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Introdução

Nosso artigo tem em vista investigar o problema do


trabalho e da riqueza ao longo do pensamento filosófico e
econômico ocidental. Para isso, começamos analisando o conceito
de riqueza e trabalho na Grécia Antiga, berço da civilização
europeia, e encerramos com os economistas modernos,
especialmente com Smith e Ricardo.

1. Trabalho e riqueza no pensamento grego


Inicialmente é importante lembrar, segundo Vernant1,
que no vocabulário grego antigo não existia a palavra “trabalho”.
Os gregos nunca associaram a origem da riqueza ao trabalho, ou
seja, a uma atividade humana que exige certo dispêndio de
energias físicas e intelectuais. Para os gregos da época homérica,
e mesmo para a época clássica, a riqueza tinha sua fonte na
Natureza (physis). Era do “trabalho” da terra que vinham os frutos
que alimentavam a mesa da cidade, e não do esforço e do
Trabalho e riqueza
trabalho dos camponeses. Para os gregos antigos, a terra era uma
no pensamento antigo e moderno espécie de divindade que abastecia a casa segundo uma vontade
Jadir Antunes que lhe era própria.
A abundância de riqueza produzida pela terra dependia
A base de toda divisão do trabalho desenvolvida e sempre do bom ou mau humor dos deuses da fertilidade e da
mediada pelo intercâmbio de mercadorias é a
separação entre a cidade e o campo. Pode-se dizer que
toda a história econômica da sociedade resume-se no
movimento dessa antítese. (Karl Marx, O Capital - Livro
1
I). J-P. Vernant & P. V. Naquet: Trabalho e escravidão na Grécia Antiga.
Campinas: Papirus, 1989, p 10.
fartura, como o humor da deusa Demeter2. Por isso, os gregos da terra através de um artifício humano, de um artifício técnico, era
época homérica, diz Vernant, não concebiam o trabalho agrícola considerada pelo camponês como um sacrilégio e ofensa aos
como um ofício de homens especializados que requer certo saber deuses que, irados, poderiam se vingar mandando pestes e secas
técnico capaz de aperfeiçoar as potências da terra e, assim, na próxima safra.
produzir mais riquezas num menor tempo e com menos esforço A superstição grega era compreensível se levarmos em
humano. consideração as condições especiais em que se desenvolvia o
Segundo Vernant3, o trabalho para o camponês grego trabalho no campo. Onde não existem técnicas de produção
era concebido como uma forma de vida moral, como uma forma desenvolvidas, uma colheita mais ou menos farta será sempre o
de experiência religiosa e de comunhão com os deuses da terra. produto do acaso da Natureza. Com clima bom haverá sempre
Por isso, antes de desenvolver uma técnica agrícola voltada para uma boa colheita. O contrário ocorrerá quando o clima fugir de sua
o aperfeiçoamento de seu trabalho, o camponês grego preferia regularidade. A arte agrícola responde menos aos esforços
levantar altares e oferecer sacrifícios e orações a esses deuses, humanos do trabalho do que o trabalho do artesão da cidade,
na esperança de que eles lhe trouxessem uma colheita onde certas técnicas de produção e um maior esforço humano
abundante. podem ser empregados com maior sucesso.
Como diz Vernant, “a cultura da terra não passa, ela As artes da fabricação do vinho e do plantio de trigo
própria, de um culto que institui o mais justo dos comércios com os podem nos dar um bom exemplo de como se formavam as
deuses”4. Por isso, qualquer tentativa de se ampliar os poderes da concepções do camponês grego sobre a origem da riqueza.
Sabemos que na fabricação do vinho e no cultivo do trigo nem
2
Demeter era considerada a deusa das estações e das boas colheitas na todo tempo de trabalho é tempo de trabalho humano. O tempo em
mitologia grega. Conta a lenda que Demeter teve sua filha Perséfone roubada
por Hades, o deus do subterrâneo, que a tomou como sua mulher. Descobrindo que a uva permanece fermentando e em que o trigo germina e se
o rapto, Demeter fora reclamar a Zeus, deus de todos os deuses, a reparação
da injustiça. Zeus, então, na tentativa de agradar a todos, permitiu que desenvolve pela ação da Natureza, é um tempo de trabalho que
Perséfone passasse seis meses com Hades na solidão do inferno e seis meses
pertence exclusivamente à Natureza. Esteja o camponês em
sobre a terra junto com a mãe. Segundo a lenda, ainda, a variação do clima e
das estações seguiria o humor da deusa Demeter. Quando alegre ao lado de atividade ou em repouso, a Natureza trabalhará em seu lugar. Ao
Perséfone, viriam o verão e a primavera e quando longe e triste viriam o outono
e as nevascas do inverno. Demeter fora adotada como deusa também pelos camponês caberá o trabalho de plantar e colher o trigo e de colher
romanos, que a chamaram de Ceres, a deusa dos cereais.
3
Vernant & Naquet, p. 13.
4
Vernant & Naquet, p. 17.
e amassar a uva no tempo certo. O trabalho principal será feito influenciados pelas crenças religiosas rurais, os gregos antigos
pela Natureza. não desenvolveram a técnica e a ciência no sentido moderno.
Por esses motivos, ao camponês antigo cabia a tarefa
de conhecer e de ajustar-se aos movimentos da Natureza, de 1.1 A técnica antiga
obedecer a vontade divina da physis e de adequar-se a ela sem Ao contrário do campo, na cidade desenvolvia-se o
resistência. Por isso, na concepção do camponês grego, um bom trabalho artesanal e especializado, onde já se empregavam certas
vinho e uma boa colheita de trigo eram muito mais o resultado do técnicas para aperfeiçoar o trabalho humano. O artesão, diferente
trabalho da Natureza do que do seu próprio trabalho. Desse modo, do camponês, era um trabalhador que já dominava um ofício e
submetida aos desígnios da Natureza, a arte rural era uma arte estava integrado a uma divisão técnica e social do trabalho. No
contemplativa que se submetia à regularidade dos movimentos da trabalho artesanal já se empregavam técnicas artificiais capazes
Natureza. Por isso, segundo a concepção do camponês grego, no de elevarem a produtividade do trabalho humano, ou seja, se
campo o maior ou menor esforço do trabalhador sofria sempre a empregavam certas técnicas capazes de produzirem mais
interferência dos humores dos deuses que regiam a abundância riquezas com um menor esforço e num menor tempo de trabalho.
de riqueza. No trabalho artesanal, a riqueza se multiplicava de acordo com as
Dessa concepção mística surgia a idéia de que a justiça técnicas empregadas em cada ofício. Nele, uma maior ou menor
era uma atribuição divina que tratava bem quem tratava a terra do expansão da riqueza já era mais fruto do esforço e artifício
mesmo modo bem. A terra dava ao homem do campo tantos bens humanos e menos da vontade dos deuses.
quantas fossem as orações e os sacrifícios oferecidos aos deuses. Contudo, nem por isso os gregos da cidade deixaram de
Por esse caráter místico e religioso, como diz Vernant5 citando o acreditar que a riqueza possuía um fundamento místico e
pseudo-Aristóteles, de todas as ocupações a agricultura detinha o religioso, como acreditavam os camponeses. Para eles, assim
primeiro lugar na ordem da justiça grega antiga. Por esse motivo, como o trabalho do campo, o trabalho artesanal da cidade era
enquanto a terra trabalhava e produzia a riqueza, os camponeses uma atividade submetida aos mandamentos da Natureza. Se
dedicavam seu tempo livre em rituais religiosos improdutivos e a antes o trabalho do camponês rendia mais ou menos segundo os
escutar a voz dos deuses e da physis. Por esse motivo, movimentos e a lentidão do clima, agora o trabalho do artesão
metalúrgico dependia da maior ou menor potência do fogo, uma
5
Vernant & Naquet, p. 17.
força tão natural e independente da vontade humana quanto as onde o escravo era concebido mais como parte da família do que
chuvas e o calor do sol. como trabalhador e instrumento de produção. O oikétès (o escravo
A técnica rural dos antigos não era propriamente uma doméstico) era um escravo rural que estava unido ao senhor por
técnica no sentido moderno da palavra, pois não visava obter uma relação de pertencimento familiar. Por este aspecto patriarcal
aumentos quantitativos da riqueza. O mundo antigo grego não se da escravidão, entre senhor e escravo reinava uma relação de
interessou em racionalizar e sistematizar o trabalho por vários fidelidade e um forte espírito de solidariedade. Como parte da
motivos. O primeiro deles relaciona-se com o tamanho da família, os escravos partilhavam de suas alegrias e de suas
propriedade rural. tristezas, assim como, ao lado do senhor e sob sua supervisão,
6
Segundo Garlan, ainda que no período clássico já trabalhavam a terra, fabricavam instrumentos e cuidavam do
surgissem grandes propriedades rurais – propriedades com no gado.7 Nessas mesmas propriedades trabalhavam ainda na
máximo 30 ha de terra – os gregos em sua época clássica eram, residência do senhor um pequeno número de escravos
em sua maioria, proprietários de pequenas unidades familiares responsáveis pela realização dos diferentes serviços domésticos,
rurais (os oikos) com uma extensão de terras aproximada de 3 a 5 sendo o principal deles o da tecelagem, ao lado da esposa do
ha. Esses pequenos camponeses exerciam o trabalho na terra cidadão camponês. Por isso, mais do que educar o escravo como
auxiliados por cerca de 3 escravos em média. Durante o tempo trabalhador para desenvolver suas habilidades produtivas, a
livre, esses camponeses se dedicavam às atividades públicas na família educava o escravo para ser um animal doméstico
cidade – como a participação nos comícios, nos tribunais e nas obediente e fiel a ela.
mais diversas magistraturas – ou ainda aos cultos religiosos da Na cidade, em seu período clássico, já existia certa
família no interior do próprio oikos. divisão social e artesanal do trabalho e uma classe trabalhadora
O segundo grande motivo do relativo atraso técnico do numerosa dividida entre escravos e artesãos estrangeiros. O
mundo antigo deve-se à escravidão. Além da pequena escravo (doulos) era um escravo-mercadoria capturado em
propriedade auto-suficiente de caráter patriarcal, no campo expedições e guerras contra o Mediterrâneo. Na época clássica,
predominava ainda o trabalho escravo em sua forma doméstica, diz Garlan (1984, p. 32),8 doulos era a palavra mais popular para

6 7
Yvon Garlan: Les esclaves en Grèce ancienne. Paris : Éditions La découverte, Garlan, p. 48.
8
1984, p. 74. Garlan, p. 32.
se referir à escravidão. Semanticamente, doulos se opõe implícita mercadoria ser agora um saber mais eficiente que o saber do
ou explicitamente a éleuthéros (o homem livre), e mais ainda a escravo doméstico, ele permaneceu sendo um saber
polités (o cidadão). Doulos, por isso, aparecia sempre ligado a eminentemente prático e empírico voltado apenas para o
uma relação de dominação e possessão. No sentido mais estreito aperfeiçoamento do produto e não do trabalho.
do termo, doulos significava o escravo perfeito desprovido de toda Por saber técnico, supomos certo saber especializado
liberdade. Num sentido mais amplo, doulos significava qualquer que se acumula ao logo de várias experiências, como um saber
tipo de submissão a uma força estrangeira. Doulos podia ainda que é produto da observação e destinado ao aperfeiçoamento do
significar sujeição política, servidão moral e subordinação. trabalho e ao aumento de sua eficiência e produtividade. A
O escravo de tipo ateniense, o doulos, era, antes de produtividade do trabalho é aumentada quando o trabalhador
tudo, um objeto de propriedade de um senhor (um despotès) e consegue produzir com o mesmo esforço e com o mesmo tempo
transmissível a outro senhor, seja cidadão (polités) ou estrangeiro de trabalho uma quantidade maior de riqueza. Para isso, é
residente (métèques), como gado ou bem móvel, independente de fundamental que ele desenvolva a técnica. Os gregos nunca viram
sua vontade. O doulos era desprovido de qualquer personalidade na eficiência do trabalho uma maneira de tornar o trabalhador
jurídica, existindo, por isso, como coisa ou objeto de trabalho ou mais produtivo e eficiente quantitativamente, mas apenas o de
9 10
de troca (Garlan, 1984, p. 54). Segundo Garlan (1984, p. 69), tornar o produto do trabalho mais útil e perfeito para o uso
pode-se afirmar com alguma precisão que na Atenas clássica humano. Como diz Glotz,11 números eram o que menos
havia cerca de 21 mil atenienses cidadãos, 10 mil metécos e 400 preocupavam os gregos. “A estatística... era totalmente
mil escravos. desconhecida tanto dos estudiosos como das próprias cidades...
O caráter mercadoria da escravidão urbana não foi mais Na história antiga não há – ou há tão pouca – verdade
favorável para o desenvolvimento da técnica do que o caráter quantitativa”.
doméstico da escravidão rural. O caráter extorsivo e violento do Certo progresso no desenvolvimento e aperfeiçoamento
trabalho escravo impediu qualquer progresso técnico no interior do de instrumentos técnicos de produção foi bloqueado no mundo
sistema artesanal antigo. Apesar do saber técnico do escravo- antigo pelo caráter extorsivo do trabalho. Como explica Marx em O

9 11
Garlan, p. 54. Gustave Glotz : História econômica da Grécia. Lisboa : Edições Cosmos,
10
Garlan, p. 69. 1949, p. 18.
Capital12, ainda que os antigos equiparassem o trabalho escravo sistema manufatureiro da cidade. Segundo Garlan,13 o trabalho
ao trabalho animal, o escravo tinha autoconsciência de sua escravo jogava um papel essencial nessas pequenas oficinas.
humanidade e diferença com o mundo animal. Esta Segundo ele, eram raros os artesãos que não dispunham de certo
autoconsciência manifestava-se no tratamento brutal que o número de trabalhadores como escravos. Os escravos mercadoria
escravo imprimia aos animais e instrumentos de trabalho, ao tinham ainda um papel central na execução de diferentes
maltrata-los e destruí-los sem piedade. A regra seguida pelos trabalhos improdutivos como no comércio, nos bancos e nos
senhores era, então, a de entregar aos escravos apenas trabalhos públicos.
instrumentos de trabalho baratos, pesados, toscos e rudimentares O escravo-artesão, diferente do camponês e do escravo
difíceis de serem destruídos pela fúria da escravidão. Marx ainda rural, era um trabalhador que já dominava um ofício e estava
cita o caso da escravidão negra americana, onde eram entregues integrado a uma divisão técnica e social do trabalho. No trabalho
aos escravos mulas em vez de cavalos para o trabalho, pois as artesanal já se empregavam técnicas artificiais capazes de elevar
mulas eram muito mais resistentes que os cavalos aos maus a produtividade do trabalho humano, ou seja, se empregavam
tratos desferidos pelos negros. Ao contrário das mulas, que certas técnicas capazes de produzir mais riquezas com um menor
resistiam às mais impiedosas surras, os cavalos, em pouco tempo, esforço e num menor tempo de trabalho. No trabalho artesanal, a
ficavam aleijados e inutilizados para o trabalho devido ao excesso riqueza se multiplicava de acordo com as técnicas empregadas
de brutalidade imprimido pelos escravos. em cada ofício. Nele, uma maior ou menor expansão da riqueza já
Nas cidades antigas gregas eram encontradas era mais fruto do esforço e artifício humanos e menos da vontade
pequenas oficinas artesanais, geralmente de propriedade de um dos deuses. Apesar de certo progresso quantitativo da riqueza
homem livre estrangeiro, onde se fabricavam diferentes produtos, com o trabalho especializado em comparação com o não-
tais como vasos de barro, arreios e montarias para animais, especializado, a finalidade da especialização não era o aumento
vestimentas, móveis, instrumentos musicais e de guerra. Assim, quantitativo da riqueza, mas sim, sua perfeição qualitativa.14
certa divisão e especialização do trabalho já era encontrada no Segundo Vernant, os artesãos nunca empregaram a
técnica em seus diferentes ofícios para dominar as forças da

12 13
Kal Marx, O Capital, Livro I, v. 1, pp. 154-155. São Paulo: Editora Abril Garlan, p. 77.
14
Cultural, 1988. Glotz, pp. 198-205.
Natureza e as submeterem à vontade humana. A técnica era propriedade. O proprietário de escravos tinha um poder absoluto,
empregada apenas com o sentido de aperfeiçoar o produto do de vida ou morte, sobre seu escravo. Sobre o escravo não recaía
trabalho e nunca o trabalho do produtor. Segundo ele, apesar de o direito público, o direito que regulava as relações políticas entre
certo desenvolvimento técnico e científico em relação ao campo, os homens livres da cidade, mas sim, o direito doméstico, onde
os ofícios da cidade continuavam submetidos ao misticismo seu senhor o governava despoticamente. O escravo, por isso, não
religioso. Por isso, a mesma concepção de que a abundância de tinha personalidade jurídica e muito menos política.
riqueza era mais fruto do trabalho da Natureza do que do homem Não sendo uma pessoa, o escravo não dispunha de seu
continuava predominando também no interior da cidade. próprio corpo, que pertencia a outro. Sendo ele próprio uma
Nesta concepção mística, o trabalho do artesão, como o propriedade, jamais poderia, como escravo, ser proprietário.
do camponês, nunca era visto como a fonte original da riqueza, ao Segundo uma bem conhecida tese filosófica de Aristóteles, os
lado da Natureza, mas apenas como seu meio. O artesão era escravos se diferenciavam dos animais de tração apenas pelo fato
considerado pela cultura grega como um mero instrumento da de que falavam. Desse modo, sendo o escravo uma propriedade e
riqueza e nunca como seu verdadeiro sujeito e criador. Como diz um instrumento animado de trabalho, “uma equipe de escravos é
Vernant, “os artesãos só desempenham o papel de intermediários: uma máquina que tem homens por peças”, diz Gustave Glotz16.
são os instrumentos através dos quais se realiza um valor de uso Assim, ao lado das crenças religiosas rurais, o preconceito com o
num objeto”.15 Na concepção místico-filosófica da cidade, os trabalho escravo contribuiu para impedir todo desenvolvimento
artesãos, apesar de não serem escravos e propriedades de outro técnico e científico no mundo antigo. Em lugar do desenvolvimento
homem, apesar de exercerem seu trabalho como homens livres da ciência e da técnica no sentido moderno, os gregos preferiram
dentro de sua própria oficina, eram concebidos como ferramentas dirigir suas energias intelectuais para o desenvolvimento da
ou instrumentos de trabalho, semelhantes aos animais de tração e filosofia, da arte e da especulação abstrata sobre o mundo.
ao arado do camponês. Segundo as concepções filosóficas da cidade, o
Muito abaixo dos artesãos estavam, ainda, os escravos elemento fundamental da riqueza não era, como temos visto, o
da cidade, considerados um instrumento animado de produção e trabalho do artesão, mas sim a demanda do usuário. O artesão em
pertencendo jurídica e economicamente a outro homem como sua
16
Gustave Glotz: História econômica da Grécia. Lisboa: Edições Cosmos, 1946,
15
Vernant & Naquet, p. 31. p. 185.
sua oficina já não produzia seu produto com a finalidade de ele Segundo ele, a arte do flautista era superior à do artesão por ser
mesmo consumi-lo, como ocorria no campo onde predominava a uma arte voltada para a ação. A arte do fabricante era inferior
auto-suficiência e a unidade entre trabalho agrícola e artesanal. exatamente porque na concepção filosófica de Platão, o fabricante
Ele o produzia para outro na forma mercadoria. E o produzia fabricou a flauta em vista do uso do flautista, em vista de uma
segundo as necessidades e a encomenda do usuário. Por isso, ação e de uma finalidade que estavam separadas dele próprio
segundo a concepção grega, o fundamento da riqueza era o como produtor, e a finalidade e a ação são concebidas como
usuário, que determinava suas propriedades e seu uso, e não o metafisicamente superiores à arte da produção (Cf. A República
trabalho do artesão, que a produzia mas não a consumia nem 601b a 602b).
desfrutava de suas propriedades. Segundo a concepção de Platão, o fabricante de flautas
Os gregos chamavam essa atividade do artesão de era um mero servo ou instrumento das necessidades do flautista.
produção (poiésis) e a do usuário de ação (práxis). As ferramentas Segundo essa concepção, a atividade do flautista, a sua ação, era
de trabalho apenas produzem mas não agem. O homem produz também superior à atividade do fabricante de flauta, vista como
algo, quando este algo é uma coisa tangível, sensível e objetiva uma atividade meramente mecânica e instrumental. Ao executar
que pode separar-se dele como coisa. O homem age quando sua sua música o flautista produzia um produto superior à própria
ação se encerra nela mesma e quando esta ação não se separa flauta, produzia um discurso, sua música, destinado à satisfação
dele próprio. A arte da ação não pode ser objetivada, ao contrário das necessidades superiores da cidade, as necessidades de
da arte da produção, pois seu produto é geralmente um discurso. ordem espiritual. A arte do usuário governava, assim, a arte do
Um exemplo dessa relação entre ação e produção pode fabricante.
ser encontrado em A República17, de Platão, onde um tocador de O governo de Péricles (século V) foi o auge da
flautas encomenda uma flauta ao artesão. Platão acreditava haver democracia grega. Nela, todos os cidadãos foram, de uma
três artes diferentes na cidade: a do uso, a da fabricação e a da maneira ou de outra, incorporados à plena cidadania ateniense.
imitação. Esta última era a arte sofística da mera cópia ou imitação Porém, ainda que durante o domínio de Péricles os artesãos livres
que não possuía nenhum conhecimento válido para a cidade. A do – certa porção de atenienses de nascimento que haviam perdido
uso era a arte do usuário e a da fabricação a arte do fabricante. suas terras para os grandes proprietários rurais – participassem
ativamente da política, dos cargos públicos e dos comícios da
17
Platão. A República. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2006.
cidade, sua participação era condenada pela massa dos dicotomia entre causa eficiente ou motriz e causa final. O
camponeses. Apesar de sua importância econômica para a fabricante ocupa uma posição inferior nessa divisão do trabalho
cidade, esses artesãos eram mal vistos pela massa da população porque ele é apenas a causa eficiente, motriz, instrumental ou
livre porque sua atividade era uma mera fabricação, porque era mecânica da flauta, enquanto o flautista ocupa a posição superior
uma atividade mecânica e artificiosa, porque criavam coisas porque ele é a causa final do processo, a causa para a qual
misteriosas impossíveis e serem criadas espontaneamente pela tendem todas as coisas do Universo.
physis. Segundo Aristóteles em sua Política, a virtude de um
Os artesãos deveriam ser excluídos da comunidade bom cidadão era a de saber tanto governar quanto de ser
política e viver como meros servos e instrumentos de suas governado. O artesão, servo ou escravo, não poderia, por esse
necessidades superiores, porque sua ação era vista como mera motivo, ser aceito como cidadão, pois das duas virtudes cardeais
submissão e servidão, porque – ao contrário da atividade rural do da cidadania ele só possuía uma: a de ser governado. Um estado
camponês livre, para quem a physis trabalhava gratuitamente e a de homens livres não poderia, desse modo, aceitar o trabalhador
ausência do trabalhador não influenciava no processo de trabalho como cidadão. Por isso, como diz Aristóteles, “o melhor Estado
– estavam presos às necessidades do processo de trabalho, não fará do trabalhador um cidadão”.18
porque não poderiam afastar-se deste processo e dedicarem-se à Assim, apesar da importância do trabalho manual para a
cidadania por inteira sem que o trabalho fosse interrompido e se vida da cidade, ele não foi considerado pela cultura grega como o
destruísse pela ausência do trabalhador. Na visão destes elo de ligação entre os homens capaz de fundamentar a vida
camponeses, a comunidade política deveria ser exercida, por isso, humana em sociedade. O elo de ligação, segundo a concepção
exclusivamente por homens de ação, por homens oriundos da filosófica grega, deveria ser um elo natural e afetivo. Para ser
campanha, livres e emancipados da arte de produzir suas próprias membro da cidade, era fundamental que o indivíduo descendesse
necessidades. Especialmente se estes homens forem ricos e das suas famílias fundadoras. Para ser membro do corpo superior
possuírem um bom número de escravos para trabalharem suas da cidade, para ser membro da comunidade política, religiosa e
terras.
A metafísica de Aristóteles explicava essa mesma
superioridade da arte do flautista sobre a do fabricante pela 18
Aristóteles: Política. Tradução de Therezinha Monteiro Deutsch e Baby Abrão.
Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 220.
jurídica era necessário que o indivíduo possuísse sangue heleno, trabalho na terra, em grande parte concorria em dignidade e
o sangue dos primeiros homens que fundaram a cidade. virtude com a atividade política e guerreira – as atividades por
Por isso os artesãos, geralmente estrangeiros, os excelência dos homens livres.
chamados metecos, ficaram de fora da comunidade política grega, Já o trabalho do artesão estrangeiro, seja livre ou
ao menos em seu período clássico, e participaram dela apenas escravo, como vimos, era visto como ocupação de estranhos, de
como servos ou ferramentas de produção. Como diz Naquet19, ao homens sem pátria, sem família e sem religião. O trabalho do
contrário da Grécia Antiga, em Florença, já na Idade Média artesão imigrante era visto pelo camponês como trabalho de
européia, era-se cidadão na medida em que se pertencia a uma homens proscritos em sua própria terra natal que eram acolhidos
arte, ou seja, a um ofício. nas cidades gregas como servos e instrumentos de produção. O
Segundo a sabedoria dos camponeses gregos, no trabalho do artesão era visto pelo camponês como trabalho em
campo imperavam formas superiores de trabalho humano, vista do outro e não de si próprio, como trabalho que visava o
devendo ser o campo a forma ideal de vida almejada pelos dinheiro e não a satisfação das necessidades naturais do homem.
homens. No campo imperava um intercâmbio mágico e religioso E com o dinheiro, diziam os camponeses, vinha a corrupção dos
entre os homens e a Natureza. A terra, propriedade dos deuses da valores religiosos e da virtude da cidade.
família, era considerada uma divindade que dava aos homens Para além dos preconceitos nacionais, das crenças
tudo o que necessitavam para viver sem luxo e sem vícios. religiosas e das concepções filosóficas gregas, esta exclusão do
Como dizia o pseudo-Aristóteles, citado por Vernant20, trabalhador estrangeiro da cidadania grega pode ser explicada
os homens tiravam da agricultura seu alimento, como todos os racionalmente. No campo predominava o chamado oikos, uma
seres, por natureza, o extraem de sua mãe. Para os camponeses pequena propriedade agrícola fundada na auto-suficiência, na
gregos, o trabalho na terra nada tirava dos homens, mas, ao unidade entre trabalho artesanal e trabalho agrícola. Na casa da
contrário, a eles tudo dava em abundância sem troca. Na cidade, família, a mulher e as filhas, e algumas vezes com o auxílio de
porém, tudo acontecia ao contrário. Nela predominava o comércio servas, produziam todos os bens necessários para uma vida
entre os homens e os vícios trazidos por esse comércio. O simples e sem comodidades. Juntas, cozinhavam, trabalhavam na
horta e teciam a própria roupa da família. No campo, o patriarca
19
Vernant & Naquet, p. 8. da família, também algumas vezes com o auxílio de um escravo,
20
Vernant & Naquet, p. 19, nota 43.
cultivava a terra e ainda fabricava os móveis da casa. Cada família interesses eram laços externos ao trabalho. Além dos laços
era, assim, uma unidade autônoma de produção. naturais de sangue, os gregos ainda associavam a sociabilidade
Entre as diferentes famílias espalhadas pelos campos humana a um laço afetivo chamado genericamente de amizade: a
não existia uma profunda ligação econômica e industrial, pois não philia. Por ser de natureza afetiva e racial, por ser um elo parcial e
havia grande comércio entre elas. O único elo de ligação existente excludente, a philia era, por isso, um falso elo de sociabilidade
entre estas diferentes famílias era a nacionalidade helênica, com entre os homens.
sua língua e religião própria. Por isso, para ser membro da Os artesãos, como os escravos, por não possuírem
comunidade política instalada na cidade era necessário ser heleno esse elo de sangue e afetividade, por não conhecerem as formas
de sangue. mais elementares de sociabilidade, como a família e a religião, por
Entre os artesãos da cidade também não havia uma não possuírem nenhuma forma de comunidade entre eles (étnica,
comunidade de interesses fundada no trabalho. A divisão religiosa e lingüística), estavam apartados da política e presos ao
artesanal da cidade não seguia um plano preciso e racional domínio da produção. Por estarem fora da política, os artesãos,
segundo sua série de necessidades. Entre os artesãos gregos, assim como os escravos, não podiam evidentemente possuir
muito diferente dos artesãos do final da Idade Média européia com partido político próprio.
seus grêmios, não existiam associações profissionais que Por isso, apesar das revoltas freqüentes contra a
regulassem racionalmente seus próprios ofícios. As cidade gregas, escravidão e a servidão, as revoltas antigas não resultavam em
especialmente Atenas, apesar de não estarem abertas para a revoluções, em tomada do poder e em uma nova forma de
cidadania não-helênica eram cidades abertas para o estrangeiro. sociabilidade humana. Apesar dos artesãos livres, os chamados
Para elas acorriam todos os estrangeiros desgostosos com sua demiurgos21, aqueles membros do demos que obram para a
própria pátria de nascimento. Ali, portadores de certo saber cidade, serem lentamente integrados ao longo do século VI a.C
técnico, podiam ganhar a vida honestamente como artesãos. em diante nas estruturas políticas da cidade, participando dos
Mas entre os diferentes ofícios reinava muito mais a
21
pluralidade, a fragmentação e a dispersão do que a unidade. Por Demiurgo é a junção do substantivo demos, que significa, num largo sentido,
povo, com o verbo ergon, que significa, largamente, fabricar, obrar, fazer algo
isso, na concepção helênica, os laços de sociabilidade capazes de não feito pela natureza. O δημιουργός pode ser entendido, portanto, como
aquele que fabrica algo em vista do público ou povo. O artesão grego também
fundarem a cidade como uma verdadeira comunidade de era chamado de cheirotéchnon (χειροτέχνου – Aristotóteles, Metafísica 1.981b):
aquele que fabrica algo com as mãos.
cargos estatais, do judiciário e do exército, alcançando o auge no riqueza já não existia livremente como um bem natural, mas sim
governo de Péricles, por não formarem propriamente uma classe como mercadoria, que para saciar as necessidades de seu usuário
social e por não possuírem seu próprio partido político, suas lutas deveria ser obtida mediante troca por dinheiro.
se limitaram aos marcos da integração na democracia 3) Existia ainda nas cidades o comércio com o
escravagista. estrangeiro, o chamado empório. Os emporói, em sua maioria,
eram metecos que negociavam mercadorias que eles mesmos
1.2 As origens gregas da Economia Política
não fabricavam. Eram mercadores internacionais que compravam
Após a plena formação e consolidação da cidade grega,
e vendiam com a intenção do ganho. Os mais ricos possuíam seu
séculos VI e V a.C em diante, podemos afirmar que ela estava
próprio navio e viajavam longas distâncias pelo Mediterrâneo. Os
repartida em três ramos diferentes.
mais fracos juntavam-se num mesmo navio, cada um com suas
1) No campo, apesar de ainda predominar a pequena
próprias mercadorias, e lançavam-se mar adentro em busca de
propriedade fundiária voltada para a auto-subsistência, a terra já
dinheiro. Atenas, com seus próprios emporói, apoiada sobre uma
não era mais inalienável, podendo, por isso, ser alienada no
grande frota naval, foi vanguarda nesta espécie de comércio. Nela
comércio. Antes da formação da cidade a terra era patrimônio da
se desenvolveu, por isso, o grande mercador ultramarino
família. Na concepção mística do camponês grego ela era na
interessado em enriquecer nesse comércio internacional. Sua
verdade propriedade dos deuses da família e não podia, de modo
meta, deste modo, era a conquista dos mares e da riqueza na
algum, sob pena de se cometer sacrilégio, ser comercializada.
forma dinheiro – em ouro especialmente. Por isso, como diz
Porém, com o desenvolvimento das relações comerciais na cidade
Vernant22, a partir do século IV a.C, período de dissolução e crise
na era clássica, e certo apogeu já durante o helenismo, em Atenas
da cidade, “tudo será contado em dinheiro”.
especialmente, a terra já poderia ser convertida em mercadoria e
Entre todos os grandes pensadores da Grécia Antiga,
alienada no mercado sem ferir as divindades.
Aristóteles foi quem mais se ocupou com o estudo da natureza da
2) Nas cidades predominava a escravidão artesanal, o
mercadoria. Em sua Política – no Livro I especialmente, Aristóteles
trabalho manufatureiro e a troca simples de mercadorias, a troca
se preocupava em questionar a legitimidade dessa forma de
que visava o valor de uso e complementar as carências dos
acumulação de riqueza trazida pelo comércio internacional. Para
produtores individuais advindas da especialização do trabalho. A
22
Vernant & Naquet, p. 77.
ele havia dois tipos de riqueza, uma natural e outra artificial. A usada de uma maneira imprópria e antinatural, como objeto de
riqueza natural era aquela representada pelos valores de uso troca e acumulação de dinheiro.
conquistados através da agricultura, da pecuária, da pesca, da No campo, no oikos, não havia trocas por dinheiro, entre
caça e até mesmo do roubo à mão armada, considerado por ele as diferentes famílias as trocas não passavam de escambo. Com
como uma espécie de caça. A massa da riqueza natural à qual a evolução da sociedade, com sua divisão entre cidade e campo e
todo homem poderia legitimamente dedicar seus esforços era, as relações com o estrangeiro, surgiram as trocas por dinheiro e
como podemos ver, aquela oriunda do trabalho rural. As atividades com ela o processo irracional e contrário à ordem da natureza: o
comerciais dos emporói eram atividades, segundo Aristóteles, processo de empilhar dinheiro. De um lado estava, então, a
contrárias a esse modo natural de se adquirir riquezas e por isso riqueza em sua forma natural e verdadeira, e de outro estava esse
deveriam ser condenadas na cidade, por serem trocas que têm em processo de empilhar dinheiro, sem espaço na natureza,
vista a apropriação de dinheiro e não a de satisfazer uma pertencente ao comércio e não à produção de bens no sentido
necessidade humana. Aristóteles chama estes emporói de kapêlos próprio da palavra. Para esse último processo não haveria limites
e sua arte de kapêlikê, ou chrematistiké, a arte de comprar e para o enriquecimento porque agora a riqueza e sua acumulação
vender em vista do dinheiro. formavam, em si mesmas, sua finalidade. Enquanto a riqueza em
Aristóteles conseguia perceber claramente a contradição sua forma útil e própria possuiria limites naturais para se expandir
contida nas formas de riqueza não-naturais representadas pela na cidade, o trabalho de empilhar dinheiro, ao contrário, poderia se
mercadoria e pelo dinheiro, especialmente por este último. O desenvolver livremente sem os grilhões impostos pela Natureza.
exemplo empregado por ele em sua Política para demonstrar a Aristóteles demonstrava que as formas naturais de
duplicidade da riqueza sob a forma mercadoria foi o da sandália. riqueza têm sempre em vista a satisfação de uma necessidade
Segundo ele, cada artigo possui um duplo uso, não-similares e natural do homem, enquanto o dinheiro, de modo contrário, tem
contraditórios. Um seria próprio do artigo e o outro não. Uma em vista apenas uma finalidade em si mesma e por isso artificial.
sandália pode ser usada tanto como calçado no pé de um homem Quando o dinheiro deixa de ser empregado em sua forma natural,
quanto como instrumento de troca. No primeiro caso, a sandália é como mero meio de troca, e se converte na finalidade da troca, ele
usada enquanto tal, enquanto calçado. No segundo caso, ela é então adquire a estranha capacidade de ser simultaneamente
princípio, meio e fim do processo. A atividade do comércio, com o
dinheiro como sua finalidade absoluta, não possuiria limites e, por troca. O juro era, segundo Aristóteles, a moeda nascida da própria
isso, ultrapassaria a esfera das necessidades naturais e de uma moeda, assemelhando-se curiosamente ao seu progenitor. Os
vida saudável em sociedade. homens engajados nessas atividades eram, desse modo, seres
Segundo Aristóteles, a medida do valor de uma coisa e fora da natureza e em contradição com ela. Uma segunda forma
mesmo a medida das virtudes de um homem deveriam ser de chrematística era a do trabalho assalariado, pois nesse caso o
avaliadas por suas propriedades intrínsecas e naturais. O dinheiro homem dedicava-se a trocar seu próprio trabalho por dinheiro.
e o proprietário dele, porém, estão para além dessa medida Aristóteles, por isso, não poderia ver no trabalho o
natural e, desse modo, para além da racionalidade da produção fundamento do valor e da riqueza em seu sentido verdadeiro, e
voltada para a satisfação das necessidades humanas e da vida nem o elo de ligação dos homens em sociedade. Para ele, os
dedicada à virtuosidade e perfeição moral. Posto numa relação de trabalhos dedicados ao comércio, como o trabalho do artesão,
troca, o valor imanente e próprio do objeto perde significação e como já vimos acima, eram trabalhos executados por homens que
passa a ser medido externamente pelo objeto pelo qual será viviam fora da ordem natural. A ordem da Polis deveria ser uma
trocado. É esta estranha capacidade da mercadoria poder ser ordem divina e natural. Por isso, seres como os artesãos e os
medida externamente que espantava a consciência de Aristóteles comerciantes não poderiam participar dessa comunidade política
em sua investigação sobre a natureza econômica do valor. superior: a comunidade de língua dos helenos de nascimento.
A atividade pela qual um homem se dedicava ao Como seres devotados aos deuses profanos da produção e da
trabalho e ao comércio tendo em vista a finalidade de acumular crematística, estes homens deveriam ficar fora da política e
dinheiro era chamada por Aristóteles de chrematística. Essa viverem como servos da cidade. A verdadeira comunidade política,
atividade deveria ser condenada na cidade por ser contrária aos segundo Aristóteles, deveria ser uma comunidade de homens
princípios da razão e de uma vida feliz e virtuosa, segundo ele. O iguais, de homens que honram os mesmos deuses e falam a
comércio exterior e o empréstimo a juros eram as duas formas mesma língua e de homens que carregam em suas veias o
básicas da chrematística. Dentre ambas, a mais detestável era a mesmo sangue dos fundadores da cidade.
do empréstimo a juros, pois, segundo Aristóteles, o ganho de Na base das concepções de Aristóteles estava, como
quem empresta provém da própria moeda e não da finalidade podemos perceber, a contradição entre campo e cidade, em pleno
natural para a qual ela teria sido criada: a de servir como meio de desenvolvimento na Idade Clássica Grega. Contradição esta que
se conservará por toda a Idade Média até a Modernidade, com a é o conhecimento filosófico, que conhece as causas não
industrialização do campo e sua submissão aos princípios da aparentes, empíricas ou sensíveis do mundo e das coisas.
cidade. O conhecimento prático do operário tem ainda o defeito
O preconceito antigo em relação ao trabalho prático e à de não poder ser ensinado, ao contrário do conhecimento
arte da produção está mais bem claro e explicado na Metafísica de científico ou filosófico que por natureza pode ser ensinado aos
Aristóteles. Aristóteles divide o conhecimento humano em duas homens da cidade. Evidentemente, o conhecimento prático do
categorias: em conhecimento prático fundado na experiência, e operário grego era transmitido de geração em geração dentro de
conhecimento filosófico ou teorético fundado na especulação cada família e de cada ofício. Mas para Aristóteles, e para a
abstrata. cultura grega em geral, o operário, geralmente um escravo ou um
Para Aristóteles, todos os animais recebem da Natureza estrangeiro livre, não formava parte do gênero humano,
a faculdade de conhecer pelos sentidos. Aos homens, porém, a pertencendo mais propriamente ao gênero dos bárbaros e
Natureza deu a faculdade de conhecer pelo raciocínio. O artesão incivilizados do Mediterrâneo. Para Aristóteles, por não ter
fabricante era concebido por Aristóteles como uma espécie desenvolvido a filosofia, o mundo Mediterrâneo não chegara a
superior de animal, porque além de conhecer pelos sentidos desenvolver a linguagem. Segundo ele, o Mediterrâneo, berço de
possuía a faculdade da memória. A faculdade da memória toda a cultura humana, apenas murmurava sons sem nenhum
produzia assim, a experiência, um conhecimento mais elevado sentido lógico.
que o conhecimento animal, adquirido pelo hábito e pela Assim, apesar de sua evidente utilidade para a vida
repetição. humana, o conhecimento técnico do operário era visto por
Ainda que todo conhecimento humano tenha a Aristóteles como um conhecimento inferior e sem valor de verdade
experiência e os sentidos como ponto de partida, não são eles o para a cidade. Acima deste conhecimento prático adquirido pela
fundamento do conhecimento verdadeiro do mundo e das coisas, experiência e pelo hábito estava o conhecimento científico. O
segundo Aristóteles, porque a experiência fornece apenas um conhecimento científico se caracteriza, segundo Aristóteles, pelo
conhecimento prático, utilitário e particular. O conhecimento fato de não ser um conhecimento em vista de uma utilidade prática
empírico tem ainda o defeito de não conhecer as causas daquilo e de ser um conhecimento pelo conhecimento. O conhecimento
que produz. Para Aristóteles, o verdadeiro conhecimento humano científico seria um verdadeiro conhecimento por não ter a utilidade
como fim. Por esses motivos, Aristóteles e a cultura grega eram assembleias tomadas de sapateiros, carpinteiros, ferreiros,
condenaram o desenvolvimento da técnica e da mecânica na cultivadores, revendedores e outros artífices livres da cidade.
cidade e consideraram como legítimo apenas o conhecimento Artífices esses que geralmente não possuíam escravos como sua
especulativo do mundo: o conhecimento filosófico. Por esses propriedade e viviam apenas de seu próprio trabalho.
motivos, o mundo antigo não desenvolveu uma ciência e uma A característica fundamental do conhecimento filosófico,
tecnologia no sentido moderno, ou seja, um discurso racional segundo Aristóteles, seria o de conhecer as causas últimas e os
sobre a técnica. primeiros princípios indemonstráveis do mundo e das coisas, das
Por esses motivos e por conceber o trabalho do artesão causas e dos princípios que não poderiam ser encontrados pela
como mera produção, “os diretores de obras [os architetos – experiência e pelos sentidos, mas apenas pela razão e pelo
ἀρχιτέκτονας], qualquer que seja o trabalho de que se trate, têm raciocínio puro. A filosofia era considerada uma arte divina e
mais direito a nosso respeito que os simples operários hábeis em superior a todas as outras artes, porque, segundo Aristóteles,
algum trabalho manual qualquer [χειροτεχνῶν καὶ σοφωτέρους,]”23, Deus era a causa e o princípio originário e indemonstrável de
dizia Aristóteles. Os simples operários que empregam suas forças todas as coisas.
braçais para criar um coisa qualquer não merecem o respeito da Como o conhecimento filosófico possuía uma natureza
cidade, porque “se parecem com esses seres inanimados que divina, ele só seria acessível a homens de natureza também
trabalham, porém sem consciência de sua ação”24. Como já divina, e nunca a bárbaros e incivilizados como os artesãos. Por
mostramos acima, para Aristóteles, os seres inanimados que isso, a arte do conhecimento era uma arte própria e exclusiva de
trabalhavam sem consciência de sua ação eram os instrumentos homens livres e pertencentes à raça helena, de homens que não
de trabalho. possuíam donos e que pertenciam apenas a si mesmos. Ou seja:
O preconceito de Aristóteles com o trabalho operário se o conhecimento verdadeiro só seria acessível à classe dos
explica pelo seu preconceito com a democracia. Segundo Glotz (p. proprietários de terras, à classe daqueles homens formados dentro
153),25 as assembleias do povo ateniense na época de Péricles das centenárias tradições rurais gregas, e nunca aos estrangeiros
e artesãos da cidade.
23
Aristóteles: Metafísica - Livro I. México: Editorial Porrúa, 1992, p. 6. Metafísica Como arte que trata das coisas divinas, a filosofia, por
1.981b
24
Metafísica, p. 6 – 1.981b isso, como o próprio Aristóteles admitia, se assemelhava muito às
25
Glotz, p. 153.
fábulas narradas pelos mitos e o filósofo aos poetas e sacerdotes e hierarquia assumidas na ordem das necessidades dessa
do período arcaico grego. O mito não pode ser considerado uma sociedade. Também o trabalho correspondente à produção desse
ciência nem um conhecimento verdadeiro para nosso mundo bem ou objeto era considerado de maior ou menor valor segundo
moderno, porque é um conhecimento divino e revelado apenas sua importância e utilidade social. Desse modo, no alto da
aos poetas e sacerdotes, a homens dotados de um sentido hierarquia social estavam, segundo as concepções dessa
extraordinário inexistente entre os homens comuns. Por isso, sociedade, os trabalhos considerados mais relevantes
como o mito, o conhecimento filosófico só pode ser revelado a socialmente, como os do clero católico e da aristocracia guerreira.
homens extraordinários como os filósofos. Como dizia o próprio Abaixo dessa camada estavam os camponeses, a camada mais
Aristóteles: “Assim, se pode dizer, que o amigo da ciência o é em diretamente ligada ao trabalho braçal do campo. Assim, na Idade
certa maneira dos mitos, porque o assunto dos mitos é o Média não havia apenas uma hierarquia de trabalhos mais ou
maravilhoso”26. menos superiores, mas havia, ainda, uma hierarquia de valores
Por esse conjunto de motivos, os operários antigos, morais e sociais, todos associados às propriedades naturais dos
presos às cadeias da escravidão e do mundo da produção, presos objetos e sua utilidade para a vida humana. O valor da riqueza,
aos sentidos e à empiria, sem religião e sem deuses legítimos, assim, era sempre considerado de um ponto de vista natural e
deveriam permanecer, segundo Aristóteles, afastados da vida civil moral e nunca econômico.
e da política no mundo antigo. Assim, apesar de ser filha da De modo geral, a Idade Média nunca foi além das
cidade e da democracia, de ter nascido e se desenvolvido com concepções de Aristóteles sobre o trabalho e a riqueza. Porém,
ela, a Filosofia, mesmo em seu período clássico, ainda estava diferente da religião panteísta antiga, onde Deus/Espírito e
presa aos mitos e às milenares tradições rurais da Grécia Natureza/Matéria se confundiam um no outro, a religião cristã é
patriarcal e aristocrática. uma religião transcendente e, por esse motivo, concebe Deus
como uma coisa diferente, superior e separada da Natureza e da
2. Trabalho e riqueza no pensamento moderno Matéria. Por esse motivo, o cristianismo foi superior à religião
Até a Idade Média, o valor de um objeto era sempre antiga e preparou, até certo ponto, ainda no âmbito da crença
determinado por suas propriedades naturais e por sua importância mítico-religiosa, o surgimento da ciência e de uma concepção
mecânica da Natureza e do Universo.
26
Metafísica, p. 8.
Com o nascimento da modernidade e da ordem social positivos cada vez maiores na balança comercial do Estado.
baseada no mercado a partir dos séculos XV-XVI, o valor da Ampliar a riqueza da nação se identificava, desse modo, com o
riqueza e de determinado trabalho útil mudaram radicalmente de entesouramento estatal. Os mercantilistas assumiram, assim, a
sentido. Os bens agora produzidos pela modernidade capitalista já crematística como doutrina e política de Estado.
não se apresentam aos homens que os necessitam em sua forma A primeira reação a essa concepção metalista de
diretamente natural, mas se apresentam, sim, em sua forma riqueza surgiu com a chamada fisiocracia francesa. Literalmente,
social, ou seja, em sua forma artificial e modificada: a forma fisiocracia significa governo da natureza (fisio = natureza e cracia
mercadoria ou dinheiro. A partir da modernidade capitalista a = governo). Para esta concepção, a riqueza de uma nação deveria
ordem social, antes hierárquica e baseada em valores morais e ser medida pela dimensão do volume de trabalho investido na
tradicionais, passará a ser dominada pela ordem do mercado e produção agrícola. Segundo a fisiocracia, o trabalho era o
seus personagens, como a mercadoria, o dinheiro e o capital. fundamento da riqueza. Porém, não seria qualquer trabalho
humano que criaria a verdadeira riqueza nacional, mas sim,
2.1 Mercantilistas e fisiocratas
apenas o trabalho agrícola. Para a fisiocracia, as outras formas de
Foram os economistas os primeiros – para não dizer os
trabalho, como a manufatureira e a comercial, em franca expansão
únicos – que se dedicaram a estudar o caráter do trabalho e do
na Europa do século XVIII, não agregavam nenhum valor novo à
valor da riqueza na sociedade capitalista. Os primeiros
riqueza já produzida pelo trabalho agrícola, mas apenas a
economistas da história moderna a refletirem sobre a natureza da
transformavam em novas utilidades.
riqueza capitalista foram os chamados mercantilistas, ou
Para a fisiocracia, as formas de trabalho desenvolvidas
metalistas. Para eles, a nova riqueza trazida pela modernidade se
na cidade eram improdutivas quando comparadas com o trabalho
identificava imediatamente com o dinheiro. Com essa concepção,
do campo. Para ela, o artesão e o manufatureiro da cidade apenas
a forma metálica da riqueza – o ouro – era a forma suprema e
modificavam a forma natural do trabalho já produzido pelo campo.
meta de toda nação moderna. Segundo a concepção metalista, os
O sapateiro, por exemplo, não agregava nenhum valor novo em
reinos modernos deveriam dedicar seus esforços econômicos,
trabalho ao fabricar sapatos para a sociedade. Ele apenas dava
então, no processo de acumular dinheiro. O caminho para atingir
nova forma à matéria natural do couro produzido no campo,
tal objetivo era o mercado internacional e a obtenção de saldos
transformando-o em uma nova utilidade.
François Quesnay27, um importante fisiocrata francês, Os fisiocratas, assim, estavam ainda prisioneiros da
dividia a sociedade em três grandes classes sociais: a classe idéia fixa de que havia trabalhos superiores e inferiores na
produtiva, a classe dos proprietários e a classe estéril. A classe sociedade moderna tanto quanto houvera na Idade Média e na
produtiva era a classe dos trabalhadores agrícolas, a dos Grécia Antiga. Estavam, ainda, presos a uma concepção
proprietários era a dos proprietários fundiários especialmente, e a naturalista do valor e da riqueza. Mas, para além do mercantilismo
classe estéril era a classe composta por todos os cidadãos e da concepção camponesa grega e feudal, concebiam a riqueza
ocupados em ofícios diferentes do ofício da agricultura e que como produto do trabalho, ainda que exclusivamente do trabalho
viviam à custa deste ofício. agrícola e ainda que apenas a parte necessária para satisfazer as
Apesar de avançarem suas concepções sobre o necessidades do trabalhador. A parte excedente da riqueza viria
fundamento da riqueza e do valor para além da concepção dos poderes mágicos da Natureza.28
metalista dos mercantilistas, e mesmo para além da concepção Apesar da sublime idéia de que a produção de riquezas
grega, os fisiocratas permaneceram ainda presos ao passado e à estava governada pela Natureza, apesar desta concepção não
observação empírica dos fatos. A multiplicação da riqueza surgida repetir o misticismo religioso antigo e apresentar a riqueza como
da terra e da Natureza pelo trabalho empregado parecia resultado de uma atividade racional e prática, que pode ser
testemunhar fielmente que os ofícios da cidade, de fato, apenas aumentada ou diminuída segundo a vontade e o esforço humanos,
modificavam as formas primárias de riqueza produzidas pela os fisiocratas representavam os interesses da decadente
Natureza sem acrescentar-lhes nenhum valor novo. Para os aristocracia fundiária européia. Na base da concepção fisiocrática
fisiocratas, apenas a renda do trabalhador agrícola vinha estavam os interesses econômicos desta aristocracia que
diretamente de seu trabalho com a terra. O excedente, na forma reivindicava uma maior parcela da riqueza social para seus
de renda fundiária, por ser uma espécie de dádiva da Natureza e, próprios bolsos na forma de renda fundiária.
por isso, sem relação com o trabalho, deveria pertencer A fisiocracia foi filha da chamada modernidade filosófica
naturalmente ao proprietário da terra. e daquilo que se convencionou chamar de fundação do sujeito.

28
Para Marx, a crença mística nos poderes mágicos da Natureza na produção
da riqueza excedente era vista como uma “recidiva feudal”, como uma doença
que caso não fosse bem curada sempre retornaria para danificar a mente
27
François Quesnay: Análise do quadro econômico. Coleção Os economistas. humana. Karl Marx: Teorias da mais-valia. Tomo I. Tradução de Reginaldo
São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 257. Sant’Ana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 27.
Sabe-se que foi com os modernos que surgiu a noção de sujeito. para ele é ao trabalho “que devemos a maior parte de todos os
Com Copérnico, Galileu, Newton, Descartes, Hobbes, Spinoza, produtos úteis da terra”.31
Locke, Hume e Kant surgiu a idéia revolucionária de que o homem
2.2. Adam Smith
é o único sujeito do conhecimento e da política. Os fisiocratas
Apesar da originalidade de Locke e dos fisiocratas, foi
contribuíram com a idéia de que o trabalhador, ao lado da
com Adam Smith que os paradoxos da riqueza e do valor da
Natureza, é o verdadeiro sujeito do trabalho e da riqueza.
modernidade capitalista começaram a se tornar mais claros para o
Antes ainda dos fisiocratas, Locke (1632-1704) já havia
pensamento. Smith redescobrira a duplicidade da palavra valor, já
colocado em destaque o papel do trabalho na criação da riqueza e
conhecida por Aristóteles. Para ele, a palavra valor possuía um
na formação do seu valor em oposição ao papel da terra. Segundo
duplo sentido: valor de uso e de troca. O valor de troca poderia ser
ele, “é, na realidade, o trabalho que provoca a diferença de valor
duplicado pelas palavras valor natural e valor nominal. Segundo
em tudo quanto existe”29. Locke também reconhecia o papel da
ele, esta mesma duplicidade poderia ser encontrada no conceito
técnica e do melhoramento artificial da terra na produção de
de riqueza: primeiro como mercadoria e segundo como dinheiro.
riqueza em abundância para a sociedade. Uma terra abandonada,
Smith é geralmente considerado o verdadeiro fundador
segundo ele, produz muito menos riqueza do que uma terra bem
da Economia Política Clássica. Foi ele quem, pela primeira vez,
cultivada e trabalhada. O aperfeiçoamento do trabalho e da terra
conseguiu demonstrar cientificamente que a sociedade moderna
permitiria à sociedade, desse modo, produzir mais riquezas com
não estaria jogada ao acaso ou à vontade divina. Como a
uma menor extensão de terra.
Natureza e suas leis já descobertas pelos físicos, a economia
Enquanto uma terra inculta possuía pouco valor para a
estava regida por um conjunto de leis econômicas que tinham por
sociedade, uma terra bem cultivada tinha um valor mais elevado.
fundamento o capital: a força dinâmica que dominava a nova
Como diz Locke, “é o trabalho, portanto, que atribui a maior parte
ordem moderna. Smith, desse modo, por ter dado à economia
de valor à terra, sem o qual dificilmente valeria alguma coisa”30.
uma base conceitual e científica, por ter estudado a sociedade
Como podemos ver, Locke está muito distante da mística
capitalista sem fazer uso de categorias morais e sem julgá-la a
camponesa e da divinização dos poderes naturais da terra, pois
partir de um dever ser ideal, por tê-la estudado em seus elementos
29
John Locke: Segundo tratado sobre o governo. Tradução de E. Jacy
Monteiro. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 50.
30 31
John Locke, p. 51 John Locke, p. 51
mais simples e materiais, como a divisão social do trabalho e a Segundo Smith, a riqueza não poderia ser identificada
especialização, foi considerado por Schumpeter como o “Newton com o dinheiro, como já dissemos acima. Para ele, o fundamento
da Economia”. da riqueza era o trabalho, podendo ser medida através dele. Como
Na questão que nos interessa, a questão do valor, Smith já dissemos, Smith observou que a palavra valor possuía um duplo
prosseguiu pensando como os fisiocratas, para quem o trabalho significado. Às vezes designando a utilidade do produto e outras
era o fundamento natural da riqueza. Ele, porém, ultrapassou a vezes seu valor de troca. Ao primeiro sentido Smith chamou de
concepção naturalista e limitada da fisiocracia, para quem apenas valor de uso, e ao segundo de valor de troca. A fim de investigar
o trabalho específico do campo criaria riqueza. Para Smith, a esse paradoxo, Smith se propôs, então, a investigar os princípios
riqueza é produto de todo e qualquer trabalho independentemente que regulam a troca entre diferentes mercadorias: 1) seu preço
de suas formas naturais e específicas. Com Smith, o trabalho real ou natural; 2) as diferentes partes que constituem esse preço
enquanto tal passou, desse modo, a ser considerado o verdadeiro e; 3) as diversas circunstâncias que fazem o preço oscilar, ora
fundamento da riqueza e do valor. Toda nação moderna deveria, para cima ora para baixo desse valor natural.
por isso, estimular não apenas a atividade agrícola, mas deveria Por preço natural Smith entendia o preço do bem
estimular, também, o desenvolvimento do capital e do trabalho em medido em trabalho. Contudo, como identificou mais tarde
geral – as principais forças produtivas da sociedade moderna. Ricardo, Smith operava suas análises sobre o valor da riqueza a
Adam Smith começa sua obra A Riqueza das Nações partir de uma dúplice e contraditória concepção. Primeiro, a de
analisando as vantagens da divisão social do trabalho e da que o valor de qualquer mercadoria poderia ser igual à quantidade
superioridade da cidade sobre o campo na produção de riquezas. de trabalho que essa mercadoria possui para comprar ou
Contrariamente a Aristóteles e seguindo a tradição filosófica comandar trabalho. Segundo, a de que o valor seria igual ao
inglesa, Smith identificava a divisão social do trabalho – com suas incômodo, ou esforço, que custa sua aquisição. Trabalho
contradições – e a propensão moderna para as trocas como uma comandado e incômodo para a aquisição seriam, então, os
tendência natural do homem. Essa divisão teria surgido paradoxos insolúveis da concepção de Smith sobre o valor,
inicialmente entre as sociedades primitivas, baseadas na caça e segundo Ricardo.
na pesca, e se estendido até a Idade Moderna, baseada na Smith, ainda, operava com um segundo paradoxo, tão
divisão manufatureira do trabalho e dominada pelo capital. profundo e contraditório quanto o identificado por Ricardo: o de
que o trabalho seria a medida natural do valor apenas nas para a fórmula M = S + L: Mercadoria = Salários adiantados +
sociedades primitivas – onde não imperava ainda a divisão social Lucro. Esse mesmo raciocínio será ampliado para a questão da
do trabalho e o trabalhador se apropriava diretamente do produto renda da terra. Como o capitalista não era ainda ele mesmo
do trabalho sem precisar dividi-lo com um patrão – mas não seria proprietário da terra, mas apenas do capital, parte do valor, ou
na etapa manufatureira e capitalista. Na sociedade moderna, com preço, da mercadoria teria que cobrir o custo com o arrendamento
um complexo sistema de trocas mediado pela figura do dinheiro, o do solo. Assim, a fórmula da mercadoria se ampliará para M = S +
valor da mercadoria parecia ser melhor determinado pelo dinheiro L + R: Mercadoria = Salário + Lucro + Renda da terra.
e não pelo trabalho diretamente. O defeito desse raciocínio de Smith é evidente, pois ele
Nessa circunstância, dizia Smith, “já não se pode dizer avançou rapidamente de uma teoria do valor-trabalho, ainda que
que a quantidade de trabalho normalmente empregada para cheia de contradições e em fase de formação, para uma teoria dos
adquirir ou produzir uma mercadoria seja a única circunstância a preços e dos fatores de produção. Com essa concepção de que o
determinar a quantidade que ele [o trabalhador] normalmente valor final de uma mercadoria era obtido mediante a soma de
pode comprar, comandar ou pela qual pode ser trocada. É diferentes fatores de produção, Smith caía na superficialidade do
evidente que uma quantidade adicional é devida pelos lucros do capitalista prático e do proprietário fundiário, que consideram o
capital, pois este adiantou os salários e forneceu os materiais para capital e a terra, ao lado do trabalho, como fontes místicas e
o trabalho dos operários” .32 divinas da riqueza.
Ou seja, agora, com a divisão capitalista do trabalho e Smith partia de um ponto de vista correto sobre o valor,
distante da sociedade primitiva – onde as trocas se realizavam sem ainda entrar no problema de sua fundamentação como
diretamente medidas pelo trabalho –, o trabalho como base e princípio absoluto dos preços, para logo avançar, sem longas e
medida do valor deveria dividir o posto com o capital e o dinheiro. demoradas mediações, na direção de uma teoria da distribuição
Nas sociedades primitivas, o valor de uma mercadoria podia ser da riqueza. De fato, a riqueza capitalista, como confirma Smith, se
expresso pela fórmula M = T, ou seja, Mercadoria = Trabalho. divide entre as principais classes da sociedade – trabalhadores,
Com a emergência da sociedade capitalista o valor se modificou capitalistas e proprietários fundiários. Porém, Smith, antes ainda
de se dedicar a refletir mais demoradamente sobre o processo de
32
Adam Smith: A riqueza das nações. Volume I. Tradução de Luiz João formação do valor e dos preços correspondentes, avançou
Baraúna. Coleção Os economistas. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 79.
demasiadamente rápido para uma teoria da distribuição da riqueza preocupado em calcular a massa de lucro total que será
dentro da sociedade. Antes ainda de se preocupar em entender embolsada ao final do negócio.
como essa riqueza é produzida pelo trabalho; antes ainda de A força da concepção de Smith reside no fato de ele
procurar desvendar os mistérios da formação do valor a partir do pensar a sociedade capitalista como uma totalidade. Segundo ele,
princípio absoluto do trabalho, Smith avançou sua exposição para a sociedade inteira poderia ser divida em três diferentes classes
o problema da distribuição da riqueza. Não é difícil entendermos a de cidadãos: os trabalhadores, os capitalistas e os proprietários de
pressa de Smith. terra. Todas as restantes camadas da sociedade viveriam como
Smith, como todo pensador inglês, não era um homem camadas ou classes subsidiárias ou derivadas dessas classes
apegado às questões “metafísicas e abstratas”, como é o fundamentais. Por isso, essas três classes poderiam, segundo
problema da fundamentação absoluta do valor. Smith foi herdeiro essa concepção, ser consideradas igualmente como membros da
direto do empirismo humeano e, como Hume, estava mais sociedade. Todas elas poderiam, legitimamente, reivindicar o
preocupado com as chamadas “questões de fato”, como é o direito de cidadania, pois todas, cada uma com seu fator de
problema da distribuição da riqueza, especialmente o problema produção específico, participariam igualmente da produção da
que afeta diretamente o bolso do capitalista prático: o de ter de riqueza nacional.
repartir a riqueza produzida com o proprietário fundiário, uma Com essa concepção revolucionária, ainda que
classe parasitária e improdutiva, segundo o próprio Smith, que contraditória, Smith pôs definitivamente por terra todas as
nenhum papel desempenha no desenvolvimento das forças concepções místicas e cosmológicas sobre os fundamentos da
produtivas da riqueza nacional. riqueza e da cidadania. A classe trabalhadora foi finalmente
A pressa de Smith em demonstrar o caráter improdutivo concebida como uma classe legítima e virtuosa, pois é do seu
e parasitário do proprietário fundiário antes ainda de desenvolver trabalho e do seu esforço que provém a riqueza da sociedade –
com mais cuidado sua teoria do valor – uma teoria inovadora e ainda que ela tenha que dividir esta riqueza com os capitalistas e
revolucionária – tinha como fundamento, a mesma pressa habitual os proprietários de terra.
do capitalista prático, sempre impaciente com qualquer discussão Smith não foi um ideólogo da sociedade capitalista, no
mais profunda sobre seu modo de vida e de produção e mais sentido marxista do termo ideologia. Assim como os grandes
filósofos da Grécia Antiga, Smith foi capaz de pensar sua
sociedade para além do pensamento do homem comum. Ainda criador de riqueza em oposição ao trabalho improdutivo das
que partilhasse suas concepções científicas com as concepções camadas parasitárias da sociedade – as mesmas camadas
vulgares do capitalista prático, Smith não pode ser visto como elogiadas pelo Mundo Antigo dedicadas ao desperdício ocioso da
mais um “liberal” sempre disposto a defender ideologicamente a riqueza. Para Smith, como mais tarde para Ricardo e Marx, estas
sociedade capitalista dos perigos do socialismo. camadas – compostas por artistas, advogados, religiosos etc.;
As contradições do pensamento de Smith não podem pelos filisteus como dizia Marx –, são camadas inteiramente
ser atribuídas a um suposto caráter apologético de sua obra. dispensáveis para o progresso material e espiritual da sociedade.
Smith nunca fez a apologia do capitalista individual e de seu A crítica de Smith, Ricardo e Marx a estas camadas parasitárias
suposto caráter mágico e empreendedor. Muito pelo contrário. se assemelha muito com a crítica de Platão aos sofistas. Para
Smith não deixou de dizer que os capitalistas sempre conspiram Platão, os sofistas eram meros imitadores que em nada
contra a sociedade, em qualquer tempo e lugar, e que seus contribuíam para o desenvolvimento das virtudes morais da
interesses sempre se opõem aos interesses da sociedade. cidade. Para Smith, Ricardo e Marx, os sofistas modernos são
Também nunca deixou de criticar a classe dos proprietários aqueles que em nada contribuem com o desenvolvimento da
fundiários, para ele uma classe que gostava de colher onde nunca riqueza material, vivendo do ócio e da apologia vulgar do sistema
havia plantado. capitalista.
Smith também não deixou de mostrar os efeitos Smith, assim como Platão e Aristóteles, não poderia ir
devastadores do trabalho assalariado na cidade sobre a moral e a além do ponto onde chegara o desenvolvimento da divisão
saúde do trabalhador. Smith mostrou que em oposição às formas manufatureira do trabalho em sua época. Como Platão e
assalariadas de trabalho da cidade, e que em oposição à divisão Aristóteles, Smith acreditava que o elo de sociabilidade entre os
manufatureira e ao caráter especializado e rotineiro do trabalho, o homens estava posto fora do trabalho. Ao contrário dos primeiros,
trabalhador do campo era mais feliz e menos alienado. que acreditavam que essa sociabilidade era produto de um
Smith mostrou, ainda, que nem todas as formas de sentimento natural de amizade mútua entre os homens, de um
trabalho da sociedade devem ser consideradas úteis para o sentimento “bom” poderíamos dizer, Smith acreditava que a
progresso da riqueza. Ao contrário do Mundo Antigo que sociabilidade humana era produto de um sentimento mau e
desprezava o trabalho, Smith glorificava o trabalho produtivo e negativo: o interesse individual.
Era das paixões e dos interesses individuais que vinha o ausência de um partido revolucionário entre eles, como já
necessário equilíbrio social capaz de permitir aos homens a ordem dissemos anteriormente, impediram-no de desempenhar um papel
necessária para o desenvolvimento de seus negócios. Essa idéia ativo e revolucionário na luta de classes do Mundo Antigo.
é bem conhecida através da metáfora do padeiro e do açougueiro,
2.3 David Ricardo
onde Smith argumentava que não era do amor cristão pelo
Segundo David Ricardo (1772-1823), a concepção de
próximo mas do interesse econômico de ambos, de suas paixões
Adam Smith sobre o valor possuía um paradoxo insuportável.
privadas, que vinham o pão e a carne que abasteciam a mesa da
Segundo seu ponto de vista, Smith operava com uma dúplice e
sociedade.
contraditória concepção de trabalho como fundamento do valor.
Platão e Aristóteles não conheceram a maquinaria e a
Primeiro, Smith acreditava que a riqueza nacional deveria ser
grande indústria. Ambos conheceram apenas a pequena
medida pela capacidade de comandar trabalho. Em segundo
propriedade fundiária e o artesanato urbano. Platão chegou a
lugar, Smith acreditava que essa riqueza deveria ser medida pela
viajar para o Egito e conheceu a divisão manufatureira daquela
quantidade de trabalho total empregado em sua produção.
nação. Marx chegou a dizer no Capital que a República foi
Ricardo, procurando superar os paradoxos de Smith, avançou,
inspirada nesta viagem de Platão ao Egito.
então, para uma concepção de valor baseada nesta última, na
Platão, Aristóteles e Smith foram homens de seu tempo,
noção de trabalho enquanto certo dispêndio de energias gastas na
os maiores homens de seu tempo e por isso suas obras ainda nos
produção, considerando a primeira uma concepção falsa e
inspiram e nos ensinam muito sobre o trabalho e as duras
errônea.
contradições da vida numa sociedade de classes. Platão e
Como podemos perceber, a concepção de Ricardo
Aristóteles não conheceram o proletariado. Quando o conheceram
sobre os fundamentos da riqueza está bastante afastada da
foi nas proto-formas de um proletariado ainda em formação, como
concepção mística do Mundo Antigo, para quem o trabalho era
o escravo rural e artesanal.
visto como uma atividade sagrada e uma comunhão religiosa entre
O “proletariado” dessa época não era mesmo
os homens e os deuses da terra. Para o Mundo Antigo seria
revolucionário. Sua dispersão e fragmentação na cidade, seu
racional e mecânico demais conceber o trabalho como simples
isolamento pela divisão manufatureira do trabalho, suas diferenças
dispêndio de energia humana. Mas os gregos, como já dissemos,
étnicas e religiosas, sua exclusão da política e, por isso, a
não conheceram a maquinaria e a ciência mecânica moderna, proprietário fundiário mediante uma dedução feita sobre o valor
como Ricardo, filho delas e da Revolução Industrial. integral do valor da mercadoria – especialmente uma dedução
Ricardo desenvolveu sua teoria do valor a partir da feita sobre o lucro do capitalista. Coerente com sua teoria do
crítica aos paradoxos de Smith. Segundo ele, a verdadeira teoria valor, para Ricardo salário, lucro e renda da terra eram diferentes
do valor seria aquela que considerasse que o valor de uma partes de um mesmo valor total contido no valor da mercadoria.
determinada mercadoria seria maior ou menor dependendo da Ricardo, usando o exemplo do preço do trigo,
maior ou menor quantidade de trabalho necessário para sua compreende, porém, que o valor de uma mercadoria está
produção. Ricardo, sem dúvida, avançava bastante em relação a determinado pela produtividade da última parcela de trabalho e
Smith quando defendia a tese de que mesmo nas sociedades capital empregado na produção. Vejamos o caso do trigo por ele
dominadas pelo capital o valor de uma mercadoria seria sempre analisado. Suponhamos que determinado país cultive trigo em dez
determinado pela quantidade total de trabalho necessário para sua faixas distintas de terra com distintas produtividades do trabalho.
produção. Suponhamos que a faixa número 1 seja a mais produtiva e a faixa
O principal defeito da teoria do valor de Ricardo seria o número 10 a menos produtiva e que entre essas 10 faixas haja um
de considerar que o valor de determinada massa de mercadorias declínio constante de produtividade. Na faixa número 1, a mais
seria medido não pela média das diferentes produtividades do produtiva, o valor total do trigo colhido será igual à soma de
trabalho social, mas, sim, por aquela parcela de trabalho que salários adiantados mais o lucro do capital. Suponhamos que esse
possuísse a menor produtividade. Esse argumento é desenvolvido valor seja igual a 10. Nessa faixa, portanto, não haverá renda da
no Capítulo II chamado Sobre a renda da terra, de sua obra terra a ser paga ao proprietário fundiário.
mestra, Princípios de economia política e tributação.33 Tão logo, porém, o aumento na demanda da sociedade
Ricardo não considerava, como Smith, que a renda da por trigo exija que se cultivem terras de qualidade inferior, ou mais
terra paga ao proprietário fundiário pudesse ser considerada – ao distantes dos centros de consumo, o proprietário da primeira
lado do salário e do lucro do capital – como um fator adicional ao parcela exigirá do capitalista que ele lhe pague uma renda pelo
preço da mercadoria. Segundo ele, a renda da terra era paga ao empréstimo da terra. Essa renda será igual à diferença de

33
produtividade entre a primeira e a segunda parcela de terra.
David Ricardo: Princípios de Economia Política e Tributação. Tradução de
Paulo Henrique Sandroni. Coleção Os Economistas. São Paulo: Nova Cultural, Se a demanda por trigo voltar a crescer e uma terceira terra
1996.
menos produtiva passar a ser cultivada, então também o segundo renda da terra era um custo adicionado de fora ao preço da
proprietário fundiário passará a exigir do capitalista que ele lhe mercadoria e onde a terra ainda possuiria certos poderes mágicos
pague uma renda pelo aluguel da terra. A renda do segundo independentes dos poderes do trabalho –, mostrando que a renda
proprietário será, desse modo, igual à diferença entre a da terra é uma dedução feita sobre o lucro do capital e interna ao
produtividade da segunda e da terceira terra cultivada. conceito de valor-trabalho.
Assim, da primeira à décima faixa de terra o capitalista Com esse movimento, o preço do trigo que circularia no
vai vendo sua massa de lucro diminuir em função da renda mercado e pago pela sociedade, segundo Ricardo, seria calculado
fundiária cada vez maior que ele deve pagar ao proprietário da pela produtividade da última faixa de terra, a menos fértil e
terra. A primeira terra, a mais fértil e produtiva de todas produtiva. Ou seja, segundo ele, o valor do trigo seria determinado
abocanhará uma renda, então, igual à diferença entre a pela mais baixa produtividade do trabalho agrícola. Porém, se
produtividade dela e a da última faixa de terra cultivada. Segundo todas as terras do país fossem tão férteis e produtivas quanto a
Ricardo, na última faixa de terra não haveria renda, mas haveria primeira, se em todas elas pudessem ser empregadas livremente
renda em todas as outras faixas de terra mais produtivas que esta formas superiores de cultivo e novos métodos de elevação artificial
última e renda máxima na primeira faixa, a mais fértil de todas. da fertilidade do solo, nenhuma faixa de terra produziria renda e o
Assim, enquanto a cada emprego de terra menos fértil e preço do trigo para a sociedade seria bem menor do que quando
produtiva haveria um aumento da renda da terra paga ao se paga renda.
proprietário fundiário, no lado oposto desse processo, no lado do Ricardo não construiu uma teoria do valor-trabalho
lucro do capitalista, haveria um movimento completamente destituída de sentido político. Sua teoria do valor-trabalho – tão
inverso, ou seja, haveria uma queda constante no rendimento do revolucionária quanto a de Smith – tinha uma meta política bem
capital, pois essa renda será uma dedução do lucro do capitalista. clara e definida: a necessidade de se condenar a renda da terra e
O efeito desse processo contraditório no bolso do a vida ociosa e improdutiva dos proprietários fundiários. A
capitalista ficou conhecido na história do pensamento econômico permanência da propriedade da terra nas mãos dos descendentes
como rendimentos marginais decrescentes. Com esse engenhoso da antiga nobreza fundiária se tornava então, na concepção de
raciocínio, Ricardo conseguiu demonstrar o erro da teoria do valor Ricardo, um bloqueio ao livre desenvolvimento da sociedade
de Smith – uma teoria baseada nos fatores de produção no qual a
capitalista, devendo, por isso, ser ferreamente combatida e vantagem para a sociedade, como acreditava Malthus por
destruída por ela. exemplo, mas traria apenas prejuízos e desvantagens.
Se entendermos que nenhuma concepção de sociedade Com esse astuto raciocínio, Ricardo estava mostrando
é isenta de valores e interesses, e que nenhuma concepção sobre para toda a sociedade capitalista o quanto a classe dos
as relações sociais de produção fundadas sobre a divisão da proprietários fundiários não estava interessada no progresso das
sociedade em classes pode ser concebida por cima dessas forças produtivas do campo e da riqueza do país. Ricardo estava
divisões e interesses, fica fácil perceber, então, que não haveria mostrando que a classe dos proprietários de terras era uma classe
“erros” na concepção ricardiana do valor. Ao contrário, com sua que deveria ser destruída política e economicamente e que o
teoria sobre o valor – teoria fundada sobre a idéia de que o valor excedente social deveria ser inteiro e exclusivamente apropriado
de certa massa de mercadorias estará determinado pela menor pela classe capitalista. Tanto para Ricardo quanto para Smith, a
produtividade do trabalho –, Ricardo demonstrava matemática e classe capitalista era, ao lado da classe trabalhadora, a verdadeira
cientificamente que a nobreza fundiária era um bloqueio ao livre força produtiva da sociedade, a única interessada no progresso
desenvolvimento das forças produtivas criadas pelo capitalismo das forças produtivas e na elevação da produtividade do trabalho
em ascensão, e por isso deveria ser combatida politicamente. social.
Com seu perspicaz raciocínio, Ricardo pretendia mostrar Podemos ver nessa engenhosa concepção, o quão
para toda a sociedade inglesa o caráter improdutivo e parasitário longe estava Ricardo da metafísica e do misticismo religioso
do proprietário do solo e da renda fundiária. Segundo esse antigos. Para ele, a explicação dos fenômenos fundamentais da
raciocínio, Ricardo estaria provando para o conjunto da sociedade sociedade moderna não pode dispensar, de maneira alguma, o
capitalista a radical e profunda contradição entre as necessidades emprego de instrumentos abstratos e científicos, como são as
gerais da acumulação capitalista e os interesses retrógrados da relações numéricas. Podemos perceber que na raiz das
classe dos proprietários fundiários. Para Ricardo, a renda da terra concepções de Ricardo estava o milenar conflito entre campo e
recebida pelos proprietários fundiários era considerada um cidade. De um lado se colocava o campo, com a mística
absurdo porque se fundamentava numa permanente queda da fisiocrática e Malthus sacralizando os supostos direitos naturais
produtividade do trabalho e num permanente encarecimento da dos proprietários fundiários sobre a mais-valia, e de outro se
riqueza nacional. A renda da terra não traria, portanto, nenhuma colocava a cidade, apoiada sobre as ciências experimentais, a
demonstração matemática, a mecânica e a revolução industrial incapazes de consumir toda a riqueza nacional, devendo esta, por
reivindicando estes direitos ao capitalista. isso, ser repartida entre a nobreza fundiária. Esse consumo,
Ao contrário do mundo antigo, e mesmo da Idade Média, segundo Malthus, estimularia o desenvolvimento de novos ramos
para quem as principais virtudes humanas, as virtudes patrióticas da produção, evitaria as crises de superprodução e, assim, geraria
e religiosas, tinham sua fonte no campo e nos chamados novas formas de riqueza e emprego para a sociedade. Não foi
eupátridas, os bem nascidos e membros da nobreza de sangue, sem motivos que Marx chamou Malthus de velhaco filisteu e
para Ricardo essa nobreza não passava de uma classe de apologista do proprietário fundiário.
parasitas sem importância alguma para a sociedade e que deveria Para além do conflito com a nobreza fundiária e a renda
ser destruída política e economicamente. Ao contrário dos da terra, o raciocínio de Ricardo demonstrava que a acumulação
supostos valores superiores do mundo agrário pré-capitalista, dos capitalista levaria inevitavelmente a uma queda na taxa de lucro
valores do mundo da nobreza rural, Ricardo dignificou os valores do capitalista provocada por uma queda correspondente na
da cidade, do mundo do trabalho e da classe trabalhadora. produtividade do trabalho. Marx criticou veementemente esta
Assim como Smith, Ricardo construiu sua teoria do valor concepção de Ricardo ao longo do Livro Terceiro de O Capital,
para demonstrar a superioridade do capitalismo e suas instituições demonstrando que na verdade a queda na taxa de lucro do
– especialmente o capital e o trabalho – na tarefa de produzir a capitalista se assentava sobre uma maior produtividade do
riqueza nacional frente aos supostos potenciais superiores da terra trabalho e sobre uma maior exploração da classe trabalhadora, e
e suas propriedades férteis. Superioridade que, como já não o contrário.
mostramos acima, encontrava na fisiocracia seus mais fiéis Marx mostrou que na base da queda da taxa de lucro
defensores. estava o conflito de classe entre capital e trabalho e não entre
Mas não era apenas entre os fisiocratas que a suposta capital e renda da terra. Marx criticou Ricardo por confundir o lucro
superioridade da terra era vista como superior às potências do do capitalista com a mais-valia global e por não perceber que o
trabalho humano em geral. O reverendo Malthus era um dos que lucro não passa de uma forma aparente da mais-valia, ao lado da
mais veementemente defendia a legitimidade da renda da terra. forma juro e da renda da terra. Marx criticou ainda Ricardo por
Segundo ele, a renda da terra era importante para a sociedade sofrer da mesma pressa que acometeu Smith, do mau hábito de
porque os trabalhadores e os capitalistas isolados seriam passar rapidamente da análise de proposições e leis gerais para a
análise de momentos particulares da realidade, e de passar entre capital e trabalho são límpidas e cristalinas, a sociedade
rapidamente de uma teoria do valor e da riqueza para uma teoria capitalista aparece invertida e fetichizada.
da repartição desta entre capitalistas e proprietários fundiários. Porém, devido ao seu apurado senso científico e
Como Smith, Ricardo errou em suas concepções por ter honradez intelectual, Ricardo não deixou de retratar-se de seus
tomado, algumas vezes, as preocupações e necessidades do erros teóricos, como ao considerar unicamente os aspectos
capitalista prático como as verdadeiras necessidades e positivos do emprego de maquinaria em larga escala na
preocupações de um homem de ciência. O erro básico de Smith e sociedade. Na terceira edição de seus Princípios, Ricardo
Ricardo foi o de aceitarem as categorias empíricas do capitalista acrescentou um novo capítulo mostrando que a maquinaria nem
prático – especialmente a categoria lucro – como as categorias sempre gera resultados apenas positivos para a sociedade e o
fundamentais da sociedade capitalista, foi o de tomarem trabalhador. Muitas vezes, ou quase sempre, ao poupar trabalho,
emprestados do capitalista prático suas concepções errôneas e ela não traz nenhuma compensação ao conjunto da classe
aparentes, tratando-as como concepções verdadeiras e científicas. trabalhadora, que é desempregada por ela. Ou seja, ainda que
O erro teórico básico de Smith e Ricardo e fonte de suas Ricardo possa ser visto pelos críticos da técnica e da mecânica
contradições consistiu no fato de que ambos se preocuparam moderna como um economista cegado pelo iluminismo científico,
muito mais com a distribuição da riqueza entre as classes ele próprio fez questão de mostrar as contradições da maquinaria
capitalista e fundiária do que com a produção dela pelo trabalho, e e da mecânica.
por tomarem sempre a riqueza como um dado e nunca como um Ricardo é normalmente acusado pelos seus críticos de
problema a ser desvendado realmente. Esta preocupação, ser um fanático da acumulação. Esta é uma acusação da qual
contudo, não os impediu de ver o caráter retrógrado da renda da Ricardo nunca precisaria se defender. De fato, a teoria de Ricardo
terra e do proprietário fundiário. não está, de modo algum, preocupada em estudar as condições
No fundo, o erro de Smith e Ricardo resume-se ao fato de possibilidade de um consumo mais feliz e prazeroso pela
de não terem negado com suficiente profundidade os mistérios sociedade. Ricardo não foi um teórico do prazer e do consumo.
enganosos da concorrência e da superficialidade do mercado. Ricardo foi um homem moderno, como Smith, e estava
Porque na concorrência, ao contrário da fábrica onde as relações preocupado em explicar a totalidade do sistema capitalista a partir
de um princípio: o de que a riqueza só poderia ser ampliada e
existir em abundância para toda a sociedade com a destruição menos felizes dentro desta sociedade. Esta tarefa coube,
política da classe parasitária dos proprietários fundiários, que historicamente, aos críticos medíocres de Ricardo, aos apologistas
nenhum papel exerce na produção da riqueza mas que consome do capitalismo que surgiram a partir da crise da modernidade na
grande parte dela. Somente com a destruição política e econômica segunda metade do século XIX.
dos proprietários fundiários; somente com a destruição política e Ricardo, como Smith, ao mostrar que só o trabalho cria
econômica das instituições arcaicas da Idade Média; somente com valor e riqueza no sentido capitalista e que a nobreza fundiária era
a destruição dos privilégios estamentais da nobreza fundiária e do uma classe parasitária, elevou a classe trabalhadora ao mais alto
clero católico seria possível haver riqueza em abundância para posto capaz de ser ocupado por uma classe dominada dentro de
toda a sociedade. uma sociedade dividida em classes. Não foi sem motivos que
Essa abundância não viria da distribuição da riqueza Ricardo deu origem a movimentos socialistas inspirados em suas
apropriada pela nobreza fundiária entre a massa da sociedade, concepções – os chamados ricardianos de esquerda.
muito menos entre a classe trabalhadora. Ricardo advogava a Com Ricardo, a classe trabalhadora recebeu toda a
necessidade dessa massa excedente de riqueza ser apropriada dignidade que poderia receber de um intelectual das classes
inteira e exclusivamente pela classe capitalista. Mas essa massa dominantes. Com ele, a riqueza foi finalmente posta como produto
não deveria ser dirigida, de modo algum, ao consumo ocioso e do trabalho humano. Ainda que a Natureza seja a mãe da riqueza,
improdutivo da classe capitalista, a um consumo que nada cria de como já concebia Willian Petty, o trabalho foi concebido como seu
novo mas que apenas destrói improdutivamente a riqueza já verdadeiro pai. E esta paternidade foi obra do gênio abstrato e
produzida. racional de Ricardo, que conseguiu se desprender das
Segundo Ricardo, essa massa excedente de riqueza concepções místicas sobre os fundamentos da riqueza e
deveria ser convertida em capital, na aquisição de novos meios de demonstrar matemática e cientificamente que só o trabalho
produção e no emprego de novos operários para ampliar ainda poderia gerar valor. Ainda que a riqueza em sua forma natural
mais a produção disponível ao consumo da sociedade. Ricardo, tenha uma dupla paternidade – a Natureza como mãe e o trabalho
por isso, não estava preocupado com a satisfação individual de como pai – é o trabalho da classe trabalhadora – seja ela urbana
cada cidadão capitalista, não estava preocupado em medir o grau ou rural – o único e verdadeiro pai do valor no sentido econômico
de satisfação das classes da sociedade, se elas estavam mais ou e capitalista do termo.
Ainda que não possuísse o talento literário do mundo concebia Smith, Ricardo colocou a rude realidade do trabalho
antigo, ainda que não tenha se preocupado com a elevação moral mecânico e fastidioso da indústria como elo de ligação entre os
do homem, ainda que tenha se ocupado apenas com as homens na sociedade moderna. Ainda que fundado numa
condições de desenvolvimento da riqueza em seu aspecto concepção mecânica do trabalho, Ricardo conseguiu perceber que
quantitativo, Ricardo condenou, como já havia condenado Smith, é o trabalho humano o verdadeiro e racional elo de ligação e
todas as formas parasitárias de vida – que em nome da defesa de sociabilidade entre os homens.
valores supostamente mais elevados que os valores do trabalho e Ricardo dessacralizou a realidade humana. Com sua
da riqueza material escondiam o interesse particular de viver sem matemática e seu senso prático e científico, Ricardo desvendou
trabalhar e a custa de trabalho alheio. todos os insolúveis mistérios da metafísica e da ontologia antiga e
Com Ricardo, ainda que o trabalho seja visto como um medieval sobre o trabalho e a ordem humana ocidental. Com ele,
simples dispêndio mecânico de energias físicas e intelectuais do a classe trabalhadora – com seu trabalho mecânico no interior da
trabalhador; ainda que ele esteja longe de uma concepção fábrica, com seu sofrimento e sua luta para manter-se viva
“filosófica” mais elevada sobre o trabalho; ainda que esse trabalho diariamente na irracional competição do mercado de trabalho – foi
esteja voltado única e exclusivamente para o domínio da Natureza posta enfim no mais alto grau da escala humana de valores. Com
e para a satisfação de interesses demasiadamente humanos; Ricardo, a história pôde ser reescrita e reinventada. Com ele, a
ainda que Ricardo seja visto como um fanático da produção e da história humana pôde finalmente perder seu caráter místico e
acumulação; ainda que ele não se preocupe com a satisfação e a nebuloso e ser entendida como verdadeiramente humana e
felicidade individual dos homens; ainda que ele seja filho do racional.
mecanicismo inglês, da Revolução Industrial e da substituição do Diante da matemática e do racionalismo científico de
trabalho vivo do homem pela maquinaria, ainda assim sua Ricardo, a filosofia antiga e medieval, apesar de sua
concepção de trabalho foi a instauração de um verdadeiro grandiosidade e beleza literária, aparece como simples apêndice e
principio racional entre os homens. desdobramento da velha mitologia de origem rural. Acreditamos
Em lugar de supostos valores morais, étnicos, afetivos e que a divinização da Natureza nunca passou de uma crença
religiosos mais elevados; em lugar dos supostos valores morais do mística camponesa e foi, por isso, inteiramente superada pelo
cristianismo; em lugar dos próprios interesses privados como cientificismo de Ricardo. Tanto Ricardo quanto Marx foram críticos
severos do romantismo agrário. Marx, por exemplo, condenou 3. Conclusão
radicalmente a mística camponesa e suas formas políticas Se a Economia Política encerrou sua epopéia com
encarnadas no bonapartismo francês.34 Ricardo, com Marx iniciou-se a sua crítica socialista e
Após a morte de Ricardo, na verdade após a morte da revolucionária. Com Marx, o proletariado foi visto como sujeito não
burguesia revolucionária, ao longo da segunda metade do século apenas da riqueza no sentido moderno, mas, ainda, como sujeito
XIX a Economia Política foi convertida simplesmente em de ação no sentido antigo do termo.
Economia, ou seja, foi convertida no estudo da mais pura Essa elevação do proletariado à condição de homem de
superficialidade econômica do mercado e da vulgar satisfação dos ação não foi obra apenas do gênio revolucionário de Marx. Essa
consumidores. O caráter grandioso da Economia Política Clássica elevação foi resultado do desenvolvimento do próprio sistema
cedeu lugar ao pedantismo e às trivialidades da chamada escola capitalista. As cidades modernas com suas vilas operárias e as
marginalista de economia, que substituiu o trabalho como grandes fábricas com seu sistema articulado de máquinas criaram
fundamento do valor pela noção de utilidade. Com a escola uma classe trabalhadora desconhecida para o mundo de Platão e
marginalista a Economia Política Clássica como ciência dos Aristóteles.
fundamentos da riqueza e da sociedade foi convertida em Os gregos nunca valorizaram o processo de trabalho
ideologia e apologia vulgar dos poderes e da eficiência técnica do mas apenas o produto dele, porque fundavam seu modo de vida
capitalismo. no valor de uso. Por isso, para eles não importava aumentar a
quantidade de riqueza produzida pelo trabalho, mas importava

34
apenas aumentar a qualidade do produto fabricado. Já para o
Esse caráter antidemocrático e despótico da mística camponesa e da crítica à
técnica em geral pode ser encontrado no Contrato Social de Rousseau, onde a mundo moderno, onde impera o valor de troca do produto, importa
apologia da vida virtuosa do camponês, contraposta aos supostos vícios da vida
na cidade, dava origem a formas políticas autoritárias fundadas no domínio a quantidade de trabalho e não a qualidade do produto.
absoluto da “vontade geral” – uma vontade mística e sem fundamento racional –
sobre as vontades individuais. Essa mesma mística filosófica, associada a O Mundo Antigo e a Idade Média eram sistemas
formas despóticas de Estado, pode ser encontrada em Heidegger em sua crítica
geocêntricos. Neles, a terra (physis ou natura) era o centro ao
da técnica. Heidegger, como se sabe, é reconhecido como um dos mais
importantes críticos atuais da técnica ocidental e foi um defensor sem críticas redor do qual todas as coisas giravam. Nestes sistemas, era a
do nazismo, chegando a ocupar o cargo de reitor universitário em Freiburg
durante o governo de Hitler. Artigo de minha autoria sobre a crítica de Marx ao terra o verdadeiro sujeito do Universo e da cidade – da moral, da
misticismo camponês e sua relação com a tirania política pode ser encontrada
na Maisvalia número 4: O marxismo e o papel dos camponeses na revolução política, da religião e da produção – e o homem era apenas seu
socialista.
servo e instrumento. No mundo agrário pré-capitalista, o homem No mundo rural da era pré-capitalista, o homem devia
era um servo dos desígnios da physis. A terra era um objeto adequar suas instituições, seu modo de vida e seu pensamento à
sagrado que não poderia, de modo algum, sem violar as leis Natureza. Nele, o homem estava irremediavelmente mergulhado
divinas que regiam o Universo, ser tocada e modificada segundo a numa Natureza e num Cosmos que não conhecia e que jamais
vontade humana. poderia modificar. Neste mundo, a mente humana era dominada
Os gregos, especialmente em sua época clássica, pela mitologia, pela religião e pela filosofia. Já no Mundo Moderno,
devotavam um verdadeiro desprezo pelas formas materiais da a Natureza deverá adequar-se ao modo de vida do homem e às
riqueza produzida na cidade. Para eles, os amantes da riqueza suas instituições. Nesse mundo, a Natureza e o Cosmos
material poderiam ser comparados a bárbaros e animais sem aparecem como objetos externos que podem ser modificados pelo
alma, sem logos e sem razão. Por esse motivo, nunca se trabalho e pelo pensamento.
interessaram pelo desenvolvimento das habilidades manuais e No romantismo agrário pré-capitalista tudo devia
artesanais e pelo desenvolvimento de uma ciência e de uma adequar-se à ordem superior da Natureza. No Mundo Moderno,
técnica voltadas para o aperfeiçoamento do trabalhador para o tudo deverá adequar-se à mecânica, à ciência e ao capital. Neste
trabalho. Seu interesse no trabalho se dirigia sempre para o mundo desencantado pela ciência e pela matemática, o
aperfeiçoamento do produto e não para o do produtor. romantismo da mitologia, da poesia, da religião e da filosofia será
O Mundo Moderno rompeu com essa concepção e visto como mero resquício do passado rural da humanidade.
colocou no centro do Universo o homem e suas instituições: a O Mundo Antigo, fundamentado sobre a pequena
ciência, a técnica, a mecânica, a maquinaria, o trabalho, a propriedade, o trabalho rural, a escravidão e o valor de uso da
indústria, o comércio, o dinheiro e o capital. O Mundo Moderno riqueza, antes de desenvolver a ciência e a técnica no sentido
operou, por isso, uma verdadeira revolução na história humana, moderno, desenvolveu e aperfeiçoou as virtudes morais do
revolução que ficou conhecida na história do pensamento como homem através da arte e da filosofia. O Mundo Moderno, pelo
Revolução Copernicana, porque com ela o homem apareceu como contrário, fundado sobre a grande propriedade fundiária e
o verdadeiro sujeito do conhecimento e da política, e a terra industrial, sobre a cidade, o trabalho livre e o valor de troca da
apareceu como um mero instrumento de sua vontade e de seus riqueza, investiu suas energias intelectuais exclusivamente no
desígnios. aperfeiçoamento das forças produtivas do trabalho e da riqueza
material. No Mundo Antigo, por isso, um animal qualquer era As cidades modernas com suas vilas operárias e as
sempre considerado em sua figura natural de animal, que se grandes fábricas com seu sistema articulado de máquinas criaram
alimenta e se desenvolve por conta das forças contidas no interior uma classe trabalhadora universal desconhecida para o Mundo
da própria natureza. No mundo moderno, porém, um animal, um Antigo. Ao contrário da relativa auto-suficiência do artesanato
ser vivo qualquer da Natureza, é visto como um produto artificial grego, a grande indústria capitalista é visceralmente dependente
que se alimenta e se desenvolve por conta do trabalho do da existência de outras grandes indústrias ao seu redor. Ao
trabalhador e da técnica e da ciência humana nele investidas. contrário dos artesãos das cidades-estado gregas que viviam
Em vez de desenvolver o aperfeiçoamento da riqueza e separados pela divisão artesanal do trabalho e pelas diferenças
suas qualidades úteis para o homem como no Mundo Antigo, o religiosas e nacionais, o proletariado moderno trabalha em torno
Mundo Moderno capitalista aperfeiçoou apenas as habilidades de uma única e mesma grande indústria formando, desse modo,
mecânicas e produtivas do trabalhador para o trabalho. Por isso, uma única e mesma classe social. As fábricas e a maquinaria
em vez de submeter-se aos desígnios da Natureza, o mundo capitalista criaram pela primeira vez o proletariado como uma
moderno tem desenvolvido a ciência e a técnica para dominá-la e única e mesma classe social.
explorá-la. Ao contrário do artesão e do escravo antigo, que eram
Apesar destes paradoxos, porém, acreditamos que o vistos como meros instrumentos de trabalho e sem personalidade
Mundo Moderno foi muito além do Mundo Antigo por conceber o política na cidade, a classe trabalhadora moderna foi convertida
trabalhador como membro digno da sociedade e da cidadania e em sujeito pelo capitalismo, possuindo, por isso, sua própria
como sujeito criador da riqueza – ainda que ao lado da Natureza. imprensa, seus próprios intelectuais e seus próprios partidos
Se com Ricardo, o proletariado foi elevado ao patamar de sujeito políticos. Por isso, por ter criado uma classe revolucionária
da riqueza no sentido moderno, foi com Marx que o proletariado foi potencialmente capaz de apresentar seu ponto de vista como o
elevado à condição de sujeito de ação no sentido antigo do termo. ponto de vista universal da sociedade, pensamos que o mundo
Essa elevação do proletariado à condição de homem de ação não moderno deve ser visto como muito superior politicamente ao
foi, contudo, obra apenas do gênio revolucionário de Marx. Essa mundo das cidades-estado gregas.
elevação foi resultado do desenvolvimento do próprio sistema Por esses motivos, a classe trabalhadora pode agora
capitalista. atuar politicamente, como atuavam os aristocratas fundiários
antigos, como homens de ação, como homens livres e portadores
de um saber e de um discurso político orientados para uma arte
superior à arte da mera produção: à arte da revolução e da criação
de um novo mundo.
Diferente do artesão e do escravo grego o proletariado
moderno possui suas organizações políticas próprias. Organizado
em torno de partidos políticos, de sindicatos e de associações
operárias, o proletariado moderno atua agora politicamente, como
atuavam os aristocratas antigos, como homens de ação, como
homens portadores de um saber e de um discurso político racional
orientado para uma arte superior à arte da produção: à arte da
revolução e da criação de um novo mundo.

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