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Compreender é transgredir
os seis volumes de O Método, Edgar Morin me
N
RESUMO
Desvendando pistas para uma arqueologia da compreen- faz estranhar e, ao mesmo tempo, me reconhe-
são, o artigo problematiza as interconexões entre comuni- cer como indivíduo integrante de uma socieda-
cação e compreensão, a partir da assertiva de Edgar Morin de e pertencente à espécie humana. Estranho e reco-
de que a comunicação não garante a compreensão. nheço também os outros pela mesma relação
indivíduo/sociedade/espécie. Cada um de nós é úni-
PALAVRAS-CHAVE co e vários ao mesmo tempo.
• compreensão A despeito de nossas inúmeras potencialidades,
• comunicação nos comportamos, às vezes, como máquinas triviais,
• mundialização repetindo-nos incessantemente. Talvez seja essa uma
imposição da cultura e do pacto social. Como náufra-
ABSTRACT gos que remam, remam, remam mesmo sabendo que
Triying to unveil tracks to an archaeology of comprehen- continuarão à deriva, sem rumo. Porém, na realidade,
sion, this article renders problematic interconnections somos máquinas não triviais, por dispor de uma possi-
between communication and understanding, from Edgar bilidade de afastamento em relação à norma, de um potenci-
Morin’s assertive that communication does not guarantee al de catálise, de descoberta, de decisão (MORIN, 2002, p.
comprehension. 281).
Toda essa riqueza do antropos vêm à tona pela via
KEY WORDS da comunicação, na maioria das vezes, de uma forma
• comprehension sutilmente implícita. A comunicação, por sua vez, se
• communication constitui num fluir de coordenações consensuais de ações,
• globalization no dizer de Humberto Maturana. Para haver comuni-
cação, nesse sentido mais amplo e fundamental, é
necessário que haja proximidade física ou noológica
entre os interlocutores. Essa proximidade responde à
aptidão humana ao duplo, a objetivar-se, reconhecer-
se a si mesmo como um outro (Paul Ricoeur), mecanis-
mos que Edgar Morin denomina de identificação/
projeção.
Identificação e projeção são mecanismos contrári-
os e complementares ao mesmo tempo. O outro partici-
pa na construção da minha identidade, porque, ao vê-lo,
vejo que é o mesmo: serve-me, então, de espelho, argumen-
ta o etólogo Boris Cyrulnik (s/d, p. 175).
Esses mesmos mecanismos necessários à comuni-
cação estão presentes nos processos de compreensão.
Para Morin, a compreensão é um modo fundamental de
conhecimento antropossocial, que comporta a projeção
(de si sobre o outro) e a identificação (de outro consi-
go), realizando um duplo movimento que se refere à
distinção do eu e do outro, mesmo em conjunção
(1996, p. 139).
Se são assim tão imbricados os fenômenos da co-
municação e da compreensão, por que o primeiro não
garante a efetivação do segundo? Talvez porque, mes-
mo sendo necessário para a minha existência, assim
que aparece no meu campo de consciência, o outro
altera o meu mundo. Um paradoxo assim descrito por
Cyrulnik: assim que me sinto observado por outro inquie-
to-me. A consciência do outro em mim agride-me. A ausên-
cia do outro em mim faz-me morrer. Quando estou só, o
mundo pertence-me, mas morro. Quando aparece outro no
meu mundo, agride-me e permite-me viver (s/d, p. 183).
Margarida Maria Knobbe A comunicação com o outro-mesmo raramente gera
UFRN compreensão. E os conflitos se acentuam com os altos
índices de ansiedade provocados pelas contingênci- Não é igualmente sintomático o fato de que, em
as psíquicas e sociais. Por exemplo, cita Cyrulnik, meio a todo processo de mundialização, inclusive
para os animais dominados, tal como para os seres huma- dos meios de comunicação, se amplifique o mal pri-
nos deprimidos, o encontro não é um enriquecimento, mas mordial da incompreensão humana? (MORIN, 2003, p.
sim uma agressão. No entanto, ainda argumenta o etó- 363). Contra as recusas e o silêncio que copulam com
logo, de todos os organismos, o ser humano é, provavel- os aspectos perversos, bárbaros e viciosos do ser hu-
mente, o mais dotado para a comunicação porosa (física, mano, consubstanciados nas incompreensões, ambi-
sensorial e verbal), que estrutura o vazio entre dois parcei- ções, sede de lucro, poderes e explorações que habi-
ros (s/d, p. 185). tam o nosso mundo, Morin propõe uma reforma do
pensamento, mas também uma reforma do ser huma-
no mesmo. Tal metamorfose supõe uma reforma radical
Vivemos permanentemente dos sistemas de educação, que supõe uma grande corrente de
compreensão... (Id., p. 365).
estressados pelo excesso, pelas A palavra compreensão, contudo, já está presente
como operadora de conhecimento em qualquer pro-
dificuldades de opção, em posta ou nível escolar. É palavra-chave em toda in-
vestigação científica. Compreender, afirma-se, é um
pânico por termos que tomar dos objetivos da ciência, especialmente das ciências
ditas humanas, embora muitas vezes seus resultados
decisões. sejam apenas tentativas de explicação. Às vezes, dis-
sociando meios e fins, criamos técnicas (meios) para
De outra parte, as formas de comunicação que her- explicar o que pretendemos compreender (fim).
damos do século XX nos afastaram tanto da base As técnicas por si mesmas não explicam ou fazem
física quanto da base noológica, primárias, das coor- compreender. Nem a ciência. Nem a arte. Há sempre
denações consensuais de ação. Os vazios se acumu- um ou mais sujeitos cognoscentes por trás e à frente
lam. Há um silêncio em meio a todo barulho. Um desses processos. Penso na técnica/arte do cinema,
silêncio que não se classifica como o intervalo preciso por exemplo. Mais especificamente, penso em Char-
para as modulações da comunicação, a respiração de senti- les Chaplin e em sua capacidade de compreensão do
do (LE BRETON, 1997, p. 75). Não é uma fuga de que ocorria no mundo para criar o filme O grande
palavras, é o dito da recusa. A escuta desse silêncio ditador, em 1940, época na qual muitos governos, in-
não contém a presença do outro. O que conterá? Re- clusive o dos Estados Unidos, eram complacentes e,
sistência? Rancor? Desprezo? Controle? digamos, se faziam de inocentes em relação ao perigo
Talvez pela recusa do outro e pela destruição do que Adolf Hitler representava para a humanidade.
sentido, a linguagem tenha se tornado caduca. Ape- Por que Chaplin atingiu tal compreensão enquanto a
nas o som inteligível das palavras reveste o vazio que maioria da população mundial, mesmo aqueles que
persegue o silêncio. As palavras pronunciadas não possuíam informações privilegiadas sobre os aconte-
esconjuram esse silêncio, não preenchem o abismo de cimentos, precisaram assistir às cenas do genocídio
sentido. É assim porque adotamos as couraças dos como fato consumado, anos depois, para acionar os
mídia, a sua impessoalidade, até na convivência seus mecanismos da compreensão?
familiar. No roteiro da comédia dramática de Chaplin, pro-
É possível observar na vida cotidiana alguns tra- duzido em 1939, enquanto a Alemanha nazista inva-
ços comportamentais que refletem a ascendência que dia a Polônia, nos primeiros passos da Segunda Guer-
as máquinas inteligentes – o computador, a TV e ra Mundial, o grande ditador Hynkel possui todo o
outras caixas pretas – exercem sobre nós, forçando-nos globo terrestre, brinca e dança com ele até explodi-lo.
ao silêncio. Nas palavras do filósofo Jean-Michel Ainda hoje permanece atual a fala do personagem
Besnier: barbeiro judeu: Mais que máquinas, precisamos de huma-
nidade (...) Pensamos demais e sentimos pouco.
uma concepção do mundo é igualmente feita de O que é, então, compreender? É pensar? É sentir?
atitudes estabelecidas como uma segunda natu- Diz Morin que tanto a superioridade quanto a infe-
reza: por exemplo, suportamos cada vez menos a rioridade dos humanos é ter sentimentos, que podem
ambigüidade nas relações humanas, preferindo, ser loucos. Os sentimentos devem mesmo ser impor-
em seu lugar, uma linguagem simplificada (...) tantes nos processos de compreensão/incompreen-
Não é verdade que a informática convivial ou são, mas será que são suficientes para deflagrá-los,
mesmo os sistemas especializados nos prome- para explicá-los e para compreendê-los?
tem uma comunicação sem esforço nem ironia, Morin também afirma que os poderes da compreen-
sem profundidade nem mal-entendidos? (2001, são são insuficientes para compreender a própria
p. 159) compreensão. Para isso, a compreensão deve combi-
nar-se por um lado com processos de verificação (em
relação aos riscos de erro e de incompreensão), por (2002, p. 42-43). Mas a compreensão é um fenômeno
outro lado com processos de explicação: que mobiliza poderes subjetivos para considerar o
outro também como sujeito. Multiplicamos as formas
Enquanto compreender é captar as significações de comunicação no planeta e não conseguimos com-
existenciais de uma situação ou de um fenômeno, preender próximos e distantes.
explicar é situar um objeto ou um acontecimento Tendo por base as concepções de Morin, Maturana
em relação à sua origem ou modo de produção, às e Atlan, considero que, apesar de terem nascido no
suas partes ou componentes constitutivas, à sua mesmo berço, conhecer não é compreender. Conhecer
constituição, às suas utilidades, à sua finalidade; é é tratar informações; compreender é assumir para si e
situá-lo numa causalidade determinista e numa incorporar o conhecimento. Também suponho que os pro-
ordem corrente (1996, p. 140). cessos comunicativos em nossa sociedade têm distancia-
do cada vez mais a comunicação da compreensão.
antes a sociologia chamava de opinião pública. Não Se, para Dostoievski e Kurosawa, a compreensão se
querendo participar das unanimidades, paradoxal- refere à empatia que imobiliza a capacidade de julga-
mente, criamos o humano homogêneo, para suspeitar mento, portanto, se consuma na doença da idiotia,
contra tudo o que é criativo e livre. para Page, a estupidez – renúncia à compreensão –
O termo barbárie me parece aqui justificado. É o que promove uma falsa felicidade. A idiotia poderia ser
George Steiner chama de um mundo absolutamente cha- chamada de hipercompreensão e a estupidez, de hi-
to, no qual tudo se equivale e nada vale nada (apud pocompreensão. Idiotia e estupidez são como duas
MATTÉI, 2002, p. 259). É o que mostra, com um humor doenças que causam sérios prejuízos à saúde social.
fino e sutil, o romance Como me tornei estúpido (2005), São contrários extremos que aniquilam – por excesso
do antropólogo Martin Page, que constata: A inteligên- ou por falta – a verdadeira compreensão que exige
cia torna a pessoa infeliz, solitária, pobre, enquanto o dis- novas emergências de idéias e atitudes.
farce de inteligente oferece a imortalidade efêmera (p. 7). Porém, compreensão é outra palavra polissêmica por
Tentando salvar-se, Antoine, o protagonista da his- natureza. Como reconhecer suas múltiplas faces?
tória, tenta renunciar ao pensamento criador porque O filósofo-médico Álcmeon de Crotona (século V)
tinha poucos amigos, porque padecia dessa espécie de anti- afirma que o homem difere dos outros animais porque
sociabilidade que resulta da demasiada tolerância e com- somente ele tem a capacidade de compreensão, en-
preensão. Depois de tentativas mal-sucedidas para quanto as outras criaturas têm apenas sensações. Para
embriagar-se e suicidar-se, empreende uma jornada o escoliasta Virgílio, cansamo-nos de tudo, exceto de
rumo à estupidez, argumentando que, na natureza, compreender. Mas, na verdade, mesmo que não com-
tudo o que vive muito e contente não é inteligente. preendamos nada, pontifica o poeta Fernando Pessoa:
Com os humanos, em nosso mundo, tentar compreen-
der é um suicídio social. A ânsia de compreender, que para tantas almas
Bem antes de Page, outros escritores já se dedica- nobres substitui a de agir, pertence à esfera da
ram ao tema, provando que a arte é sempre contempo- sensibilidade. Substituir a inteligência à energia,
rânea e real, como afirma Dostoievski. O próprio es- quebrar o elo entre a vontade e a emoção, despin-
critor russo publicou em 1868 a história O idiota, na do de interesse todos os gestos da vida material,
qual o quixotesco príncipe Michkin, acometido de eis o que, conseguido, vale mais que a vida, tão
epilepsia, vai a fundo em todas as questões de que difícil de possuir completa, e tão triste de possuir
trata quando começa a falar, demonstrando uma pro- parcial (1996, p. 243).
funda compaixão humanista por todos os indivíduos.
A compreensão pertence à esfera da sensibilidade e
da ação porque o pensamento também cansa, de acor-
É do seu próprio lugar de do com o poeta. Tentar compreender algo apenas pelo
viés da razão conduz a um estado de inércia, à indife-
observador, com seus rença. Por outro lado, não cansamos de tentar com-
preender porque é dessa forma que, ao esgotarmos os
determinismos e contingências, próprios pensamentos, temos necessidade de sentir o
influxo das opiniões alheias, mesmo que não sigamos
que cada um pode chegar a o seu impulso.
Por sua vez, Diógenes, filósofo cínico (404-323 a.
uma compreensão ou C.), ao tratar dos sentidos, destaca o sensor do pala-
dar – a língua, como um meio privilegiado para obter
objetivação entre parênteses. informações (sintomas) e compreender o prazer e a
dor, a saúde e a doença. Há também quem afirme que
Akira Kurosawa adaptou a narrativa para o cine- uma das manifestações táteis, o arrepio, sinaliza a
ma em 19511 . No filme, Kenji Kameda, um ex-militar conquista da compreensão. O eriçamento da pele sig-
japonês que escapou da morte, passa a sofrer de idio- nificaria, assim, a informação de que a ação pretendi-
tice – amor incondicional à vida e às pessoas. A doen- da ou realizada, a sensação, percepção ou entendi-
ça o enreda numa tragédia. O problema maior de mento alcançados são confiáveis e merecem validação.
Kameda é a sua incapacidade de distinguir e optar Os sentidos, até hoje, são utilizados para compre-
pelo bem ou pelo mal. Enxergando no olhar do outro ender, por exemplo, o vinho. Na técnica da degusta-
todo o sofrimento de sua humanidade, o idiota Kame- ção dos sommeliers, usa-se o termo compreender como
da confunde amor com pena. A empatia incondicio- resultado dos exames visual, olfativo e gustativo, sem
nal acaba causando mais sofrimento. Assim, a com- dispensar a tatilidade e a audição do líquido escor-
preensão extrema de Kameda se torna incompreensão, rendo na taça. Infinitas combinações emergem desse
com o uso inconseqüente do livre arbítrio. No desen- processo, assim descrito por Enrico Bernardo:
rolar das cenas, a maldade acaba assumindo uma A degustação me abriu as portas do prazer e da
valoração positiva porque permite o exercício da li- análise científica. Após anos de aprendizagem,
berdade de escolha. sempre em busca do saber mais exato, misturan-
Ou, como quer David Bohm, a compreensão é parte nosso cérebro triúnico6 ), que situações ameaçadoras
de um fluxo universal de onde podem ser abstraídos deflagram, fazendo cair o nível de adrenalina e redu-
inúmeros padrões. Quando diferentes fatores se ajus- zindo a tensão. Num sentido contrário, a angústia é a
tam e se relacionam como aspectos de uma totalidade, compreensão do nada.
acontece um lampejo de compreensão, proporcionado A metáfora e o riso são brechas abertas – ou que-
por atos de percepção (1992, p. 34). É o que acontece bras de padrões – na lógica dedutivo-identitária, que
tanto nos insights científicos como nos artísticos. Num possibilitam a compreensão. Ou seja, compreender é
lampejo de compreensão, por exemplo, Newton elabo- transgredir. Da mesma forma que, para a escritora
rou a teoria da gravitação universal: assim como a maçã Lya Luft, refletir é transgredir a ordem do superficial.
cai, o mesmo acontece com a lua e, de fato, com todas as Ainda segundo ela, amadurecer serve para isso: o novo
coisas. Em outras palavras: compreender é descobrir o olhar, na lucidez de certo distanciamento, permite compre-
imensurável através do impensado digno de ser pensado. ender aspectos nossos e alheios antes obscuros. Por vezes
Disso se compreende que toda compreensão é fugaz. promove-se uma espécie de anistia. Partindo dela podem-se
reconfigurar padrões (2004, p. 68, 153).
A reconfiguração de padrões, em termos individu-
A metáfora bíblica da torre ais e sociais, também lembra a letra da música Da lama
ao caos, de Chico Science: desorganizando posso organi-
de Babel sintetiza essa zar; me organizando posso desorganizar...
Transgredir, amadurecer, anistiar, desorganizar/
impossibilidade da organizar são termos que evocam um sujeito autor de
si mesmo, que está em processo, em viagem, em curso.
compreensão absoluta. Em viagem significa estar em constante construção e
desconstrução da própria identidade, confrontando-
A compreensão pode também ser vista como uma a com as alteridades. Assim como a identidade, a
bissociação, segundo termo utilizado por Arthur Ko- compreensão também se constrói por complementari-
estler para designar o ato de criação. Essa bissocia- dade, como sugere Teresa Vergani: todo o sistema de
ção, Koestler localiza no humor, nas ciências e nas compreensão é um sistema de intercompreensão alicerçado
artes, e diz respeito à produção de novos insights, na reciprocidade das diferenças (1995, p. 29). Qualquer
além do contrabando de idéias e sentidos, como no ato de compreensão é, igualmente, uma escolha, cons-
processo metafórico (apud SWANWICH, 2003). ciente ou não. Um ato de liberdade axiomática, radical-
E é a metáfora, para Keith Swanwich, que permite mente oposto a qualquer processo de dogmatização.
melhor compreender. Para ela, a metaphorá – que sig- Não há apenas uma compreensão válida acerca de
nifica transporte de um lugar para outro – é um fenô- um fato, de um fenômeno, de um processo. Portanto, a
meno dinâmico configurado pela interseção de dois compreensão é sempre construída a partir da escolha
ou mais domínios, que nos permite ver as coisas dife- de um ou mais princípios existentes num universo de
rentemente, para pensar novas coisas. Swanwich não diversidade de princípios. A compreensão, então, é
se refere apenas à metáfora lingüística. A autora de- sempre relativa, e se justifica pela autenticidade do
fende a tese de que a metáfora é um processo genérico relativismo assumido no momento de se decidir a
fundamental, inclusive quando a música informa a vida escolha. Ou, como já cantou o compositor Lobão, a
do sentimento. Em seu livro Ensinando música, musical- compreensão é a maravilhosa precariedade na
mente, ela identifica a metáfora com a música, como permanência7 .
um elemento de novidade que surge das relações potencial- Por outro lado, quando o sentimento de certeza ser
mente dissonantes (Id., p. 25). arvora à condição absoluta – o que não é nada raro
Essa novidade, diz o neurocientista Itzhak Fried, ocorrer, pois a certeza dá prazer –, a compreensão se
responde à capacidade mental do humano em dire- torna loucura. A certeza enlouquece: se afoga narciso!8
ção a outra perspectiva. Fried localiza no humor a Como mostra esse rápido panorama, embora seja
viagem exploratória e criativa da compreensão. Se- utilizado como sinônimo de diversos processos sen-
gundo a teoria da incongruência, o humor se baseia soriais e cognitivos, como informar, conhecer, expli-
na percepção de uma incoerência, de um paradoxo, car, interpretar etc., o próprio sentido do compreender
frente ao qual o cérebro abandona todas as expectati- ultrapassa todos os termos.
vas e passa a perseguir novas idéias. Ocorre, então, Comungo da idéia de Gilles Deleuze e de Félix
uma mudança de perspectiva. Passando de uma so- Guattari (1992) de que todo conceito, toda noção se
lução logicamente antecipada a um cenário descon- esvanece, adquire novos componentes, se reordena.
certante, rimos porque descobrimos que esse novo Por isso não há um conceito único que se amolde a
não é ruim nem uma ameaça5 . uma única coisa. Toda noção possui um contorno
O riso liberta o pensamento lógico. Ele nos desar- irregular, heterogêneo, e sempre remete a outros con-
ma, inclusive no sentido biológico, porque rompe a ceitos em seu devir. Além disso, o pensamento cientí-
reação de lutar ou fugir (herança animal impressa em fico, por mais que tentemos limitá-lo a uma rígida
configuração, se entrelaça, sem operar uma síntese, às Em inglês, explicar – to explain – também se refere a
proposições e às percepções da filosofia e da arte. justificar, ilustrar, motivar e fundamentar. Tomando
A palavra compreensão, como tantas outras dos por base essas significações, considero, como David
vocabulários de todos os idiomas, serve também para Bohm, que, ao reforçar continuamente o hábito frag-
manipulações dissimuladas da linguagem. George mentário de pensar, acabamos tomando o conteúdo
Orwell, em seu profético livro 1984, nos alerta contra do nosso pensamento por uma descrição do mundo
o totalitarismo da novilíngua, criada pelos poderes como ele é. Ora reduzimos a compreensão à explica-
para nos obrigar a pensar como eles. Cabe a cada um ção; ora estabelecemos que uma compreensão dá con-
de nós o esforço de, frente a cada discurso que prega e ta de toda a complexidade da realidade. Porém, na
fala de compreensão, perguntar sobre a ideologia ca- maioria das vezes, a compreensão é unicamente uma
muflada nas palavras. teoria, uma forma de insight (ou introvisão), ou seja, um
Assim, toda compreensão é uma viagem sem fim: modo de olhar para o mundo, e não uma forma de conheci-
chega a alguns portos, se reabastece e volta a partir. mento de como ele é. Por outro lado, não há nenhuma
Toda compreensão é pontual, parcial, provisória, la- razão para supor que existe ou existirá uma forma de
cunar e inacabada. insight final (correspondente à verdade absoluta), ou mes-
Etimologicamente, compreender, nas suas raízes mo uma série uniforme de aproximações dessa forma final
latinas, é formada pela junção do prefixo com mais o (BOHM, 1992, p. 22, 24).
verbo prehender ou praehendere, formando comprehen- A metáfora bíblica da torre de Babel sintetiza essa
dere ou compraehendere, que significa: impossibilidade da compreensão absoluta. Porém, não
são os diferentes idiomas que mais atrapalham a co-
1. com as mãos agarrar, prender, tomar ou apoderar- municação entre os seres humanos. Nem tanto a au-
se de, pegar; sência de algum sentido, como a audição ou a fala9 .
As muralhas intransponíveis são as emoções e as
2. apanhar em flagrante, surpreender; questões culturais, sociais e políticas. Atualizando o
mito bíblico, o filme Babel (2006), do mexicano Alejan-
3. então tomar conjuntamente, pelo todo, abrangen- dro González Iñárritu, mostra como essas muralhas
temente; ainda atar juntamente, ligando; se fortaleceram no planeta mundializado. Um labi-
rinto de histórias conecta pessoas que vivem no Mar-
4. tomar pela raiz, na base; rocos, nos Estados Unidos, no México e no Japão. O
enredo10 compõe-se de pequenos atos que se transfor-
5. conceber um bebê (dar à luz, sacar, ter um insight). mam em grandes tragédias, numa demonstração ine-
quívoca da ecologia da ação, sugerida por Morin: toda
No idioma inglês, compreender completamente ou ação escapa, cada vez mais, à vontade do seu autor na
corretamente (to comprehend completely or correctly) é medida em que entra no jogo das inter-retro-ações do meio
realizar – to realize –, concretizar, perceber, dar-se onde intervém (2005, p. 41). E é esse jogo do qual todos
conta: to make real; to convert from the imaginary or fazemos parte, mesmo sem consciência do nosso pa-
fictitious into the actual; to bring into concrete existence. pel de jogadores, que compromete qualquer tentativa
Todas essas significações corroboram as caracte- de chegarmos às formas absolutas de compreensão e
rísticas elencadas por Morin sobre o processo da com- de comunicação.
preensão – que se refere aos aspectos do pensamento
simbólico/mitológico/mágico: concreto, analógico,
captações globais, predominância da conjunção, pro- Não são os diferentes idiomas
jeções/identificações, implicação do sujeito, pleno
emprego da subjetividade. A etimologia também con- que mais atrapalham a
firma as diferenças entre compreender e explicar. Ex-
plicação é formada pelo prefixo ex, com idéia de saí- comunicação entre os seres
da, de conclusão, acabamento, mais o verbo plicare
que quer dizer dobrar, enroscar, formando explicatio, humanos.
que pode ser entendido como:
No filme Babel, a decomposição das relações famili-
1. ação de desdobrar, desenrolar, estender, desenfar- ares e a hierarquia de cidadania (os norte-americanos
dar; são tratados como se fossem mais cidadãos do que os
habitantes de outros países) se projetam sobre as soli-
2. esclarecimento e interpretação; dões individuais que formam nichos culturais, soci-
ais e políticos de coletivos magoados que, por sua vez,
3. expor pormenorizadamente, narrando; transformam as vidas cotidianas em apocalipse. Não
há compreensão quando a turista norte-americana
4. desembaraçar, livrar, acabar, terminar, concluir. precisa de atendimento médico no interior do Marro-
(BRAGAMICH, 2003)
cos. O governo de seu país, inferindo ter sido ela desenvolvimento extraordinário com o neocórtex
vítima de um ato terrorista, não permite o envio de (MORIN, 1996, p. 90).
uma ambulância marroquina. Não há compreensão
quando a babá mexicana precisa cruzar a fronteira 7. Música Samba da caixa preta.
com as crianças norte-americanas, para levá-las de
volta para casa. Não há compreensão quando os me- 8. Idem.
ninos marroquinos tentam explicar à polícia de seu
país que não são terroristas. Não há compreensão 9. Para Boris Cyrulnik, a linguagem é o sexto sentido
quando a japonesa surda-muda tenta demonstrar que humano.
tudo o que quer é ser aceita como é e amada.
Apesar da incomunicação verbal, são possíveis al- 10. Um caçador japonês oferece a espingarda ao seu
guns tênues entendimentos: uma idosa marroquina guia marroquino, que a vende a um pastor. Esse,
acalma a dor da norte-americana ferida; a jovem japo- por sua vez, a dá aos filhos para protegerem os
nesa surda-muda demonstra toda a sua vulnerabili- rebanhos dos chacais. Os meninos entretêm-se a
dade a um estranho; as crianças norte-americanas disparar contra um ônibus de turismo e atingem
sabem o que a babá mexicana lhes diz em espanhol. uma norte-americana, em viagem de reconciliação
Dessa forma, Iñárritu destrói a babel das línguas e com o marido. Os filhos do casal estão aos cuida-
constrói outra, a de um mundo absurdo – porém real – dos de uma empregada mexicana, imigrante ile-
onde reina o desamor, como se repetisse os versos de gal. Sem ter com quem deixá-los, atravessa com
Renato Russo sobre poema de Luís de Camões: Ainda eles a fronteira, para assistir ao casamento do
que eu falasse a língua dos homens. E falasse a língua dos filho. No regresso, conduzidos pelo sobrinho da
anjos, sem amor eu nada seria11 . Ou, posso acrescentar: mexicana, têm problemas com a polícia fronteiriça
sem amor eu nada compreenderia... Mas como causar e as crianças acabam perdidas no deserto. A mexi-
pode seu favor nos corações humanos amizade, se tão con- cana é extraditada. O caçador japonês, cuja espo-
trário a si é o mesmo amor?nFAMECOS sa suicidou-se, tem uma filha surda-muda que
tenta integrar-se aos grupos jovens de Tóquio, fre-
NOTAS qüentando bares e boates e fazendo uso de drogas.
5. Gelontologia – estudo do riso. Viver Mente & Cére- BOHM, David. A totalidade e a ordem implicada. Trad.
bro – Revista de Psicologia, Psicanálise, Neuro- Mauro de Campos Silva. SP: Cultrix, 1992.
ciências e Conhecimento – Ano XIII – n. 141, out./
2004, p. 34-39. BRAGAMICH, Rubens. Digressões acerca da idéia de
compreensão. Texto apresentado na seção
6. A partir das pesquisas de Mac Lean, Edgar Morin Temas Livres do XI Simpósio Internacional
elabora a versão complexa do cérebro triúnico: da Associação Junguiana do Brasil, realizado
uma unitas multiplex cerebral humana de uma he- em 2003.
rança animal ultrapassada, mas não abolida; uma
trindade, e não uma tripartição, que comporta o CYRULNIK, Boris. Memória de macaco e palavras de
paleocéfalo reptiliano; o mesocéfalo dos antigos homem. Trad. Ana Maria Rabaça. Lisboa:
mamíferos, e o córtex que, no homem, alcança um Instituto Piaget, s/d.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método – traços STEIN, Ernildo. Compreensão e finitude: estrutura e
fundamentais de uma hermenêutica movimento da interrogação heideggeriana. Ijuí:
filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer; revisão Ed. Unijuí, 2001.
da tradução de Ênio Paulo Giachini.
Petrópolis/RJ: Vozes, 1998, 2ª. ed. SLOTERDIJK, Peter. O desprezo das massas – ensaio
sobre lutas culturais na sociedade moderna.
LE BRETON, David. Do silêncio. Trad. Luís M. Trad. Claudia Cavalcanti. São Paulo: Estação
Couceiro F. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. Liberdade, 2002.
LUFT, Lya. Perdas e ganhos. Rio de Janeiro: Record, SWANWICH, Keith. Ensinando música, musicalmente.
26ª. ed., 2004. São Paulo: Ed. Moderna, 2003.
MATTÉI, Jean-François. A barbárie interior – ensaio VERGANI, Teresa. Excrementos do sol – a propósito de
sobre o i-mundo moderno. Trad. Isabel Maria diversidades culturais. Lisboa: Pandora, 1995.
Loureiro. São Paulo: Editora UNESP, 2002.