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UNIDADE V.

1 –MOORE – DA REFUTAÇÃO DO IDEALISMO AOS PROBLEMAS FUNDAMENTAIS DA FILOSOFIA

“Sobre as questões fundamentais da filosofia , minha posição, em todos os seus aspectos principais é derivada de G.E.Moore”. [Russell, Principles of Mathematics, Preface, 1903]

“George Edward Moore, cujo nome , julgo, não é muito mencionado na Europa Continental e cuja obra ficou algo fora de moda mesmo nos países de língua inglesa. Tanto pior para a moda [...]” [

Strawson, Análise e Metafísica, 1992]

Em 1942, a coleção “The Library of Living Philosophers” [ Biblioteca dos filósofos vivos]1, publicou o

volume IV , intitulado The Philosophy of G. E. Moore [1942] , que constitui, junto ao volumes dedicados a

A. N. Whitehead e a Bertrand Russell, uma fonte relevante para o conhecimento tanto da trajetória intelectual

dos três autores, em particular na Universidade de Cambridge, onde estudaram e ensinaram, quanto do

movimento filosófico fundamental para o pensamento contemporâneo que teve lugar nessa mesma

Moore também mereceu detalhada biografia , escrita por Paul Levy, com o título “G.E. Moore and the

Cambridge Apostles”, publicada em 1979.

CAMBRIDE E O IDEALISMO BRITÂNICO

Russell, em sua “Autobiografia”, conta-nos ter ingressado em Cambridge2 com 18 anos, em 1890; até então

, diz ele, “minha vida era muito solitária”, apenas suportada com a ajuda de extensa leitura, iniciada aos 11

anos, com a leitura da geometria de Euclides, despertando em Russell a paixão vitalícia pela matemática, que

desembocou , aos quinze anos, por um lado, em uma concepção filosófica de toda natureza e das ações

humanas, organizadas segundo as leis da matemática e, por isso, calculáveis e previsíveis , “como os

movimentos planetários”; e , por outro lado, minou progressivamente sua crença – primeiramente na vontade

1 The Library of Living Philosophers é uma coleção concebida e iniciada por Paul Arthur Schilpp em 1939; Schilpp permaneceu como editor até 1981. Desde então, a série foi
editada por L.E. Hahn (1981-2001), R. Auxier (2001-2013) , D.R. Anderson (2013 – 2015) e , a partir de 2015, por Sarah Beardsworth. A série , cujos direitos pertencem à
Universidade de Southern Illinois , em Carbondale, foi inicialmente publicada pela Northwestern University e , desde 1959, pela editora Open Court.
Cada volume é dedicado a um filósofo vivo, e compreende 3 partes. A primeira , apresenta a autobiografia intelectual do filósofo homenageado. A segunda parte inclui os
ensaios descritivos e críticos de outros pensadores, seguidos imediatamente pelas respostas ( replies) do filósofo. A terceira parte refere-se à bibliografia das publicações do
filósofo homenageado. A ideia original era permitir ao filósofo avaliar, em vida, as diferentes interpretações de suas ideias, procurando deixar claro o que ele “realmente quis
dizer”, e também responder às críticas e objeções ao seu pensamento. O primeiro volume da Coleção foi dedicado a John Dewey, em 1939; o mais recente, de 2020, a Julia
Kristeva [ a segunda filósofa homenageada pela série; a primeira, foi Marjorie Green, em 2002] ; o volumes III, IV e V são consagrados, respectivamente, a Whitehead, Moore
e Russell.
2 A Universidade de Cambridge situa-se na cidade universitária [university town] de mesmo nome, atravessada pelo rio Cam [River Cam], a 90 Km aproximadamente de

Londres, e 130 de Oxford, reunindo atualmente cerca de 160.000 habitantes, e 19.000 estudantes universitários. Uma mais antigas do mundo, a Universidades de Cambridge
surgiu no séc. XIII, em 1209, a partir de uma associação de professores que abandonaram a Universidade de Oxford , de modo que as duas primeiras universidades mantêm
muitas características comuns , e são frequentemente referidas como “Oxbridge”. A Universidade é atualmente uma confederação de seis grandes Escolas [Artes e
Humanidades, Ciências Biológicas, Medicina Clínica, Humanidades e Ciências Sociais, Ciências Físicas, e Tecnologia], cada uma reunindo administrativamente Faculdades ,
Departamentos e Colleges, no total de 31, com seus próprios estatutos e regulamentos, selecionando seus próprios alunos, mas subordinando-se ao regulamento geral da
Universidade, e admitindo, em sua maior parte, alunos de graduação e pós-graduação, cuja formação segue um modelo intensivo de ensino, com supervisão e acompanhamento
semanal de pequenos grupos de alunos, tipicamente de 1 a 4 estudantes, considerado um dos melhores modelos de educação do mundo , a “joia na coroa” de um estudante de
graduação. O ano acadêmico estende-se de outubro a setembro, compreendendo 3 Terms [períodos: Michaelmas: outubro a início de dezembro; Lent: janeiro a início de março;
Easter: abril a metade de junho], intercalados por 3 períodos de férias . Os exames de qualificação dos alunos de graduação são denominados “Tripos”. O Trinity College,
atualmente o maior e o mais rico da Universidade de Cambridge, com aproximadamente 1000 estudantes de graduação e pós, e cerca de 180 “fellows”, foi fundado no séc.
XVI; muitas de suas famosas edificações históricas , que configuram o cenário atual do College, datam dessa época, ampliando-se ao longo dos séculos posteriores, como sua
famosa biblioteca, “The Wren Library”, erguida no séc. XVII. Durante a revolução industrial, no séc. XIX, Trinity alcançou grande reputação, abrigando alguns dos filósofos,
cientistas, historiadores e escritores mais renomados de seu tempo. No sec. XX, em sua primeira metade, tornou-se, como estamos vendo , o centro de filosofia analítica no
Reino Unido e no mundo, reunindo pensadores como Moore, Russell , Wittgenstein, Whitehead e Ramsey, entre outros. O curso de filosofia é oferecido também por outros
Colleges, além de Trinity, com a duração de três anos, divididos em Part IA [Primeiro ano], Part IB [Segundo ano] e Part II [ Terceiro ano]. Grande parte do ensino tem a forma
de Lectures, com aulas adicionais para algumas disciplinas, como Lógica, e supervisões semanais, com tópicos de leitura e elaboração de um ensaio, a ser discutido com o
supervisor. Em cada semana, usualmente, são oferecidas de 6 a 12 Lectures, e uma a três supervisões e/ou pequenas turmas. Avaliações são predominantemente exames escritos,
podendo ser substituídos por ensaios até 4000 palavras. A Parte II oferece a alternativa de submeter uma dissertação de 6.000 a 8.000 palavras sobre um tema escolhido pelo
aluno.
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livre, em seguida, na imortalidade da alma, e por fim, em Deus, filosoficamente concebido como a Causa

Primeira.

Ao ingressar na Universidade, R. foi recebido por Alfred North Whitehead [1861-1947], já professor de

matemática e conferencista [Fellow e Lecturer] e seu futuro tutor em Cambridge, posteriormente, coautor dos

Principia; Whitehead o apresentou a outros alunos, e um ano depois , Russell conheceu o jovem G. E. Moore,

“que mais tarde teve uma grande influência em minha filosofia”.

Os três anos primeiros anos foram dedicados inteiramente à matemática, em que o ensino de Whitehead

desempenhou importante papel; o último ano , todavia, foi dedicado inteiramente à filosofia, mais

precisamente às “Moral Sciences”. A principal influência sobre o jovem filósofo não foi o empirismo inglês

clássico nem o moderno, de Mill, e sim o idealismo britânico, mais exatamente a “filosofia hegeliana de

McTaggart”, uma grande influência sobre Cambridge nessa época. Com ele [ McTaggart], R. aprendeu “a

considerar o empirismo britânico rude [crude]” e que “Hegel e, em menor grau, Kant, tinham uma

profundidade inexistente em Locke, Berkeley e Hume, ou em meu antigo papa, Mill”.

Através de McTaggart , Russel conheceu o pensamento de Bradley e sua obra “Appearance and Reality”

[Aparência e Realidade] , talvez o ponto culminante do idealismo britânico, que R. leu com avidez e

considerava o mais admirável filósofo de seu tempo. Bradley e McTaggart “fizeram com que me tornasse

hegeliano”, diz Russell.

TESES DO IDEALISMO BRITÂNICO

Grosso modo, as teses desse idealismo de estilo britânico, que irão seduzir o jovem Russell, e pouco depois,

o jovem Moore , podem ser apresentadas sinteticamente assim:

a) A irrealidade do tempo e , por conseguinte, a crença ordinária de que algumas coisas acontecem antes e/ou

depois de outras é falsa;

b) Toda existência é fundamentalmente espiritual, e portanto nossa crença de que existem objetos exteriores

inteiramente independente de nossas mentes , nossos pensamentos e de nossas experiências em geral é falsa;

c) Somente o Absoluto, enquanto Identidade e Essência, fundamenta e compreende toda diferença e

aparência; por conseguinte, somente o Absoluto existe verdadeiramente, de modo que nossa concepção

comum de um mundo constituído por coisas independentes e plural é falsa.

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RUSSELL E MOORE

O recém-convertido ao hegelianismo irá pregar a boa nova do idealismo ao colega recentemente conhecido,

George Edward Moore , que acabara de ingressar , em outubro de 1892, com 19 anos, no Trinity College,

de Cambridge, como aluno de graduação , a ser concluída em 18963.

Alguns anos mais tarde, no Prefácio aos Principles of Mathematics, de 1903, Russell irá reconhecer a

importância de Moore para sua trajetória filosófico-intelectual, mais precisamente, como veremos, por

despertá-lo – palavras nossas – do “sono dogmático” , para usar uma expressão de Kant, do idealismo

britânico.

TRAJETÓRIA DE MOORE E SUAS ETAPAS

O desenvolvimento da filosofia de Moore apresenta mudanças e “giros” relevantes ; ignorá-los, a meu ver,

prejudica , de antemão, a tentativa de expor o pensamento de Moore e suas obras, sem situá-las no caminho

filosófico de Moore, que o conduz da juventude à maturidade filosófica4.

INFLUÊNCIA DO IDEALISMO BRITÂNICO [1894-1898]: A reflexão inicial do jovem Moore é marcada pela forte

influência do idealismo britânico, estendendo-se à dissertação de 1898. Entre os textos e conferências deste

período , destacam-se: “Liberdade”[Freedom], 1898.

GIRO PARA O REALISMO METAFÍSICO OU PURO [1899-1904]: Esta etapa compreende período de duração de sua

Fellowship [bolsa de estudo] no Trinity College, estendendo-se de 1898 à 1904. Os textos desse período são:

“Natureza do Juízo” [1899]; “The Elements of Ethics with a view to an appreciation of Kant’s Moral

Philosophy” [1898-9]; “Necessity” [1900]; “Identity”[1901]; “The Value of Religion”[1901]; “Experience

and Empiricism”[1902-3]; “Refutação do Idealismo” [1903]; “Principia Ethica”[1903]; “Kant’s

Idealism”[1903-4]; “The Nature and Reality of the Objects of Perception”[1905-6].

REJEIÇÃO DO PURO REALISMO [1904-1911]: Este período compreende à época em que Moore encontra-se fora de

Cambridge , entre o fim de sua Fellowship, até seu retorno à Universidade , em 1911. Trata-se essencialmente

de um período de transição entre a filosofia de juventude [marcada pelo passagem do idealismo britânico ao

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Moore nasceu em novembro de 1873, em uma “próspera” e confortável família de classe média, o quarto dos sete filhos do Dr. Daniel Moore, médico, e sua esposa Henrietta; o nome George Edward ,
homenagem a seu avô paterno, sempre desagradou ao filósofo, que preferia ser chamado Bill no círculo familiar, e G. E. Moore ou simplesmente Moore , nos meios acadêmicos. Moore foi educado,
entre 1882 e 1892, no Dulwich College, situado em um subúrbio de Londres, onde residia sua família. Os últimos seis anos de sua formação pré-universitária foram dedicados aos estudos clássicos,
principalmente, tradução de textos em inglês para o Grego e Latim, com “poucas horas dadas ao francês e alemão e alguma matemática”. Moore reconhece ter recebido uma boa educação no Dulwich
College, sobretudo conhecimento de literatura inglesa e contato com textos clássicos. Aos 10 anos, ele e seu irmão, com outros amigos, fundaram o “Boomerang Club”, em que o futuro editor da revista
Mind, participou da criação de uma revista , editada por crianças, com sumário, editorial, artigos, poemas e resenhas. Em 1892, seguindo seu irmão Henry, Moore ingressou Trinity College , em
Cambridge, para cursar estudos clássicos.
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Desde sua chegada em Cambridge até 1913, Moore, de modo análogo a Wittgenstein, escreveu diários, com lista de eventos de que participou, cuja maior parte, todavia, foi, ao que parece, destruída.
Conservaram-se algumas anotações, compreendidas entre 1909-1928, e 1929-39, exatamente as que contêm menções a Wittgenstein

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realismo puro] e sua fase de maturidade. A característica fundamental é a progressiva rejeição do realismo

puro para uma nova posição filosófica , anunciada pelas Conferências de 1910-11, em que a noção de senso

comum e o realismo de senso comum ocupam o lugar central.

Entre os textos e conferências deste período , destacam-se: “The Nature and Reality of the Objects of

Perception”; “Professor James’Pragmatism” [1907-8]; “Hume’s Philosophy” [1909]; “The Subject-Matter

of Psychology”[1909-10]; “Conferences 1910-11” [publicadas em “Some Main Problems of Philosophy”,

1953];

GIRO PARA O SENSO COMUM E RETORNO A CAMBRIDGE [1911-1958]: Etapa final, correspondente à maturidade

filosófica de M. , iniciada em 1911, quando retorna a Cambridge, como professor efetivo, onde irá permanecer

, até sua aposentadoria [retirement] em 1939. Os textos principais de maturidade são: “Ethics” [1912]; “The

Status of Sense-Data [1913-14]. “Some Judgements of Perception” [1918-19]; “Is there knowledge by

acquaintance?” [1919]; External and Internal Relations [1919-20]; “The Character of Cognitive

Acts”[1920-1]; “Philosophical Studies” [1922]; Defesa do Senso Comum [1925]; “The Nature of Sensible

Appearances” [1926]; Facts and Propositions [1927]; “Imaginary Objects” [1933]; A existência é um

predicado? [1936]; “Proof of an External World”[1939]; “The Philosophy of G. E. Moore” [1942];

“Russel’s Theory of Descriptions” [1944]; “Some Main Problems of Philosophy”[ 1953]; “Visual Sense-

Data” [1957]; “Philosophical Papers”[uma coleção, editada postumamente em 1959, com nove artigos já

publicados previamente, e dois inéditos; “Commonplace Book”[1962]; “G.E. Moore : Essays in


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Retrospect”[1970].

MOORE EM CAMBRIDGE

Diferentemente de Russell, que cursou matemática, G.E. Moore [que odiava seus primeiros nomes , em

homenagem ao avô paterno George Edward, e nunca os usava] optou por Estudos clássicos [Classics], ,

equivalente aos Literae Humaniores at Oxford. Em geral, o curso tem a duração de três anos, extensíveis para

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TRADUÇÕES
MOORE, E. G. Principia Ethica. São Paulo: Ícone, 1998.
____________ Liberdade; A natureza do juízo; A refutação do idealismo. In: Três ensaios de G. E. Moore:. Unisinos, 2004.
___________ O Objeto da Ética e o Ideal , de Princípios Éticos; O significado do Real, O Tempo é Real? O que é Filosofia, de Problemas Fundamentais da Filosofia; Prova de um Mundo Exterior,
A Existência é um Predicado? , Uma Defesa do Senso Comum, São as Características das Coisas Universais ou Particulares?, de Escritos Filosóficos. In: Os Pensadores [internet]

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quatro anos, no caso dos alunos que não estudaram grego e latim previamente. Sobre a estruturação dos

Estudos Clássicos, em C., veja a nota de rodapé6.

A diferença entre uma formação clássica em Moore e matemática em Russell parece indicar os dois caminhos

metodológicos que já se anunciam, nesse momento, para a história da filosofia analítica, a saber, de um lado,

uma filosofia que se desdobra no horizonte do senso comum [Moore] e, de outro, uma filosofia no horizonte

das ciências formais [lógica e matemática] e empíricas , com Russell, prefigurando , na contemporaneidade

mais recente, a diferença entre a filosofia da linguagem ordinária, e a da linguagem ideal artificial, entre a

filosofia de Oxford e a filosofia de Harvard.

CONVERSÃO INICIAL AO IDEALISMO

Os dois primeiros anos no Trinity College , diz M., foram dedicados à Parte I dos Classical Tripos, consistindo

quase exclusivamente na leitura do mesmo tipo de coisas que já havia lido e já sabia , antes mesmo de

ingressar na Universidade; “a grande diferença” todavia, que esses dois primeiros anos representaram para

M., residiu não tanto nas disciplinas cursadas nem aulas dos professores, e sim, na interação com os colegas

de graduação, “pessoas extremamente inteligentes”.

FILOSOFIA

O objetivo inicial de M., que até então pouco sabia de filosofia, a não ser o contato com “Protágoras” de

Platão, era simplesmente estudar os clássicos , para lecionar em escolas públicas. Ao final do primeiro ano,

em 1893,no entanto, um acontecimento irá mudar inteiramente o destino de M., a saber, o encontro com R.,

que já estava concluindo seu curso de graduação, preparando-se para os exames finais em “Moral Sciences”

[Ciências Morais]: sob a influência de R., Moore iniciou seus estudos em filosofia.

IDEALISMO BRITÂNICO

Nesse período, através de R. , o jovem M. conheceu McTaggart, um dos destaques do idealismo britânico,

conhecido pela célebre concepção de que “o Tempo é irreal” [Time is unreal], inaceitável para o futuro

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O curso de estudos clássicos dura, em média, três anos, divindo-se em duas etapas : Parte I, em geral com duração de dois anos [IA e IB] , e Parte II, com duração de um ano; em Cambridge, ; ao final
de cada Parte, os estudantes são submetidos a uma avaliação ou exame, denominados “Tripos examination”, e no caso de estudos clássico, “Classical Tripos”, a saber, exames necessários para obtenção
do grau de bacharel. Em alguns casos, o aluno pode passar por Tripos III, assegurando também o grau de mestre.A Parte I de Estudos Clássicos , em seu primeiro ano, tinha , na época de Moore, um
objetivo geral , visando ao contato mais amplo com antiguidade clássica, enfatizando o domínio da leitura em latim e grego, [alunos com domínio insuficiente dessas línguas antigas, devem cursar um
ano preliminar d nivelamento preparatório], além de estudos de literatura, filosofia , linguística e filologia, arte e arqueologia. O segundo ano da Parte I visa à maior especialização, com estudo obrigatório
de Linguagem e Literatura, e eletivos em História, Filosofia, Arte e Arqueologia.A Parte II , com duração de um ano, permite ao aluno especializar-se em uma área específica , ou dedicar-se para
diferentes áreas, com a tarefa de elaborar, ao final, quatro “papers”.

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filósofo , neste momento, [ao menos, é o que diz em sua Autobiografia] , mas que irá conduzi-lo não somente

à filosofia, mas sobretudo à filosofia do idealismo britânico.

Como observa M. , em sua juventude , o que lhe despertou o interesse filosófico não foram “o mundo ou as

ciências” , e sim o que os filósofos , como McTaggart, “disseram sobre o mundo e as ciências”. Por outras

palavras, é o diálogo e o debate com os pensadores e suas ideias, como a chocante defesa da irrealidade do

tempo do idealismo britânico, a trilha do filosofar para o jovem M..

CRIANDO UM NOVO MÉTODO : ANÁLISE FILOSÓFICA

E os problemas da filosofia, ao menos na perspectiva de M., são essencialmente dois: de um lado, o que o

filósofo quis dizer [meant] ao dizer alguma coisa; de outro, descobrir as razões para supor que o que ele [o

filósofo] quis dizer é verdadeiro ou falso. Por consequência, são duas as tarefas da filosofia, na visão de M. :

a de elucidar o próprio discurso filosófico e a de examinar criticamente os argumentos e razões em que tal

discurso se apoia.

PROFESSORES DE FILOSOFIA

Sob a influência de R. e McTaggart, M. irá, nos dois últimos de graduação, ingressar no curso filosófico de

Ciências Morais , sem , todavia, abandonar os Estudos Clássicos, especializando-se na Filosofia Grega. No

curso de Ciências Morais, M. teve por professores, tal como R., filósofos como Henry Sidgwick 7[1838-1900],

James Ward8 [ 1843-1925] , G. F. Stout 9[1860-1944] , e J. E. McTaggart.

A respeito de Sidgwick , M. destaca “Methods of Ethics” [ Métodos de Ética] e seu estilo “claro”, assim

como sua “crença Senso Comum”, um dos traços da filosofia posterior de M.

Sobre Ward, seu tutor em “Ciências Morais”, responsável por indicar quais livros M. deveria ler, em particular

a “Metafísica” de Lotze, e por conferências centradas no problema da metafísica, um tema que incluía “o todo

da filosofia exceto Filosofia Moral”. Muito cedo, observa M. , “vou me tornar especialmente crítico em

relação à grande parte de sua filosofia”, sobretudo o estilo confuso.

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Sidgwick desenvolveu, em seu livro The Methods of Ethics, de 1874, uma influente reflexão ética, constituindo-se como um marco da tradição do utilitarismo clássico, visando à “reconciliação entre
o senso moral e as teorias utilitárias” que remete a Jeremy Bentham e John Stuart Mill, guiada pelo leitmotiv “a maior felicidade para o maior número”, como a exigência normativa mais fundamental,
prescrevendo ações que maximizem felicidade e bem estar para todos os indivíduos afetados. Nas palavras de Bentham, fundador do utilitarismo, concebia “utilidade”, como a “propriedade em
qualquer objeto, pela qual ele tende a produzir beneficio, vantagem, prazer, bem ou felicidade”. O utilitarismo é uma modalidade de consequencialismo, que considera as consequências de qualquer
ação como único padrão de certo e errado. . O tratamento do problema ético em Sidgwick foi mais amplo e mais técnico que os seus predecessores, definindo a agenda para grande parte dos debates
morais e éticos sobre o utilitarismo no sec. XX.
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A filosofia de Ward, hoje uma figura amplamente ignorada pela historiografia filosófica, foi um representante do Idealismo Britânico, fortemente influenciado por Kant , em particular a ideia de que
todo objeto fenomenal deve se conformar à estrutura da mente e o fundamento da experiência é o sujeito transcendental. Influenciado pelo Idealismo Absoluto de Bradley, Ward propôs uma metafisica
espiritualista, que dá ao pensamento, não à matéria, o princípio fundamental de explicação do universo, buscando articular o ponto de vista idealista com uma metafísica pluralista, concebendo um
universo povoado de um vasto número de indivíduos; embora suas ações tenham elementos em comum, todos estão buscando sobreviver e melhorar sua condição, Ward enfatiza a diferença radical
entre eles.
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Stout ensinou no St. John College entre 1884-1896, tendo publicado , em 1896, seu livro “Analytic Psychology”, influenciado por Brentano e Meinog, abordou a psicologia numa perspectiva
filosófica, além de Lectures sobre Filosofia Moderna e Antiga, com ênfase em Platão , Spinoza, Locke, Berkeley e Kant.

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Em relação a Stout, diz M. , “devo-lhe muito”: suas conferências sobre História da filosofia moderna,

iniciando-se com Descartes e estendendo-se a Schopenhauer, e além; particularmente, M. ressalta o estilo de

elucidar controvérsias filosóficas numa linguagem mais simples e conversacional, num estilo direto e

despretensioso.

A INFLUÊNCIA DOS IDEALISTAS BRITÂNICOS: McTAGGART

Mas é de McTaggart , o mais jovem entre os seus professores, que M. reconhece ter sofrido maior influência.

Inicialmente , M. destaca sua preocupação permanente com clareza das expressões linguísticas e sentenças,

expressas na questão permanente: “o que significa isso?” , assim como clareza com o estilo de escrever

filosofia , “muito mais claro , quando comparado com a maioria dos filósofos”.

Em particular, as conferências de McTaggart, presenciadas por M., ocupavam-se principalmente da filosofia

de Hegel, com a preocupação de “encontrar um significado preciso para os enunciados obscuros de Hegel”;

todavia, observa M., poucos scholars de Hegel reconheceriam, nessas interpretações, “claras” de Hegel o

próprio pensamento de Hegel. Talvez isso explique por que M. “estudou cuidadosamente” os “trabalhos

publicados de McTaggart”, em contraste com o fato de ter lido apenas “algum Hegel”, e assim mesmo “por

obrigação ”.

INFLUÊNCIA DE BRADLEY

E , como veremos a seguir, no Prefácio de sua dissertação de 1897, ele reconhece a influência de Bradley: “É

principalmente aos “Principles of Logic” e “Appearances and Reality” de Mr. Bradley que devo minha

concepção dos principais problemas de Metafísica”, que , todavia, já na Dissertação de 1898, serão alvo da

crítica mooriana.

Ironicamente, o filósofo maduro , conhecido como paladino e defensor da “visão de mundo do Senso Comum

, é o mesmo que , em sua juventude, opôs-se vigorosamente ao senso comum, elegendo como perspectiva

metafísica a irrealidade do espaço e do tempo, exaltada pelo Idealismo Britânico.

PRIMEIRA DISSERTAÇÃO DE 1897 : BASE METAFÍSICA DA ÉTICA

Após a conclusão da graduação em Moral Sciences, em 1986, M. dedica-se , durante um ano, à elaboração de

uma dissertação, condição necessária para concorrer, na área de Filosofia, à seleção para obtenção de uma

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“Fellowship” [bolsa] em Trinity, que permitia ao vencedor passar os próximos seis anos dedicando-se apenas

aos estudos de filosofia.

A área escolhida por M. foi “filosofia moral”, em conformidade com sua formação na graduação, dedicando-

se , a partir de uma sugestão de James Ward, seu professor na graduação, à Ética de Kant [ 1724-1804] e sua

concepção de “liberdade” [freedom], na metafísica da ética kantiana, a partir da investigação das obras do

filósofo de Königsberg , em particular, a Crítica da Razão Prática, Fundamentação da Metafísica dos

Costumes e Prolegômenos.

Como elucida na “Introdução”, M. nos diz que o “escopo da ética” foi definido diversamente por diferentes

autores; todavia, em sua dissertação, “ética” é compreendida como “uma investigação sobre a natureza do que

denotamos pelos termos “bom” [good] ou “o que deve ser” [what ought to be]

KANT

Moore foi introduzido ao pensamento kantiano nas Lectures sobre Kant e filosofia moderna, proferidas por

seu professor de graduação em Cambridge, Stout. Em 1895, ele passou um período de seis semanas , em

férias, na Alemanha, frequentando as palestras de Sigwart sobre Kant, em Tübingen.

Nesse momento , o neokantismo era dominante nas universidades alemãs, e M. entrou em contato com as

obras de filósofos neokantianos , com destaque para Hermann Cohen e Kuno Fischer, sobre o pensamento de

Kant. Como vimos anteriormente, a filosofia de Kant despertava grande interesse também na Grã-Bretanha

nesse momento, tendo como principal representante o professor de Oxford, Thomas Green, e Edward Caird,

um dos examinadores da dissertação de M.

Mas a “base metafísica” de sua dissertação , a partir da qual a ética kantiana vai ser analisada criticamente, é

, como revela M. na Introdução, é Bradley. Apesar disso, M. informa também que discorda de Bradley em

“muitos pontos” [on so many points].

A Dissertaçao do jovem filósofo é , portanto, uma obra muito complexa, pois , de um lado, assimila algumas

teses kantianas, como o determinismo do mundo fenomenal, mas ao mesmo tempo critica outros aspectos da

filosofia kantiana , a partir de uma perspectiva idealista mais radical que a de Kant, a saber, do Idealismo

Britânico de Bradley e McTaggart, sem deixar de apontar, simultaneamente, falhas nestes últimos.

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M. esclarece ainda que ele “propõe , neste ensaio, criticar a Metafísica da Ética de Kant de modo detalhado,

com um meio de esclarecer minha própria visão”. Seu objetivo é “tentar” revelar “as inconsistências de Kant”,

que ainda perduram e são aceitas por autores com Green e Bradley, de modo que a dissertação irá apresentar

também , muitas vezes criticamente, o pensamento desses autores do idealismo britânico.

MÉTODO ANALÍTICO

Indica também, na Introdução, a sua abordagem metodológica , a saber, “tornar os significados atribuídos a

Kant precisos e claros”, enfatizando que a maior falha [most at fault] da história da filosofia até agora não é

o da parcialidade , e sim não analisar de maneira clara e precisa o significado dos conceitos filosóficos.

SEGUNDA DISSERTAÇÃO [1898]: BASE METAFÍSICA DA ÉTICA [REVISTA E AMPLIADA]

Sem abalar-se com a derrota na seleção pela bolsa em Trinity , M. dedicou-se o ano seguinte à revisão de sua

dissertação , a fim de participar novamente da competição, em 1898, desta vez, com êxito.

Nessa segunda dissertação, M. conserva tanto o título “A Base Metafísica da Ética” , quanto uma parte do

conteúdo do trabalho anterior , a saber, o capítulo referente à discussão crítica da ideia de liberdade, em Kant;

a novidade dessa segunda dissertação , no entanto, situa-se na ampliação de seu escopo, pelo acréscimo de

novos capítulos, com o objetivo de fundamentar o seu tratamento crítico do conceito de liberdade em Kant.

Os títulos desses novos capítulos já anunciam o surgimento de um novo método de filosofia, essencial para a

constituição da tradição analítica, a saber a análise filosófica do significado de conceitos, a saber : Sobre o

significado [meaning] de “Razão” em Kant , e O significado de liberdade em Kant, que precedem o capítulo

central , “Liberdade” [Freedom].

Com isso , M. amplia seus temas de investigação, compreendendo não apenas a Liberdade, mas também os

temas novos “Razão” [Reason] e sua relação com a “Verdade”[ Truth] , não discutindo criticamente apenas

com Kant, mas também o Idealismo Britânico de Bradley, sob a perspectiva metodológica inovadora da

análise do significado de conceitos. Moore “submeteu o todo ao Exame de Bolsas em 1898”, e “desta vez”,

diz o filósofo, “eu fui o eleito”.

IMPORTÂNCIA DA SEGUNDA DISSERTAÇÃO

A importância dessa “segunda” dissertação , sobre Razão , Verdade e Liberdade em Kant e no Idealismo

Britânico, é dupla. Por um lado, assegura a Moore dedicar-se , durante os próximos seis anos, com toda

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liberdade intelectual, inteiramente à filosofia , mais precisamente, ao desenvolvimento de sua filosofia; por

outro lado, marca um deslocamento filosófico essencial na trajetória de Moore e da filosofia contemporânea,

a saber, o afastamento inicial do idealismo e a aproximação do realismo . E isso em dois momentos.

Em primeiro lugar, considerando criticamente a concepção kantiana de razão, “extremamente difícil de ver

claramente” e “mistificadora” [mystifying]; esse exame do conceito de razão conduziu ao exame do conceito

de verdade, pois , como observa M., “em alguns de seus empregos, o termo ‘razão’ de Kant envolvia uma

referência à noção de “verdade”.

Partes dessa dissertação foram publicadas, como artigos, na revista Mind, com os títulos “Liberdade” e

“Natureza do Juízo”.

LIBERDADE [FREEDOM, 1898]

Como mencionamos anteriormente, parte da dissertação para obtenção de uma Fellowship foi publicada ,

pouco tempo depois, como um artigo na revista Mind, com o título “Freedom”[Liberdade][pp. 179-204] e

apresentada na Aristotelian Society , no mesmo ano .

O objetivo do ensaio é defender “certos pontos na doutrina de Kant que considero corretos” e “criticar outros

que considero errados”. O artigo , observa M. , divide-se em três partes, a saber [em nossas palavras]: i)

mostrar que a natureza da Liberdade em Kant não é inconsistente com sua concepção de Determinismo; ii)

defender e explicar o determinismo kantiano e descartar [dispose of] a “teoria da Liberdade da Indiferença”,

a saber, a “doutrina vulgar da Vontade Livre” e da “Liberdade”, como ausência de coação externa; iii) discutir

as principais dificuldades da concepção kantiana de Liberdade , e acusá-lo [convinct] de inconsistências.

De acordo com a interpretação de Scott Soames, o alvo crítico de M. é a concepção kantiana de liberdade,

que, por um lado, segundo K. , tem de ser postulada como condição da ação moral, e por outro, tem de ser

conciliada como o determinismo do mundo empírico, fenomenal e natural, pois : a) Todas as ações ocorrem

no tempo; b) Cada acontecimento temporal tem uma causa temporal que o faz necessário; c) No entanto, isso

conduz à ideia de que qualquer escolha de um agente faça não poderia de fato ser realizada , pois teria de ser

temporal, o que parece ser uma negação de liberdade.

Para compatibilizar determinismo e liberdade, Kant , grosso modo, na Crítica da Razão Pura, estabelece a

distinção entre o fenomenal e o numenal, entre o eu empírico e o eu transcendental, propondo uma solução

10
para a suposta antinomia liberdade e determinismo, ao postular [ já que não podemos conhecer nem

demonstrar nossa liberdade, pois se trata de uma Ideia metafísica, cujo conhecimento situa-se além dos limites

da nossa razão], na Crítica da Razão Prática, a ideia de liberdade como condição para sermos agentes morais,

pois não podemos ser agentes morais, se não somos livres.

M. se opõe a essa solução , pois não se trata absolutamente de uma solução. Como todo kantiano, M. também

concorda que todas as ações e escolhas ou deliberações ocorrem no tempo, que todo acontecimento no tempo

tem uma causa temporal necessária, e que as realidades transcendentais , como o eu transcendental, situando-

se por detrás das aparências, são imutáveis e atemporais.

Por isso, na visão de M., a única solução para conciliar liberdade e determinismo é : o kantiano deve concluir

que o eu transcendental não é capaz de ação livre ou livre escolha; e isso não porque o sujeito moral não seja

livre no sentido transcendental e atemporal defendido por Kant, e sim porque não são capazes de ação , escolha

ou deliberação na medida que tudo isso são eventos e processos temporais. Na visão de M. , tudo no mundo

da aparência é o que é em razão da Realidade [ou do Absoluto, como propõe Bradley], do qual os fenômenos

são aparência. Mas constituintes da Realidade, como o eu transcendental, não fazem coisa alguma. Daí a

conclusão final de M. de que a verdadeira liberdade kantiana, a Liberdade Transcendental, é simplesmente o

papel da Realidade ou do Absoluto dando forma ao mundo da aparência.

Nas palavras de M.: “[...] A Liberdade Transcendental , enquanto uma Ideia da Razão, é a relação em que o

mundo tal qual ele é realmente está para os eventos tais como nós os conhecemos. É a relação da Realidade à

Aparência.” E acrescenta que a “conclusão de Kant ao final da Crítica da Razão Pura deveria ter sido que a

Liberdade Transcendental não é somente possível , e sim atual.” Sinteticamente, a crítica de M. a Kant reside

no fato do filósofo alemão não ter derivado todas as implicações de sua concepção transcendental de liberdade,

não desenvolvendo plenamente suas consequências idealistas mais radicais.

O aspecto positivo dessa posição de M., observa Soames, é que ela aponta para o fato de que existe realmente

“um sério problema com a visão kantiana de liberdade , quando combinada com suas concepções metafísicas

e epistemológicas”

A NATUREZA DO JUÍZO [1899] : A CRÍTICA REALISTA AO IDEALISMO DE BRADLEY

11
Em 1899, M. publica , na revista Mind, o ensaio “A Natureza do Juízo” [The Nature of Judgement], oriundo

do capítulo II, intitulado Razão [Reason] da Segunda Dissertação, também apresentado , nesse mesmo ano,

à “Aristotelian Society”. Nele, M. volta-se criticamente contra a concepção idealista de verdade, proposição

e conceito, defendida por Bradley em seu obra “Lógica”, propondo em seu lugar uma compreensão,

denominada por estudiosos, “realismo puro” ou “realismo metafísico”.

M. inicia seu texto, com uma apresentação sintética, orientada por um objetivo crítico, das concepções sobre

verdade e falsidade, ideia e significado, defendidas pelo principal representante do Idealismo Britânico,

Bradley, em seu livro Lógica: “verdade e falsidade” , diz Bradley, dependem da relação de nossas ideias com

a realidade”, acrescentando, em seguida, que o “significado [meaning]” de uma ideia “consiste de uma parte

de seu conteúdo abstraído [cut off], fixado pela mente” e considerado separadamente da existência da ideia

em questão.

UMA CONCEPÇÃO NÃO IDEALISTA DO SIGNIFICADO

Tal referência a Bradley é duplamente importante: a) de um lado, revela como o tema do “significado” torna-

se central na reflexão de Moore, articulado a um incipiente método inovador de análise filosófico-conceitual,

decisivo na história posterior do pensamento analítico; b) mostra uma concepção “idealista” de significado,

que será objeto da crítica de M. , em que este significado é inseparável de nossas ideias e representações, na

medida em que constituem o conteúdo de nossas ideias , mas não existem separadamente delas”; c) essa

concepção idealista de significado é questionada por M. em “Natureza do Juízo”, iniciando seu afastamento

do idealismo em direção ao realismo e à concepção realista de significado.

CONCEPÇÃO REALISTA DO SIGNIFICADO

M., em clara oposição ao idealismo, diz agora que “o significado de uma ideia não é ‘separada’ nem

‘abstraída’ dela, mas algo inteiramente independente da mente [wholly independente of mind]” : nas palavras

de M., “nosso objeto será mostrar que , qualquer que seja o nome dado, aquilo que chamamos uma proposição

é algo independente da consciência, e alguma coisa de fundamental importância para a filosofia”. De um lado,

tem-se , nessa fase realista inicial de M., uma concepção anti-idealista de proposição; de outro, a importância

da proposição e do conceito, e por extensão ,do pensamento , como temas centrais da filosofia.

12
Como observa M., essa concepção , apresentada no capítulo acrescentado à segunda dissertação, caracteriza

o momento inicial do seu “realismo” e “o começo da ruptura [breaking-away] com crença, compartilhada

por ele e Russell, na filosofia [idealista] de Bradley, da qual , sob a influência de McTaggart, eram [até então]

entusiásticos admiradores”.

AFASTAMENTO INICIAL DO IDEALISMO E GIRO PARA O REALISMO PURO/METAFÍSICO

O artigo “A natureza do Juízo”[ The Nature of Judgement] , mencionado no tópico anterior, assinala , por

um lado, o afastamento crítico de M. em relação ao Idealismo Britânico de Bradley; por outro lado, revela o

giro de M. em direção a um realismo puro ou metafísico, em particular, em relação aos conceitos, proposições

e seus significados.

Moore critica a postura do idealista absoluto Bradley em torno da natureza de juízo, mais precisamente, a

crítica à visão idealista de que os juízos, os conceitos que os constituem, assim como os significados seriam

dependentes da mente e , portanto, da consciência, do eu, do sujeito e de suas representações , de seus

pensamentos e consciência.

REALISMO PURO OU METAFÍSICO

Em oposição a Bradley , M. radicaliza seu giro realista puro ou metafísico, apresentando uma concepção de

proposição e significado que se aproxima muito, em seus aspectos essenciais, da compreensão freguiana. Um

dos aspectos originais de M. reside no fato de que sua crítica ao idealismo e defesa do realismo têm um caráter

essencialmente semântico, ou seja, é desenvolvido no horizonte da proposição, do conceito e do significado;

por outras palavras, trata-se antes de tudo de um realismo do significado. Essencialmente, as teses centrais

desse realismo puro são:

a) Rejeição ao termo “ideia”[ idea] e seu equivalente alemão “Vorstellung” [Representação] , tão comuns

na tradição clássica racionalista e empirista, assim como no idealismo alemão moderno, por ser “pleno de

ambiguidades”; em seu lugar, M. prefere empregar o termo “conceito” [concept] e seu equivalente alemão

“Begriff” , para designar o que Bradley denomina “significado universal”[universal meaning]

b) Os significados ou conceitos formam um “genus per se”, diz M., “irredutíveis a qualquer outra coisa” ou

seja, irredutíveis à nossa mente ou consciência, opondo-se dessa forma àqueles “que consideram a ideia como

estado mental”;

13
c) Os conceitos são independentes da mente e se combinam para formar proposições ou juízos que são

igualmente objeto independentes do pensamento; nas palavras de M., “o conceito não é um fato mental, nem

qualquer parte de um ato mental”;

d) Ao dizer “Esta rosa é vermelha” o que estou asserindo “não é algo sobre meu estado mental” [mental state]

e sim “uma conexão específica [specific connexion] de certos conceitos” , que constitui a natureza do juízo

[judgement];

e) “ O juízo é verdadeiro”, diz M., “se uma tal conexão é existente”;

f) Do mesmo modo , afirma M., “quando digo ‘A quimera tem três cabeças’, a quimera não é uma ideia em

minha mente, nem qualquer parte de uma ideia”, e sim, também, “uma conexão específica de conceitos”;

g) Se o juízo anterior, “A quimera tem três cabeças”, é falsa , “não é porque minhas ideias não correspondem

à realidade”, e sim “porque uma tal conjunção de conceitos não se encontra entre existentes”

h) Essa oposição ao idealismo e ao subjetivismo é correlata igualmente à oposição ao empirismo.

INDEPENDÊNCIA DO DO CONCEITO E DO JUÍZO

M. pode então se aproximar da “natureza da proposição ou do juízo”; segundo ele, “uma proposição [ou juízo]

é composta , não de palavras [words] nem de pensamentos[thoughts], e sim de conceitos[concepts]”.

Conceitos “são objetos [objects] possíveis de pensamento”, ou seja , que podemos ou não pensar, de modo

que “podem entrar em relação com um ser pensante” [thinker], como cada um de nós; mas para isso, “eles já

têm de ser algo [ be something]”. E é “indiferente para sua natureza [nature]”, acrescenta M., “se alguém os

pensa ou não” , e “são incapazes de mudança” assim como de “ação ou reação”.

A proposição não é senão “um conceito complexo” e a diferença entre conceito e proposição é que somente a

proposição pode ser “chamada [called] verdadeira ou falsa”, ao passo que o conceito não , em razão de sua

“simplicidade”.

A proposição , afirma M., é uma “síntese de conceitos”; e “na medida em que os conceitos são imutavelmente

o que eles são, eles se encontram [they stand] em infinitas relações uns com os outros , igualmente imutáveis.

A proposição é formada “por um número qualquer de conceitos, juntos a uma específica relação entre eles; de

acordo com a natureza desta relação a proposição pode ser verdadeira ou falsa”. Todavia, “o tipo de relação

14
que faz verdadeira uma proposição ou falsa, não pode ser definida, mas pode ser imediatamente reconhecida”

[immediately recognised]

EXISTÊNCIA É UM CONCEITO

“Existência”, diz M., “é ela mesma um conceito”, ou seja, “alguma coisa que significamos”; e as proposições

, às quais se une o conceito de existência, “são simplesmente verdadeiras ou falsas de acordo com a relação

entre o conceito de existência e as proposições, com as quais se combina. Essa “maneira específica” em que

uma proposição se combina com o conceito de existência, tornando tal combinação verdadeira ou falsa, “é

alguma coisa imediatamente conhecida, como vermelho ou dois” .

REALISMO SEMÂNTICO MAIS RADICAL QUE O DE FREGE

As teses realistas apontadas acima – que configuram um realismo do significado ou um realismo semântico –

convergem para uma posição ainda mais radical que a do próprio Frege: conceitos são , fundamentalmente, as

únicas coisas que existem. “Um conceito”, diz M., “ não é em qualquer sentido inteligível ‘um adjetivo’,

como se existisse algo substantivo , mais fundamental que os conceitos...ao final , o conceito é o único sujeito

ou substantivo” .

Os conceitos não são apenas os elementos fundamentais do significado, mas também os elementos

fundamentais da realidade. E acrescenta: “o mundo é feito de conceitos” .

CRÍTICA À CONCEPÇÃO CORRESPONDENCIAL DE VERDADE

Mas isso não é tudo: conceitos são os constituintes elementares das proposições , de modo que as proposições,

quando verdadeiras, são a própria realidade e os próprios fatos. A consequência é que , diferentemente da

teoria correspondencial de verdade, uma proposição verdadeira , na visão platonizante de M., não corresponde

a nada, ou seja, a nenhum fato ou estado de coisas, pois ela é o próprio “fato”.

Se a verdade de uma proposição não depende de uma relação de correspondência com um estado de coisas ou

fato, então depende de quê? No lugar da teoria da correspondência, M. sustenta que a verdade ou falsidade

de uma proposição depende da relação ou combinação dos conceitos na proposição, a saber, se os conceitos

estão relacionados na proposição de modo verdadeiro ou não.

Esta visão é correlata a uma curiosa cosmologia, a de que “o mundo é formado de conceitos’; e na medida em

que conceitos formam proposições , isso implica que o mundo é a totalidade de proposições verdadeiras. Seria

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algo análogo ao mundo platônico das ideias, com a diferença de que não é um mundo além, mas aquém ou

em nosso mundo mesmo.

Se o mundo é a totalidade das proposições verdadeiras, o que dizer do mundo sensível, aqui e agora, particular

e individual? A posição de M. contra a teoria correspondencial de verdade tem por implicação a identificação

de existentes , as coisas que existem , com as proposições existenciais verdadeiras. Todas as coisas ordinárias

são compostas de conceitos; mas visto que conceitos se combinam para formar proposições , coisas ordinárias

têm de ser proposições, a saber, segundo M. , proposições de existência verdadeiras.

Em uma carta a MacCarthty, de Agosto de 1898 , M. escreve entusiasmado: “um existente nada mais é do que

uma proposição, nada mais que conceitos. Esta é minha filosofia”. Trata-se de uma metafísica dos conceitos

e das proposições, ou uma ontologia de conceitos, constituindo a própria essência da realidade e o fundamento

de todas as coisas.

Uma possível interpretação dessa cosmologia de M. é considerar os objetos materiais como o conjunto de suas

propriedades, tal conjunto como conjunções de proposições verdadeiras, que dizem respeito à existência de

uma propriedade, ou conceito , em pontos do espaço e tempo .Assim, na medida em que vemos ou tocamos

coisas ordinárias , vemos ou tocamos proposições, pois a proposição é somente “a cognição de uma proposição

existencial”. O problema , todavia, situa-se no fato de que , para M., os conceitos são gerais , universais e

atemporais: como identificá-los com o aqui e agora dos seres concretos no espaço e no tempo? O sistema

metafísico de M. pode ser visto como um sistema quase idealista, na medida em que o mundo é um mundo de

significados; somente não é um sistema idealista, porque a concepção de significado por Moore é inteiramente

realista.

UMA TEORIA PARADOXAL

Em seu ensaio “Natureza do Juízo”, M. confessa “esta plenamente consciente de quão paradoxal esta teoria

pode parecer, e até mesmo desprezível” [contemptible]. Todavia , ele assegura que tal teoria parece “decorrer

de premissas geralmente admitidas”, enfatizando ser “impossível que a verdade [de um juízo ou proposição]

deva depender de uma relação com existentes ou com um existente, visto que a proposição pela qual ela [ a

verdade] é assim definida, deve ela mesma ser verdadeira ,e a verdade disto não pode certamente ser

estabelecida , sem cair em círculo vicioso, exibindo sua dependência em relação a um existente [existente]”

16
SEIS ANOS COMO FELLOW DE TRINITY: 1898-1904

O Prêmio , conquistado com sua segunda dissertação , foi uma “Fellowship” dada incondicionalmente por

seis anos; M. decidiu permanecer todo esse período em Cambridge, residindo no Trinity College, com direito

a um quarto e ceia diária, livre de custos, dedicando-se inteiramente à “sua” filosofia.

REFUTAÇÃO DO IDEALISMO [ REFUTATION OF IDEALISM] [1903]

A ruptura com o idealismo britânico, em particular o idealismo de Kant, Bradley e McTaggart , assim como

o giro em direção ao realismo puro ou metafísico, iniciados com a Segunda Dissertação e fortalecidos com a

publicação de Natureza do Juízo, realizam-se plenamente no ensaio de Moore, tal como anunciado claramente

já no título “Refutação do Idealismo”, tendo por alvos imediatos o fenomenalismo de Berkeley e o idealismo

de Kant; o ensaio foi publicado em 1903, na revista Mind, [pp. 433-453]; nele , encontra-se a crítica mais

conhecida de Moore contra o idealismo.

Moore indica inicialmente, em tom crítico, o distanciamento do idealismo em relação a consciência pré-

filosófica , prefigurando o giro de Moore em direção ao Senso Comum [Common Sense, sempre com

maiúsculas, segundo a grafia de M.], que vai se completar, como veremos, nas Conferências de 1910/11 ,

em Londres, [somente publicadas em 1953, com o título “Problemas Fundamentais da Filosofia”] e “ Uma

Defesa do Senso Comum”, publicado em 1925.

ESSE EST PERCIPI

O artigo generaliza a distinção, apresentada no artigo de 1898, “Natureza do juízo”, entre mente e significado

proposicional, que anuncia uma concepção semântica realista, para a experiência sensível e a percepção,

tomando como ponto de partida , para sua “refutação do idealismo”, uma “proposição trivial”, a saber, “esse

é percipi” [é assim mesmo que M. prefere escrever, a saber, esse is percipi , e não a expressão latina correta

esse est percipi]. Trata-se de uma proposição “muito ambígua”, mas é , todavia, “em algum sentido, essencial

ao Idealismo”.

Moore reconstrói o argumento principal do idealista , como partindo desta premissa fundamental , a saber,

“esse est percipi”: ser é ser percebido , originariamente formulado por Berkeley10. O que M. se propõe, em

10“Princípios do Conhecimento Humano”, de 1710, apoia-se no célebre princípio “esse est percipi [aut percipere] ” , ser é ser percebido [ou perceber], de modo que ideias
são os objetos imediatos do conhecimento. Se as ideias são objetos imediatos do conhecimento, é preciso que exista algo capaz de conhecê-las e percebê-las, a saber, a mente
ou o espírito, mais precisamente , substâncias mentais finitas ou uma substância mental infinita , como Deus. B. propõe uma metafísica idealista, em que toda a realidade
consiste exclusivamente de mentes e suas ideias. Esse idealismo articula-se com o imaterialismo: B. não nega a existência de objetos ordinários , mas propõe uma visão
imaterialista desses objetos, a saber, como uma combinação de ideias designadas por um termo ou nome; uma maçã, por exemplo, é uma combinação de ideias visuais , de
17
seu artigo, “é mostrar que , em todos os sentidos atribuídos a ela [a saber, à proposição esse est percipi] , ela

é falsa”.

ESSE É PERCIPI = SER É SER EXPERIENCIADO

“Se esse é percipi”, diz Moore, isso equivale a dizer “tudo o que é , é experienciado [experienced]”, de modo

que “ser” e “ser experienciado” são necessariamente conectados: que tudo o que é , é também experienciado”.

E isso , por sua vez, equivale a dizer “tudo o que é , é algo mental [mental]”. Por consequência, segundo os

idealistas, ‘o objeto da experiência é inconcebível separado do sujeito” , não tendo, por isso, existência

independentemente do sujeito que experiência ou que percebe.

NATUREZA DA SENSAÇÃO: CONSCIÊNCIA + OBJETO

Depois de examinar, com extremo detalhamento, os vários significados possíveis da premissa idealista “esse

é percipi” , M. volta-se para a investigação da natureza da sensação , partindo dos exemplos concretos de

“sensação de azul” [ sensation of blue] e “sensação de verde”[ sensation of green].

Sinteticamente, M. distingue, em toda sensação , dois elementos: “um que chamo de consciência

[consciousness] e outro que chamo objeto da consciência”. Assim, as sensações de azul e verde são , por um

lado, diferentes, e por outro, iguais: azul é um objeto de sensação , e verde é outro; e a consciência , a qual

ambas as sensações têm em comum.

Por outras palavras , a sensação do azul ou verde , por exemplo, incluem dois elementos diferentes: a saber,

a consciência, de um lado, e o azul ou o verde [objetos da sensação], de outro.. O essencial, todavia, nessa

análise mooriana da percepção ou sensação é a distinção entre os dois elementos: o objeto da sensação e a

consciência da sensação.

Por outras palavras, observa Soames, a “sensação de azul” [sensation of blue] é vista como uma experiência

constituída por duas condições , uma subjetiva e outra objetiva, uma interna e outra externa, a saber: por um

lado, a consciência subjetiva do azul; por outro, o azul que não se reduz ao “conteúdo da experiência”, nem

tato, gosto, cheiro, etc. Essa posição idealista e imaterialista, implica também no antiabstracionismo , a saber, não se podem formar ideias , tal como Locke sugeria, mediante
abstrações , eliminando suas qualidades particulares, para formar uma ideia geral e abstrata. Coisas percebidas , a saber, ideias ou representações pressupõem seres capazes de
percebê-las, a saber, mentes ou espíritos: enquanto as ideias são passivas, os espíritos são ativos, sugerindo que B. substituiu o dualismo mente/matéria pelo dualismo
mente/ideia. Por fim, B. encontra no idealismo o caminho para a prova da existência de Deus, a partir da questão sobre a causa das ideias sensíveis ou sensoriais. Dado que
substâncias materiais ou matéria não existem, elas não podem ser a causa de nossas ideias sensoriais; a partir disso, B. descarta também outras causas possíveis , a saber,
outras ideias [pois ideias são passivas e não possuem nenhum poder mental], eu mesmo, sujeito da percepção, pois embora possa voluntariamente criar ou causar algumas
ideias, como as da imaginação, não posso ser a origem de ideias involuntárias, ou seja, elas se apresentam independentemente de minha vontade, queira percebê-las ou não.
Isso conduz necessariamente uma única explicação, a saber, minhas ideias sensoriais têm de ser causadas por alguma outra mente ou outro espírito: Deus.

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à mera “qualidade da experiência” absolutamente, mas alguma coisa real , cuja existência não é dependente

da experiência e é condição exterior da própria experiência. Segundo M., “o objeto, quando estamos

conscientes dele, é precisamente aquilo que seria , caso não estivéssemos conscientes dele”.

A FALSA IDENTIDADE ENTRE SENSAÇÃO E OBJETO DA SENSAÇAO

A partir disso, M. pode se voltar criticamente para os idealistas , a fim de mostrar que é exatamente essa

distinção entre os dois elementos essenciais de toda sensação, a saber, a consciência e o objeto, que é ignorada

pela concepção idealista da percepção sensível.

Em lugar de analiticamente distingui-las, a concepção idealista de sensação , ao contrário, as identifica e as

confunde, igualando o objeto da sensação , a saber, o azul, com a própria sensação ou percepção do azul,

não distinguindo a percepção do percebido, e por isso tomavam “esse” como “percepi”, ou seja, ser como

perceber.

REFUTAÇÃO DO ARGUMENTO IDEALISTA

M. procura argumentativamente refutar o idealismo, considerando agora apenas a “sensação de azul”; se ela

existe, então , ou 1) somente consciência existe ; ou 2) somente o objeto , a saber , o azul existe; ou 3) ambos

existem juntos. Todavia, diz M., cada uma dessas possibilidades representa um diferente estado de coisas:

nem a consciência sozinha nem a consciência e o azul juntos são idênticos ao azul. Não é o caso , portanto,

que a sensação de azul é idêntica ao azul, e portanto, é falso que esse é percipi ou que ser é ser experienciado.

Contra essa posição idealista, e em conformidade com a consciência pré-filosófica ou natural, M. enfatiza o

equívoco idealista, ao mostrar que a experiência ou a percepção do azul são diferentes do objeto da

experiência de perceber.

ERRO IDEALISTA

Assim, os idealistas cometem um erro [mistake], ao afirmar que “a existência do azul é a mesma coisa que a

sensação da existência de azul”, identificando “o objeto da sensação com a sensação correspondente”. Por

isso, empregam confusa e incorretamente as mesmas palavras, a saber, percepção, sensação, experiência para

se referir tanto à experiência visual de azul [ ou seja, à percepção ou sensação de azul] como para o azul que

experienciavam , percebiam ou sentiam, ou seja , para o objeto. Sinteticamente, como observa M. , os idealistas

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supõem “que o objeto de uma experiência é na realidade meramente um conteúdo ou aspecto inseparável

daquela experiência”.

BERKELEY E KANT: SUPOSIÇOES FALSAS

Por isso, diz M., “quando Berkeley supôs que as únicas coisas de que estou diretamente cônscio [aware] são

minhas próprias sensações e ideias, ele supôs algo que é falso”. E também Kant, quando “supôs que a

objetividade das coisas no espaço consistia no fato de que eram Vorstellungen [ Representações], tendo umas

para com as outras relações diferentes daquelas que as mesmas Vorstellungen têm umas para com as outras

na experiência subjetiva, ele supôs aquilo que é igualmente falso”.

E o verdadeiro é a concepção de M., a saber, “estou diretamente cônscio [directly aware] da existência de

coisas materiais no espaço quanto de minhas próprias sensações; e do que estou cônscio em relação a cada

uma é exatamente o mesmo, a saber, o que realmente existe em um caso, é a coisa material, e em outro caso,

é minha sensação”, de modo que “a matéria existe, tanto quanto o espírito”.

CONCLUSÕES PRINCIPAIS

As principais teses de M., em Refutaçao do Idealismo, são, de acordo com leitura de Soames :

a) O azul que vemos [objeto da sensação] é diferente da sensação ou consciência de azul, a qual é nossa

experiência de vê-lo;

b) Podemos conceber o azul que vemos como existindo sem ser percebido;

c) Por consequência , o que percebo, vejo, escuto , toco nunca está em minha mente ou é ontologicamente

dependente dela;

d) o “azul” é um objeto , irredutível a mero conteúdo da minha experiência; mais radicalmente, é a coisa mais

real e mais independente da qual tenho consciência.

REALISMO DIRETO

Para sua refutação do idealismo , M. desenvolve, como vimos, uma teoria original da percepção e de cognição

, que podemos denominar “realismo direto”, afastando-se da maior parte dos filósofos modernos que aceitaram

alguma forma de representacionalismo , segundo a qual nos temos acesso cognitivo direto somente aos nossos

próprios estados mentais [ ideias , percepções , impressões, etc].

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Para M., diferentemente, temos um acesso cognitivo direto aos objetos da nossa experiência: “estou

diretamente cônscio [directly aware] da existência de coisas materiais no espaço quanto de minhas próprias

sensações; e do que estou cônscio em relação a cada uma é exatamente o mesmo, a saber, o que realmente

existe em um caso, é a coisa material, e em outro caso, é minha sensação”, de modo que “a matéria existe,

tanto quanto o espírito”.

INVERTENDO O ÔNUS DA PROVA

A consequência dessa posição é que , como nos mostra M., não devemos perguntar “ que razão temos para

supor que qualquer coisa exista correspondentemente às nossa sensações”, e sim “que razão temos para supor

que as coisas materiais não existam, já que sua existência tem a mesma evidência que aquela de nossas

sensações?”

Essa pergunta parece deixar claro o objetivo de M. em seu ensaio de 1903: não tanto elaborar uma refutação

que convença os idealistas, ao revelar a incoerência e inconsistência da argumentação idealista , e sim

sustentar filosoficamente a visão do sentido comum e inverter os papéis com seu oponente, que critica o senso

comum, a saber, inverter o ônus da prova, de modo que seja o oponente do senso comum que justifique suas

premissas e nos dê uma boa razão para aceitá-las.

ARISTOTELIAN SOCIETY OF LONDON

Nessa mesma época, M. torna-se membro da “Sociedade Aristotélica de Londres”, indo frequentemente

Londres a fim de participar de seus encontros [meetings] e reuniões, assim como de seus Simpósios

[Symposium], para os quais escreveu muitos artigos.

LECTURING

Pouco tempo depois, inicia-se sua experiência como conferencista [Lecturing], sendo convidado para

apresentar dois cursos [cada curso compreendendo dez palestras] em Londres , respectivamente sobre “Ética

de Kant” e “Ética”, simplesmente. Durante a elaboração das conferências sobre Ética, M. intui o principal

esboço de uma de suas mais importantes obras, a saber, Principia Ethica, desenvolvida nos quatro anos

posteriores, sendo publicada em 1903.

PRINCIPIA ETHICA

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A fellowship, de seis anos, entre Cambridge e Londres, foi um período de trabalho intenso e, “considerando

tudo junto”, diz M., “acho que fiz uma quantidade respeitável de trabalho” durante essa época, centrada

sobretudo em discussões sobre ética. E o resultado de maior destaque é sua obra “Principia Ethica”

[Princípios da Ética], lançada em 1903, mesmo ano de publicação dos Principles of Mathematics , de Russell.

Não por coincidência, os três títulos fundamentais da filosofia da análise em Cambridge estão em latim:

Principia Ethica, Principia Mathematica, de R., e Tractatus Logico-Philosophicus , de Wittgenstein [título

sugerido por M.]

EDINBURGH: 1904-1908

Em setembro de 1904 encerra-se a fellowship e o vínculo com Cambridge; uma herança, oriunda da morte

recente de seus pais, possibilitou a M. “continuar trabalhando em filosofia , exatamente como queria, sem

bolsa e sem a necessidade de nenhum emprego pago”.

Nessa época, M. transfere-se para a Escócia, acompanhando um amigo, cujo nome não é declinado,

recentemente convocado para o corpo docente na Universidade de Edinburgh. É a mesma cidade de Hume ,

o empirista clássico e o filósofo cético, em cuja Universidade, [Hume] jamais conseguirá ingressar, e que

será fundamental na trajetória intelectual de M. E também de Thomas Reid [1710 – 1796], fundador da escola

escocesa do senso comum, critico do representacionalismo moderno e de sua principal consequência, o

ceticismo moderno, em particular , o de Hume, alvo dos ataques críticos de Reid.

PERÍODO DE TRANSIÇÃO

Aqui inicia-se a transição do jovem filósofo para o filósofo maduro, que se completa em 1910-11, quando : a)

ele profere uma série de Conferências, reunidas, muito anos depois, no livro “Alguns problemas fundamentais

de filosofia”[ Some Main Problems of Philosophy], publicado em 1953; b) retorna como docente a Cambridge.

Nessa fase de transição uma das preocupações de Moore é clarificar e elucidar, para si mesmo e para seu leitor,

as questões e problemas que pretende debater e analisar.

Logo depois de se afastar de Cambridge, M. experiencia profunda mudança pessoal: a excessiva

autoconfiança do período de Fellowship [1898-1904], em que acreditava que sucederia , como professor de

Filosofia em Cambridge, seu antigo mestre Sidgwick, em via de se aposentar, dá lugar a um rigoroso

autocriticismo em relação à sua trajetória até então. Isso é indicado claramente nas páginas iniciais do ensaio

22
de 1905, “Natureza e Realidade dos Objetos da Percepção”, em que M. confessa que “estava confundindo

uma questão com outra, e que , onde acreditava haver boas razões para uma algumas asserções, na realidade

não tinha boa razão alguma”.

Durante o período escocês, M. ocupou-se intensamente do recém-publicado “Principles of Mathematics”

[1903] de Russell, atento sobretudo às “partes iniciais e fundamentais sobre lógica”, escrevendo uma “longa

resenha [review] sobre o livro”, além de vários artigos, entre eles um “paper” sobre o pequeno livro de William

James, “Pragmatismo”.

RICHMOND: 1908-1911

Em 1906, em razão da transferência de seu amigo para o “Board of Education” na capital inglesa, M. também

abandona Edinburgh, para morar nos próximos três anos e meio com suas duas irmãs em Richmond, próximo

a Londres.

Durante o período em Richmond, diz M., “trabalhei tão intensamente quanto havia trabalhado durante minha

fellowship” .

AFASTAMENTO DO REALISMO PURO OU METAFÍSICO

O período de três anos e meio em Edinburgh irão favorecer a rejeição de M. ao realismo puro de juventude,

por que possibilitou a H. conhecer e ler dois filósofos escoceses , antagônicos, todavia, , que vão desempenhar

papel central na trajetória posterior de M: Hume [ 1713-1784] e seu ceticismo moderado; Thomas Reid [1710-

1796] e sua critica anticética contra Hume a partir da noção de senso comum11.

O distanciamento de Cambrige, o impacto do ceticismo de David Hume e a influência do senso comum de

Thomas Reid , contribuíram para que no período entre 1904 e 1911 – a saber, no período em que se desvincula

do Trinity College e a ele retorna, como professor – ocorresse um progressivo afastamento de seu realismo

metafísico e um giro para o realismo moderado do Senso Comum.

É preciso ainda destacar a influência tardia , nesse momento, de um ex-professor de Cambridge, Sidgwick,

cujo livro “The Methods of Ethics” propõe uma “moralidade do senso comum” [morality of common-sense]

11
Em 1764, Reid publicou seu “An Inquiry into the Human Mind, on the Principles of Common Sense” [Investigação sobre a mente humana , segundo os princípios do senso comum] contestou a visão
de que o mundo é “mediado” por “ideias”, defendido por filósofos desde Descartes a Hume, racionalistas e empiristas; segundo Reid, residia, na doutrina das ideias, a origem do ceticismo moderno.
Contra essa concepção , Reid apresentou uma concepçao alternativa do intelecto humano , em que defende que nossas crenças ordinárias sobre o mundo fundam-se não em ideias que são cópias de
impressões, como sustentava Hume, e sim em “princípios do senso comum”. Como resultado da atenção conquistada por sua “Investigação”, Reid tornou-se conhecido como fundador da escola escocesa
de filosofia do senso comum . Ignorado pela tradição, os escritos de Reid tornaram-se objetos de crescente interesse na segunda metade do séc. XX, atraindo a atenção de filósofos da mente, da ação ,
ciência e moral, assim como estudiosos do Iluminismo Escocês.

23
como “uma coleção de regras gerais , sobre cuja validade haveria aparente concordância ao menos entre

pessoas de nossa própria idade e civilização”.[p.215]

“HUME’S PHILOSOPHY” [ A FILOSOFIA DE HUME]

A filosofia do escocês D. Hume somente se tornará relevante para M. , ao se transferir para Edinburgh, cidade

natal do filósofo cético, resultando no ensaio “A filosofia de Hume” , de 1909, em que , pela primeira vez, M.

dedica maior atenção aos argumentos céticos. Embora afirme que na vida ordinária não podemos dispensar

nossa crença na existência do mundo exterior nem desfazer de nossa crença de que conhecemos sua existência,

M. agora reconhece que a crença na existência de uma realidade externa não é uma prova da verdade dessa

crença e que , por isso, há um valor real nas investigações de Hume.

Todavia, uma resposta inicial ao argumento cético de Hume , que vai caracterizar a posição madura de M.,

frente ao problema do ceticismo, somente vai ser formulada cerca de um ano depois, nas Conferências de

1910-11; como veremos , as ideias de “Hume’s Philosophy” serão elaboradas com detalhe, como iremos

indicar, nas Conferências I, V e VI

GIRO PARA O REALISMO DO SENSO COMUM : CONFERÊNCIAS DE 1910-11

As Conferências, proferidas no inverno de 1910-11, correspondem a dois cursos , de dez palestras cada um,

apresentados no Morley College, também denominadas “Conferências sobre Metafísica”[ Lectures on

Metaphysics] publicadas, todavia, 42 anos depois , em 1953, com o título “Some Main Problems in

Philosophy” [Alguns Problemas Principais em Filosofia].

As Conferências de 1910-11, publicadas com o título “ Problemas Fundamentais...”, constituem o marco da

filosofia de maturidade de M., em que rejeita o realismo puro da juventude , para defender uma nova

perspectiva , notadamente a do Senso Comum, mais precisamente, a perspectiva do realismo do Senso Comum,

da qual não irá se afastar nos anos posteriores, conduzindo , por um lado, ao afastamento do realismo puro ou

metafísico e, de outro, ao enfrentamento do ceticismo humiano, que irá culminar no célebre ensaio de 1939,

intitulado “Prova do Mundo Exterior” [Proof of External World].

Como veremos, esse caminho de amadurecimento do jovem Moore, em que se dá sua reconciliação com o

Senso Comum, é um acerto de contas, não apenas com o ceticismo, que impõe a todo filósofo um desafio

incontornável, mas também consigo mesmo e com as posições filosóficas que defendera até muito pouco

24
tempo atrás, a saber, o idealismo britânico e o realismo metafísico: como filósofos advogam teses filosóficas

tão radicais – ceticismo, idealismo e realismo metafísicos – que viravam de ponta-cabeça nossas convicções

pré-filosóficas mais essenciais à nossa vida ordinária? De que fonte derivavam seus supostos conhecimentos?

Como poderiam, recorrendo somente à pura reflexão, elaborar teorias tão certas que poderiam ser usadas para

refutar nossas convicções filosóficas mais básicas?

PROBLEMAS FUNDAMENTAIS DA FILOSOFIA [SOME MAIN PROBLEMS IN PHILOSOPHY ]

As Conferências de 1910-11 , somente foram publicadas 42 anos depois , em 1953, reunidas em um livro com

vinte capítulos, correspondentes às vinte Conferências , sob o título geral “Some Main Problems in

Philosophy” [Alguns Problemas Principais em Filosofia], que iremos empregar daqui em diante.

Essa obra ocupa um lugar central para o conhecimento da gênese e compreensão da filosofia de maturidade

de M. : as principais concepções e posições filosóficas defendidas posteriormente por M. estão anunciadas e

apresentadas em “Problemas Fundamentais”.

Assim, o primeiro capítulo “O que é filosofia?” tematiza a noção central na filosofia de M., a saber, o Senso

Comum, prefigurando o ensaio de 1925, “Uma Defesa do Senso Comum”; o segundo capítulo sobre “Sense-

Data” ocupa-se do problema da percepção, desenvolvido no ensaio de 1914 “The Status of Sense-Data”; os

caps. V e VI , dedicados a Hume, ocupa-se do ceticismo sobre o mundo externo, que será retomado no artigo

de 1918, “Some Judgements of Perception”.

PREFÁCIO, DE WISDOM

No Prefácio , escrito para “Problemas Fundamentais da Filosofia”, o filósofo inglês John Wisdom [1903-

1993] observa que, esta obra de M. consolida um hábito de pensamento que será um traço de seu pensamento[

, desenvolvido [carried further] por Wittgenstein , sobretudo nas Investigações], que conduziu a enormes

avanços na “análise filosófica”, a saber, “o estudo do significado de termos gerais pela consideração de casos

concretos”. Tais casos concretos têm prioridade epistêmica sobre as crenças filosóficas de caráter geral.

“O QUE É FILOSOFIA?”

Em seu livro Filosofia na Alemanha 1831 -1933 o historiador alemão Herbert Schnädelbach, afirma que o

“colapso do idealismo”, na última metade do sec. XIX, mergulhou a filosofia em “profunda crise de

identidade”. Essa crise já se manifesta, por exemplo , em Kuno Fischer, membro da primeira geração do

25
neokantismo, a geração de 1860, ao considerar a pergunta da filosofia sobre si mesma, no contexto de

declínio do Idealismo especulativo, como a questão de vida ou morte da filosofia, ou, em alemão, Lebensfrage

der Philosophie ,a questão vital da filosofia. Esta crise de identidade , segundo Schnädelbach , estende-se à

nossa atualidade, o que pode ser constatado pelo fato de que a interrogação sobre a filosofia e sua identidade,

a saber, “Filosofia, para onde ?” , tornou-se um tema constante nas palestras inaugurais de filosofia. Para

todos aqueles que procuram ser filósofos, depois de Hegel até à contemporaneidade, a “questão vital” tem

sido : “o que é a filosofia ?”

O Primeiro Capítulo do livro “Some Main Problems in Philosophy”[ que corresponde à Primeira

Conferência de 1910] insere-se nessa tradição , na medida em que é uma pergunta sobre a própria filosofia

, prefigurando o que mais tarde vai ser denominado “metafilosofia”, com o título “Que é filosofia?” . Esse

capítulo marca uma mudança relevante, em que M. abandona o realismo metafísico e o intuicionismo abstrato

da juventude, substituídos por um conceito central na sua filosofia de maturidade, a de “Senso Comum”: é no

horizonte do senso comum que M. vai enfrentar os problemas filosóficos de juventude sob perspectivas e

com respostas novas.

Em “O que é filosofia ?” ele pretende apresentar uma descrição geral do universo – uma cosmovisão –

apoiando-se no senso comum e suas crenças, mais exatamente, tal como define M., “coisas que todos nós

comumente assumimos como verdadeiras sobre o universo, e sobre as quais estamos seguros de que são

verdadeiras”. Pode-se dizer, talvez, que se trata de uma Metafísica do Senso Comum.

UMA DESCRIÇÃO DO UNIVERSO INTEIRO

Logo no início, no §3 , M. diz: “Para começar, parece-me que o mais importante e interessante que os filósofos

fazem é pelo menos isso: fornecer uma descrição geral do Universo [ com maiúscula, em acordo com M.]

inteiro, mencionando as mais importantes espécies de coisas [kind of things] que sabemos haver nele,

considerando ser pouco provável haver espécies importantes de coisas que não saibamos absolutamente existir

no Universo e também considerando as formas mais importantes como essas coisas se relacionam umas com

as outras. Denomino tudo isso ‘Dar uma descrição geral do Universo inteiro’ e , por conseguinte, direi que o

primeiro e mais importante problema da filosofia é: Dar uma descrição do universo inteiro” [Whole Universe].

26
UMA METAFÍSICA DO SENSO COMUM [COMMON SENSE/ SENTIDO COMUN, trad. espanhola]

Uma “descrição do universo inteiro”, que responda “sobre as coisas mais gerais e básicas que existem”

somente pode ser respondidas a partir de um background , a saber, uma suposição ou um tipo de interesse ou

um tipo de investigação.

A originalidade de Moore é propor o “Senso Comum”[com maiúsculas , conforme grafia de M ], como

horizonte em que essa questão metafísica, e portanto, a questão sobre a filosofia , poderá ser respondida ,

ainda que reconheça não ter o Senso Comum uma visão do “universo inteiro”, pois “nenhum de seus pontos

de vista ,conduz a isto”.

Todavia, acrescenta M., o senso comum tem visões muito definitivas , que se relacionam com os problemas

fundamentais da filosofia e de sua descrição do universo em totalidade, a saber, sobre as mais importantes

espécies de coisas e os modos pelos quais essas coisas se relacionam umas com as outras.

UNIVERSO NO HORIZONTE DO SENSO COMUM

: “Há [...]certos pontos de vista sobre a natureza do universo que são sustentados , nos dias atuais, por quase

todos. São sustentados de forma tão universal que poderiam [...] ser chamados com justiça Senso Comum [...]

Gostaria [...] de começar descrevendo [...]os mais importantes pontos de vista do Sentido Comum: coisas sobre

o universo que todos comumente assumimos como verdadeiras e cuja verdade estamos seguros de conhecer”.

Moore indica que nossas convicções mais óbvias e universais constituem nosso ponto de partida em filosofia,

que expomos sinteticamente :

COISAS MATERIAIS : todos nós acreditamos [believe] na existência de coisas materiais de diferentes tipos,

assim como sabemos que as coisas materiais são capazes de existir sem ser percebidas , sempre localizadas

em algum lugar no no espaço , situadas numa certa distância uma das outras .

MENTES IMATERIAIS : Além de objetos materiais , acreditamos que existem no Universo seres humanos,

como cada um de nós, que “além de corpos, também têm mentes”, ou seja, capazes de “certos atos mentais ou

atos de consciência”.

Em resumo, o “Senso Comum acredita que existem no Universo, ao menos, dois tipos distintos de coisas”, a

saber, “objetos materiais” e “atos mentais ou atos de Consciência [Consciousness]”.

27
ESPACIALIDADE /LUGAR: Acreditamos, continua M., que “todos os objetos materiais estão , em algum

momento dado, situado em algum lugar ou outro [somewhere or other], em alguma coisa que chamamos

espaço”.

DISTÂNCIA: Estar em algum lugar no espaço significa que cada corpo está, em um dado momento, em alguma

distância em relação a todos os demais corpos;

DIREÇÃO: Estar sempre a alguma distância de todos os demais “quer dizer [mean] também que cada um é

distante dos demais em alguma direção ou outra”.

RELAÇÕES MENTE-CORPO: o Senso Comum não apenas reconhece esses “dois tipos distintos de coisas”,

mas ainda acredita em “relações entre objetos materiais e atos de consciência ou atos mentais”. Mais

exatamente, acreditamos que “os atos de consciência estão de modo bastante definido ligados [attached], de

uma maneira particular, a alguns objetos materiais, e de modo bastante definido não ligados a outros”.

RELAÇÃO ESPACIAL MENTE-CORPO : Essas relações são inseparáveis da nossa espacialidade , e por isso M.

introduziu , primeiramente, a ordenação espacial do mundo que caracteriza o Senso Comum, para esclarecer

em que consiste essa ligação entre estados mentais e nossos corpos. Mais precisamente, esclarece M.,

acreditamos que “nossos atos de consciência estão ligados a nossos corpos, no sentido de que eles ocorrem

nos mesmos lugares em que estão nossos corpos”.

LUGAR DOS ATOS DE CONSCIÊNCIA: M. está bem consciente da originalidade dessa concepção , pois a maior

parte das filosofias “tem sustentado, ao contrário, que atos de consciência não ocorrem em lugar algum – eles

simplesmente estão em parte alguma [nowhere] – não no espaço” . Diferentemente disso , a partir do horizonte

de crença do Senso Comum, M. afirma: “acredito que meus atos de consciência têm lugar [ are taking place]

agora, nesta sala, em que meu corpo se encontra. Neste exato momento, estou ouvindo e vendo e pensando

aqui, nesta sala”.

Nossos atos de consciência estão ligados , cada um deles, a algum corpo , no sentido de que eles ocorrem em

algum lugar ou outro naquele corpo. Meus atos de consciência têm lugar [take place] em meu corpo; os seus

, em seu corpo; e nossas mentes vão conosco, aonde nossos corpos vão.

ATOS DE CONSCIÊNCIA E DEPENDÊNCIA CORPORAL: Acreditamos igualmente , diz Moore, que atos de

consciência estão ligados [attached] aos nossos corpos , na medida em que muitos atos mentais “são

28
dependentes de mudanças que têm lugar em nossos corpos”. Por exemplo , “somente vejo, se certas mudanças

ocorrem em meus olhos; somente escuto, se determinadas mudanças ocorrerem em meus ouvidos; somente

penso , talvez, se certas mudanças ocorrerem em meu cérebro”.

EXISTÊNCIA CONTÍNUA E INDEPENDENTE: Acreditamos que alguns objetos materiais, de que somos

conscientes, em certos períodos de tempo, podem e continuam a existir , mesmo quando não somos

conscientes deles ou não os percebemos sensivelmente, de modo que acreditamos que os objetos materiais são

“inteiramente independentes de nossas consciências sobre eles”.

TEMPORALIDADE: Todos os corpos materiais , assim como nossos atos de consciência “estão no tempo” [

are in time], mais precisamente, “ou estiveram no tempo, ou estão agora ou estarão no futuro; ou isto ou ainda

todos os três – estiveram no tempo no passado, e estão agora , e estarão no futuro”. E os objetos materiais e

nossos atos de consciência somente existem , na medida em que “existem no tempo”, mais exatamente,

“existem no tempo em que estou dizendo isso”.

SABEMOS :Por fim, “acreditamos [believe] que realmente sabemos [know] todas essas coisas mencionadas

anteriormente”. E esse saber é ampliado pelas ciências, cuja maior parte “pode ser definida como aquela que

nos dá um conhecimento detalhado dos objetos do nosso mundo, a saber, “dos objetos materiais” e dos “atos

de consciência dos homens sobre a terra”.

O ESPAÇO E O TEMPO : Todavia, dificilmente se pode “negar que existem no Universo pelo menos duas outra

coisas além dessas – coisas que não são nem objetos materiais nem atos de consciência – a saber , o Espaço

e o Tempo, que realmente são , a saber, são alguma coisa”, embora “seja óbvio que não são nem objetos

materiais nem atos consciência”. Moore diz acreditar que certamente existem vários outros tipos de coisas,

sendo tarefa da filosofia apontá-las e investigá-las.

LIMITES DO SENSO COMUM

Todavia, a concepção filosófica de senso comum , proposta por M., apresenta uma relatividade essencial no

sentido de que o senso comum muda historicamente , por exemplo, em relação às crenças astronômicas e

religiosas , de modo que , na percepção de M. , Senso Comum não pode ser compreendido como fonte a priori

de primeiros princípios e de verdades necessárias. . A autoridade epistêmica do senso comum decorre , ao

29
contrário, do fato de que nosso senso comum define nosso ponto de partida em relações teóricas e práticas

com o mundo .

Por isso, a “ autoridade” do senso comum pode ser claramente revisada, pois a tarefa da filosofia não é a

defesa incondicional do senso comum, de modo que em suas discussões dos paradoxos do infinito e de suas

implicações para espaço e tempo , M. admite que podemos ter de revisar algumas de nossas convicções de

senso comum.

E há outras limitações ao senso comum: embora tenhamos crenças de senso comum sobre que tipos de coisas

existem no mundo e sobre o que conhecemos sobre elas , podemos legitimamente acrescentar a essas

categorias, através de investigações científicas e reflexões filosóficas. Além disso, não temos crenças de senso

comum sobre o mundo como totalidade nem sobre os limites do conhecimento humano .

SENSO COMUM SOBRE DEUS E IMORTALIDADE

DEUS: M. acredita ser mais “adequado dizer que o Senso Comum não tem nenhuma perspectiva sobre a

questão se sabemos que existe ou não um Deus: que ele não nem afirma que sabemos isto, nem, entretanto,

que não sabemos; que portanto , o Senso Comum não tem nenhuma perspectiva sobre o Universo como um

todo”

VIDA FUTURA: muitos homens, esclarece M., acreditaram e acreditam que “existe uma vida futura” e que

“nossas mentes continuam realizando atos de consciência após a morte de nossos corpos, não ligados a

qualquer corpo vivo sobre a superfície da terra”. Mais uma vez, M. considera mais adequado que o Senso

Comum não tem nenhuma perspectiva sobre essa questão; ele não afirma nem que sabemos nem que não

sabemos de uma vida futura”.

PERSPECTIVAS QUE CONTRADIZEM O SENSO COMUM : CETICISMOS

Ao contrário das perspectivas anteriores que ampliam o Senso Comum sem contradizê-lo, M. refere-se

também às perspectivas contradizem o Senso Comum sem aumentá-lo, a saber, as perspectivas céticas. M.

distingue duas modalidades ou perspectivas céticas, ou ceticismos.

CETICISMO SOBRE A EXISTÊNCIA DE OBJETOS MATERIAIS: esse tipo de atitude cética “afirma

simplesmente que não sabemos absolutamente se existem objetos materiais no Universo. Embora admita a

possibilidade da existência, este tipo de cético afirma “que nenhum de nós sabe se existe algum”.

30
CETICISMO SOBRE OUTRAS MENTES: A segunda atitude cética é ainda mais radical que a anterior, pois “nega

também que podemos saber da existência de outras mentes ou atos de consciência além dos nossos próprios”.

O SENSO COMUM NÃO É AINDA UMA DESCRIÇÃO DO UNIVERSO INTEIRO

As verdades do Senso Comum não são ainda uma descrição do Universo inteiro, mas nos dão a base para fazer

essas descrição, mais precisamente, para empregar uma expressão de S. , uma “metafísica descritiva”,

mediante proposições gerais e universais como “Tudo no Universo ou é objeto material no espaço ou um ato

de consciência de algum homem ou animal sobre a terra”.Embora não seja possível uma descrição de tudo o

que possa existir no Universo, podemos fazer, ao menos, “uma descrição de tudo o que sabemos estar no

Universo”.

METAFÍSICA , EPISTEMOLOGIA E ÉTICA

“O que é filosofia?” apresenta a resposta de Moore sobre essa questão central na filosofia desse o final do

séc. XIX, revelando, como observa Scott Soames, “que a concepção deste ‘pai fundador’ da filosofia analítica

é completamente tradicional”, configurando-se essencialmente como a visão da filosofia como um tripé , tendo

por eixos a metafísica, a epistemologia e a ética.

METAFÍSICA: “O ramo filosofia” que se ocupa da tarefa de descrever o universo inteiro ou do mundo inteiro,

esclarecendo as espécies de coisas mais importantes que nele existem e a relações que mantêm entre si, é

denominado, segundo M., “metafísica” [nas terminologia de Strawson, “metafísica descritiva” ou “ontologia

descritiva”12.

Vamos expor sinteticamente o que M. nos falou nos tópicos anteriores, ou seja, o que acreditamos saber na

perspectiva do senso comum: entre as “mais importantes espécies de coisas que existem” estão primeiramente

os objetos materiais ou físicos e , a seguir, os atos ou estados de consciência; além deles, M. menciona o fato

que os objetos físicos existem no espaço e tempo, enquanto os estados de consciência têm apenas uma

12
“METAFÍSICA”, como outras expressões filosóficas , é difícil elucidação : primeiramente , é uma noção cujos significados transformam-se ao longo da história da filosofia; em segundo lugar,
diferentes autores de um mesmo período filosófico compreendem o termo diferentemente; além disso, seus significados são condicionados pelos horizontes metodológicos e interesses distintos entre os
pensadores que , por uma razão ou outra, ocupam-se da metafísica e de problemas a ela relacionados.Tradicionalmente, como observa Inwagen, a metafísica é compreendida como a “ciência” do “ser
enquanto ser” ou “das primeiras causas” ou “das coisas sem mudança”.O termo deriva-se do título comum dado aos catorze livros de Aristóteles , não por ele mesmo, que desconhecia esse termo,
empregando , em seu lugar, as expressões “filosofia primeira”, “ciênciaprimeira”, “sabedoria” e “teologia” . O nome “metafísica” parece ter sido criado pelo editor das obras aristotélicas, provavelmente
Andrônico de Rodes, no IaC, para denominar coletivamente aquelescatorze livro que se ocupavam da “filosofia primeira”; pelo fato de sucederem, aos livros intitulados Física, segundo a edição de A.
de R., os catorze livros, que se ocupavam da filosofia primeira,foram denominados pelo editor “Ta meta ta phusika” , ou seja, “depois da física”, daí Metafísica. Essa ordenação e denominação talvez
significassem, na visão de A. de R., que a Metafísica deveria serestudada depois da Física, ou seja, conhecer primeiramente a mudança no mundo físico, para depois se ocupar do imutável, no mundo
metafísico.Tradicionalmente, a partir de sua herança aristotélica, a metafísica é compreendida, como observa Inwagen, como a “ciência” do “ser enquanto ser” ou “das primeiras causas” ou “das coisas
semmudança”.No séc. XVIII, os racionalistas alemães, posteriores a Leibniz e por ele influenciados, comoChristianWolff e Alexander Baumgarten, passaram a empregar, além de metafísica, um termo
criado nosec. XVII, a saber, “ontologia”. A metafísica passou então a ser concebida como uma ciência mais ampla ou mais geral, compreendendo quatro ramos ou divisões, a saber: ontologia, como
ciência doser enquanto ser; psicologia racional, como ciência da alma substancial, pessoal, distinta do corpo e, por isso, simples , indivisível, incorruptível, e imortal; cosmologia racional , como ciência
do mundo em totalidade; e por fim, a teologia racional , ocupando-se com a essência e as provas da existência de Deus. É essa a divisão presente no texto “Metafísica”, de Baumgarten, que Kant irá
adotar como manual de seus cursos sobre metafísica, e que irá criticar na Dialética Transcendental, em sua Primeira Crítica , de 1781. Na contemporaneidade, metafísica e ontologia sofrem transformações
muito relevantes , em que as antigas questões sobre as primeiras causas ou seres imutáveis são criticamente abandonadas, dando a lugar a problemas imanentes à nossa experiência, como o problema da
mente e corpo, o mental e o físico [dualistas e monistas, espaço e tempo [McTaggart,Prior, Sullivan] ; modalidade [Kripke,Plantinga, o criticismo de Quine, Williamson, David Lewis], liberdade e
determinismo [D.Lewis, Stalnaker, Davidson, Armstrong, Van Inwagen], entre outros problemas.

31
existência temporal. Como observa Strawson, o alto grau de generalidade e abrangência da reflexão de M.

surpreende-nos desde logo, pois as classificações “objeto físico” e “ato ou estado de consciência” são de uma

generalidade extrema , tal como o fato de seus itens serem espaciais ou temporais, ou num dos casos , só

temporais. E entre as relações que mantêm entre si, destacam-se as relações entre mente e corpo.

Na visão de M., uma descrição geral do Universo inteiro [a saber, uma metafísica descritiva, nas palavras de

Strawson] é o primeiro e mais interessante problema da filosofia. Qualquer resposta a esse problema implica

dizer uma dessas três coisas: a) ou dizer que certas classes amplas são os únicos tipos de coisas no Universo,

ou seja, tudo pertence a uma ou outra delas; b) ou dizer que tudo no Universo é de um tipo; c) ou dizer que

tudo o que sabemos estar no Universo pertence no Universo pertence a alguma das várias classes ou somente

a algumas, além de explicitar suas relações.

Essa tarefa metafísico-descritiva da filosofia conduz a dois outros temas centrais: a epistemologia e a ética.

EPISTEMOLOGIA: Nas páginas restantes de “O que é filosofia?”, M. observa que existem outras questões que

possuem uma óbvia relação com as questões metafísicas ou ontológicas, por ele consideradas as mais

importantes. Por ser uma metafísica, a filosofia é também epistemologia ou uma filosofia do conhecimento,

tendo por questão central: “como conhecemos alguma coisa?”

Na medida em que a epistemologia se ocupa com questões acerca da natureza e fundamento do conhecimento,

tendo por tarefa desenvolver uma análise que determine as condições necessárias e suficientes para o

conhecimento do mundo.

ÉTICA: Enquanto metafísica, a filosofia não remete apenas à epistemologia, como indicamos acima, mas

também à ética, que se ocupe em elucidar o que é correto ou não na ação, o que é o bem e o mal , inclusive o

valor do universo em sua totalidade. As questões tradicionais da filosofia permanecem vivas nessa primeira

fase da filosofia analítica, embora tratados de novas maneiras.

RETORNO A CAMBRIDGE: 1911-1940

Em 1911, Moore é convidado para retornar a Cambridge, como “Lecturer em Moral Sciences”, a saber, um

professor e conferencista , sem ser propriamente membro efetivo da Universidade [ semelhante a um Privat-

Dozent]; nas palavras de M., o convite foi imediatamente aceito, não obstante o fato de que receberia um

salário pequeno, a ser complementado por taxas [fees] pagas por cada aluno que desejasse assistir às suas

32
“Lectures”, de modo que , considerando “pequeno número de alunos interessados em Ciência Moral”, os

honorários totais eram insuficientes, tendo, por isso, de ser complementados com seus recursos privados .

WITTGENSTEIN

“ Em 1912”, diz M., “conheci Wittgenstein”. Depois de se encontrar com Frege, em Jena, W. foi aconselhado,

pelo autor da Conceitografia, a se dirigir a Cambridge, para ser aluno de Russell e dedicar-se à filosofia.

“Durante o primeiro ano em que estava em Cambridge”, relata Moore, “ W. assistiu às minhas conferências

sobre Psicologia; mas somente nos dois anos seguintes que o conheci melhor”. Em 1914, Moore visitou W.

que, nesse momento encontrava-se , de férias, em Skjolden, na Noruega, e durante suas conversas, M. tomou

notas sobre observações do futuro autor do Tractatus Logico-Philosophicus [cujo título latino foi sugerido

por Moore] , a respeito da lógica, publicadas postumamente com o título “Logik”. E os dois filósofos somente

iriam se reencontrar pessoalmente , em 29, ano do retorno de W. a Cambridge. Moore irá assistir às célebres

Conferências de W., sobretudo entre 1930-1932, e tomar notas sobre elas , publicadas posteriormente.

Entre todos os filósofos, diz M., Wittgenstein e Russell são aqueles cujos trabalhos merecem ser estudados

“o mais cuidadosamente”, e “eu , por diversas vezes, ensinei, de modo detalhado, temas específicos sobre

eles”

É Wittgenstein que, em 1939, irá assumir, em C., o lugar de M. quando este se aposentar. “Estou feliz, diz

M., de saber que ele é o meu sucessor na Cátedra em Cambridge”

CASAMENTO E FILHOS

Ao final de 1916, M. casou-se com Miss D. M. Ely, uma jovem que acompanha suas palestras desde 1915,

com quem teve dois filhos, Nicholas, futuro poeta, e Timothy, que ingressou no mesmo curso de graduação

do pai, “Ciência Moral”.

MIND

Mind foi fundada em 1876, pelo filósofo escocês Alexander Bain, e dirigida por seu antigo aluno George

Robertson, com o objetivo de ser uma revista trimestral de psicologia e filosofia . Robertson foi sucedido por

George Stout, em 1891, dando início à “Nova Série” , marcando um novo período da revista; em 1920, Stout

afastou-se da direção da revista Mind, que conduzira desde 1892, e será M. quem irá ocupar seu lugar,

dirigindo a revista até 1941, quando será substituído pelo filósofo oxoniano Gilbert Ryle. Nela foram

33
publicados , por exemplo, ensaios de Darwin [A Biographical Sketch of an Infant, 1877], James [What is an

Emotion?, 1884], Moore [Refutation of Idealism, 1903] , Russell [On Denoting, 1905] , McTaggart [The

Unreality of Time, 1908]

FRANK RAMSEY

M. nos conta ter conhecido Ramsey por volta de 1920, quando o jovem filósofo participou de “ao menos um

curso de minhas conferências”. O autor de Principia Mathematica relata , modestamente que, tal como W.,

sentia ser R. muito mais inteligente do que ele [Moore], e confessa ter se sentido “muito nervoso ao falar

diante dele: tinha medo de que visse algum absurdo grosseiro em coisas que falava, das quais era inteiramente

inconsciente”.

Nos anos 20, ambos mantiveram muitas conversas; pouco antes de sua doença fatal, R. propôs a M. um

encontro semanal para discutir questões filosóficas juntos: “gostaria muito que aquelas discussões tivessem

sido realizadas!”, diz M.

M. prefaciou a coleção póstuma de ensaios de R., intitulada “The Foundations of Mathematics”, em que

tentou expressar , no Prefácio, seus sentimentos sobre o jovem e brilhante filósofo.

A DEFESA DO SENSO COMUM [THE DEFENCE OF COMMON SENSE, 1925]

Como vimos anteriormente, tanto a rejeição do idealismo britânico quanto do realismo puro ou metafísico

subsequente, característicos de sua filosofia de juventude, estão expressos no giro para o realismo do Senso

Comum, segundo a qual nossa visão ordinária de senso comum é amplamente correta, configurando o aspecto

unificador da filosofia de maturidade de Moore.

Moore defendeu essa posição realista de senso comum, como mostramos em tópicos prévios, de modo claro,

primeiramente em 1910-11, nos “Problemas Fundamentais da Filosofia”: no capítulo introdutório, “O que

é filosofia?”, M. apresenta o senso comum como horizonte do pensamento filosófico: “Sou um desses

filósofos, diz M., que sustentaram que a visão do mundo do Senso Comum é, em seus aspectos fundamentais,

totalmente verdadeira”.

Em 1925 , quando se torna-se “Professor of Philosophy” em Cambridge , [sucedendo ao seu antigo mestre

James Ward], M. retorna à defesa apaixonada senso comum, para responder ao convite, que lhe foi proposto

nessa época, para descrever sua posição filosófica, escrevendo o ensaio muito conhecido, publicado nesse

34
mesmo ano, com o título “ Uma Defesa do Senso Comum” [ A Defence of Common Sense]. Na medida em

que “Problemas Fundamentais da Filosofia” não fora ainda publicado, “Uma Defesa...” é o primeiro escrito

em que M. se ocupa tematicamente do senso comum como traço distintivo de sua filosofia.

35
UNIDADE V. 2 – MOORE : DA DEFESA DO SENSO COMUM À PROVA DO MUNDO EXTERIOR
“Se devesse dar um nome [...] a minha posição filosófica [..], penso que se deveria expressá-la dizendo que sou um desses filósofos que sustentaram que a ‘visão
do mundo do Senso Comum’ é , em certas características fundamentais , totalmente verdadeiras [wholly true]”[M. , “Uma Defesa do Senso Comum”]

Como vimos anteriormente, tanto a rejeição do idealismo britânico quanto do realismo puro ou metafísico

subsequentes, característicos de sua filosofia de juventude, estão expressos no giro para o realismo do Senso

Comum, segundo a qual nossa visão ordinária de senso comum é amplamente correta, configurando o aspecto

unificador da filosofia de maturidade de Moore.

Moore defendeu essa posição realista de senso comum, como mostramos em tópicos prévios, de modo claro,

primeiramente em 1910-11, nos “Problemas Fundamentais da Filosofia”: no capítulo introdutório, “O que

é filosofia?”, M. apresenta o senso comum como horizonte do pensamento filosófico: “Há [...]certos pontos

de vista sobre a natureza do universo que são sustentados , nos dias atuais, por quase todos. São sustentados

de forma tão universal que poderiam [...] ser chamados com justiça Senso Comum [...] Gostaria [...] de começar

descrevendo [...]os mais importantes pontos de vista do Sentido Comum: coisas sobre o universo que todos

comumente assumimos como verdadeiras e cuja verdade estamos seguros de conhecer”.

Em 1925 , quando se torna “Professor of Philosophy” em Cambridge , [sucedendo ao seu antigo mestre

James Ward], M. retorna à defesa apaixonada senso comum, para responder ao convite, que lhe foi proposto

nessa época, a saber, descrever sua posição filosófica. Essa descrição de sua própria filosofia resultou no

ensaio muito conhecido, publicado nesse mesmo ano, com o título “ Uma Defesa do Senso Comum” [ A

Defence of Common Sense], em uma coletânea, com outros filósofos britânicos contemporâneos, editada por

Muirhead, intitulada “British Contemporary Philosophy” [Filosofia Britânica Contemporânea]. O ensaio

foi reeditado bem mais tarde, junto a outros textos de M., em uma coletânea , intitulada “Philosophical

Papers” [ Escritos Filosóficos], publicada em 1959.

ESTRUTURA DE “UMA DEFESA DO SENSO COMUM”

No parágrafo introdutório, Moore nos informa sobre o objetivo de seu célebre ensaio: “ tentei simplesmente

enunciar um a um alguns dos mais importantes pontos em que minha posição filosófica difere das posições

que foram assumidas por alguns filósofos”. A originalidade de M. consistiu no desenvolvimento de seu escrito

segundo um rigoroso método de análise de proposições de senso comum que ocupam um lugar central na sua

posição filosófica.

36
SEÇÕES I – V

Para realizar esse objetivo, M. percorre cinco seções, numeradas de I a V, de extensões, todavia, desiguais.

SEÇÃO I enuncia uma “extensa lista de proposições”, aparentemente “truísmos óbvios” , cada uma dos

quais sei , com certeza, ser verdadeira, truísmos igualmente reconhecidos como verdadeiros por “muitíssimos

[não digo todos ] seres humanos”. O objetivo de M., nessa etapa, empregando proposições “concretas” e

facilmente compreensíveis, a saber, proposições de senso comum, consiste essencialmente em apresentar ,

de modo preciso e claro, sua posição realista e anticética de senso comum, assim como “a visão de mundo

do senso comum”;

SEÇÃO II articula-se com posição realista de senso comum , defendida na seção anterior, procurando

esclarecer um ponto em que sua posição filosófica difere da posição de alguns outros filósofos, a saber:

segundo M., “não há nenhuma boa razão para supor a) que todo fato físico é logicamente dependente de algum

ato mental ou b) que todo fato físico é causalmente dependente de algum fato mental”. Sinteticamente, o

objetivo dessa etapa é deixar claro o princípio realista da filosofia mooriana , assim como a correlação entre

realismo e senso comum.

SEÇÃO III reduz-se a algumas poucas linhas, expondo sinteticamente a concepção mooriana sobre a relação

entre senso comum, Deus, alma e vida futura após a morte. Trata-se , efetivamente, de uma apresentação muito

resumida de sua reflexão sobre esse mesmo tema , desenvolvida com detalhamento, como vimos

anteriormente, em “O que é Filosofia?”, capítulo inicial de “Alguns Problemas Fundamentais da Filosofia”.

M. enfatiza diferir “daqueles que sustentaram que todas as coisas materiais foram criada por Deus” e que “

há uma boa razão para supor que existe um Deus”; além disso, M. defende não haver nenhuma boa razão

“para supor que nós , seres humanos, continuaremos a existir e a estar conscientes após a morte de nossos

corpos”.

Essa etapa ressalta a metafísica de senso comum em M., enquanto radicalmente imanente, e não

transcendente, desdobrando-se nos limites do espaço e tempo , voltando-se para as condições de nossa

experiência comum , em que os conceitos de Deus e Alma não ocupam lugar como condição explicativa

relevante.

37
SEÇÃO IV é metodologicamente crucial no ensaio de M., tendo exercido grande influência sobre a trajetória

do pensamento analítico contemporâneo, em particular na chamada “Escola de análise de Cambridge”.

Enquanto nas etapas anteriores , M. se preocupa em defender sua posição realista, assim como a verdade de

proposições do senso comum , como a existência de coisas materiais independentes, nesta penúltima etapa,

diferentemente, o objetivo de M. é analisar ou submeter à rigorosa análise as proposições do senso comum,

em busca de suas condições últimas de possibilidade, de modo análogo ao empreendimento de Kant, em sua

trilogia crítica, que se volta para os nossos juízos em geral, a fim de determinar suas condições de possibilidade

últimas. Todavia, M. reconhece , que se podem fazer diferentes análises destas proposições , sem que se possa

decidir qual delas é correta, contribuindo para a atmosfera “cética” desta etapa. Essa etapa, que expõe a

importante filosofia da percepção de M., nesse momente, é apresentada , com detalhamento , na última

unidade desse texto-aula, confrontando com a sua posição de juventude frente à percepção, assim como uma

nova concepção de percepção , influenciada por Mill.

SEÇÃO V corresponde à conclusão do ensaio; embora muito sintética, ela é surpreendente: por um lado, M.

afirma não ser de modo algum cético em relação à verdade das proposições de senso comum, como as que

afirmam a existência de um mundo exterior; por outro lado, reconhece conclusivamente, a partir da seção IV,

que há diferentes análises possíveis de tais proposições, e que é muito cético sobre qual delas é correta : “sou

muito cético, diz ele, com relação , em certos aspectos, a qual análise de tais proposições é correta”. A essa

impactante afirmação , M. acrescenta : “Da verdade dessas proposições parece-me não haver nenhuma dúvida

, mas com relação a qual análise delas é a correta, parece-me haver a mais grave dúvida”. Esta conclusão

cética , assim como a seção IV , serão objetos, em nosso próximo texto-aula, de um tratamento um pouco mais

detalhado.

IN PROPRIA PERSONA: PROPOSIÇÕES QUE EU SEI , COM CERTEZA, VERDADEIRAS

M. inicia o ensaio enunciando, “in propria persona”, ou seja, na primeira pessoa eu, “um conjunto de

proposições, cada uma das quais [em minha opinião] eu sei , com certeza, verdadeira” [I know with certainty

to be true]. Por outras palavras, trata-se de proposições que M. não apenas sabe verdadeiras, mas sabe ser

verdadeiras de um certo modo, qual seja, com certeza. Em tais proposições articulam-se : o discurso em

38
primeira pessoa eu, isto é , o sujeito do proferimento, saber, verdade e certeza. Esse ponto de partida suscita

comparações do pensamento mooriano como dois filósofos da tradição : Kant e Descartes.

MOORE E KANT

Como sabemos, a Crítica da Razão Pura tem como ponto de partida a famosa classificação de juízos ou

proposições, apresentadas por Kant na Introdução, delimitando o campo da filosofia crítica, a saber, investigar

as condições transcendentais de possibilidade de nossos juízos, notadamente os juízos científicos e

metafísicos. Tal ponto de partida revela que o empreendimento crítico não é – em nossa denominação – uma

filosofia de primeira ordem , que se ocupa diretamente dos objetos de nosso mundo e do mundo transcendente,

e sim uma filosofia de segunda ordem, a saber, uma filosofia que se ocupa de investigar os juízos científicos

que a ciência faz sobre os objetos e fatos do mundo, assim como os juízos metafísicos que os filósofos fazem

sobre Deus, Alma e Mundo em sua totalidade.

A filosofia de M. assemelha-se , em alguns traços, à de Kant, [ sem ignorar, ao mesmo tempo, as muitas

diferenças entre os dois pensadores] na medida em que o pensamento mooriano se desdobra como uma análise

de proposições e dos juízos; no entanto , há uma distinção relevante: enquanto Kant parte de juízos científicos

da matemática e ciência da natureza [que o filósofo alemão denomina “juízos de experiência”], Moore parte

de juízos ou proposições do senso comum , ou truísmos do senso comum, desenvolvendo assim, uma filosofia

de segunda ordem, a saber, uma filosofia sobre as proposições do senso comum sobre o mundo, que a nosso

ver, terá grande influência na tradição analítica posterior, pois essa se desenvolve, metodologicamente, muitas

vezes , como uma análise de proposições sobre o mundo. É a partir do método de análise de proposições, a

saber, as proposições do senso comum, que M. vai encontrar a condição metodológica, para ir além das

palavras, defendo a existência de coisas materiais em um mundo exterior, e para desenvolver uma metafísica

sobre esses temas.

M. observa , na seção IV, surpreender-se com o fato de que muitos filósofos “que dizem muito com relação

ao que são as coisas materiais”, e portanto, fazem uma metafísica do mundo, não se preocuparem com uma

análise de seus juízos, “quando conhecem ou julgam coisas tais como ‘isto é uma mão’ , ‘aquilo é o Sol’, ‘isto

é um cachorro’. Ao contrário deles, M. pretende fazer uma metafísica do mundo a partir de uma análise de

nossas proposições e juízos mais básicos, cotidianos e comuns sobre o mundo .

39
MOORE E DESCARTES

Inevitável , aqui , uma referência a Descartes, em que a noção de certeza é igualmente central. E ainda ao

“estilo” mooriano, nas passagens a seguir, num discurso em primeira pessoa, semelhante ao cartesiano no

Discurso e nas Meditações.

Em Descartes, todavia, a certeza não é o ponto de partida , e sim o ponto de chegada, pois o filósofo francês,

como sabemos parte da dúvida cética, usada metodicamente, para atingir a certeza. Nas Meditações , por

exemplo, o discurso em primeira pessoa expressa dúvidas, Em M., como estamos vendo, a dúvida cética não

tem lugar nem mesmo como instrumento metodológico, de modo que sua filosofia já se inicia com a certeza,

a saber, a certeza , segundo sua opinião, da verdade de algumas proposições.

TRUÍSMOS DO SENSO COMUM

M. refere-se a essas proposições de senso comum como truísmos” [ing. Truism: true + ism, aprox. 1708,

mencionado, talvez primeiramente, por Jonathan Swift , escritor dos sécs. XVII/XVIII,], qual seja,

proposições cuja verdade se sabe com certeza.

Escrevendo “in propria persona”, ou seja, na primeira pessoa eu , M. apresenta uma “lista de truísmos” ,:

“cada um dos quais , em minha opinião, sei , com certeza , ser verdadeiro”; vamos apresentá-los,

sinteticamente , nas observações seguintes, tentando ressaltar as implicações filosóficas dessas visão,

compartilhada por tantos, do mundo.

Em nossa leitura, a relevância dessas proposições certas , que serão enunciadas a seguir, reside no fato de

que , embora possam “parecer, à primeira vista , truísmos tão óbvios, que não valem a pena enunciar”, são, na

verdade, a enunciação das condições fundamentais da nossa humana experiência , cotidiana e ordinária, a

saber, as condições que nos possibilitam ter um mundo humano, nos relacionando com seus objetos , com os

outros sujeitos e conosco mesmos.

Tais proposições, enunciadas por M., longe de rasas e superficiais, têm uma profundidade de significação,

que não se nos revela inteira e imediatamente na primeira interpretação, configurando um complexo sistema

de condições, apoiando-se mútua e reciprocamente, que possibilitam nossas relações práticas e teóricas,

individuais e sociais, subjetivas e intersubjetivas, das mais comuns às mais sofisticadas, configurando nossa

experiência e nosso mundo.

40
As certezas ou verdades, inicialmente apresentadas por M., dizem respeito ao que existe e à existência, ou

seja, trata-se de proposições existenciais , asserindo a existência de seres no mundo exterior, e portanto de

um mundo externo; tais proposições certas são apresentadas enquanto tais [ou seja, como certezas], sem

nenhuma fundamentação ou justificação argumentativa, a saber:

a) A primeira proposição verdadeira que eu sei com certeza ser verdadeira é que “existe presentemente um

corpo humano vivo, que é meu corpo”. A primeira certeza, portanto, é uma proposição existencial, i) que põe

a existência de um objeto; esse objeto não é mental , mas corpóreo; ii) além disso, sabe ser um corpo vivo, e

, humano; iii) por fim , ao afirmar a existência de um corpo humano vivo, afirma também existir um mundo

exterior.

Inevitável, mais uma vez, a comparação com Descartes, para quem a primeira certeza não se refere ao corpo

, e sim ao eu pensante. Para Moore, diferentemente, a primeira certeza é a existência do seu “corpo humano”,

mais precisamente, seu “corpo humano vivo”. Enquanto a primeira certeza de D. é a de seu pensamento, a de

Moore é de sua corporeidade; enquanto a primeira certeza cartesiana é o “eu pensante”, a de Moore, é o “eu

corpóreo vivo”; a primeira certeza de Descartes é o sujeito enquanto pensamento, em M. é o sujeito enquanto

ser empírico , encorpado e vivo. Isso tudo revela o lugar privilegiado , na filosofia mooriana, do sujeito

empírico e de sua corporeidade viva e biológica”

b) A segunda certeza de M. refere-se à espacialidade e temporalidade inerentes ao seu corpo vivo e próprio:

“tenho um corpo humano que nasceu em um certo tempo no passado, que existiu continuamente, em ou

próximo à superfície da terra, desde o nascimento, que sofreu mudanças, tendo iniciado pequeno e tornando-

se maior ao longo do tempo”;

c) O terceiro truísmo diz respeito à existência de “muitas outras coisas”, todas elas corpos materiais e portanto

espaciais, a saber, com forma, tamanho e tridimensionalidade;

d) Tais corpos materiais situam-se no espaço, em distâncias diferentes uns dos outros, em diferentes tempos,

de modo que podemos localizá-los identificá-los espacial e temporalmente, e somente assim , apoiando-nos

em sua situação espaçotemporal , podemos identificá-los, reidentificá-los e distingui-los;

e) Entre aquelas coisas materiais com as quais o meu corpo coexiste , estão outros corpos humanos vivos;

tais como o meu corpo humano vivo, esses outros corpos humanos também nasceram no passado, existiram

41
em ou próximos à superfície da Terra, cresceram ao longo do tempo, e estiveram em contato com outras coisas

ou afastados delas em diversas distâncias; tal como meu corpo, os outros corpos humanos são, portanto,

espacotemporalmente localizáveis e identificáveis;

f) A terra [minúsculo, segundo M.] existiu muitos anos antes de meu corpo ter nascido; e por muitos daqueles

anos um grande número de corpos humanos viveram sobre ela [ a terra] , e muitos deles morreram e deixaram

de existir antes do meu nascimento. Moore enfatiza aqui nossa consciência histórica comum , ou seja, da

história do planeta e da humanidade na terra.

g) Sou um ser humano com muitas experiências de diferentes tipos – por exemplo, percebi e percebo meu

corpo próprio e outras coisas em meu ambiente, incluindo outros humanos. Esse truísmo aparentemente

“óbvio”, enunciado por M., é muito relevante, por revelar o lugar primário e fundamental, em nossa relação

com o mundo, ocupado pela autopercepção do corpo próprio e percepção de outros corpos, inclusive os

humanos. Tal como em Kant, em M. a percepção ocupa um lugar central , enquanto condição primeira de

nosso saber sobre o mundo, justificando a preocupação permanente de M., ao longo de sua trajetória, em

elaborar e melhorar sua filosofia da percepção e da nossa sensibilidade;

h) A percepção é a condição da cognição conceitual e proposicional sobre si mesmo e o mundo ao redor;

todavia, não apenas proposições , mas proposições factuais, ou seja , verdadeiras , objetivas e que são o caso,

sobre o que se observa e o que não se observa, sobre o presente e o passado, assim como expectativas sobre

o futuro; imaginações e crenças , algumas verdadeiras, outras falsas.

Como nos M. , em primeira pessoa, observei fatos sobre as coisas que estava percebendo, tais como o fato

de que uma coisa estava mais próxima de seu corpo em certo momento do que outra ; estava frequentemente

consciente de outros fatos que não estava observando no momento, incluindo fatos sobre o seu passado;

expectativas sobre seu futuro; tinha muitas crenças , algumas verdadeiras e outras falsas; tinha imaginado

muitas coisas nas quais não acreditava, tinha sonhos e sentimentos de tipos diversos;

i) tal como o seu [M.] corpo tinha sido o corpo de uma pessoa [ele mesmo] que teve os tipos de experiências

descritos em “d”, também muitos corpos humanos , diferentes do seu , foram corpos de outras pessoas que

tiveram experiências do mesmo tipo.

SEI QUE OS OUTROS SABEM O QUE EU SEI E RECIPROCAMENTE

42
Nas proposições anteriores, M. expressou o que ele sabe com certeza ser verdadeiro sobre si e sobre os outros;

M. acrescenta agora que “se eu sei que todas essas proposições são verdadeiras”, então sei que “outros seres

humanos também sabem proposições correspondentes”. Por outras palavras, “também sei que este truísmo é

, com certeza, verdadeiro”, qual seja : “cada um de nós frequentemente soube [...] tudo o que eu afirmava

saber de mim próprio ou do meu corpo e do tempo em que escrevi aquela proposição”.

Sinteticamente, M. sabe que esses truísmos são também reconhecidos , por cada um de nós, em relação a nós

mesmos e aos nossos corpos, como verdadeiros [ ou seja, cada um de nós sabe, por exemplo, que tem um

corpo humano, que nasceu em um certo tempo no passado, que sofreu mudanças e cresceu].

E da mesma forma que M. sabe que cada um de nós compartilha dessas proposições certas e verdadeiros, cada

um de nós sabe que todos os demais seres humanos compartilham esses mesmos truísmos conosco.

DO SI AO OUTRO, DO EU AO NÓS, DO SUBJETIVO AO INTERSUBJETIVO : MUITO ALÉM DO

SOLIPSISMO

O que foi dito acima é, em nossa interpretação, uma faceta relevante da filosofia mooriana, por que expressa

o movimento que vai do si ao outro, do eu ao nós , do subjetivo ao intersubjetivo , no qual M. dialeticamente

suprassume a valorização do eu e do Ego em Descartes, ou seja, conserva essa valorização cartesiana da

individualidade , mas vai além, em direção aos outros sujeitos , às outras pessoas , para desembocar na

intersubjetividade e interpessoalidade, de modo que sua filosofia se enraíza plenamente na nossa

modernidade séc. XIX, que tem por seu traços centrais a descoberta e a valorização não somente da

subjetividade , mas também – como nos mostra o Idealismo Alemão pós-kantiano – a intersubjetividade.

SENSO COMUM [COMMON SENSE/esp. SENTIDO COMÚN ]

Ao apresentar os truísmos aparentemente óbvios, as proposições que cada um de nós e todos nós sabemos

com certeza ser verdadeiras, o objetivo de M. é apresentar , de modo detalhado, em seu ensaio de 1925, sua

concepção de senso comum, cujos pilares podemos expor sinteticamente: a) ele reconhece tais truísmos

como “certos”; b) outras pessoas igualmente reconhecem como certas a verdade de truísmos semelhantes a

respeito delas mesmas; c) ele sabe essa segunda verdade geral sobre os outros e reciprocamente.

43
“Se devesse dar um nome [...] a minha posição filosófica [..], penso que se deveria expressá-la dizendo que

sou um desses filósofos que sustentaram que a ‘visão do mundo do Senso Comum’ é , em certas características

fundamentais , totalmente verdadeiras [wholly true]”.

Em nossa interpretação , o senso comum configura um sistema de proposições que sabemos com certeza

verdadeiras , anunciando o que Wittgenstein irá afirmar mais tarde, nas Investigaçoes sobre a linguagem, a

saber, “das Gerüst”, isto é , uma armação ou uma estrutura fundamentais e básicas de nossa vida social e

intersubjetiva, que nos permite relacionar uns com outros, com nós mesmos e com o mundo ao redor.

“VISÃO DO MUNDO DO SENSO COMUM” [COMMON SENSE VIEW OF THE WORLD]

Em nossa interpretação, a relevância de tais truísmos “moorianos” consiste em indicar uma metafísica ou

ontologia implícitas do nosso mundo cotidiano, a saber, uma metafísica ou ontologia da imanência,

desdobrando-se nos limites da nossa experiência e, portanto, espaçotemporalmente delimitada, em que não há

referência ao mundo além dos limites imperiosos e estritos do espaço e do tempo, ou seja, a Deus ou à vida

futura após a morte.

Nessa ontologia do senso comum , o mundo constitui-se basicamente de entes corpóreos, tridimensionais e

temporais, e de eventos e acontecimentos por eles protagonizados e nos quais estão envolvidos. As relações

entre esses seres corpóreos espaçotemporais e seus acontecimentos é essencialmente espacial , [ a saber,

proximidade e distância , perto e longe, direção e sentido, em cima e embaixo, à direita e à esquerda] e

temporal [antes, durante, e depois; presente, passado e futuro]. Grosso modo, o mundo da vida cotidiana

constitui-se da totalidade de seres corpóreos e seus acontecimentos, ordenados espaciotemporalmente, em que

cada ente e cada evento sempre ocupa um lugar no espaço e uma posição no tempo, e somente pode ser

identificado, reidentificado e distinguido de outros seres num quadro de coordenadas espaçotemporais. Entre

os seres corporais básicos, distinguem-se aqueles que são corpos vivos, portadores de estados mentais,

consciência e intencionalidade, com destaque para os seres humanos ou pessoas, e aqueles que são corpos

materiais, mas que não são portadores nem capazes de estados mentais.

E , além dos truísmos expostos acima, que M. assere conhecer, ele também assegura conhecer a seguinte

proposição sobre outros seres humanos, a saber, que muitos seres humanos conheceram proposições sobre

44
eles mesmos e seus corpos correspondentes às proposições verdadeiras anteriores, as mesmas que M. assegura

conhecer sobre ele mesmo e seu corpo.

Tais proposições constituem o coração da cosmovisão ou visão de mundo do senso comum, que constituem o

ponto de partida de nossa coexistência cotidiana, quanto da filosofia do senso comum defendida por M.

Desses truísmos elencados acima, M. excluiu , por exemplo, proposições sobre Deus, a origem do Universo,

a forma da Terra, os limites do conhecimento humano, a diferença entre os sexos, assim como a bondade ou

maldade inerentes aos seres humanos, independentemente da crença que outras pessoas possam ter nelas.

Apesar de não justificar nem apresentar critérios precisos pelos quais proposições são incluídas ou excluídas

dos truísmos do senso comum, na concepção de M. negar tais truísmo implica em autocontradizer-se e cair

em absurdos.

LIMITAÇÕES DO SENSO COMUM

É preciso observar, tal como Soames, que o texto de M. deixa claro , com seus exemplos, que as convicções

de sentido comum não são verdades necessárias nem a priori, e a negação delas não implica autocontradições,

podendo mudar com o tempo, não sendo infalíveis, de modo que o senso comum pode estar equivocado acerca

do que considera que sabemos e acerca da natureza das coisas que sabemos, como nos mostra nosso crescente

conhecimento sobre a Terra e seu lugar no universo, assim como estamos conscientes de que muitas

convicções de senso comum de nossos antepassados não são verdadeiras. Por outras palavras, as proposições

do sentido comum não são verdades necessárias e a priori, e , por vezes, mostrem-se falsas, elas constituem o

ponto de partida da filosofia de Moore.

A partir disso, M. reconhece igualmente a crítica de alguns filósofos em relação a tais truísmos e , portanto,

em relação ao senso comum, configurando o cenário em que sua defesa do senso comum vai ser desenvolvida,

demonstrando que tais críticas [ao senso comum] são incoerentes e carentes de justificação. Grosso modo,

indica M., negar tais truísmos implica em autocontradição ou absurdo, visto que aqueles que as negam são

também seres humanos, que vivem na Terra, têm experiências e crenças.

Segundo M., se se devesse dar um nome à sua posição filosófica, “penso que se deveria expressá-lo dizendo

que sou um daqueles filósofos que sustentaram que a ‘visão de mundo do Senso Comum’ [Common Sense

view of the world] é , em certos aspectos [features] fundamentais, inteiramente [wholly] verdadeira. Mas

45
deve-se lembrar que , segundo minha posição [according to me] , todos [all] os filósofos , sem exceção,

concordaram comigo ao sustentar isto [holding this][ isto é, todos acreditaram ser isso verdadeiro]; e que a

diferença real, que é comumente expressa deste modo, é somente uma diferença entre aqueles filósofos , que

também sustentaram visões inconsistentes [held view inconsistente] com aqueles aspectos na “visão do mundo

do Senso Comum” e aqueles que não [sustentaram tais perspectivas inconsistentes]”.

SENSO COMUM FRENTE AO CETICISMO

A filosofia do Senso Comum não apenas contrapõe sua visão de mundo ao ceticismo, mas visa refutar a

posição cética, revelando a inconsistência e incoerência internas dessa posição filosófica: a) de um lado,

filósofos , entre eles os céticos, vivem vidas como quaisquer outros, apoiando-se nas verdades ou truísmos

do senso comum, para criticar apaixonadamente não apenas o conhecimento do senso comum, mas a

possibilidade mesma do conhecimento enquanto tal ; b) por outro lado, para defender sua posição

rigorosamente cética, eles pressupõem exatamente aquilo que suas doutrinas céticas negam. Moore pretende

assim , através de sua filosofia anticética, impor ao ceticismo algo como uma “reductio ad absurdum”.

Todavia, na última parte do texto, M. argumenta que sua defesa do senso comum deixa sem resposta o

problema de como esses truísmos e proposições que constituem o senso comum devem ser analisados.

PROVA DO MUNDO EXTERIOR [PROOF OF AN EXTERNAL WORLD]

Em 1939, com 65 anos, M. aposentou-se como professor em Cambridge, mas não se aposentou de suas

conferências e publicações : neste mesmo ano, M. foi convidado para proferir, em 22/11, a “Annual

Philosophical Lecture” na British Academy , publicado como um ensaio , no mesmo ano, [com o título Proof

of an External World , em Proceedings of British Academy, v. 25, 1939, pp. 273-300] . Segundo relato de E.

Anscombe e von Wright, o ensaio teria sido considerado, por Wittgenstein, como o melhor ensaio já escrito

por Moore, que teria, modestamente, concordado com essa avaliação.

O escrito foi republicado , postumamente , com outros ensaios de M. , na coletânea “Philosophical Papers”,

de 1959, sendo considerado , por alguns comentadores, como Thomas Baldwin, como seu escrito mais

conhecido, sendo objeto de muitas leituras e interpretações divergentes e conflitantes.

LEITURAS E INTERPRETAÇÕES

46
O ensaio de M. tem sido alvo de leituras distintas e controversas , opostas e conflitantes, desde o seu

proferimento , na British Academy, até a nossa atualidade, situando-se no coração de amplo debate em

epistemologia, sobretudo a partir de 1985, com a publicação do influente artigo de Crispin Wright, “Facts and

Certainty”, que desencadeou intenso conflito de interpretações , com a participação de estudiosos como Jim

Pryor, Annalisa Coliva, Scott Soames e Thomas Baldwin, entre muitos outros.

KANT E O “ESCÂNDALO DA FILOSOFIA”

O ensaio inicia-se com a citação de uma célebre passagem de Kant , a saber, nota BXXXIX, do Segundo

Prefácio da Segunda Edição da Crítica , conhecida por Edição B, de 1787, em que Kant se refere ao ceticismo

como o “escândalo da filosofia” [Skandal der Philosophie ], com essas palavras:

“ Não deixa de ser um escândalo para a filosofia [ein Skandal der Philosophie ]e para o senso em comum em

geral que se admita apenas a título de crença a existência das coisas exteriores a nós [das quais afinal provém

toda a matéria para o conhecimento , mesmo para o sentido interno] e que se não possa contrapor uma

demonstração suficiente a quem se lembrar de a pôr em dúvida tenha de ser assumida somente com base na

fé , e que se ocorre a qualquer um duvidar disso, nós deveríamos ser incapazes de responder a ele com uma

prova satisfatória” [1787 /BXXXIX nota].[Segundo Heidegger, em Ser e Tempo, “ O ‘escândalo da filosofia’

não reside no fato de essa prova inexistir e sim no fato de sempre ainda se esperar e buscar tais provas

[Beweise]”. Curiosamente, parece-nos que a posição de M repercute, de alguma forma, a observação de

Heidegger, como tentaremos indicar a seguir.]

OBJETIVO DO ENSAIO

Na interpretação de Baldwin, em conformidade com o título da obra, M. teria se colocado a mesma tarefa que

Kant, anteriormente, havia formulado para si mesmo, a saber, providenciar uma prova da existência de

“objetos externos” e, por consequência , de “um mundo exterior”.

Como observa Coliva, o ponto de partida da argumentação mooriana é a constatação de que Kant não foi

capaz de fornecer uma demonstração satisfatória da existência de coisas fora de nós , lacuna que a prova de

M. pretende preencher.

A originalidade de M. – e talvez uma importante diferença em relação a Kant – é o fato de enfrentar o ceticismo

e elaborar sua “prova” a partir de uma análise de proposições sobre nossas percepções [ tal como no método

47
proposto originariamente em “Uma Defesa do Senso Comum”], mais precisamente, como veremos no texto,

tomando como ponto de partida a análise de determinadas proposições sobre suas mãos , que ele conhece

mediante a percepção[ aproximando-se mais uma vez, de Uma Defesa , que também desenvolve uma filosofia

da percepção pela análise de proposições perceptivas como “eu sei que isto é uma mão” , “observo minha

mão direita”, “estou vendo a superfície de minha mão direita” ]

Como veremos, grande parte do ensaio é dedicado à elucidação da noção de “objetos externos” [external

objects] e , sinteticamente, M. defende que “externas” são as coisas cujas existências independem de nossas

experiências. De modo que , segundo M., se ele for capaz de provar a existência de qualquer uma de tais coisas

“externas”, então terá provada a existência de um “mundo exterior”.

Na leitura de Soames, o objetivo do artigo não é proporcionar a prova que Kant parece ter pensado que a

filosofia deveria proporcionar, e sim ocupar-se do que M. considera o verdadeiro escândalo: aceitar as

concepções céticas do conhecimento que conduzem muitos filósofos a exigir uma prova.

ESTRUTURA DO ENSAIO

Moore estrutura sua argumentação em três etapas: a tese a ser provada; a definição analítica do significado

dos termos-chave da tese [ que corresponde à maior parte do ensaio de M.] ; por fim, a prova em questão.

Cada uma dessas etapas pode ser apresentada, em traços largos, assim:

a) TESE a ser provada é que “existem coisas externas à mente” [ the existence of things outside us];

b) TERMO-CHAVE, “que ocorre já em Descartes”, a ser definido pelo método de análise ou analiticamente é

“o significado de ‘coisas externas’” [ meaning of external things], mais precisamente, “coisas externas às

nossas mentes” [external things to our minds] ou “coisas fora de nós” [things outside us], a saber: “uma

coisa que eu percebo” seria externa à minha mente, se e somente se “sua existência em qualquer tempo dado

fosse logicamente independente [ logically independent] de minha percepção dela naquele tempo”. Soames

universaliza essa definição , dizendo que “x é uma coisa externa à mente se e somente se é conceitualmente

possível, ou seja, logicamente possível, que x exista sem que ninguém perceba ou experiencie x”.

c) A PROVA, propriamente, que veremos a seguir.

A PROVA DO MUNDO EXTERIOR

48
A prova de M. de que há coisas externas à mente é: “Posso provar agora, por exemplo, que duas mãos

humanas existem. Como? Segurando minhas duas mãos e dizendo, à medida que faço um certo gesto com a

mão direita, “aqui está uma mão”, e acrescentando, à medida que faço um certo gesto com a esquerda, “e

aqui está a outra”. E se , fazendo isso, provei ipso facto a existência de coisas exteriores, todos nós veremos

que posso também fazê-lo de várias outras maneiras: não existe nenhuma necessidade de multiplicar os

exemplos”. [“I can prove now that two hands exist. How? By holding up my two hands , and saying, as I make

a certain gesture with the right hand, ‘Here is one hand’, and adding, as I make a certain gesture with the

left, ‘and here is another’. And if, by doing this, I have proved ipso facto the existence of external things , you

will see that I can also do it now in numbers of other ways, there is no need to multiply examples”]

RECONSTRUÇÃO DA PROVA 13

Soames reconstrói essa prova do mundo exterior assim:

P1: Aqui [erguendo uma mão] está uma mão;

P2: Aqui [erguendo minha outra mão] está a outra;

C1: Por consequência, existem pelo menos duas mãos.

C2: Por consequência, existem pelo menos duas coisas exteriores a nossas mentes.

CONDIÇÕES OU CRITÉRIOS DA PROVA

M. insiste que esta demonstração da existência de suas duas mãos humanas é uma prova “perfeitamente

rigorosa” da existência de objetos externos, sendo “talvez impossível dar uma prova melhor ou mais rigorosa

de qualquer outra coisa”. E , [semelhante ao tribunal kantiano da razão pura, em que a razão se julga a si

mesma, e impõe a si própria condições e limites, direitos e deveres] , M. procura por à prova a sua prova,

13
Coliva , em “Scepticism and knowledge: Moore’s Proof of na External World” reconstrói a prova um tanto diferentemente, supondo, talvez, a Conferência lida frente a uma audiência na British
Academy:
P1: Aqui está uma mão;
Em seguida, ele a esconde. E seguindo o mesmo procedimento, ele diz:
P2: Aqui está uma outra [mão];
Em seguida , ele a esconde .
Finalmente, sem mostrar suas mãos novamente, ele conclui:
C1: Existem duas mãos agora.
Visto que esta conclusão diz respeito à existência de objetos que podem ser encontrados no espaço, apesar do fato de não serem percebidos no momento, pois estão escondidos, e que , portanto, existem
independentemente de nossas mentes, M . sustenta que C1 implica
C2: Existem objetos físicos;
E por isso que ele provou
C3: “ O mundo exterior existe”.
Jim Pryor , no artigo “What’s wrong with Moore’s argument?, estrutura o argumento assim:
P1: Aqui estão duas mãos;
P1: Se mãos existem, então existe um mundo exterior;
C: Logo, existe um mundo exterior
E Crispin Wright, em “Scepticism, Certainty, Moore and Wittgenstein, apresenta o que considera a “essência” da prova:
Lema : Meu estado de consciência atual em todos os aspectos é cônscio [aware] de uma mão erguida em frente ao meu rosto;
P: Aqui está uma mão;
C: Existe um mundo material [visto que qualquer mão é um objeto material existindo no espaço]

49
enunciando as regras de seu tribunal, a saber, as condições necessárias e os critérios a ser satisfeitos por toda

prova que se pretenda rigorosa:

a) Que a premissa seja diferente da conclusão, não incorrendo, portanto, na falácia de uma circularidade

argumentativa ou petição de princípio;

b) Que se saiba [know]que a premissa é o caso [ the case] , “e não simplesmente alguma coisa na qual eu

acreditasse [believe], mas que não era de modo algum certa [certain]”;

c) Que a conclusão se siga realmente [really follow from] da premissa, ou seja, a conclusão tem de se seguir

validamente das premissas, sendo impossível que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa ao

mesmo tempo.

A PRIMEIRA CONDIÇÃO FOI SATISFEITA?

Em relação `a primeira condição necessária , diz M. , “a premissa que acrescentei na prova era com certeza

diferente da conclusão”, porque “ é muito óbvio que a conclusão poderia ser verdadeira mesmo se a premissa

fosse falsa”. E acrescenta que “ao afirmar a premissa eu estava afirmando muito mais do que estava afirmando

ao afirmar a conclusão”.

A SEGUNDA CONDIÇÃO FOI SATISFEITA?

Todo filósofo cético em relação à conclusão , será cético ipso facto em relação à premissa, e portanto à

afirmação mooriana de que se sabe ser as premissas verdadeiras e, portanto, o caso. Não obstante, M. reafirma

sabê-las: “Eu sabia [knew] que havia [there was] uma mão [one hand] no lugar indicado, combinando um

certo gesto com o meu primeiro proferimento [utterance] de “aqui”, e que havia uma outra [mão] em um lugar

diferente , indicado pela combinação de um certo gesto com meu segundo proferimento de “aqui”. Seria

absurdo sugerir que eu não soubesse isso, mas somente acreditasse nisso [believed it], e que talvez isso não

fosse o caso! Poder-se-ia igualmente sugerir que eu não soubesse que estou agora parado e estou falando ...”

A TERCEIRA CONDIÇÃO FOI SATISFEITA?

Segundo M., “é muito certo que a conclusão se seguiu da premissa”, tão certo quanto afirmar que “se há uma

mão aqui e outra aqui, agora, então segue-se que há duas mãos em existência agora “minha prova ,então, da

existência de coisas exteriores a nós satisfazia três das condições necessárias para uma prova rigorosa”.

50
VEREDITO: “Minha prova da existência de coisas exteriores a nós satisfazia três das condições necessárias para

uma prova rigorosa”

CONTROVÉRSIAS E DIVERGÊNCIAS SOBRE A PROVA: ANTI-IDEALISTA OU ANTICÉTICA?

O argumento é tão simples que se poderia perguntar se realmente é uma “prova”; por isso, o argumento de

M. tem sido objeto de debates e interpretações controversas, desde sua primeira apresentação , na British

Academy.

De início, há divergências em relação ao objetivo da prova: trata-se de provar a existência de um mundo

exterior ou de provar o conhecimento da existência de um mundo exterior?

A leitura de Coliva é de que a posição de M. seria , primeiramente, a de provar a existência do mundo exterior,

e não o conhecimento dessa existência, conforme o esclarecimento posterior , de 1942, do próprio Moore, ao

responder aos seus críticos no volume a ele dedicado pela “Library of Living Philosophers” [por nós

mencionado no início deste texto-aula]14. Desse modo, a prova seria, antes tudo , contra o idealismo; todavia,

Coliva defende que , apesar disso , pode-se considerar a prova como um argumento anticético.

CRÍTICA CÉTICA DA PROVA

Independentemente desse esclarecimento, não se pode negar que muitos filósofos, sobretudo os céticos, ao

exigir uma prova do mundo exterior , rejeitarão o argumento de M. , considerando que as premissas exigem

elas mesmas uma prova.

Sinteticamente, dizem os céticos, se você não é capaz de mostrar como você sabe que p – ou seja, provar que

você sabe isso – e não pode racionalmente justificar sua pretensão de conhecimento, então você não sabe que

p.

E , acrescentam, as premissas dependem de saber previamente a conclusão que delas se segue, e portanto a

pressupõe. Por outras palavras, a experiência perceptiva que possibilita o conhecimento de que estou levantado

as mãos, funda-se em saber previamente que existe um mundo exterior sobre o qual a percepção do nos dá a

informação. Desse modo , o argumento torna-se circular, incorrendo numa petição ou naquilo que se chama,

em inglês, “begging the question”. Portanto, o argumento de M. não é uma prova.

14
“Algumas vezes distingui entre duas proposições distintas, [...], a saber: a) a proposição ‘não existem coisas materiais’; b) a proposição ‘ ninguém conhece com certeza que existem quaisquer coisas
materiais’”. Moore esclarece que , em seu ensaio “Prova do mundo exterior”, seu objetivo era provar a falsidade da primeira proposição , a saber, “não existem coisas materiais”, simplesmente “erguendo
uma das mãos e dizendo ‘esta mão é uma coisa material, portanto existe ao menos uma coisa material”. Todavia, adverte não ter pretendido provar a falsidade da segunda proposição – a saber,
“ninguém conhece com certeza que existem quaisquer coisas materiais” de “uma maneira tão simples”.

51
Desse modo, a posição cética consiste em assumir a priori a posição de juízes de toda pretensão de

conhecimento, impondo ao defensor dos truísmos de senso comum – a saber, a existência de objetos materiais

exteriores e independentes da mente; a existência de outras mentes; a percepção como fonte legítima de

conhecimento – o ônus de justificar esse pretenso conhecimento e de prová-lo, de modo que se tais provas não

são apresentadas ou não podem ser apresentadas, o cético conclui que não se tem aí nenhum conhecimento da

existência do mundo externo nem de outras mentes.

TRANSFERINDO O ÔNUS DA PROVA PARA O CÉTICO

Em resumo , a posição cética consiste em assumir a priori a posição de juízes de toda pretensão de

conhecimento, impondo ao defensor dos truísmos de senso comum – a saber, a existência de objetos materiais

exteriores e independentes da mente; a existência de outras mentes; a percepção como fonte legítima de

conhecimento – o ônus de justificar esse pretenso conhecimento e de prová-lo, de modo que se tais provas não

são apresentadas ou não podem ser apresentadas, o cético conclui que não se tem aí nenhum conhecimento da

existência do mundo externo nem de outras mentes.

Segundo M. , o ceticismo apoia-se numa concepção de conhecimento demasiadamente restritiva, assumindo

que podemos saber previamente o que é o conhecimento enquanto tal, antes de decidir se o que aceitamos

normalmente como exemplos de conhecimento, podem ser qualificados genuinamente como tais.

Diante disso, M. contra-argumenta que algumas coisas têm de ser sabidas sem prova alguma para que seja

possível provar algo: “eu posso saber coisas , diz M., que não posso provar; e entre as coisas que conheço com

certeza, mesmo se , como acredito, não posso prova-las, eram as premissas da minha prova”.

Visto que algumas coisas têm de ser sabidas sem prova alguma para que seja possível provar algo , então

pergunta M. ao cético, “por que não poderia ser uma dessas afirmações de que temos mãos?”

Desse modo, M. exige que a refutação cética de seu argumento venha acompanhado de uma explicação de por

que suas premissas e não outras exigem prova.

Ao lançar esse desafio, M. transfere o ônus da prova para o cético.

PROPÓSITO DA PROVA

Como indicamos anterior, não há interpretação ou leitura consensuais sobre a prova de M. , vamos ressaltar

as análises de dois estudiosos do pensamento mooriano , que nos ajudaram muito na elaboração deste texto-

52
aula: Scott Soames [*1945, Princeton University, New Jersey, e University of Southern California, Los

Angeles] e Thomas Baldwin [*1947, da University of York, Inglaterra].

SEGUNDO A LEITURA DE S. SOAMES, a mensagem implícita e o propósito da prova de M. é que, antes de tentar

responder ao desafio cético, os filósofos deveriam pedir ao cético que justifique sua afirmação de que não

sabemos o que dizemos saber.

Por isso, segundo a interpretação de Soames, o verdadeiro problema para M. não é provar que sabemos que

temos mãos, nem negá-lo, e sim construir uma teoria do conhecimento que seja consistente com instâncias

óbvias de conhecimento como esta , que explique como surge este conhecimento, tal como ele procurou

desenvolver em “Uma Defesa do Senso Comum”

Por consequência, diz Soames, o objetivo da prova de Moore é mostrar, primeiramente, que não há

necessidade de tal prova. E o escândalo não reside na incapacidade de responder ao desafio cético , e sim o

escândalo situa-se na aceitação acrítica do filósofo da legitimidade das exigências do cético: a ironia da prova

de M. reside exatamente em mostrar que nenhuma prova é necessária.

A INTERPRETAÇÃO DE THOMAS BALDWIN parece seguir trajetória semelhante, ao afirmar que M. não concebe

sua “prova” como uma refutação do ceticismo, pois o argumento do filósofo “obviamente” não prova a

existência de coisa alguma fora do pensamento ou da experiência, pois isso dependeria “de questões

filosoficamente mais amplas sobre o idealismo”.

Por isso, Baldwin, tal como Soames, conclui que M. não concebia sua prova como uma refutação do ceticismo,

embora frequentemente argumentasse contra as posições céticas. A estratégia de M. seria “mais sutil”, a saber,

que os argumentos céticos são incoerentes e “autorrefutáveis” [self-undermining]: de um lado, eles se apoiam

em princípios gerais sobre limites do conhecimento, implicando , portanto, algum entendimento sobre o

conhecimento; de outro lado, no entanto, eles refutam suas próprias premissas e seu ponto de partida, negando

existir casos instanciadores dele.

Todavia, a força do argumento é disputável, observa Baldwin, visto que o cético sempre pode apresentar seu

argumento como uma “reductio ad absurdum” da possibilidade do conhecimento; e o mesmo ponto aplica-se

a outras tentativas de Moore de convencer o cético de alguma incoerência e inconsistência internas.

53
UNIDADE V. 3 – PERCEPÇÃO E ANÁLISE EM MOORE : DA REFUTAÇÃO DO IDEALISMO À

DEFESA DO SENSO COMUM

Talvez a conclusão mais importante dos textos mencionados anteriormente, a saber, “Problemas

Fundamentais da Filosofia”, “Uma Defesa do Senso Comum” e “Prova do Mundo Exterior” consiste em

mostrar que o “problema fundamental” da filosofia não é provar nem negar a existência de coisas materiais

no mundo exterior, como nossas mãos, por exemplo, e sim elucidar as condições pelas quais , a partir de

nossas percepções, podemos elaborar um conhecimento desses objetos materiais no mundo exterior. Por outras

palavras, partindo da perspectiva realista do senso comum, a saber, existem objetos materiais no mundo

exterior e somos capazes de conhecê-los objetivamente a partir de nossas percepções, a tarefa do filósofo é

elucidar as condições de possibilidade desse conhecimento a partir das percepções, de modo a explicar como

sabemos o que realmente sabemos. Isso implica , portanto, em esclarecer o que é perceber, o que é nossa

percepção e como ela funda nosso conhecimento objetivo e verdadeiro do mundo exterior.

Parece-nos que não é uma tarefa muito distante daquela que Kant se colocou na Crítica da Razão Pura:

partindo do “fato de razão”, ou seja, de que existe conhecimento empírico objetivo, como nos mostram as

ciências da natureza, o problema para Kant é revelar as condições pelas quais elaboramos juízos objetivos e

universais a partir dos dados de nossa intuição e percepção empíricas.

A tarefa de Moore é mostrar o que é que nós sabemos, quando sabemos que uma declaração sobre o mundo

exterior é verdadeira, como, por exemplo, nossos truísmos de senso comum. O desafio intelectual e filosófico

de M. , ou seja, revelar as condições de possibilidade do nosso conhecimento a partir das nossas percepções,

de modo a explicar como sabemos o que realmente sabemos, implica o desenvolvimento correlato

[analogamente a Kant] de uma filosofia da percepção, articulada à filosofia do conhecimento, a saber, uma

epistemologia.

A PERCEPÇÃO COMO PROBLEMA CENTRAL NA FILOSOFIA DE MOORE

Esse problema acompanha M. desde “Refutação do Idealismo” de 1903 e “Problemas Fundamentais da

Filosofia”, como vimos anteriormente; todavia, será em “Uma Defesa do Senso Comum” que o método de

análise ocupa posição destacada. Trata-se de uma tarefa difícil para os estudiosos de M. , visto que o filósofo

inglês apresenta diferentes concepções do tema da percepção e sua relação com o conhecimento em sua

54
trajetória filosófica, mudando sua visão em diferentes momentos e textos, sem apresentar uma visão

sistemática e sem apresentar uma posição conclusiva frente aos diferentes hipóteses que esse tema suscita.

Vamos ver sinteticamente cada um desses momentos:

PERCEPÇÃO EM REFUTAÇÃO DO IDEALISMO[1903] : Nesse texto, M. refuta a concepção idealista de

percepção, que identificava o azul com a sensação ou percepção do azul, não distinguindo a percepção do

percebido, e por isso tomavam “esse” como “percepi”, ou seja, ser como perceber. Contra essa essa posição

idealista e em conformidade com a consciência pré-filosófica ou natural, M. indica o equívoco idealista,

enfatizando que a experiência ou a percepção do azul é diferente do objeto da experiência de perceber.

As principais teses de M. são: a) O azul que vemos é diferente da sensação ou percepção de azul, a qual é

nossa experiência de vê-lo; b) o que percebo, vejo, escuto , toco nunca está em minha mente ou é

ontologicamente dependente dela; c) o “azul” é um objeto , irredutível a mero conteúdo da minha experiência;

mais radicalmente, é a coisa mais real e mais independente da qual tenho consciência. Grosso modo, essas

teses sobre a percepção podem ser denominadas “realismo direto”.

No entanto, esse realismo direto vai ser colocado em questão, pelo próprio M., no período entre 1909-11, por

uma visão da percepção em que os dados dos sentidos ocupam uma posição geral , conduzindo, por um lado,

a uma teoria dos dados dos sentidos e de realismo indireto; por outro lado, levando ao confronto inevitável

com o ceticismo e sua ameaça ao senso comum, do qual M. , em decorrência mesmo de sua visão dos dados

dos sentido, adquire aguda consciência e cujo enfrentamento se torna incontornável. Isso será desenvolvido

sobretudo, no artigo de 1909, “Hume’s Philosophy”, cujas ideias serão detalhadas nos capítulos V e VI,

também dedicados a Hume, no livro “Problemas Fundamentais da Filosofia” e , mais tarde, em “Defesa do

Senso Comum”.

PERCEPÇÃO EM PROBLEMAS FUNDAMENTAIS DA FILOSOFIA [1910/11] : SENSE DATA : No cap. II deste livro,

M. introduz a noção de Sense Data [ singular: sense datum][também o título do referido cap.] em sua filosofia

da percepção para responder à questão: o que percebemos , mais precisamente, o que vemos?; como enfatiza

M, “é somente como o ver [seeing], que estou preocupado”. Essa reflexão sobre nossas percepções visuais, a

saber, sobre o ver, insere-se em uma questão mais ampla: como conhecemos a existência de objetos materiais

a partir de nossas percepções?

55
A posição de M., embora não configure uma solução satisfatória para um problema que ele mesmo formulou,

irá, posteriormente, influenciar profundamente a visão da filosofia analítica da percepção , com a

denominação de Sense Data Theory , ou seja, a Teoria dos Dados dos Sentidos.

M. inicia sua abordagem, apoiando-se em um “exemplo prático”, em que ergue um envelope diante de seus

alunos. Ele insiste, corretamente, que cada aluno vê o mesmo envelope. Todavia, observa que o envelope

parece diferente para cada estudante , dependendo de onde está sentado, parecendo maior ou menor, ora com

uma forma , ora com outra. Também as cores variam quando vistas por diferentes estudantes, dependendo da

luz, ou da acuidade visual de cada um , e outros fatores. Assim, um estudante na primeira fila vê uma amostra

branca [white patch] de forma retangular , ao passo que algum, no fundo da sala, vê uma amostra [patch]

menor, levemente mais escura. Sinteticamente, o envelope aparece ligeiramente diferente em cor, tamanho e

forma para diferentes estudante, de modo que cada um vê uma amostra em cor , tamanho e forma distinta dos

demais.

Essas diferentes amostras de um mesmo envelope são os Sense Data, mais precisamente, visual Sense Data.

Moore conclui ser plausível supor que cada estudante vê uma amostra que é distinta do envelope que todos

vêem. Os sense data ou dados dos sentidos são diretamente percebidos ou diretamente vistos, enquanto o

objeto é visto indiretamente , em virtude da percepção direta dos dados dos sentidos. Por outras palavras, não

percebemos nem vemos objetos materiais diretamente, e sim sense data, de modo que o que percebemos não

são os objetos físicos ou materiais , e sim os dados do sentido: são estes últimos os verdadeiros objetos de

nossa percepção.

O que são os dados dos sentidos? M. critica, primeiramente, a concepção de que os dados dos sentidos seriam

partes dos objetos materiais vistos, em que “cada conjunto dos dados dos sentidos [as amostras] é , de fato ,

uma parte do envelope”. M. considera essa visão questionável, porque , na medida em que cada amostra é

individual , é conceber que o mesmo objeto , a saber, o envelope seja todas elas simultaneamente.

A posição de M., ao menos no cap. II de “Problemas Fundamentais de Filosofia” , é inclinar-se, apesar de

dúvidas, para a “visão aceita” pela “excedente maioria dos filósofos” [ algo como um “senso comum

filosófico”] que “pode ser muito plausivelmente verdadeira”[may very likely be true], a saber: se um mesmo

envelope parece diferente para diferentes estudantes, eles devem estar vendo diferentes

56
“aparências”[appearances]. M. esclarece então as características gerais dos sense data nessa visão

majoritariamente aceita pelos filósofos:

a) sense data existem somente enquanto percebidos [“esse est percipi”, ser é ser percebido];

b) são privados para cada observador [ou seja, é impossível os mesmos sense data ser percebidos por mais de

uma pessoa];

c) não existem em espaços públicos [os dados sensoriais situam-se nos espaços visuais privados de cada

observador, e nunca podem se encontrar em um espaço comum a dois ou mais observadores;

d) embora M. não caracterize os sense data como existindo na mente , M. parece admitir , seguindo a visão

comumente aceita, de que eles são “dependentes da mente” [mind-dependents]: “certamente nada poderia ser

mais inteiramente dependente de minha mente que eles [ a saber, os dados dos sentidos].

Isso, todavia, coloca um problema para epistemologia realista do senso comum de M. : como articular o

conhecimento de objetos materiais externos e independentes da mente, objetivos e públicos, baseados em

nossas percepções de dados sensoriais, são internos , subjetivos, dependentes da mente, e privados? Nas

palavras de M. : “a questão que surge é como qualquer um de nós pode conhecer que existe alguma coisa a

mais no Universo , além de suas próprios dados dos sentidos e imagens; como se pode conhecer , por exemplo,

que existem no Universo , ou as mentes de outras pessoas, ou objetos materiais , ou dados sensíveis e imagens

de outras pessoas”.

No entanto, M. conclui o cap. II de “Problemas Fundamentais da Filosofia” afirmando que “deve existir,

portanto, outros meios de conhecer a existências de coisas além da mera apreensão direta de dados dos sentidos

e imagens”. Quais são esses outros meios de conhecer o que nosso senso comum nos garante que conhecemos,

será desenvolvido nos capítulos dedicados a Hume e , sobretudo, em “Uma defesa do Senso Comum”. Apesar

de reconhecer não ser capaz de solucionar isso de uma maneira inteiramente satisfatória, M. aponta para

algumas direções em “Uma Defesa do Senso Comum”.

HUME SOB EXAME CRÍTICO

Em “Problemas Fundamentais de Filosofia”, M. dedica o capítulo VI, “A Teoria de Hume Examinada”, a

um exame crítico do ceticismo humiano e da ameaça cética aos truísmos do senso comum, que negam que se

possa conhecer a existência de objetos materiais.

57
O ponto de partida de M. diz: “O que acreditamos é que aqueles sense-data que apreendemos agora são sinais

[signs] de alguma coisa que existe agora, ou ao menos existiu um momento atrás” . E continua: “Eu, por

exemplo, afirmo conhecer que existem agora , ou um momento atrás, não somente estes dados do sentido

...mas também alguma coisa que não estou apreendendo diretamente”. M. defende ainda que essa alguma

coisa não é somente a causa dos dados sensoriais que ele está vendo ou sentindo, mas ainda que essa causa

está situada aqui, em algum espaço, com alguma forma e que ele conhece, grosso modo, qual é a sua forma.

Por outras palavras, a consciência direta de dados do sentido ou de certas imagens é o que torna possível

conhecer a existência de outras coisas às quais tais dados do sentido e imagens estão relacionados. É o caso

da memória: com base de imagens mentais que estão presentemente diante dos nossos olhos, conhecemos a

existência de outras coisas que não estão imediatamente presentes em nossas mentes.

E a crítica de M. consiste em dizer que o ceticismo de Hume e seus defensores é falso porque , sinteticamente,

entra em conflito com o senso comum; segundo M. não há melhor argumento que esse: “Sei que este lápis

existe ; mas não poderia saber, se os princípios de Hume fossem verdadeiros; portanto, os princípios de Hume

são falsos. Penso que esse argumento é tão forte e tão bom quanto qualquer outro que poderia ser usado: é

penso que é realmente conclusivo”.

M. não afirma que o argumento é capaz de persuadir o cético, e sim que seu argumento é conclusivo, pois: a)

sua conclusão decorre de suas premissas; b) suas premissas , inclusive a premissa de que sabe que o lápis

existe – são elas mesmas conhecidas igualmente como verdadeiras. Na concepção do filósofo as verdades do

senso comum “são muito mais certas que qualquer premissa que poderia ser usada para provar que elas são

falsas; e por isso muito mais certas que qualquer outra premissa que poderia ser usada para provar que são

verdadeiras”.

UMA DEFESA DO SENSO COMUM [1925] E O MÉTODO DE ANÁLISE DE PROPOSIÇÕES

Os tópicos abordados anteriormente, em que consideramos a filosofia da percepção e a epistemologia de M. ,

no período entre Refutação do Idealismo à Defesa do Senso Comum, mostram que uma questão fundamental

do pensamento do filósofo permanece sem uma solução satisfatória.

Por um lado, desde o seu giro para o realismo do Senso Comum , em Problemas Fundamentais da Filosofia,

de 1910-11, M. assume uma firme posição anticética , frente ao ceticismo humiano e ao chamado ceticismo

58
cartesiano, defendendo a “verdade de proposições tais ‘como a terra existiu há muitos anos passados’, ‘muitos

corpos humanos viveram cada qual durante muitos anos sobre ela’, isto é, proposições que afirmam a

existência de coisas materiais”.

Por outro lado, a defesa intransigente da verdade certa de tais truísmos do senso comum, coloca uma questão

essencialmente filosófica, que acompanha M. desde o seu giro para o realismo do senso comum, a saber, quais

são as condições de possibilidade – para empregar uma terminologia kantiana – dessas proposições? Dado

que conhecemos os objetos materiais [por exemplo, os truísmos do senso comum], como esse conhecimento

pode ser explicado? Visto que o senso comum apoia-se em nossa percepção, como um conhecimento com

tamanha generalidade a respeito do mundo e compartilhado por tantos, pode-se sustentar numa base

perceptiva, que como todos sabemos é “aqui e agora”, ou seja, particular e subjetiva? Como se podem articular

as proposições gerais do senso comum com as experiências particulares da percepção, de cada um de nós? [

Trata-se de problema análogo em outros pensadores, como Kant, cuja preocupação central era relacionar os

juízos científicos universais da física e da matemática, com nossas sensações e intuições particulares,

articulando a intuição com o entendimento, a sensibilidade com o intelecto, o múltiplo sensível com a unidade

conceitual.]

Por outras palavras, trata-se de conciliar esses dois aspectos: de um lado, a posição do senso comum de que

conhecemos objetos materiais a partir de nossa percepção , sobretudo visual; de outro, explicar de que modo

a percepção, na medida em que é uma experiência de dados sensoriais subjetivos e particulares, pode ser o

fundamento e condição do conhecimento verdadeiro, certo e intersubjetivo do senso comum.

O problema de “Uma Defesa do Senso Comum”, que é também o problema central na trajetória filosófica

de M. , até seus últimos ensaios publicados, é apresentado por Soames com muita clareza: M. dirigiu e aplicou

seu método de análise para resolver um problema, que pode ser expresso como segue: “ (i) o conhecimento

do mundo exterior é baseado em nossos sentidos; mas (ii) os dados básicos fornecidos pelos nossos sentidos

são experiências sensíveis , que são meramente eventos privados na consciência de quem percebe; enquanto

(iii) nosso conhecimento do mundo exterior é conhecimento de objetos que não são privados para nós, mas

antes objetos públicos e publicamente acessíveis a todos; então (iv) existe um “gap” entre a privacidade de

nossa evidência – a saber, os dados do sentido – e sua dependência do observador, por um lado, e a publicidade

59
das coisas exteriores e sua independência do observador, coisas que conhecemos a partir dessa evidências dos

dados dos sentidos, de outro. Moore lutou grande parte de sua vida filosófica para explicar como esse gap

pode ser preenchido” .

MÉTODO DE ANÁLISE

A estratégia de M. consiste em enfrentar esse desafio mediante um procedimento metodológico característico

da filosofia analítica posterior, a saber, a análise de proposições[ ou sentenças] , mais precisamente, a análise

das proposições, apresentadas como aparentes truísmos, no inicio do ensaio.

Mas isso ainda não é toda a história: as proposições do senso comum, mais complexas, dependeriam de

proposições mais simples, e são essas que devem ser o objeto ou alvo da análise proposicional primeiramente:

“parece-me bastante evidente, diz ele, que a questão de como se devem analisar as proposições do tipo que

acabo de apresentar [ou seja, os truísmos do senso comum], depende da questão de como se deve analisar

proposições de outro tipo mais simples”. Em conformidade com o método de análise, também compartilhado

por Russell, Wittgenstein e Carnap, por exemplo , M. sugere decompor as proposições mais complexas em

proposições mais simples, ou melhor, em proposições simples ou elementares, a saber, proposições

afirmativas, que não apresentam nenhum operador lógico, nem mesmo o de negação, como “isto é uma bola”

e que , se analisadas, não conduzem a novas proposições e sim aos termos sujeito e predicado , que isolados

e separadamente , não constituem proposições.

Nas palavras de M., “não posso saber como se deve analisar a proposição ‘as coisas materiais existem’, até

que se saiba como, em certos aspectos, se devem analisar essas proposições mais simples”, a saber,

proposições como “sei no momento que estou percebendo uma mão humana, um lápis, uma folha de papel,

etc”.

PROPOSIÇÕES SOBRE MINHAS PERCEPÇÕES

Desse modo, proposições gerais como “coisas materiais existem” , pressupõem “proposições mais simples”,

a saber, proposições, na primeira pessoa, sobre percepções aqui e agora de coisas como “mão humana”, “lápis,

folha de papel”, etc.

60
Trata-se de uma proposição em primeira pessoa, de um sujeito particular, sobre um conteúdo perceptivo “aqui

e agora” . Essa particularidade dessa proposição contrasta , claramente, com o caráter mais genérico e mais

universal dos truísmos do senso comum.

Todavia, embora particulares, restritas ao “meu aqui e agora”, não se trata, evidentemente, de proposições

“tão simples”, na medida em que descrevo reflexivamente meu ato de consciência, a saber, “ meu perceber”,

assim como os objetos da minha percepção, ou seja, o que estou percebendo, por exemplo, “mão , papel,

lápis”, além de saber [“sei”] que tais objetos existem independentemente da minha percepção e que minha

percepção é objetiva , e não uma alucinação.

Porém , acrescenta M. , “mesmo estas não são suficientemente simples”. Pois , diz ele, a proposição de “meu

conhecimento de que percebo agora uma mão humana” seria uma “dedução” de um “par de proposições ainda

mais simples”, quais sejam, “estou percebendo isto” e “isto é uma mão humana”. Assim, as proposições

básicas ou simples seriam , de um lado, uma proposição sobre meu ato de consciência de perceber algo, e de

outro, uma proposição sobre o objeto de minha percepção, a saber, a mão.

Essas duas proposições sobre “minha percepção”, a saber, a percepção enquanto tal e o objeto da percepção,

são as condições mais fundamentais , diz M., para analisar e elucidar nossas proposições mais gerais “sobre a

natureza das coisas materiais”. Por consequência, as proposições sobre tais atos simples de percepção, e

portanto, a percepção, constituem a base de todo nosso conhecimento mais geral sobre o mundo exterior , e

por isso devemos começar por elas.

“ESTOU VENDO ISTO” E “ISTO É UMA MÃO”

Grosso modo, na visão de M., todo nosso conhecimento sobre o mundo e sobre nós mesmos, sobre si e sobre

os outros, estão enraizadas, de um lado, na percepção de inúmeros objetos, e de outro, na capacidade de

identificar tais objetos, por exemplo, “isto é uma mão”, “isto é um cachorro”, “isto é um livro”. Em tais

proposições, o demonstrativo “isto” desempenha o papel de sujeito, e portanto , a função de um designador

ou um referenciador15. “Isto” é mais simples que um nome próprio, por exemplo, “Sócrates”, pois este, na

verdade, como revelou Russell, é um conjunto de descrições definidas.

15
Os demonstrativos em geral são também denominados como termo “dêiticos” [gr. Deiktikós: demonstrativo], cuja referência pode variar de contexto de uso para contexto de uso [a saber, o conjunto
de condições extralinguísticas que caracterizam cada elocução, como o locutor ou falante, o interlocutor , o ouvinte, a audiência, o lugar e o momento da fala, ou seja, a ocasião da elocução, etc. ]. No
caso dos demonstrativos, seu uso é acompanhado de um gesto ostensivo ou ato demonstrativo visual , ou de outro tipo. Os dêiticos, ou seja, os demonstrativos cujo emprego é acompanhado de gesto
ostensivo, constitui uma subclasse importante dos termos indexais , ou seja, termos – como eu e outros pronomes pessoais, ali/aqui, ontem/hoje/amanhã, agora, isto, aquilo, minha mochila , aquele
carro, etc – cuja referência varia de acordo com o contexto de uso. O termo indexal foi introduzido por Charles Sanders Peirce , mas o texto seminal sobre essa noção é “Demonstratives”, célebre
artigo de David Kaplan, publicado em 1989, embora já circulasse em versões fotocopiadas desde 1979. Nesse ensaio, o filósofo americano desenvolve a investigação mais extensa e influente , de

61
Proposições como “Isto é um carro”, por exemplo, em que se empregam demonstrativos, como “isto, na função

de referenciadores e identificadores, são condicionados pelo contexto de uso, de modo que a referenciação e

identificação do objeto depende da percepção dos interlocutores, do gesto ostensivo e da identificação

espaçotemporal do objeto. Embora simples do ponto de vista lógico, o seu proferimento e sua compreensão

envolve uma grande complexidade pragmática em que se articulam a fala , a percepção , o corpo e seu gesto

ostensivo, a ordenação espaçotemporal dos falantes e do objeto, em um mesmo quadro espaçotemporal, a

referenciação [isto] e a predicação [ ... é um carro], em que , de um lado, se subsume o objeto individual

percebido aqui e agora, sob um conceito geral que não se percebe nem se identifica espaçotemporalmente ,

e de outro lado, o objeto que instancia aqui e agora [token] um conceito-tipo [type] , “carro”. Nesse aspecto,

M. prefigura , a nosso ver, todo o trabalho sobre referência, predicação, identificação e reidentificação , assim

como individuação , realizado com muita densidade na filosofia da linguagem comum ou ordinária de

Strawson.

Tais proposições simples , do ponto de vista lógico, mas muito complexas do ponto de vista pragmático, são

muito importantes, porque constituem nosso discurso linguístico-proposicional mais básico em que se

satisfazem as duas condições fundamentais da linguagem , a saber, a referência ou identificação e a predicação,

articulada com um contexto espaciotemporal de uso.

ANÁLISE DA PROPOSIÇÃO BÁSICA DE PERCEPÇAO

Por serem simples ou básicas, do ponto de vista lógico, mas complexas do ponto de vista pragmático, tais

proposições sobre nossa experiência são de difícil elucidação, como reconhece M. : “ é a análise de

proposições do último tipo que me parece apresentar essas grandes dificuldades” e , no entanto, “toda a questão

com relação à natureza das coisas materiais [ou seja dos corpos] depende obviamente de sua análise”. Percebe-

se como em M., a metafísica ou ontologia, que se ocupam, entre outras questões, da “natureza das coisas” ,

assim como de suas relações, articula-se com o método de análise, mais precisamente, análise de proposições

e de conceitos , de modo que a análise constitui a mediação metodológica que liga essas dimensões

aparentemente distantes, entre a metafisica e ontologia, de um lado, e as proposições de nossa vida comum,

de outro.

caráter lógico-semântico e epistemológico-metafisico, dos indexais, compreendendo os indexais puros, como pronomes pessoais, advérbios temporais , como hoje, agora, e lugar, aqui; e os indexais
demonstrativos ou dêiticos, como isto ou aquilo, que exigem a complementação de um gesto ostensivo.

62
A dificuldade a que se refere M. pode ser sintetizada assim, segundo nossa interpretação da seção IV: o que

precisamente sabemos ou conhecemos quando julgamos ou enunciamos proposições como “isto é uma mão”,

“aquilo é o Sol”, “isto é um cachorro”. Nossa visão vai ao encontro da leitura defendida por S. Soames, a

saber, o problema que M. tentará resolver [embora o próprio M. reconheça, como veremos, os limites de sua

explicação] é, sinteticamente : o que é que conhecemos , quando conhecemos que essas proposições são

verdadeiras; e para tentar resolver essa difícil questão , M. apoia-se no método de análise proposicional.

SENSE-DATA

M. desenvolve sua análise a partir de uma situação perceptiva concreta, em que “observo minha mão direita”.

O que vejo não é “toda a minha mão direita” [pois, é claro, ela tem o seu outro lado , que não estou vendo], e

sim uma parte dela, mais precisamente, “parte da superfície da minha mão direita”, que M. denomina

genericamente “dado dos sentidos” [sense-datum;pl. sense-data/ lat. datum, a: algo dado ] ou sensação

[sensa]” . Na visão de M. , o problema central e a “questão em aberto” que se coloca aqui é : “o dado dos

sentidos , que vejo agora ao observar a minha mão, ... é ou não idêntico àquela parte da superfície de minha

mão , que estou agora realmente vendo?” Sobre essa alternativa, diz M., “nenhum filósofo até aqui sugeriu

uma resposta que chegue um pouco perto de ser certamente verdadeira”.

TRÊS FILOSOFIAS DA PERCEPÇÃO

Todavia, M. identifica três soluções possíveis e “somente três” , que , historicamente, têm sido propostas: a )

o realismo direto; b) teoria representativa ou representacionalista; c) “possibilidades permanentes da

sensação”.

a) REALISMO DIRETO: o que percebo e vejo não são absolutamente sense data ou dados dos sentidos , e sim

parte da superfície da minha mão ela mesma. Nas palavras de M., “embora não perceba minha mão

diretamente [pois não vejo o outro lado dela], percebo diretamente [directly] parte de sua superfície”; essa

foi a posição defendida , como vimos, por M. em sua juventude, no ensaio “Refutação do Idealismo”,

abandonada posteriormente em razão do desafio colocado pelo ceticismo cartesiano, a saber, o argumento do

sonho, o gênio maligno e os casos de alucinação;

b) REPRESENTACIONALISMO : não percebo parte da superfície de minha mão diretamente, e sim sense datum,

ou seja, dados sensoriais que representam [represent][ em um sentido que precisa ser elucidado] essa parte

63
de sua superfície. Como observa Soames, o que vemos são , na realidade, sense-data dependentes de nossas

mentes, relacionados, todavia, com os objetos materiais de certos modos.

É essa alternativa que M. considerou plausível no Cap. II , intitulado “Sense Data”, de “Problemas

Fundamentais da Filosofia” , e ainda reconhece que ela pode ser verdadeira; todavia, admite não estar certo

sobre isso, sobretudo porque essa posição levanta sérias dificuldades.

Entre essas dificuldades, estão as diferentes concepções dessa relação entre dados sensoriais e objetos

materiais. Uma delas é considerar essa relação como sendo essencialmente uma relação causal: ver parte da

superfície de minha mão é ver um dado sensorial causado pela por parte da superfície de minha mão.

Qualquer que seja a concepção dessa relação, a ideia central solução representativa ou representacionalista é

que a justificação de que vemos parte da superfície de minha mão, é baseada na percepção de dados sensoriais.

Devemos ser capazes de inferir de modo justificado , a partir do fato que percebemos dados sensoriais , que

existe alguma coisa corporal , exterior e independente , que mantém alguma relação com os dados do sentidos

percebidos. Todavia, como observa M., a base para essa inferência é problemática.

Com a interposição de intermediários – a saber, sense data – entre nós e os objetos materiais, essa alternativa

não explica como vamos além dos intermediários até as coisas materiais. Se tudo o que percebemos

diretamente são dados do sentido, como sabemos que algo mantém alguma relação com esses dados, ou , se

algumas coisas de fato mantiverem alguma relação ou influência com os dados sensoriais, como podemos ir

além desses dados, e conhecer como essas coisas são?

c) HIPÓTESE DE MILL: A terceira alternativa foi proposta pelo empirista moderno J. S. Mill , ao considerar que

“as coisas materiais são possibilidades permanentes de sensação” [ permanent possibilities of sensation],

propondo uma articulação mais complexa entre sense data e coisas materiais, em que essas últimas são

conhecidas como um conjunto de possibilidades de sensação.

Assim , “ver uma mesa” ou “ perceber uma mesa” não se reduz apenas a uma determinada perspectiva

sensorial, e sim ao imenso conjunto de sensações possíveis em relação à mesa, que sou capaz de dominar por

tê-las experienciado no passado, relacionando minha percepção atual da mesa, condicionada pelo aqui e agora

em que me encontro, com outras possibilidades de sensação desse mesmo objeto corporal : assim , se andar

um pouco para o lado [da mesa, que estou vendo] , terei uma outra percepção ligeiramente diferente da mesa;

64
se puser minhas mãos sobre ela, então terei certas sensações táteis de resistência e suavidade; e assim por

diante. A mesa , enquanto objeto material exterior, é o conjunto de “possibilidades permanentes de sensação”,

a saber, os dados de sentidos que estou tendo aqui e agora, e o conjunto de todas as sensações possíveis, já

experienciadas, se certas condições fossem satisfeitas, por exemplo, me afastando ou me aproximando dela.

UMA CONCLUSÃO CÉTICA

De todo modo, entre essas três modalidade de análise de proposições sobre nossas percepções, M. não escolhe

nenhuma posição definitiva, sobretudo porque , talvez, como observa Soames, “as sentenças sobre nossos

próprios dados sensoriais não poderão nunca ser completamente equivalentes às sentenças sobre objetos

materiais ... porque existe um resíduo irredutível em nossas proposições sobre objetos materiais que não

podem ser capturados por sentenças referentes a dados sensoriais”. Por outras palavras, nossas proposições

sobre as proposições não são completamente redutíveis aos dados dos sentidos , ou , são irredutíveis

inteiramente aos dados sensórias e às nossas sensações.

M. reconhece , na curta e conclusiva seção V, a última de “Uma Defesa do Senso Comum”, que se podem

fazer diferentes análises destas proposições , sem que se possa decidir qual delas é correta, contribuindo para

a atmosfera “cética” da reflexão mooriana sobre as proposições referentes às nossas sensações, percepções e

dados dos sentidos, e sua relação com os corpos materiais.

Por um lado, M. afirma não ser de modo algum cético em relação à verdade das proposições de senso comum,

como as que afirmam a existência de um mundo exterior; por outro lado, reconhece conclusivamente, a partir

da seção IV, que há diferentes análises possíveis de tais proposições, e que é muito cético sobre qual delas é

correta : “sou muito cético, diz ele, com relação , em certos aspectos, a qual análise de tais proposições é

correta”. A essa impactante afirmação , M. acrescenta : “Da verdade dessas proposições parece-me não haver

nenhuma dúvida , mas com relação a qual análise delas é a correta, parece-me haver a mais grave dúvida”.

INFLUÊNCIA DA ANÁLISE MOORIANA SOBRE A PERCEPÇÃO E SUAS PROPOSIÇÕES

Apesar dessa indecisão e do fato de que o problema central , a saber, como podemos explicar nosso

conhecimento sobre objetos materiais a partir de nossa percepção , permanece sem uma resposta final

satisfatória de M., suas reflexões foram muito influentes, sobretudo com três consequências historicamente

relevantes, como observa Soames, a saber:

65
a) O ponto de partida do senso comum , de que conhecemos que existem objetos materiais e outras pessoas, e

de que essa certeza não carece de provas nem demonstrações;

b) A tarefa do filósofo não demonstrada essas certezas nem provar tais verdades, e sim explicar como tal

conhecimento é possível; por outras palavras, o verdadeiro problema para M. não é provar que sabemos que

temos mãos, nem negá-lo, e sim construir uma teoria do conhecimento que seja consistente com instâncias

óbvias de conhecimento como esta , que explique como surge este conhecimento, tal como ele procurou

desenvolver na Seção IV de seu ensaio;

c) Sua crença de que qualquer explicação satisfatória deve se apoiar na análise filosófica dos significados das

sentenças sobre corpos materiais e outras pessoas.

CONFERÊNCIAS [LECTURES] EM CAMBRIDGE ENTRE 1911 E 1939

De 1911, quando retornou a Cambridge, a 1939, data de sua aposentadoria, M. apresentou, ao longo de cada

período letivo [term], conferências sobre temas diversos, dedicados à graduação [Tripos] , assim agrupados

pelo filósofo:

De 1911 a 1918, três conferências semanais sobre Psicologia, principalmente.

De 1911 a 1918, além das conferências sobre psicologia, M. acrescentou mais duas conferências semanais

sobre “Filosofia da Natureza” .

De 1925 a 1939, data de sua aposentadoria obrigatória , segundo o “novo estatuto” em Cambridge, por ter

atingido 65 anos, M. dedicou-se à Metafísica, em suas apresentações.

ESTADOS UNIDOS

Depois de sua aposentadoria, em 1939, M. foi imediatamente convidado para um curso em Oxford, para uma

audiência “muito maior” que aquela que costumava assistir aos seus cursos em C.

Em 1940, viaja, pela primeira vez, aos EU, convidado para ser professor visitante em diversas universidades

– Smith College , Princeton, Mills College, Columbia University como professor visitante; uma série de

palestras e apresentações em diversas universidades americanas – além de conferências e palestras em muitas

outras instituições americanas.

TRADUÇÕES
MOORE, E. G. Principia Ethica. São Paulo: Ícone, 1998.
____________ Liberdade; A natureza do juízo; A refutação do idealismo. In: Três ensaios de G. E. Moore:.
Unisinos, 2004.

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___________ O Objeto da Ética e o Ideal , de Princípios Éticos; O significado do Real, O Tempo é Real? O
que é Filosofia, de Problemas Fundamentais da Filosofia; Prova de um Mundo Exterior, A Existência é um
Predicado? , Uma Defesa do Senso Comum, São as Características das Coisas Universais ou Particulares?,
de Escritos Filosóficos. In: Os Pensadores [internet]

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