 176; p. 180-182.
24
AERTSEN, Jan. Medieval Philosophy and the Transcendentals, op. Cit., 1996, p. 78.
96 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

implicitamente) o intelecto apreende e o princípio de contradição se for-


mula (implicitamente) com o primeiro juízo do cognoscente.

4. DO ENTE TRANSCENDENTAL AO ACTUS ESSEDI.

Em De veritate (q. 1, a 1), como vimos, há uma passagem que diz:


“Illud autem quod primo intellectus concipit quasi notissimum, et in quod
conceptiones omnes resolvit, est ens (...)” 25. Mas em que sentido devemos
interpretar essa passagem? Ela pode ser compatibilizada com a centra-
lidade da noção de esse em Tomás de Aquino?
A originalidade do esse de Tomás de Aquino é destacada como ex-
pressão última da exigência metafísica de um contato direto com a
existência, isto é, com a realidade e a atualidade de uma coisa. O esse
como ato de todos os atos, “no seu significado resolutivo” 26, transpõe o
plano lógico-semântico do juízo como ato-cópula. Há, portanto, uma
“diferença ontológica” entre ens e esse: o juízo capta apenas o aspecto
formal de nossa compreensão do ser.
Ora, “o método da metafísica tomista não é nem intuitivo nem de-
monstrativo, mas 'resolutivo' (…) 27. A resolução e não o juízo nos
forneceria um método adequado de acesso ao ente como primeiro
transcendental. Entretanto, disto não se segue que o ens seja um “super-
transcendental”, pois em Tomás de Aquino a primazia do ens em relação
aos outros transcendentais é apenas conceitual 28. Ora, Fabro tem cons-
ciência de que os transcendentais são conceitos e não perfeições.

25
“Ora, aquilo que o intelecto concebe por primeiro como o mais conhecido, e ao qual reduz todas as
concepções, é o ente (…)” De veritate, q. 1, a. 1.
26
FABRO, Cornelio. Partecipazione e Causalità secondo S. Tommaso d’Aquino, op. cit., p. 60.
27
Ibid., p. 63.
28
AERTSEN, Jan. Medieval Philosophy and the Transcendentals, op. cit., 1996, p. 170.
Luis Carlos Silva de Sousa • 97

Exatamente por isso o ente transcendental não poderia ser concebido


como a última etapa de consideração metafísica. É preciso passar do
plano lógico-transcendental do ens ao plano propriamente metafísico
do esse, “atualidade de todos os atos e, portanto, pefeição de todas as
perfeições” 29.
Mas devemos antes lembrar o que foi dito por Tomás de Aquino. O
esse se diz em dois sentidos: em primeiro lugar para significar actus es-
sendi (ato de ser), mas neste sentido de ser não podemos conhecer o ser
de Deus (“non possumus scire esse Dei”). Noutro sentido, através da com-
posição de uma proposição, sabemos que é verdadeiro que “Deus é”,
somente a partir dos efeitos de Deus 30. Em Deus, ser e essência não se
distinguem. Nosso conhecimento a Deus ocorre pela passagem do ser
finito ao ser incriado, através de uma análise da composição, nos entes,
de essência e ato de ser. Esta passagem é proporcionada pela tentativa
de resolução de uma “tensão dialética fundamental do esse” 31 implícita
na composição do ente em sua dualidade formal (id quod est, quod habet
esse) 32. Mas autores tendem a acentuar os limites de nosso conheci-
mento de Deus, interpretando que o ente e não Deus seja o objeto
próprio de nosso intelecto 33. Mas como é possível afirmar que o ente é o
primeiro objeto da apreensão quididativa, se o conceito de ente já pres-
supõe a realização de juízos existenciais e, portanto, a formação de

29
De pot., q. 7, a 2 ad 9: “Unde patet quod hoc quod dico esse, est actualitas omnium actuum, et propter
hoc est perfectio omnium perfectionum.” Sobre este importante texto de Sto. Tomás: FABRO, Cornelio.
La Nozione Metafisica di Partecipazione secondo S. Tommaso D'Aquino, op. cit., p. 202. Outros textos
mencionados por Fabro: In II Sent. dist.I, q. 1, a 4; Quodl. II, 3 ad 2; Q. De Anima, a 9; ScG. I, c. 22, 28 e 53;
Sth. Ia, q. 4, a 1 ad 3; Ia, q. 4, a 2; Ia, q. 20, a 2; Ia, q. 105, a 5.
30
Sth. Ia, q. 3, a 4 ad 2.
31
FABRO, Cornelio. Partecipazione e Causalità secondo S. Tommaso d’Aquino, op. cit., 1960, p. 218.
32
FABRO, Cornelio. La Nozione Metafisica di Partecipazione secondo S. Tommaso D'Aquino, op. cit., 1950,
p. 218-219.
33
Sth. Ia, q. 5, a 2.
98 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

conceitos? Esta prioridade do ente, porém, não significa uma prioridade


na ordem do tempo, mas uma prioridade na ordem da resolução 34. A
apreensão conceitual é sempre a apreensão de um ente determinado, de
existência factual, mera atualidade. Mas como inteligir o ser como “atu-
alidade de todos os atos” não como mera existência factual de algo, mas
como perfeição? Parece que o discurso metafísico de Tomás de Aquino
aponta para além de nossas afirmações sobre o ente como atualidade
factual 35.
Na noção de esse como actus essendi, Tomás de Aquino faz confluir
o ens aristotélico como “primum metaphysicum” e o bonum dos platônicos
cristãos (Agostinho e Pseudo-Dionísio) à guisa de fim de toda perfei-
ção 36. A emergência do esse em Tomás de Aquino romperia assim os
limites conceituais do ente transcendental na direção do ipsum esse sub-
sistens, o Bem separado de Platão, o Intelecto separado de Aristóteles. O
ente por participação encontra sua resolução no esse intensivo 37 como
actus essendi, uma confluência entre platonismo e aristotelismo 38. É
neste sentido que a segunda operação do intelecto (separatio) não ex-
prime a última e suprema determinação do ato, já que o ser do juízo
encerra uma imanência lógico-formal que não faz justiça ao caráter
transcendente de Deus como ipsum esse. É preciso destacar a estrutura

34
WIPPEL, John. The Metaphysical Thought of Thomas Aquinas, op., cit. 2000, p. 42.
35
FABRO, Cornelio. La Nozione Metafisica di Partecipazione secondo S. Tommaso D'Aquino, op. cit., 1950,
p. 202 e p. 139.
36
FABRO, Cornelio. La Nozione Metafisica di Partecipazione secondo S. Tommaso D'Aquino, op., cit., 1950,
p. 204, n. 1; FABRO, Cornelio. Partecipazione e Causalità secondo S. Tommaso d’Aquino, op. cit., 1960, p.
161.
37
Sobre a terminologia “esse intensivo”, ver FABRO, Cornelio. Partecipazione e Causalità secondo S.
Tommaso d’Aquino, op., cit., 1960, p. 221, n. 2.
38
FABRO, Cornelio. Partecipazione e Causalità secondo S. Tommaso d’Aquino, op., cit., 1960, p. 221; CLARKE,
W. Norris. “The Limitation of Act by Potency: Aristotelianism or Neoplatonism”. In: The New Scholasticism
(1952), XXVI, p. 167-194.
Luis Carlos Silva de Sousa • 99

dialética presente no método de resolução: o intelecto explicita o que já


estava implícito no ens desde o início; o que era confuso em um primeiro
momento, explicita-se ao final, sendo atualizado através de um retorno
ao começo 39. Esta ideia de circularidade da tradição platônica está, de
fato, presente no processo de retorno à determinação do ens por parti-
cipação, após a consideração das “vias” de demonstração da existência
de Deus em sua absoluta transcendência 40.

39
Talvez sejamos tentados a ver, aqui, a possibilidade de se tematizar o esse de Tomás de Aquino com
os recursos conceituais da dialética hegeliana. Mas esta não seria uma via adequada. FABRO, Cornelio.
La Nozione Metafisica di Partecipazione secondo S. Tommaso D'Aquino, op. cit., 1950, p. 202, p. 205, n. 1.
40
FABRO, Cornelio. Partecipazione e Causalità secondo S. Tommaso d’Aquino, op. cit., 1960, p. 238.
6
ESSE SUBSISTENS E AS RAZÕES ETERNAS (STH. Iª, Q.
84, A 5)

1. TOMÁS DE AQUINO E AS RAZÕES ETERNAS

O tópico sobre as razões eternas está situado no bloco das questões


84-89, da Primeira Parte da Summa theologiae, relativo ao conhecimento
intelectual humano. A questão 84 trata sobre como a alma unida ao corpo
conhece o que é corporal, que lhe é inferior. Esta questão está dividida em
oito artigos: Se a alma conhece os corpos pelo intelecto (a. 1); Se os inte-
lige pela sua essência ou por algumas espécies (a. 2); Se por algumas
espécies, se as espécies de todos os inteligíveis lhe são naturalmente
inatas (a. 3); Se lhe advêm de algumas formas imateriais separadas (a.
4); Se nossa alma vê, tudo o que intelige, nas razões eternas (a. 5); Se
adquire o conhecimento inteligível a partir do sentido (a. 6); Se o inte-
lecto pode inteligir em ato por espécies inteligíveis que tem em si, sem
se voltar para as fantasias (a. 7); Se o juízo do intelecto é impedido pelo
impedimento das capacidades sensitivas (a. 8). O artigo 5º da questão 84
está, portanto, situado primeiramente a partir de uma discussão sobre
o processo do conhecimento humano e tem a seguinte formulação no iní-
cio do próprio artigo: “Se a alma intelectiva conhece as coisas materiais
nas razões eternas” (Utrum anima intellectiva cognoscat res materiales in
rationibus aeternis). É nossa intenção considerar, em especial, o papel da
noção metafísica de participação que estará suposto no acesso da alma
intelectiva às razões eternas.
Tomás de Aquino inicia a exposição do artigo 5º, como ocorre com
cada artigo da Suma de Teologia, de acordo com a estrutura corrente de
Luis Carlos Silva de Sousa • 101

um artigo de questão disputada, embora com uma formulação mais sim-


ples: “Parece que a alma intelectiva não conhece as coisas materiais nas
razões eternas”. Em seguida são apresentados três argumentos ou obje-
ções, também contrários à tese que Tomás de Aquino pretende
sustentar. O primeiro argumento parte do seguinte ponto: “aquilo em
que algo é conhecido é ele próprio mais conhecido e anteriormente”.
Assim, se pudermos conhecer “em que” algo é conhecido devemos supor
uma anterioridade quanto à capacidade de apreensão do que se conhece.
“Ora, a alma intelectiva do ente humano, no estado da vida presente,
não conhece as razões eternas, pois não conhece o próprio Deus no qual
as razões eternas existem”. Noutras palavras, de acordo com Dionísio,
não temos conhecimento do próprio Deus, mas a alma intelectiva “a ele
se une como desconhecido” (Teologia Mística, c. 1). Se o próprio Deus é
incognoscível, isto é, aquilo “em que” as razões eternas seriam conheci-
das pela alma intelectiva, então “a alma não conhece nas razões
eternas”. Há, aqui, uma forte referência à argumentação da teologia ne-
gativa contra a pretensão do conhecimento intelectual humano de
acesso às razões eternas. A segunda objeção recorre a uma passagem de
Paulo (Rm 1,20), e a terceira objeção recorre a Agostinho. Esta terceira
objeção é a mais importante para o próprio o propósito de Tomás de
Aquino, já que todo o artigo 5º tem como intenção fornecer uma espécie
de “drible intelectual” em Agostinho, na medida em que formula uma
interpretação da doutrina agostiniana da “iluminação” no sentido de
torná-la compatível com a teoria do conhecimento de tipo aristotélico,
que sustenta o vínculo de nosso conhecimento intelectual à experiência
sensorial. No terceiro argumento, no extremo oposto do que ocorre na
primeira objeção, a alma intelectiva conheceria tudo nas razões eternas,
e a própria ciência se identificaria com a ciência das ideias, de acordo
102 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

com o modelo platônico 1. A terceira objeção traz à baila um importante


capítulo na História da Metafísica, ao retomar, através de Agostinho,
que “as ideias são razões estáveis das coisas, existentes na mente di-
vina”. Em sentido contrário (sed contra), Agostinho também é
mobilizado, apoiando-se agora no livro XII das Confissões: “Ora, a ver-
dade incomutável está contida nas razões eternas. Logo, a alma
intelectiva conhece toda a verdade nessas razões.” 2. O que está em jogo
na discussão, portanto, diz respeito à fonte do conhecimento verda-
deiro, isto é, a verdade imutável contida nas razões eternas. Entretanto,
antes de avançarmos diretamente para a resposta de Tomás de Aquino,
será preciso observar algo que terá relevância mais adiante (seção 1.2),
no contexto da discussão sobre o dinamismo transcendental do espírito
humano: Deus é a causa de maxime communia, mas esta não é a razão de
se estabelecer a relação entre as noções transcendentais (ser, unidade,
verdade e bondade) e o divino: não devemos dizer que Deus é bom à me-
dida que é causa da bondade, mas o inverso: porque Deus é Bondade,
então difunde o bem nas coisas 3. Os nomes que atribuímos a Deus sig-
nificam sua substância divina, mas permanecem representações
deficientes, porque os nomes que lhe atribuímos representam o que
nosso intelecto conhece dele, isto é, o que apreendemos a partir das cri-
aturas. Deus contém em si todas as perfeições das criaturas. Uma
criatura é semelhante a Deus enquanto dotada de alguma perfeição; ela
representa a Deus não como algo da mesma espécie ou gênero, mas como
princípio transcendente de cuja forma os efeitos são deficientes: os

1
STh, q. 84, a 5, obj. 3.
2
STh. q. 84, a 5, sed contra.
3
STh. Ia, q. 13, a. 2. Ver aqui a concordância com De doctrina christiana (I, 32) de Agostinho: “Porque Ele
é bom, nós somos.”.
Luis Carlos Silva de Sousa • 103

nomes que lhes são atribuídos significam a substância divina, mas,


como criaturas, o fazemos de modo imperfeito. A proposição “Deus é
Bom”, portanto, não quer dizer “Deus é causa da Bondade”, mas tem ou-
tro sentido: “o que chamamos de bondade nas criaturas preexiste em
Deus”. Tomás de Aquino adota o modelo platônico de predicação, mas
não sua aplicação ao gênero e às espécies nas coisas naturais. Ele dife-
rencia dois modos de predicação, que acentua não apenas a diferença
entre Deus e as criaturas, mas também se refere à sua relação íntima de
dependência causal: algo é bom (ser, uno ou verdadeiro) per essentiam
ou per participationem. O ente (ens) é predicado essencialmente apenas
por Deus, na medida em que o ser divino (esse) é subsistente e ser abso-
luto; nas criaturas a predicação ocorre apenas por participação, porque
toda criatura não é ser (esse), mas tem ser. Deste modo, a criatura so-
mente pode ser qualificada como “boa” por participação em Deus, que é
“bondade” em si. Neste sentido toda criatura é um ente participativo
(ens participative) 4 e a própria ideia cristã de criação é pensada nos ter-
mos da noção de participação 5. Tomás de Aquino procura conectar seu
argumento a respeito da participação à discussão de Aristóteles (Meta-
física, II) sobre o ente em relação ao maximum. Neste ponto Tomás de
Aquino exclui qualquer interpretação panteísta da participação.
No corpo do artigo, Tomás de Aquino apresenta um Agostinho
cônscio de sua relação com a via platonica. Daí sua consideração inicial,
após citar uma passagem do livro II Da doutrina cristã de Agostinho so-
bre a possibilidade de harmonizar as doutrinas dos gentios e a fé cristã:

4
“[…] omnis autem creatura est ens participative, non quod sua essentia sit ius esse” (STh. Ia, q. 104,
a.1c.)
5
STh. Ia, q. 44, a. 1.
104 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

Por isso, Agostinho que fora imbuído das doutrinas dos platônicos, se en-
controu algo em acordo com a fé, em seus escritos, o tomou; mas o que
encontrou em oposição à nossa fé, mudou para melhor. - Ora, Platão sus-
tentou, como foi dito acima [a. 4], que as formas das coisas subsistiam por
si separadas da matéria e chamava-as de “ideias”, por cuja participação, di-
zia ele, o nosso intelecto conhece tudo. (…) Parece, porém, que é estranho à
fé que as formas das coisas subsistam por si sem a matéria, fora das coisas,
como os platônicos sustentaram ao dizer que a “vida por si” ou a “sabedoria
por si”, são certas substância criadoras, como Dionísio diz no capítulo XI
dos Nomes divinos. Por isso, Agostinho, no livro das Oitenta e três questões,
sustentou, no lugar destas ideias que Platão sustentava, que as razões de
todas as criaturas existem na mente divina, de acordo com as quais tam-
bém, a alma humana conhece tudo. 6

A ênfase da argumentação recai, em primeiro lugar, sobre o as-


pecto cognoscitivo da alma humana: a análise das razões eternas
complementa, sob um viés epistemológico, o que foi tratado anterior-
mente na questão 15 De ideis, da Suma de Teologia. Ao perguntar sobre se
a alma humana conhece tudo nas razões eternas, no artigo 5º Tomás de
Aquino responde de tal modo a preservar, por um lado, a autoridade de
Agostinho no plano metafísico-teológico e, ao mesmo tempo, pensando-
a já nos quadros epistemológicos de Aristóteles. Ora, diz Tomás de
Aquino, de duas maneiras se pode conhecer uma coisa em outra: (1) co-
nhecendo-a em um objeto conhecido, como se vê “em um espelho coisas
cujas imagens estão nele refletidas”; (2) conhecendo-a como em um
princípio de conhecimento, como se vê “no sol o que vemos por sua luz”.
Os exemplos que Tomás de Aquino escolhe para sustentar seu argu-
mento, é claro, não são casuais, pois estão inscritos na tradição
platônica: inspeculo, insole. No primeiro caso, não podemos conhecer as

6
STh Ia, 84, a 5 c.
Luis Carlos Silva de Sousa • 105

coisas materiais nas razões eternas, porque a alma, no estado da vida


presente, não vê a Deus. Esta é a maneira de conhecer apenas daqueles
que alcançaram a beatitude, que vêem a Deus e tudo nele. No segundo
caso, porém, a alma humana conhece tudo nas razões eternas, no sen-
tido de que é pela marca divina em nós que tudo nos é mostrado. Mas,
para Tomás de Aquino, será necessário interpretar adequadamente o
que propõe Agostinho 7. Temos, portanto, alguma noção das razões eter-
nas, como algo já inscrito em nós. Tomás de Aquino cita o Salmo 4, 6-7,
que se refere à felicidade, ilustrando com isso o fato de que o selo da luz
divina está marcado em nós. O desejo da felicidade, assim como o desejo
de ver a Deus, está inscrito previamente em nós 8. Daí a comparação so-
bre o conhecimento naturalmente impresso em nós (embora confuso)
acerca de Deus, e o nosso desejo de felicidade. O que está em jogo, aqui,
não é a negação de algum conhecimento, mas destacar a diferença entre
esse conhecer e o conhecimento (enquanto tal) do que Deus é.
De acordo com a perspectiva agostiniana, no intelecto humano há
uma participação da luz divina em nós. Mas isto, acentua Tomás de
Aquino, ainda não é propriamente conhecer o ser de Deus: ter por par-
ticipação a luz intelectual não seria suficiente para o conhecimento das
coisas 9. O conhecimento das coisas pela alma intelectiva supõe, por-
tanto, uma dupla fonte: (a) a luz intelectual que se exerce no trabalho de
abstração do intelecto agente; (b) A outra fonte são as species intelligibi-
les. Há uma relação entre as razões eternas e o intelecto agente no
processo cognoscitivo de participação na luz incriada. Diante de

7
STh Ia, q. 84, a 5 c; STh. Ia, q. 44, a. 1.
8
STh Ia q. 2, a 1 ad 1.
9
BOLAND, Vivian. Ideas in God according to Saint Thomas Aquinas: sources and synthesis. Leiden/New
York/Köln: Brill, 1996, p. 281.
106 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

Agostinho será preciso afirmar que, para o completo concurso do co-


nhecimento humano, deveríamos recorrer, necessariamente, às species
intelligibiles recebidas das coisas materiais 10. Uma mesma concepção de
fundo, em conexão com Agostinho, no artigo seguinte, esclarece em que
sentido deveríamos interpretar a frase “non est expectanda sinceritas ve-
ritatis a corporis sensibus” (livro 83, q. 46). Com isso o caminho está
aberto para o passo seguinte, desenvolvido no artigo 6º, em confronto
mais direto com Aristóteles: “Se o conhecimento intelectivo é recebido
das coisas sensíveis” (Utrum intellectiva cognitio accipiatur a rebus sensi-
bilibus). O caráter matizado e ao mesmo tempo bastante compacto do
artigo 6º será um encadeamento do artigo 5º, que nos mostra porque
Tomás de Aquino não precisa escolher entre Agostinho e Aristóteles, já
que ambos não estão falando sobre a mesma coisa: Aristóteles está fa-
lando do processo do conhecimento intelectual humano enquanto
Agostinho está falando da fonte transcendente de Deus, o locus das ra-
zões eternas 11.
Após a apresentação do artigo 5º, resta ainda acentuar um ponto
importante 12: a perspectiva sobre a inteligibilidade da criação, enten-
dida em termos de participação, isto é, o modo como esta pode ser
desvelada pela mente humana 13. Tomás de Aquino segue Agostinho ao
conceber que as ideias ou exemplares são formas-princípios das criatu-
ras na mente divina. Deus é a causa exemplar primeira de tudo 14. A
sabedoria divina tem em sua mente a ordem do universo e dispõe tudo

10
STh. Ia, q. 84, a 6 ad 1.
11
NASCIMENTO, Carlos A. Ribeiro do: “Tomás de Aquino entre Agostinho e Aristóteles”. In: P. M. PALACIOS
(Org.), Tempo e Razão: 1.600 anos das Confissões de Agostinho. São Paulo: Ed. Loyola, 2002, p. 63-73.
12
VELDE, Rudi te. Participation and Substantialy in Thomas Aquinas, op. cit., 1995, p. 87-206.
13
STh. Ia, q. 44 a.2 c; De pot. q. 3, a. 5 c.
14
STh. Ia, q. 44 a. 3.
Luis Carlos Silva de Sousa • 107

de modo diferenciado. Assim, na sabedoria divina estão todas as razões


eternas (ideias), ou seja, as formas exemplares existentes na mente di-
vina. Há aqui uma retomada da problemática clássica da relação entre o
Uno e o Múltiplo no quadro referencial da metafísica da criação 15: os
exemplares são múltiplos de acordo com a diversidade das criaturas,
mas não se diferenciam da essência divina. Do ponto de vista metafísico,
a doutrina da criação em Tomás de Aquino ocorre à luz da noção platô-
nica de participação e da noção aristotélica de substância, mas Tomás
de Aquino opera uma transformação conceitual na recepção dessas no-
ções.
A similitude com Deus pode ser participada de modos diversos por
tudo que é criado. Mas será preciso compreender a similitude divina nos
seres criados não como a atualização de possíveis essências das coisas
na mente divina. A essência divina é a ideia de todas as coisas, não en-
quanto identidade consigo mesma (ut essentia), mas enquanto as coisas
são inteligidas (ut intellecta). Assim, a similitude de cada criatura pode
ser inteligida por Deus na medida em que as coisas assimilam diversa-
mente e em distintos graus a infinita perfeição de sua essência: Deus as
conhece na distinção entre essência e ser (esse), isto é, per participatio-
nem. Cada ente (ens) se distingue e participa de Deus, que é Ipsum Esse.
Essa diferença é preconcebida em Deus na ideia de cada criatura. Deus
é causa de todas as diferenças múltiplas dos entes 16. O ente enquanto
ente (ens) é um “outro” em relação ao ser (esse), na medida em que é uma
similitude (per participationem) da essência de Deus: as criaturas não

15
VELDE, Rudi te. Aquinas on God: The ‘Divine Science’ of the Summa Theologiae. (Ashgate Studies in the
History of Philosophical Theology). England/USA, 2006, p. 123-125; p. 150-155; Participation and
Substantialy in Thomas Aquinas, op. cit., 1995, p. 134-159.
16
De pot. q. 3, a. 16 ad 4.
108 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

participam da essência divina enquanto tal, mas em sua similitude, e


precisamente enquanto similitude é distinguida da essência divina em
si mesma (per essentiam). A participação é um modo de conceber a “di-
ferença na unidade”. Há apenas um ato de criação: Deus não atualiza as
múltiplas possibilidades (possibilia) das criaturas previamente em sua
mente. O efeito do ato de criação procede da causa em virtude de uma
ativa autodistinção a partir da própria causa: Deus produz a “alteridade”
das criaturas em relação a si, precisamente enquanto similitude divina
nas criaturas. Não há uma dupla criação ou “dupla participação”: uma an-
terior (essência) na mente de Deus, e outra na produção da existência
atual (esse). Para Tomás de Aquino, exemplaridade e eficiência são dois
aspectos de uma única causalidade divina. A fonte da participação causal
aqui expressa provém do modo como Tomás de Aquino repensa Dioní-
sio, isto é, como a causa divina pode ser conhecida através da concepção
de similitudo 17.

2. RAZÕES ETERNAS: PARTICIPAÇÃO E TRANSCENDÊNCIA

A relação de dependência entre a criatura e o Criador é expressa


por Agostinho com o termo “participare”. Isto significa que tudo o que é
criado, isto é, toda verdade, bondade, beleza etc., nas criaturas, não é
senão uma participação na luz primeira, o Verbo divino 18. Para Agosti-
nho, assim como para Tomás de Aquino, observa-se na alma a existência
de um “lumen inteligibile” que provém de Deus- mas é preciso dizer que
o modo como se compreende o papel dessa luz divina em nós se

17
In de div. nom. c. 5, lect. 2, n. 662.
18
FABRO, Cornelio. La Nozione Metafisica di Partecipazione secondo S. Tommaso d'Aquino, op. cit., 1950, p.
80.
Luis Carlos Silva de Sousa • 109

diferencia em cada um deles 19. Certamente é preciso reconhecer a legi-


timidade da perspectiva “transcendental” de Agostinho, especialmente
no que se refere à “metafísica da Ideia” que marca a filosofia de matiz
neoplatônico do Bispo de Hipona. Em sua perspectiva cristã, Agostinho
ultrapassa os limites de uma filosofia dita “neoplatônica”, embora pre-
serve em uma síntese pessoal os elementos fundamentais desta
tradição. O confronto com a doutrina platônica e neoplatônica ocorre
não apenas em sua obra mais importante (De Civitate Dei), mas também
em seu Epistolário. Na tradição platônica, é certo, a busca da verdade
coincide com a busca da felicidade. Entretanto, importa saber propria-
mente como o homem pode ser feliz, o que implica a mediação
indispensável de Cristo. A metafísica de Agostinho, portanto, deve ser
compreendida como uma “metafísica da verdade e do bem, base da an-
tropologia e da ética cristãs”, pois, como é expresso por exemplo na
Carta 137, “no duplo preceito do amor de Deus e do próximo, se compen-
dia toda a filosofia e também a 'laudabilis reipublicae salus'. -Temos,
pois, neste texto, a melhor síntese da 'filosofia cristã' de Agostinho no
Epistolário (…).” 20. Acrescente-se que a noção de Deus como Criador está
na base da “doutrina da iluminação” e do eudemonismo agostinianos.
Além disto, é somente a partir do mistério do homem Cristo Jesus que se
pode entender a antropologia e a teoria do conhecimento de Agostinho.
A breve questão 46 De Ideis, do livro De diuersis quaestionibus 83, de
Sto. Agostinho 21, teve uma importância capital na formação da teologia

19
Ibid., p. 83
20
RAMOS, Francisco M. Tomás. A Idéia de Estado na Doutrina Ético-Política de S. Agostinho: um estudo do
Epistolário comparado com o “De Civitate Dei”. São Paulo: Ed. Loyola, 1984, p. 78.
21
AGOSTINHO DE HIPONA, “Sobre as Idéias”. In: Cadernos de Trabalho CEPAME II (1/1993) 5-11; “Das
Idéias”. In: Scintilla 5 (1/2008) 181-183; BOLAND, Vivian. Ideas in God according to Saint Thomas Aquinas:
sources and synthesis, op. cit., 1996, p. 39.
110 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

escolástica 22 e, em particular, na de Tomás de Aquino 23. O artigo 5º da


questão 84ª é uma tomada de posição diante da doutrina expressa pelo
texto da questão 46ª, De ideis de Sto. Agostinho 24. Na definição agostini-
ana, as Ideias são exemplares eternos das coisas, contidos na mente de
Deus 25. Com efeito, na mente divina estão contidas todas as razões ou
ideias da realidade criada ou potencialmente existente. Ao contrário da
doutrina platônica das Formas ou Ideias, os princípios de inteligibili-
dade das coisas não estão presentes em algum âmbito da realidade à
parte. Não há algo divino independente do ser de Deus. Do contrário,
seria supor que a atividade de Deus dependeria de algo exterior a Ele.
Mas não há algo que subsista fora de sua ordem, de sua atividade cria-
dora 26. As Ideias na mente divina garantem o governo do mundo e a
estrutura ontológica dos entes. É neste sentido que, para Agostinho, vê-
se nestas reflexões o próprio fundamento de toda verdadeira religião 27.
A descoberta das Ideias em Deus é feita em contraste com a dou-
trina platônica, a partir dos paradoxos que Agostinho encontra nesta
concepção. No que se refere ao processo de conhecimento humano,
Agostinho se baseia em sua concepção de iluminação divina, em con-
fronto com a doutrina platônica da reminiscência 28. Mas é importante

22
FABRO, Cornelio. La Nozione Metafisica di Partecipazione secondo S. Tommaso d'Aquino, op. cit., 1950, p.
80.
23
Sth Ia, q. 15, a 1 sed contra; a 2 sed contra; a 3 sed contra; q. 84, a 5.
24
FABRO, Cornelio. La Nozione Metafisica di Partecipazione secondo S. Tommaso d'Aquino, op. Cit., 1950,
p. 80, n. 1.
25
BOLAND, Vivian. Ideas in God according to Saint Thomas Aquinas, op. Cit., 1996, p. 40.
26
KOWALCZYK, Stanislaw. “La métaphysique du bien selon l'acception de St. Augustin”. In: Estudio
Agustiniano 8 (1973), p. 31-51. Ver também, do mesmo autor: “El teocentrismo de la jerarquia de los
bienes en la doctrina de San Agustin. In: Augustinus 22 (1977) 229-238; BOYER, Charles. Essais anciens et
nouveaux sur la doctrine de Saint Augustin, Milano, 1970.
27
FABRO, Cornelio. La Nozione Metafisica di Partecipazione secondo S. Tommaso d'Aquino, op. cit., 1950, p.
81.
28
BOLAND, Vivian. Ideas in God according to Saint Thomas Aquinas, op. cit., 1996, p. 44.
Luis Carlos Silva de Sousa • 111

observar que o caminho percorrido por Agostinho até chegar a essa des-
coberta é característico de seu pensamento, imerso na tradição
platônica: a análise da interioridade revela, na mente humana, noções
eternas e imutáveis, que não podem ter sido produzidas pelo próprio
homem, pois o que é inferior não pode causar o que é superior.
Para Agostinho, portanto, há uma conaturalidade entre as verda-
des eternas e a mente humana, embora nem todo ser humano alcance a
razão última das coisas. O homem pode ter acesso às ideias com o olho
interior da mente, mas esta deve estar purificada para se unir a Deus na
caridade 29. Somente assim a alma alcança na contemplação a sua beati-
tude 30. A purificação da mente, através da caridade, possibilita ao
homem alcançar a visão intelectual acerca do ser divino. Com isso, a
mente se dispõe a ser iluminada por Deus: a estrutura cognitiva humana
recebe a iluminação das notiones aeternae, o que permite o acesso à ver-
dade ou razões das coisas, presentes no ser divino.
A questão 46 das Oitenta e três questões diversas de Agostinho é,
como vimos vimos, explicitamente mencionada por Tomás de Aquino
no artigo 5º da questão 84ª da Primeira Parte da Summa Theologiae 31. O
plano de fundo primordial desta questão consiste na oposição de Tomás
de Aquino à doutrina platônica 32. As viae são os argumentos tomados
como premissas (por. ex., os de Platão, Aristóteles e Agostinho), que To-
más de Aquino conscientemente mobiliza em sua própria discussão. Ele
acomoda os argumentos segundo um certo procedimento. Há uma

29
BOLAND, Vivian. Ideas in God according to Saint Thomas Aquinas, op. cit., 1996, p. 40.
30
FABRO, Cornelio. La Nozione Metafisica di Partecipazione secondo S. Tommaso d'Aquino, op cit., 1950, p.
82.
31
BOLAND, Vivian. Ideas in God according to Saint Thomas Aquinas, op. cit., 1996, p. 275.
32
HENLE, Robert John. Saint Thomas and Platonism: a study of the Plato and Platonici texts in the writings
of Saint Thomas. Den Haag: Nijhoff, 1956, p. 390.
112 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

metodologia no tratamento das positiones. O uso do termo positio diz


respeito, aqui, às conclusões dos argumentos. Uma via, portanto, é rela-
cionada a uma positio, assim como argumentos a uma conclusão. Assim,
as positiones filosóficas podem ser reduzidas aos argumentos (via, ratio,
rationes). O método ratio-positio é um tipo de análise que conduz a con-
clusões filosóficas específicas, que serve de base para uma crítica. Com
isso, torna-se possível a Tomás de Aquino uma clara distinção entre a
crítica à via ou rationes e a crítica à positio em si 33. Esta parece ser, de
fato, uma característica de Sto. Tomás, a saber: apresentar suas doutri-
nas em oposição consciente com as de outros.
No caso específico do artigo 5º, Agostinho é situado em continui-
dade e em contraste com a “via platonica”. Talvez possamos descrever
essa metodologia de Tomás de Aquino como uma técnica paralela àquela
que é feita pela exposição das auctoritates. A técnica das autoridades –
Sancti et philosophi- cumpre um papel fundamental na estratégia argu-
mentativa de Sto. Tomás. No artigo, Tomás de Aquino jamais indica que
Agostinho está errado. A autoridade de Agostinho apresenta-se ali-
nhada à própria exposição de Sto. Tomás 34. Com efeito, o recurso
constante aos auctores é, sem dúvida, o elemento mais característico da
Escolástica. A cultura que se apoia em textos considera como mestres
aqueles auctores do bem pensar e do bem dizer, isto é, as “autoridades”.
Assim, Dante irá se referir a Aristóteles como sendo, por excelência, um

33
HENLE, Robert John. Saint Thomas and Platonism, op. Cit., 1956, p. 300.
34
CHENU, Marie-Dominique. Introduction a l'Étude de Saint d'Aquin, Paris: Vrin, 1950; “Auctor, actor, autor”.
In: Studi di Lessicografia Filosofica Medievale, Leo S. Olschki, Firenze, 2001, p. 81-86; GEENEN, Godfried.
“L’usage des ‘auctoritates’ dans la doctrine du baptême chez S. Thomas d’Aquin”. In: Ephemerides
Theologicae Lovanienses 15 (1938) 279-329; “Santo Tomás e os Padres”. In: Vacant, A. ety al. (Org.).
Dictionnaire de Théologie Catholique, Paris, Letouzey, 1950, tomo XV, 1ª parte, verbete “Thomas d’Aquin”,
col. 738-739; 749-741; RIQUET, Michel. “Saint Thomas d’Aquin et les ‘auctoritates’ en Philosophie”. In:
Archives de Philosophie 3 (1925) 117-155; MATTOS, Carlos Lopes de. “As ‘auctoritates’ em Alberto Magno
e Tomás de Aquino”. In: Revista Brasileira de Filosofia 6 (1956) 213-223.
Luis Carlos Silva de Sousa • 113

autore (Conv. IV, 6). Ora, os textos desses mestres são authentici. Por uma
sinuosa evolução, que não será objeto de nossa investigação, a palavra
auctoritas passa a se referir também a um texto. De início, o termo auc-
toritas significa a qualidade em virtude da qual um homem é
considerado digno de crédito. O termo auctor, que em sentido largo, sig-
nifica aquele que produz, que tem a iniciativa de um ato, mantém a ideia
de autoridade, de dignidade. Por metonímia, “auctoritas” passa a se re-
ferir ao que é transposto, isto é, da dignidade de um autor ao produto
de seu ato, como um instrumento de autoridade. Este ato produzido é,
portanto, considerado como autêntico. Com efeito, a significação pri-
meira dessas auctoritates se referia aos documentos oficiais (escritos
dos príncipes, cartas papais etc.). Por uma segunda metonímia, o texto
mesmo passou a ser chamado de auctoritas. O que se invoca é o próprio
texto 35. É neste sentido, isto é, com esta segunda significação que o
termo autoridade circula na Idade Média entre os compiladores de sen-
tenças. A auctoritas Augustini, portanto, não significaria o valor pessoal
de Agostinho, mas o texto de Agostinho.
O recurso aos textos, porém, não se desenvolve de uma forma pas-
siva ou meramente reverencial. Os textos de Agostinho são assimilados
e situados num quadro dialético de argumentação, isto é, no debate de
opiniões. O emprego das autoridades é submetido por Tomás de Aquino
a um juízo crítico, onde se pretende manter a distinção entre o “conhe-
cimento da fé” (com base na Palavra de Deus) e o “conhecimento
racional” 36. Neste âmbito de discussão, portanto, o confronto com as

35
CHENU, Marie-Dominique. Introduction a l'Étude de Saint d'Aquin, op. Cit., 1950, p. 110.
36
Ibid., p. 117.
114 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

autoridades não está isento de um certo procedimento de compreensão


hermenêutica.
Ao levar em conta o “jogo das autoridades”, implicado na análise
do artigo 5 da questão 84, Henle parece examinar mais detidamente que
Fabro o contexto doutrinal que sustenta a leitura que Tomás de Aquino
faz de Agostinho. A interpretação de Henle sugere ainda uma aproxi-
mação menos isolada dos pressupostos comuns a Agostinho e a Tomás
de Aquino, destacando inclusive o esforço de captação de sentido que
Sto. Tomás empreende diante da via platonica de Agostinho.
De fato, o tópico sobre as “razões eternas”, em Agostinho, é inse-
parável da oposição a Platão e aos platônicos 37. O contraste indicado por
Tomás de Aquino entre Platão e Agostinho é aqui bem definido: Agosti-
nho rejeitou, no Livro das 83 questões, a existência das formas separadas
das coisas subsistentes em si sem matéria, e concebeu as ideias (formas)
como presentes na mente divina 38.
No terceiro argumento do artigo 5º da questão 84ª, a referência ao
Livro das Oitenta e três questões ocorre explicitamente 39. Agostinho é mo-
bilizado no sed contra, apoiando-se agora no livro XII das Confissões 40.
No corpo do artigo, Tomás de Aquino apresenta um Agostinho cônscio
de sua relação dialética com a via platonica 41. De início, após citar uma
passagem do livro II Da doutrina cristã de Agostinho, sobre a possibili-
dade de harmonizar as doutrinas dos gentios e a fé cristã, Sto. Tomás
acrescenta:

37
HENLE, Robert John. Saint Thomas and Platonism, op. cit., 1956, p. 395-396.
38
GILSON, Étienne. Introduction a L'Étude de Saint Augustin, 2.ed., Paris: Vrin, 1943, p. 108-109.
39
STh, q. 84, a 5, obj. 3.
40
Sth. q. 84, a 5, sed contra.
41
De spir. creat. a. 10, ad 8m; FABRO, Cornelio. La Nozione Metafisica di Partecipazione secondo S. Tommaso
d'Aquino, op. cit., 1950, p. 83 e p. 284, n. 1.
Luis Carlos Silva de Sousa • 115

Et ideo Augustinus, qui doctrinis Platonicorum imbutus fu erat, si qua in-


venit fidei accommoda in eorum dictis, assumpsit; quae vero invenit fidei
nostrae adversa, in melius commutavit. Posuit autem Plato, s icut supra
dictum est, formas rerum per se subsistere a materia separatas, quas ideas
vocabat, per quarum participationem dicebat intellectum nostrum omnia
cognoscere; (…) ideo Augustinus, in libro Octoginta trium Quaest., posuit
loco harum idearum quas Plato ponebat, rationes omnium creaturarum in
mente divina existere, secumdum quas omnia formantur, et secundum
etiam anima humana omnia cognoscit. 42

Na Summa Theologiae (Ia, q. 15, a 2 sed contra), Tomás de Aquino


parte precisamente do Livro das Oitenta e três questões. É neste sentido
que Tomás de Aquino assume plenamente o transcendentalismo e o
exemplarismo divinos, tal como são concebidos por Agostinho, onde é
possível afirmar, em geral, que há uma afinidade quanto ao conteúdo
metafísico das noções de participação dos dois Doutores 43. Tomás de
Aquino se posiciona certamente a favor da “correção” propugnada por
Agostinho frente a Platão. No artigo anterior - artigo 1° da q. 15-, Tomás
de Aquino já se defrontava com um problema que traz a marca da re-
cepção da via platonica por parte de Agostinho, isto é, se há Ideias em
Deus. A questão 46 do Livro das Oitenta e três questões é presença cons-
tante no todo da questão 15 da Primeira Parte da Summa Theologiae de
Tomás de Aquino. Ademais, com certo risco de generalização, talvez seja
possível afirmar que o artigo 5° da questão 84ª não poderá ser

42
“Por isso Agostinho, que foi impregnado das doutrinas dos platônicos, quando neles achava coisas
em acordo com a fé, as recolhia; quando as julgava contrárias, as substituía por coisa melhor. Ora, Platão
afirmou, como já vimos (artigo preced.), que as formas das coisas subsistiam por si mesmas separadas
da matéria, e as chamava ideias. Participando delas nosso intelecto conhece todas as coisas. (…); por
isso, Agostinho afirmou, no lugar das idéias de Platão, que as razões de todas as criaturas existem na
mente divina. Segundo elas todas as coisas são formadas, e a alma humana conhece todas as coisas.”
(Sth Ia, 84, a 5 c)
43
FABRO, Cornelio. La Nozione Metafisica di Partecipazione secondo S. Tommaso d'Aquino, op. cit., 1950, p.
82.
116 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

devidamente compreendido, no que toca à recepção da questão 46 De


ideis de Agostinho, se não se levar em conta o conjunto dos três artigos
da questão 15 De ideis de Tomás de Aquino. Mas isto não significa que
não exista qualquer diferença entre as duas perspectivas 44.
No que se refere à noção de “exemplarismo divino”, comum aos
dois Doutores, podemos reconhecer certas distinções terminológicas
análogas àquelas que serão observadas, por exemplo, entre São Boaven-
tura e Santo Tomás de Aquino, indicando tendências específicas de cada
“conteúdo metafísico” 45.
A visão de Agostinho sobre o exemplarismo divino encontra-se co-
nectada, em Tomás de Aquino, à leitura que este faz de Aristóteles e do
Pseudo-Dionísio 46. A centralidade da questão 15ª De ideis de Sto. Tomás
é assegurada pela dependência em relação a Santo Agostinho, em parti-
cular do Livro das Oitenta e três questões. Por outro lado, apesar da
coincidência de fundo entre as concepções de Agostinho de Hipona e
Tomás de Aquino, há algumas “riserve tomistiche” diante da metafísica
agostiniana. Estas reservas de Tomás de Aquino frente a Agostinho
ocorrem sobretudo acerca do processo do conhecimento humano 47. Em
Sto. Tomás, o conhecimento “por participação” é matizado em seu teor
fortemente transcendental, no que se refere a Agostinho, através da as-
similação da teoria aristotélica da estrutura hilemórfica dos corpos e da

GRABMANN, Martin. “A quaestio de ideis de Santo Agostinho: seu significado e sua repercussão
44

medieval”. In: Cadernos de Trabalho CEPAME II (1/1993) 29-41.


45
Sth Ia, q. 15, a 3 c. Para ilustrar o modo próprio de Tomás conceber o exemplarismo divino (De Veritate,
q. 3, a 1 c.; Sth. q. 15, a 2, sed contra; a 3 c.), em comparação à tradição agostiniana de São Boaventura (I
Sent., d. 35, a. unic., q. 1), ver BISSEN, Jean-Marie. L'Exemmplarisme Divin selon Saint Bonaventure, J. Vrin,
Paris, 1929, p. 30-31; GILSON, Étienne. La Philosophie de Saint Bonaventure, 2.ed. J. Vrin, Paris, 1943, p.
132-13.
46
FABRO, Cornelio. La Nozione Metafisica di Partecipazione secondo S. Tommaso d'Aquino, op. cit., 1950, p.
82, n. 1.
47
Ibid., p. 83.
Luis Carlos Silva de Sousa • 117

teoria do intelecto agente 48. É sob a ótica da crítica de Aristóteles à dou-


trina das Ideias de Platão que Tomás de Aquino se aproxima
criticamente da doutrina agostiniana da iluminação.
O tópico sobre as razões eternas, no artigo 5° da questão 84ª, é visto
primeiramente a partir de nosso modo de conhecer. A ênfase recai, por-
tanto, sobre a alma humana: a análise das razões eternas complementa,
sob um viés epistemológico, o que foi tratado anteriormente na questão
15 De ideis. Ao perguntar sobre se conhecemos as coisas materiais nas
razões eternas, no artigo 5°, Sto. Tomás responde de tal modo a preser-
var, por um lado, a autoridade de Agostinho no plano metafísico-
teológico, e, ao mesmo tempo, pensando-a já nos quadros epistemoló-
gicos de Aristóteles. Ora, diz Sto. Tomás, de duas maneiras se pode
conhecer uma coisa em outra: (1) conhecendo-a em um objeto conhe-
cido, como se vê “em um espelho coisas cujas imagens estão nele
refletidas”; (2) conhecendo-a como em um princípio de conhecimento,
como se vê “no sol o que vemos por sua luz”. Os exemplos que Tomás de
Aquino escolhe para sustentar seu argumento, é claro, não são casuais,
pois estão inscritos na tradição platônica: in speculo, in sole. No primeiro
caso, não podemos conhecer as coisas materiais nas razões eternas, por-
que a alma, no estado da vida presente, não vê a Deus. Esta é a maneira
de conhecer apenas daqueles que alcançaram a beatitude, que veem a
Deus e todas as coisas nele. No segundo caso, porém, a alma humana
conhece tudo nas razões eternas, pois é por participação das razões eter-
nas que tudo conhecemos.

Et sic necesse et dicere quod anima humana omnia congnoscat in rationibus


aeternis, per quarum participationem omnia cognoscimus. Ipsum enim

48
Ibid., p. 83; BOLAND, Vivian. Ideas in God according to Saint Thomas Aquinas, op. Cit., 1996, p. 284.
118 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

lumen intellectuale quod est in nobis, nihil est aliud quam quaedam parti-
cipata similitudo luminis increati, in quo continentur rationes aeternae 49.

Temos, portanto, uma certa noção das razões eternas (não um co-
nhecimento propriamente dito), como algo já inscrito em nós. Tomás de
Aquino cita o Salmo 4, 6-7, que se refere à felicidade, ilustrando com isso
o fato de que o selo da luz divina está marcado em nós. O desejo da feli-
cidade, assim como o desejo de ver a Deus, está inscrito previamente em
nós 50. Mas isso, de acordo com Tomás de Aquino, ainda não é propria-
mente conhecer o ser de Deus. Por outro lado, ter por participação a luz
intelectual não seria suficiente para o conhecimento das coisas.

Quia tamen praeter lumen intellectuale in nobis, exiguntur species intelli-


gibiles a rebus acceptae, ad scientiam de rebus materialibus habendam; ideo
non per solam participationem rationum aeternarum de rebus materialib
us notitiam habemus, sicut Platonici posuerunt quod sola idearum partici-
patio sufficitad scientiam habendam. 51

49
“Neste caso, é necessário dizer que a alma humana conhece tudo nas razões eternas, pois é
participando nelas que conhecemos todas as coisas. A luz intelectual que temos nada mais é do que
uma similitude participada da luz incriada na qual as razões eternas estão contidas” (Sth Ia, q. 84, a 5 c.)
50
Sth Ia q. 2, a 1 ad 1.
51
“No entanto, como, além da luz intelectual em nós são exigidas as espécies inteligíveis recebidas das
coisas, para se ter ciência das coisas materiais, não temos notícia das coisas materiais apenas pela
participação das razões eternas, como os platônicos sustentaram que apenas a participação das idéias
basta para ter ciência.” (Sth Ia, q. 84, a 5 c.)
7
REVISITANDO A NOÇÃO DE EXCESSUS EM TOMÁS DE
AQUINO

Este ensaio, que se manteve nos marcos da discusssão em Filosofia


Medieval, recolheu parte de minha pesquisa anterior sobre a noção de
excessus em Tomás de Aquino 1. O problema central dizia respeito ao al-
cance do conhecimento intelectual humano acerca de Deus em Tomás
de Aquino (STh. Iª, q, 84, a. 7 ad 3), através da crítica de Cornelio Fabro
a Karl Rahner.
De fato, a partir do “tomismo transcendental” de Karl Rahner
houve uma alteração substancial da noção tomista original, que provém
de Dionísio Pseudo-Areopagita. A “reviravolta antropocêntrica” de Rah-
ner produziu, segundo Fabro, uma “aberrazione formalistica” no texto
de Tomás de Aquino, e substituiu o sentido histórico original de exces-
sus/transcendência (Dionísio) pelo sentido moderno de
excessus/Vorgriff (“antecipação” ou “pré-compreeensão”, na linha
aberta por Kant, Fichte, Joseph Maréchal e Heidegger).
Seria necessário, portanto, tornar mais explícita a pertinência da
crítica de Cornelio Fabro a Rahner, inclusive pelos efeitos deletérios que
o “tomismo transcendental” de Rahner produziu no âmbito da Teologia
e, ao menos indiretamente (de acordo com teólogos na linha de Hans

1
SOUSA, Luís Carlos S. de. Epistemologia e Transcendência: Duas leituras de Tomás de Aquino sobre o
alcance do conhecimento humano de Deus. Fortaleza: Edições UFC, 2015.
120 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

Urs von Balthasar [1905-1988]), também para a unidade da Igreja 2. Por


outro lado, no afã de combater toda forma de imanentismo (metafísico
e moral), Fabro não reteve contribuições importantes da modernidade,
sobretudo no que se refere ao alcance da mediação da subjetividade, e
que podem ser encontradas noutras formas de tomismo 3.
As considerações dos capítulos precedentes ganharam impulso, em
certa medida, a partir da obra de Cornelio Fabro (1911-1995), que marcou
uma decisiva e indispensável retomada do tomismo no século XX 4. A
ideia de “terceira navegação” foi apresentada, em particular, por Vitto-
rio Possenti (1938- ), já nos anos 1980 5. A postura de V. Possenti deve ser
vista na linha de Garrigou-Lagrange (1877-1964), Étienne Gilson (1884-
1978) e, sobretudo, Jacques Maritain (1882-1973), na perspectiva de si-
tuar Tomás de Aquino na História da Metafísica 6. Neste percurso, que
diz respeito à recente história dos tomismos, ocupa um lugar de desta-
que o modelo filosófico proposto por Karol Wojtyla/João Paulo II (1920-
2005), em diálogo com a modernidade 7. O modelo filosófico de Karol
Wojtyla representou um novo patamar reflexivo, na esteira de Tomás

2
FABRO, Cornelio. L’Avventura della Teologia Progressista. Milano: Rusconi Editori, 1974; La Svolta
Antropologica di Karl Rahner. Milano: Rusconi Editori, 1974; SARTO, Pablo Blanco. Benedicto XVI: El papa
alemán. Barcelona, España: Planeta, 2010, p. 206.
3
WOJTYLA, Karol. “Subjectivity and the irreducible in the human being”. In: Person and Community:
Selected Essays. Trans.: T. Sandok, ed. Andrew N. Woznicki. New York: Peter Lang, 1993, 209-218.
4
FABRO, Cornelio. La Nozione Metafisica di Partecipazione secondo S. Tommaso d'Aquino, op. cit., 1950.
5
POSSENTI, Vittorio. Ritorno all’Essere: Addio alla metafisica moderna, op. cit., 2019.
6
É preciso registrar que Lima Vaz (1921-2002) também se referia à metafísica do esse como uma “terceira
navegação”, mas sua releitura de Tomás de Aquino ocorreu no contexto de um excessivo tributo a
Hegel. LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de Filosofia VII: Raízes da modernidade. São Paulo: Ed. Loyola,
2002, p. 153, n. 14.
7
JOÃO PAULO II. Cruzando o Limiar da Esperança. Trad.: Antônio Angonese e Ephraim Ferreira Alves. Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 1994, p. 50-52; GUERRA, Rodrigo. Volver a la Persona: El método filosófico de
Karol Wojtyla. Querétaro (México): Caparrós Editores, 2002; ALBUQUERQUE, Francisco D. A.; ASSUNÇÃO,
Rudy A. (coord.). O Amor me Explicou Todas as Coisas: Introdução ao pensamento filosófico de Karol
Wojtyla/João Paulo II. Tomo I. Rio Bonito: Benedictus, 2022; BURGOS, Juan M (ed.). La Filosofía
Personalista de Karol Wojtyla. Madrid: Ed. Palabra, 2011.
Luis Carlos Silva de Sousa • 121

de Aquino, ao integrar fenomenologia e personalismo ao tomismo. O to-


mismo personalista de Karol Wojtyla, é claro, põe acento na esfera da
Ética 8, mas seus pressupostos epistemológicos 9, que buscam conciliar
filosofia do ser e filosofia da consciência, podem ser ampliados e têm
alcance também na esfera da Metafísica, inclusive no que se refere ao
problema da transcendência. O tema da transcendência de Deus, em To-
más de Aquino, aponta para um diálogo crítico com a “modernidade
católica” 10. Não parece casual que, em Edith Stein (1891-1942) e Karol
Wojtyla, há uma percepção mais ampla sobre a presença e o alcance das
potencialidades da alma humana; uma maior sensibilidade para aspec-
tos subjetivos que foram acentuados a partir da fenomenologia de
Edmund Husserl (1859-1938) e Max Scheler (1874-1928).
Nesta nova discussão sobre a transcendência de Deus em Tomás de
Aquino tive como intenção retomar o problema em perspectiva mais
histórico-textual que teórica, sem recorrer ao debate entre intérpretes
(Capítulo III, supra). Daí a continuidade e a descontinuidade entre as
duas linhas de pesquisa. A ênfase da pesquisa anterior foi posta nas duas
leituras do texto de Santo Tomás (Fabro e Rahner); neste novo trabalho
procurei enfatizar o próprio texto de Tomás de Aquino acerca da noção
de transcendência de Deus (excessus) e sua repercussão sobre alguns
problemas metafísicos da filosofia do ser (esse, actus essendi).

8
WOJTYLA, Karol. Persona e Atto. Testo polacco a fronte, a cura di Giovanni Reale e Tadeusz Styczen.
Revisione della traduzione italiana e apparati a cura di G. Girgenti e Patrycja Mikulska. Santarcangelo di
Romagna: Rusconi Libri, 1999.
9
WOJTYLA, Karol. “Thomistic Personalism”. In: Persona and Community: Selected Essays, trans. Theresa
Sandok. New York: Peter Lang, 1993: 165-175; WOJTYLA, Karol. “Introducción”. In: Persona y Acción.
Edición de: Juan Manuel Burgos y Rafael Mora. Prólogo: Juan Manuel Burgos.Traducción del polaco:
Rafael Mora. 2ª ed. Madrid: Ediciones Palabra, 2014, p. 31-58.
10
ASSUNÇÃO, Rudy Albino de. Bento XVI, a Igreja Católica e o “Espírito da Modernidade”: Uma análise da
visão do papa teólogo sobre o “mundo de hoje”. São Paulo: Ed. Paulus/Ecclesiae, 2018; MARTELLI,
Stefano. A Religião na Sociedade Pós-Moderna: Entre secularização e dessecularização. Trad. Euclides
Martins Balancin. São Paulo: Paulinas, 1995.
122 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

Uma retomada da perspectiva clássica dos textos de Tomás de


Aquino deve reconsiderar, de modo equilibrado, quatro núcleos primor-
diais de sua metafísica: (1) a descoberta da dupla composição metafísica
no ente finito (composição de matéria e forma e de essência e ato de
ser/esse; (2) a doutrina do ser como actus essendi; (3) a distinção real en-
tre essência e existência no ente finito e sua coincidência em Deus; (4) a
determinação do ipsum esse per se subsistens como o supremo Nome de
Deus.
Esses núcleos temáticos constituem o cerne do que Vittorio Pos-
senti chamou de “terceira navegação” em Tomás de Aquino 11. A “terceira
navegação” conduz à admissão de nosso acesso ao ser, contra o interdito
de Kant a uma metafísica racional. A aliança socrático-mosaica (o nexo
clássico entre Filosofia e Religião) alcançou sua máxima expressão, pre-
cisamente, na “terceira navegação”. A Metafísica não exclui a Revelação
e vice-versa.
No plano epistemológico, permanece importante destacar o papel
do juízo negativo de existência, mas será preciso retomar as conside-
rações de Fabro acerca do que antecede o juízo, isto é, sobre a função da
cogitativa na estrutura do conhecer e sua relação com a noção metafísica
de participação 12. Ademais, restaria por discutir a sua possível compati-
bilidade com a experiência integral da metodologia de Karol Wojtyla 13, o
que pode ser visto como uma alternativa filosófica ao “tomismo trans-
cendental”.
Em todo caso, essas considerações abrem um novo horizonte de
compreensão acerca do alcance do realismo tomista. O modo de

11
POSSENTI, Vittorio. Ritorno all’Essere: Addio alla metafisica moderna, op. cit., 2019, p. 384-418.
12
FABRO, Cornelio. Breve Introduzione al Tomismo. Roma/Parigi: Desclée & C., 1960, p. 33-34.
13
GUERRA, Rodrigo. Volver a la Persona: El método filosófico de Karol Wojtyla, op. cit., 2002.
Luis Carlos Silva de Sousa • 123

tematizar os problemas metafísicos sobre Deus, como vimos na segunda


parte deste ensaio, pode assumir um sentido mais existencial e perso-
nalista, embora restrito ao próprio texto de Tomás de Aquino. O
concurso de uma hermenêutica moderada (que não exclua o actus es-
sendi), na interpretação de seus textos, pode contribuir para uma maior
consciência acerca do problema da transcendência de Deus.
Uma leitura mais afim aos elementos neoplatônicos de Agostinho
e Dionísio, presentes no autêntico Santo Tomás de Aquino, pode nos
conduzir, de certo modo, para além de uma rígida leitura “aristotélico-
tomista” da manualística neoescolástica. Esta cumpriu uma importante
tarefa histórica, ao se confrontar diretamente com premissas iluminis-
tas anticlericais e contrárias à fé católica. É preciso observar, porém,
que, do ponto de vista da Filosofia, alguns estudos, no século XX, acen-
tuaram as influências neoplatônicas no pensamento de Santo Tomás de
Aquino.
Deste modo, deve ficar claro que Santo Tomás de Aquino não ape-
nas sobrepôs elementos cristãos ao edifício filosófico aristotélico; não
houve apenas uma complementação da fé, de tal modo a aceitar todas
as teses aristotélicas. Em Filosofia, diferente do que propuseram os ma-
nuais neoescolásticos, Santo Tomás de Aquino não foi apenas
“aristotélico” - embora sua linguagem e clareza analíticas, certamente,
tenham como referência Aristóteles. Na filosofia de Tomás de Aquino
há, grosso modo, uma síntese entre Aristóteles e Agostinho. A noção me-
tafísica de participação, por exemplo, tão fundamental à sua Metafísica,
provém da tradição platônica. É certo que Santo Tomás de Aquino foi,
sobretudo, um teólogo, mas sua filosofia não foi exclusivamente aristo-
télica. Estas são algumas ressalvas conceituais à expressão
124 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

“aristotélico-tomista”, como referência aos discípulos de Santo Tomás


de Aquino.
Daí não ser também casual a favorável referência do Papa Bento
XVI (um discípulo de Santo Agostinho de primeiríssima linha) a um tipo
de abordagem de Tomás de Aquino como a de Josef Pieper (1904-1997),
um intérprete mais sensível aos grandes problemas de nosso tempo. Em
todo caso, o conhecimento de trabalhos clássicos, como os de Garrigou-
Lagrange (1877-1964), O. P., e Adolphe Tanquerey (1854-1932), eminentes
teólogos, constitui uma bênção para todo fiel católico. Mas será preciso
alertar o leitor para possíveis pontes mais amplas com a modernidade
católica, em especial para o desenvolvimento fenomenológico de um ex-
orientando de Garrigou-Lagrange, isto é, o ensinamento filosófico de
Karol Wojtyla. Mas este novo modelo filosófico, que Wojtyla propõe, não
deve ser visto, em si, como uma ruptura com a Tradição.
Creio que a ampliação da estrutura metódica da pesquisa filosófica,
a partir do encontro de Karol Wojtyla com a fenomenologia e o perso-
nalismo, permitiria repensar, em nova chave hermenêutica, o problema
do ser humano diante de Deus, sendo, além disso, uma alternativa meto-
dológica ao “tomismo transcendental” (Joseph Maréchal, Karl Rahner
etc.). A abertura de Karol Wojtyla às questões de nosso tempo – inclusive
em atitude crítica acerca de um certo legado objetivista, por ele visto
como algo estritamente medieval, e ainda presente na filosofia de Santo
Tomás-, não lhe fez ceder às aventuras do secularismo, à ruptura das
bases fundamentais da fé cristã, diante de uma parcela do “espírito da
modernidade”. No plano ético-político, convém recordar a decisiva con-
tribuição de São João Paulo II para a derrocada do comunismo soviético,
ao lado de Ronald Reagan (1911-2004) e Margaret Thatcher (1925-2013),
e sua forte oposição à teologia da libertação na América Latina.
Luis Carlos Silva de Sousa • 125

Ademais, para quem se proponha assumir o tomismo personalista


de Wojtyla, seria bem-vindo um diálogo mais amplo com outras tra-
dições de pesquisa contemporânea, situando-o no debate de questões
levantadas pelas duas principais correntes filosóficas da atualidade, a
partir da “reviravolta lingüística” do século XX: Filosofia Analítica e
Hermenêutica. Se não quisermos retroceder a uma leitura positivista ou
ingênua dos problemas metafísicos clássicos, convém observar que eles
podem ser revisitados a partir de um horizonte de compreensão que
respeite seu enraizamento histórico, e, além disso, permita-nos um jogo
hermenêutico de perguntas e respostas que não prescinda do Ser e da
Verdade.
No caso de Tomás de Aquino - nos limites de uma investigação no
âmbito medieval-, o problema da transcendência de Deus traz consigo
uma dimensão histórica em forte conexão a questões teológicas – ques-
tões que não podem ser suspensas ou abstraídas, sob pena de
imanentização do Mistério. Pois não se trata de conhecer qualquer deus,
mas o Deus vivo, o Criador, o Deus de Jesus Cristo. Daí o seu tratado
teológico sobre os mistérios da vida de Jesus, sumamente relevante, ainda
hoje (STh. IIIa, qq. 27-59) 14. O tópico sobre as razões eternas (Capítulo VI)
pretendeu recolher o problema metafísico do Uno e do Múltiplo em con-
texto cristão e, especificamente, tomista. Algumas opções
epistemológicas permaneceram integradas na tensão entre as noções de
participação e transcendência de Deus.
Enfoques pós-modernos recentes tendem (contraditoriamente) a
supervalorizar um agnosticismo irracional, como efeito negativo das
pretensões iluministas, racionalistas. Entretanto, o Passado nos traz

14
RATZINGER, Joseph/BENTO XVI. Jesus de Nazaré: Da entrada em Jerusalém até a Ressurreição. Trad.:
Bruno Bastos Lins. São Paulo: Ed. Planeta, 2011, p. 13.
126 • Tomás de Aquino & a Transcendência de Deus

lições que, ainda hoje, não assimilamos: a verdade não está entre os ex-
tremos. Assim, na leitura proposta, no capítulo anterior, o acesso às
razões eternas de Deus manteve, sobretudo, o vínculo com os Padres da
Igreja e, em particular, com Santo Agostinho.
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