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ramerrão

ismar tirelli neto

ramerrão
© 2011 Ismar Tirelli Neto

Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.
sumário
Coordenação Editorial
Isadora Travassos

Produção Editorial Setembro, outubro 11


Cristina Parga
Larissa Salomé R., 12
Rodrigo Fontoura Junho 12 13
Sofia Soter
Registro 15
Sofia Vaz
Os arquivos 16
Agora é o momento em que imponho a mim mesmo
uma revelação de qualquer espécie 17
cip-brasil. catalogação-na-fonte A todo o tempo 19
sindicato nacional dos editores de livros, rj
A distância entre dois 20
t515r
Sim, é nesta suspensão que acontecem as coisas verdadeiras 21
Tirelli Neto, Ismar
Ramerrão / Ismar Tirelli Neto. - Rio de Janeiro : 7Letras, 2011. A igreja acavalada ao fim do largo 22
70p. : 14 x 21cm O amigo solteiro 24
isbn 978-85-7577-778-7
Pai 25
1. Poesia brasileira. I. Título.
Nava 26
11-1975. cdd: 869.91
cdu: 821.134.3(81)-1 Apartamento 27
O mistério Vasarely 28
Diário de estância 30
Canibalismo 31
2011 Reality roll 33
Viveiros de Castro Editora Ltda.
R. Goethe, 54 | Botafogo Minhas preces por um duplo foram atendidas 35
Rio de Janeiro rj | cep 22281-020 Depois 36
Tel. (21) 2540-0076
editora@7letras.com.br | www.7letras.com.br Pombos-correio não carregam doença 37
Enquanto isso 39
Cinelândia 41
Ameragem 42
As chaves do dia 43
Tropos 44
Em revista 46
Preocupações épicas 47
Sexta-feira, 50
A primeira canção de Elpenor 51
A história da riqueza dos homens (uma balada) 53
Suma 55
Uma anfitriã 57
Lua cheia; enxaqueca 59
A novíssima ceia 61
Dez aproximações, ou homossexualidade enquanto nação 62
Cena contínua num restaurante de beira de estrada 65
& the Heartbreakers 66
Ele pensa em fazer a cama 67

para M. B.,
o segundo ato são as cinzas
I have heard the mermaids singing, each to each.
I do not think that they will sing to me.

t. s. eliot, “The Love Song of J. Alfred Prufrock”


setembro, outubro

Remeto uma série de cartas bastante estridentes a R. Um


apanhado de provincianismos do peito. Como lá me vão, a
íntegra. Vamos tentar a vida na Capital (com ou sem você)

11
r., junho 12

como se fosse possível, como se o expediente de fato não há nada de exato nisso
acabasse, já não se vê ninguém pelos corredores – ou gôndolas – (à laia de memória)
ou silvos, logo após a “paisagem”, dum par de guardas-noturnos acorda abre
sobre suas Taludas Térmicas – caminho despercebido até o atrasado
almoxarifado e me fecho, como sempre, para rezar. Ajoelho-me para uma palestra
junto aos primeiros elementos e ergo ao de leve a cabeça; para atrasado
a luz; começo; carrego a todo o tempo, (amor), tua carta de para o Ano Novo
junho 12, aquela que todas as gangues já foram para casa dormir, atrasado
mando fazer cópias em areia, barco e garrafa ––– para o próprio
apedrejamento
estou
a-oquêi correndo
com uma ártica fatia
de pizza & um bule de café
no tanque & uma apreciação
todanova dos feriados
municipais
no Salão Dourado
muitos cavalheiros
e damas se ocupam
de dizer sim e por
longo tempo não
lhes ponho em causa
os reais motivos
ponho-me
de emboscada
atrás dum auto-
(r)retrato, ele
ambula é mesmo

12 13
um moleque registro
exuberante
como de resto
ele também
& a tarde é fria Algo tramitou, fez um bissexto. O dia
acende amarelo tem um rodeio justo, para do outro lado, faz uma leitura
para os táxis empanzinada. Haja, talvez, alguns búzios de arroz sobre
o céu azul-hitler o prato, como se acabasse de dobrar esquina a van
acorda abre Terror, o sangue cozido das feras, nem mesmo a extrema
play para parcialidade (sobrevivem) das flores que Anna comprou semana
a ordem do dia passada, quando as contas folgaram. Escrevo. Qualquer estupidez
servirá de futuro. É enunciado, ausente, algo que acaba
(pelo contrário) te trazendo mais para junto, você pensa ouvir
as dragas, a rotação tercina das pás, as braçadas que esclarecem
a água, turvam a continuidade dos atos.
Desengana. Não é esse o registro eleito
pelo coração quando está para se abater. Afinal, as hérnias não
lhe ensinaram nada? Você pensa nas pessoas que seguem quietas,
como lhes chega naturalmente, sem campanha ou quase. Lado a lado
com o silêncio delas, este aqui não passa de fantasmagoria. Urdo
para não ter problemas com os vizinhos.

14 15
os arquivos agora é o momento em que imponho a mim
mesmo uma revelação de qualquer espécie.

A solidão havia uns monitores em torno.


Algo se despegará do céu, ainda olho, impossível precisar
No-break. O quadro a largas patadas. Feeria
de onde virá.
duma Repartição Pública às 11 da manhã. Agora
Ele jura por palavras como “zênite” ou “afélio”, dentro em
os papéis. Não vim aqui para matá-los. Antes
breve passará às demonstrações de ordem prática.
pelo contrário, dar-lhes seguimento. Sou um homem
detrás de seu tempo. Me ultrapassa o que vim
Impermeável ao que faz, que é um catálogo.
fazer aqui. Uma conjugação imprevista de eventos põe
Uma hipótese – tão boa quanto qualquer outra – pode estar
-me no centro dum acalorado debate sobre o futuro
diretamente relacionada com o fato de que faltam contornos ao
da Arquivologia. O futuro da Arquivologia está a perigo.
menino.
O futuro de nossos papéis. O futuro, coisa sumamente.
É próprio por isso que se deixa repuxar a palavras-
Sou um corpo que conjuga eclipses ou algo muito mais
coordenadas, palavras que se dispõem sem ruído em torno do
pudorado. Sentia (pregos) a proximidade de um jardim, ou
quarto, dão baliza.
um terraço, tardava a hora do almoço porque tenho
o estômago fraco para os homens. Que há tanto faltam
Beams from your car may cross a bedroom wall.
nomes. Nenhuma nova. O futuro de nossos papéis está a perigo.
E dizemos, sem susto, coisas como “teatro de sombras”.
Que sei eu do ludo da língua? O dono da pastelaria berrava
Riscam, graves de cadência, o retrato que sorri do alto da
com sua filha em cantonês. Eu sou a filha.
estante.
Sorrio quando ele sobe o degrau da calçada ainda
Os cometas ainda serão monótonos, milhões deles apenas
mais estreita de sol, espantando os pombos, voo coxo.
adormecerão.
Sou a filha e é preciso não sê-la. Sou involuntária e muda.
Meus pais têm uma pastelaria na Rua São Clemente.
Recordará também, e com doçura suspeita, a imagem
Jamais dominarei o português, mas não tenho faculdades
de um jardim com um homem bem ao centro, diziam que era
de saudade, nostalgia, como queira. Tenho a ternura
violinista.
ingoverna dos que nasceram entre cais. Chamo-me (como
E ele o aconselha, vago entre grilos, halos sem destinatário,
queira). O futuro de nossos Arquivos está a perigo.
a escrever sobre a noite.
Sim, é possível que esta lembrança tenha se abrigado em
lugar seguro.
Intimamente, não sei a quem me refiro.

16 17
Pode ter ocorrido, também, à força de um objeto de todo a todo o tempo
banal.
Havia algo de monstruoso no zelo que as coisas
demandavam, e pode bem ter sido ali:
cinzento, ele guarda a mão a alguns centímetros do as coisas vêm
açucareiro, perguntando-se o que capitulará primeiro.
Não com estas palavras. Jamais com estas palavras. a um lume frio
zumbindo corredor fora
Recordará também, e com doçura suspeita, as primeiras
madrugadas, as primeiras campanhas de pássaros. aos tantos cinemas
desta estação balnear
De fato, este é o pior momento de todos. Aquele que
antecede imediatamente a transfiguração. ex machina
(as coisas vêm)

infalivelmente
aos fortes, torres

descosem nuvens
em franco exílio do quadro

18 19
a distância entre dois sim, é nesta suspensão que acontecem
as coisas verdadeiras.

edifícios é insolúvel: poesia, Madeira à deriva.


Drama discorde, cujas partes não concorrem à remidora
locus. Quantas extravaganza musical.
estilhas do percurso? Tampouco triunfa sobre a resistência do fato particular:
meu ônibus soa pela colmeia, soando
Este o cerco nada. Até aqui,
do alheio, aquelas vizinhos, a fala naufragada das praças, alguns colegiais
as janelas que não que passam: boca em vale.
sei Sejamos honestos, então.
Não há nenhuma oposição ao nosso encontro.
em tudo que se habita
um temporal mordaça azul. A
distância entre dois edifícios

é insolúvel. Uma garganta


cheia de pontes – Não
estivemos juntos então

20 21
qual
a igreja acavalada ao fim do largo

à frente, a saída do metrô;

não foi
o enésimo advento

estou preso neste desmentido


(de partida) faz aeons

nossa
parece

uma pausa de 5àSec


azul-acobreada uma entre
guerra,

surpresa
símile. Esqueço o que estive

esperando esse tempo


todo,

quando
(prenda de corpo)

Você disse que estaria aqui às seis

22
o amigo solteiro pai

− Três casas num só ano, e um idioma é a noite que cose todos os bolsos do paletó, são breves
em vias de sumir, você disse? discursos sobre a indiferença, o programático à-vontade
com que geralmente
Toda a minha vida eles trato dele, a quem não ouço em poesia ou pugilato, não o ouço.
costeiam. Cordata, Descrevê-lo, talvez, como um poço no centro da praça, o
a vista não deixa entrar. oposto ao Monumento, & aviões
Fiquei. Rendido às formas penduricalhos no céu
da delicadeza. Esgarço
as teias de aranha para
então bordar as minhas,
acerto pelo horizonte
o luto das molduras.
Aos domingos distribuo
ao povo visitas inesperadas.
Me acompanha?
Assino uma carta, atento
ao som rasteiro & tramador
executado por meu próprio nome.
(Lá as pessoas se perdem).
Aos domingos vou ao cinema.
Gargalha-se como incêndios
em grandes edifícios comerciais.
Volto e percebo
que sigo porejando muito fino
das paredes, desde sempre.
Estavam a bem pouco de inventar o telefone.
Fiquei porque o trem não me apanhou.

24 25
nava apartamento

desconfio deus montando o espaço é parado e pulsa, inscrição num mar de silêncio
embaixada à porta do banheiro. Desconfio
deus uma pedra com eco, desconfio deus peça
um novelo de lã nos confins de sob a cama. Não estou morto. a passo de
Não das mãos desse sujeito. A carne sentreteço
do que se diz está bem longe, mas cumpre atentar: o apartamento
tampouco se trata duma mentira. Fazemos o que pensemos uns tantos
fazemos pelo elástico da coisa. Estes quartos, em nenhuma temporais depois
ordem particular. Nada deve permanecer nos é dado
que seja meu. A repentina evidência do hospital azul o lugar-comum de uma ilha
frente ao edifício. Meus passos estranguladamente lentos pequenas intromissões
antes de te deixar, fosse eu o assassino da cafeteira
gorgolejando
pouco muda (quase nada)
se um vizinho abre
uma janela ou deixa
de abrir

outras tantas, mal amanhece


baixa a maré
as mesmas portas vão abertas
espécie de missa no quarto ao lado

tijolos
argamassa de medo

26 27
o mistério vasarely espiões, tampouco há filme nesta câmara. Podemos
supor com alguma segurança que algo de muito central
para Isabela Mota
acaba de nos acontecer, enquanto você se ocupa
de fazer as malas – algo de muito central, onde
quadro. Olho pela janela do quarto de Isabela acidentamos – para logo depois o telefone
& meu corpo é denso, deslocado de um pé ao outro. apitar sua uti, & uma voz metálica nos soa uma senha
Funda-se. A xícara de café sobre o parapeito. e um endereço nos arredores da cidade, sim, talvez
A meu lado, um violão de aspecto bronquítico seja esta a cena que venho descrevendo minha vida inteira

escora-se contra uma quina. A canção


se pega aos lados da garganta, se é o que te resta,
pareço aplicado. Lá vão meus olhos
atarraxados na calçada, mosaico imprestável.

Estamos a poucos metros. Uma coisa chã,


uma coisa rés. Nesta pasta um pôster de Vasarely
cuidadosamente dobrado ao meio,
pelo qual agradeço, como de hábito, um tanto derrapando-me.

Isabela, ruiva
Logo após contar que em dias nublados a Jeune Femme En Chemise
à porta de seu quarto carrega-se de verdes, como um marimbondo.
Já em dias ensolarados, alça o canto oculto dos lábios,
sorri, talvez por ter recebido notícias alentadoras
de um médico barbudo e monoculado.
Isabela, ainda ruiva,
me faz presente de um pôster de Vasarely.
É quarto com novembro quente, calçada.
Café. Violão. Vamos sempre constatando que nada rufou.

Neste entroncamento, um pôster de Vasarely cuidadosamente


dobrado ao meio.
O que dizer, minha irmã? Por que dizê-lo? Não somos

28 29
diário de estância canibalismo

dispositivo, cinema de deambulação: olá, Cláudio! olá, gato a Anna chega exausta, digo-lhe que o jantar está pronto,
gordo do Cantinella! os olhos, e a imundície que tramam as ghoulash de pai e mãe. É crença de certos canibais que a digestão
damas-da-noite quando do despenho, aqui (sou iluminado a não constitui processo meramente físico: metabolizam-se
toque de caixa). Faz um ano me mudei para o próprio coração igualmente os predicados morais, por assim dizer, do ente
de Nêmesis, onde divido apartamento com uma figurinista refeiçoado. A matrona do lar, esta cozinha está impraticável,
amiga minha, isto talvez dê conta do lameiro cor-de-rosa ao escrutando cheio de dedos (mais ou menos fictícios) as ofertas
fundo do tanque. Naquela época eu tinha um emprego, mas no Supermercado. Sai de casa na chuva para comprar incenso, a
minha educação sentimental ia de mal a pior. Deixei crescer praça de permeio, tomo meu café. Tornando já. Nossa sala cheira
uma cara que só se aluga por temporada: cara de vai-um, como a baunilha, as pequenas odisseias do dia pegam consistência de
quem se rasga em decimais. Esbraseada como nunca, penso um milk-shake. Pois bem, esta é minha prova de amor para você, ele
bocado no que que é próximo e circular. Verbete. As habitações observa, palitando os dentes. Como foi a entrevista de emprego
dão para um espaço comum. Estou na praça e atravesso o tédio segunda-feira?
mortal de dar à luz mais um bebê

30 31
não tenho os papéis. como profissional autônomo reality roll
é dever manter-me aberto e espacioso
entre os quatro Cardeais desta espera. Que decidam:
minha vida. Por exemplo,
uma transferência faz o mundo girar Inclusive às quartas
(haja vista o desconcertante estado em que se encontram as coisas) -feiras, um nó irreticente Penha branca
parecia-lhes fora de questão. Ao fim e ao cabo. bem no meio da semana Ó, todas estas
Oferecem-me o último turno. E aceito, maravilhas imóveis sob Vésper dentro
não me sinto tão à mercê. Faz três de abril! Hoje vi seis pessoas minhas
madrugadas neste escritório branco, conhecidas andando pela rua
sinto medo pela primeira vez. não cumprimentei nenhuma
A estridência branca das luzes Não tenho me sentido muito mútuo Ultima
& os canos que continuam teto fora. Não tenho mente Pelas manhãs, todo enroscado
os belos chamamentos para fixar sobre o capacho frente à casa dos teus pais,
coisa alguma. Será com essa mesma impaciência. tiquetaqueando como uma colegial mal-intencionada
E tanto ódio haverá & todos esses velhos amuletos guiando
constelando que me presentearei minúsculos carros brancos pelas ruas da cidade
o trato com as mais velhas imagens. Andam dizendo coisas horríveis a meu respeito
Aquela sombra, por exemplo, fará durante a pausa do café Eu sei
metástase. Será com esse mesmo inverno. com os cheiros e as manchas e os furos na camiseta
Que tomo vistas ao céu Eu, que costumava ser tão bom com nomes O
quando alva carcera burro medo de perder o que, a rigor, já está Em tempo:
todas as fitas em pb nas tevês bom, um poema deve acontecer
da cidade – ao fim e ao cabo – o dia
a mesma. Pretenderei a ela
& quando tornar à razão
de meus amigos mais modelares
direi que o amor e o trabalho me renderam,
que nunca jogarei bombas no Ministério da Saúde,
que não vejo mais porquê em tantos die-ins.
Continuarei mentindo para os médicos
e adiando as segundas vias

32 33
qual
minhas preces por um duplo foram atendidas

“às Coisas! agora dar-lhes-ei família”, ele disse

não foi
diligenciando todos os elementos a
seio com a piada.
Por seu turno,
rugiram um meio-dia os oceanos. O ar
tonteou ao de leve.
“Estou no ramo das relações”.

nossa
Rituais de magia para assassinar
ditadores, orações
navais, fumos délficos
deitados pelos dutos
de ventilação. E toda a maruja

surpresa
do escritório ficou em transe
semanas! ainda assim
ele não se deu por satisfeito, ergueu-se
& deu às coisas
coincidência, conforme prescrito
por Nabokov num romance

quando
que lera em dias,
em dias:
melhores.
À cama. Encontram-nos
uma idade parecida, a mesma
ausência daquilo que nossos Superiores
folgam chamar senso
de oportunidade.
A mesma diluição, o mesmo
motim horário, os mesmos
motivos fantasmáticos
nos pijamas.

35
depois pombos-correio não carregam doença

Um movimento de dedo nenhum Aqui a segunda aparição


sobre o interruptor, todos os fusíveis da Secretária de
intactos. Teste. Sim, a casa funciona, Setembro, presa
a casa está acesa. Um silêncio precipitado entre colchetes
entre eles, um silêncio que conta com todos de vidro. Sob
os artífices do hábito. Um de olhos se pendura um “bolo de-
no teto nas pálpebras, o outro segue bastante noiva” tão
mágico pela estampa da almofada. Pensam curto de crises
móbiles e o que de mais não sabem. quanto uma fotografia,
Em qualquer outra parte os olhares qualquer
estão encontrados. Um abismo fotografia.
alegre. Eles têm uma estranha confiança, Este o seu discurso, onde
vinda sabe-se lá de onde. Teste, 1 2 3, ainda lhe é dado reter-se,
teste. A casa está funcionando. entre Todas, a mais
erma, donzela
default, observando
a Previsão do Tempo (por
favor, não lhe contem
o final), prefere
inexplicado
o pesadelo de esteiras
rolantes que sofrem
as regiões mais
secretas
do Aeroporto.
A vontade de pontes
é apenas humana, mas
para mestrar as
medidas exatas, seria

36 37
preciso antes terminar um livro, enquanto isso
romper com o diletantismo,
morrer.
& nada poderia estar mais distante
do seu “bolo-de-noiva”. i.
Esta a sua tarde de Junho, onde
praças & parques
à época você era curador-assistente no Museu do Sono & eu
rateiam insensivelmente
reprovava mais uma vez em Artes Divinatórias, & os meus
na direção do Sublime
começaram a regular o dinheiro dos selos, & foi preciso, por fim,
& pombos-correio não
abandonar a província de K., mesmo na estação, eu me dizia,
carregam doença
para sempre. Uma vez na capital, o silêncio se confunde
com os descampados que já tínhamos por hábito deixar
entre as cartas, & ninguém faz caso de nenhuma distância. Poucas
semanas depois comecei a me prostituir para o Maior Colecionador
de Autógrafos da América Latina, & com os contos angariados
foi possível alugar uma caixa-postal. Disse-lhe de passagem
que agora morava ali, era pequeno mas satisfazia minha curiosidade
pela vida monástica. Você me escreveu & me escrevia de volta
dizendo ser tudo bonito e igual, mas sobretudo uma palavra – como
colunata, cinemascópico: cauchemar. Ainda assim, em meu aposento
metálico, vinham-me malárias só de pensar em você, noite & dia
ladeado por todas aquelas miniaturas resinadas, polidas à tolice

38 39
ii. cinelândia

“mas talvez seja apenas obra de uma secretária, Camareira


Sempiterna, Jovem Dama-de-Companhia Aspirante A, talvez A mão dada, subscrevo.
sejam todos estes nomes travestis, bom, quem lhe garante?”, Cartilha exata do filho único.
& com estas palavras tão logo as enuncio acho-me prontamente Rompia a fita no meio
no olho da rua, o ar gélido ultramarino da Capital passa de uma frase, tocava
por mim como estação, sai fumaça, & as narinas do trem das sete sem menção de onde. Fazia uma
doidas face à manhã lilás. Mas é preciso abandonar a província de K., distância irretorquível. A volta
é o que me digo, mesmo na estação, para sempre, mesmo ao mundo num jipe amarelo.
que os sinos desfolhando pelos descampados se tornem intoleráveis, Levava junto a mim.
estarei aqui, e prevenido de quaisquer encomendas trágicas. Ora não Os janelões blindados com papel
diga nada, máquina combustecida por fascinação, imigrante dum país kraft, a desordem vaidosa
por demais próximo: as ruas são estas, memorize-as. Caminhar dos cadernos, tudo comendo
a noite sem dorso além pontes & monumentos & homens dos quais poeira à passagem. Restavam
nunca me embebedei, “nós não, não nos codificarão em bronze, mármore pele & ossos do ofício
nem congelarão os contornos de nosso desejo, ele não deve encontrar & quanto a isso, você sempre
pouso jamais”. E quem não ficaria horrorizado à vista de prosa tão fora bem claro. Calma,
jovem? Mastigo a carta, engulo com o café frio, tento desse jeito acaba tendo
mais uma vez: “a universalidade é impraticável às segundas”. uma avalanche. Sirva cru,
pitseleh, depois ateie
fogo à mesa. É conselho
o bastante para uma vida inteira.

40 41
ameragem as chaves do dia

Idílio inox. Galpão frigorífico no céu. Eu conto o mundo trancado. Por dias
Por vinte e cinco anos estive falando um estranho idioma posso dar voltas à homilia, procurando
de dedicatórias. lugar para estacionar, uma cunha
Quantas vezes. não mais que a Graça, uma lição a coar
Não estive a pique de desencantar lá, como se pudesse reclamar por aqui (perto). Repetitivo, não
meu próprio corpo. há muito enduro em mim, o passaporte
é cabaço & retorce pelas respectivas
Agora estamos, finalmente, no saguão vias. Agora que nossas ausências começam
deste mesmo hotel, a cascatinha artificial blefando o Éden. a tomar impulso. O salto, a real distância
Olho para suas mãos. Figuro a lenta rotação do dimmer. quando saem de nós dá um leve
As mãos, meu Deus, as mãos. Não pacienta. desando dos labirintos. Me apoio na poltrona,
fixo, três ou quatro símbolos com tanta
*
pressa de desbotar. Tudo ia bem
Onde chegamos com maio? contanto que não se movesse
Um milagre terraplenado, milagre nenhum.

42 43
qual
tropos

não foi
câmara contrátil / expansa, esquerda / teu coração uma cólica à
esquerda / teu coração uma capela com câimbra / quem o tem
suficiente /morre apenas uma vez

ii

nossa
sensorragia / o sangue às tontas / procurando figurar / linguagem

iii

surpresa
os recursos referidos humanos / música encontrada / madeira de
demolição

quando
44
em revista preocupações épicas

Voleio sobre os próprios pés. i


Essa distância.
Parece que comecei a escrevê-la em agosto do ano passado. Nunca andei tão longe sem
Talvez. ter antes ouvido o tango
Agora a datação é mais que rabeira no Cabaret
tipográfica: vida ou morte. Sauvage, sem ter
Saca da primeira voz, em oposição ainda escrito os tais
ao eco que prossegue as muralhas. “Poemas da Mudança”, sem
Julho é o mês condicional. Pulso de sursis. Todos vêm. ter belo (belo) bronco
Eu já estava aqui, na praça, de encontro imóvel. adormecido num postal
Sob um xale de gordura hidrogenada, recorria, desfechado de Oxford,
recorriam, a Kombi do cachorro-quente, a paisana Lille, São Paulo.
de homens exaustos. Os postes que incidiam Nunca andei tão longe
como trigo, como ficam baços que um satélite – no mais
esses olhos, nessa luz dos casos, materno – não
de repente ela se encheu de algo que não era absolutamente o caso viesse me apanhar.
Eram os meus amigos Reconheço de nenhum
me contando grado que foi aquela
anedota em que
os vizinhos de Kant
ajustam relógios
à hora de seu passeio
vespertino o verdadeiro
motivo pelo qual
desisti da Filosofia.
Isso tudo porque
também eu
nunca me abalei
daqui. Você foi

46 47
toda a extensão força admitir,
de maio, preservando nunca andei tão
as conotações longe, nem tão pouco
pertinentes a ambos familiar.
os hemisférios. And I “Em que
don’t know if I’m ever o autor se deixa
coming home. montar por uma
pracinha de bairro
ii como um triciclo”.

Com os michês iii


tchecos
a ruína seria certa, não Peça para móbile
essa burocracia autobiográfico.
infame, & por que As primeiras lembranças
não, Berlim?, poderia sofrem rasgos
passar (por) uma profundos
temporada com Antônio nos lados
& seu marido dos indicadores,
fotógrafo, cujo cutículas
nome recordo arrancadas,
perfeitamente: por Dodge desfeito
pleitear, minha em dáctilos.
cidadania do mundo. O menino
Perdi para Paris põe sangue entre
mais amigos do que as ferragens.
tenho dedos. Descuidei Sua Olivetti
da “morte feliz” há gagueja.
um ano, ou dois,
num ponto de ônibus
próximo à Rua
do Ouvidor.
Mas também, é

48 49
sexta-feira, a primeira canção de elpenor

não há mistério verdadeiramente oferta quieta a mundo idem.


entregue à parte o nome. Uma vez a criança contra-
Arcano de lacre fácil. feita, o Pai deu-lhe o nome de Elpenor
Tampo espelhado do aquário; Atlântico, Elpenor!
Pacífico, Índico. Por onde começar. os colegas de classe não
Nunca chamei às paisagens a seguir. vão deixar barato
As estações aqui referidas estão disponíveis mediante licença mas não posso passar a vida inteira
da Creative Commons. tentando isentar os pais alheios
Sou eu o homem que se atalha, garagem, fundos, à esquerda, cai & tudo o recebera
do telhado de Circe. Toy lupa, gorro concatenante. sem festas de augúrio
Penso nesse caderno talvez como uma série de apresentações encarnado, nó-de-plot, charamela
(ibidem) Elpenor era
feliz & banal em menino
via-se
tinha lá seus motivos
eram as cheias de Sol pela relva
oliventa
a barba de homens possivelmente
as togas
desconhecia uma infinidade
de coisas não fazia questão
tinha um urso de pelúcia chamado Paulina
persisitiu nisso. Bastava-lhe
jamais saberemos como sobreviveu à Tróia
escapado que era
aos favores
Olímpicos
foi como um valsar por sobre
embora honesto. & tinha alguma coisa

50 51
da dureza de coisas primevas a história da riqueza dos homens
ou (uma balada)
como todo mundo
Elpenor também abandonou um mestrado em Kant
para seguir carreira de humorista bom,
não era exatamente um colírio cá estou eu,
mas se a luz lhe acertasse no passo exato
deste ou daquele golpe onde previa estar
podia parecer quase grego escrevendo
contava muitos amigos entre os esquetes humorísticas
mortais & todos o achavam de quinta
querido, se algo enfadonho para uma súcia
após sustentados períodos de tempo de desmiolados
constará dos autos. Sua história havendo-me
é causar imensos desvios quinzenalmente
de rota a outrem com a pálida fantochada
& mesmo que não queira do Financeiro,
quererá um enterro decente, com pagando – sempre
que lhe cantem as glórias em dia!
das quais nunca fez questão Dr A. para me espetar
a rigor, todos nós as agulhas &
dizer que as coisas
não vão assim
desesperadas,
tampouco eu
Dr. A.?
Antes
o senhor
me traduzisse
as coisas despertas
ou me mandasse
ler Drogaria
de Éter e de Sombra

52 53
once more, with suma
feeling
homens como eu
não têm sonhos
ilegíveis, e como Arrebatado para fora &
se censuram de volta à
os homens como eu História, vejam-no
o não terem sonhos sentar-se estadistamente
ilegíveis na varanda, no trono
desdobrável, o rei
da sauna, 8 andares acima
dos viadutos em criss-cross
motor-caminhos, vários
uma queda telada

agora
lê-se como slogan, a
sua presença, & linda
como um poema
escrito num pônei. Roça
que dá sorte.

Mestre,
eles me condenaram
à vida rarefeita. Estou
no gráfico sem crista,
imodulado: vox populi,
vox Dei. Minha mãe
secou & não posso mais
voltar. A que devo
voltar-me, então?
Quatro meses numa cela
estudando opções

54 55
de norte. Tirania uma anfitriã
de objetos, imagens,
canções. Dores
constantes
na nuca & nos i
quadris
Ela acha que devo explicações, diz
ao pé do ouvido é a Lei
e se quebra
ora me distraio
de movimentos decisivos
vejo-a voltando do banheiro
a passos talvez obstinados
demais
pode ser que o marcialismo
da anfitriã não
seja para tanto, mesmo
no amor
parece documental, diagrama
hostil. Talvez por ser amada
talvez
não goste de situações delicadas
pense que o caso todo é duma falta
de objetividade
abominável

ii

Vejo-a voltar do banheiro


a passos talvez
obstinados demais
talvez por ser amada
talvez porque lhe tenham

56 57
ajuizado lua cheia; enxaqueca
desde menina
a eliminar o intruso
e talvez porque me tenham
ajuizado Em algum lugar talvez, em sonho
desde menino você canta as vezes de um portão.
a ser caudaloso e banal É inevitável.
fazendo sala na alma É um parque ou passeio & seus cotovelos
tenta emboscar um instante dobram-se para fora, contrarradiando
de desguardo: o sol. O que foi há muito
retomemos: quem tempo? Enfim, será tempo ainda maior
dizia o quê? até contarmos vinte anos outra vez, glissandi
enfim, é curioso entre os ossos & um punhado de renúncias
que eu tenha sugerido tolas & inadiáveis. Mesmo que haja,
este restaurante mexicano será bastante tempo até a dobra. Tampouco
onde não ponho saberemos o quão antigo nos é este lugar.
os garfos desde Mas é assim que nos despachamos do sono.
os dezenove anos de idade, e Desaviso se pega na vista da janela.
é curioso que as noites sejam O olho embaixo da dor isca a lua cheia.
tão praticáveis quanto eram
então. Esses anos
todos que não
conchavaram,
estou muito feliz
em revê-los

58 59
qual
a novíssima ceia
para Daniel Jablonski

te portam de Paris para os últimos estertores de 2009. Pintores se

não foi
haviam tornado impossíveis e os poetas cumulavam plataformas
de metrô, nenhum de nós o grande salto. Havia muita volição
de colaborar, certo, mas ninguém que se prontificasse a descer
suas escadas numa manhã de sábado, vera imagem do langor,
blue jeans e Lomo no pescoço, ou. Teria sido apenas eu – o
anfitrião irrequieto dos provérbios? Falou-se infatigavelmente

nossa
sobre as novas mitologias, respostas cada vez mais radicais
à problemática do suporte, os “em-jogos” da autobiografia
precoce. Mas, naquele verão – particularmente cruento para
você e sua enérgica namorada romena – havia apenas uma
certeza em todo o território brasileiro: os romancistas.

surpresa
quando
61
dez aproximações, ou homossexualidade iv
enquanto nação
processo da voz: encorpa em torno das mãos, mínguas,
ainda tratam de blocos. Mas agora desesperado de (não, as
calças de veludo de seu avô jamais abrigaram uma ereção tão
i malapropos)

alguém encarna um cartaz, fixa-se a um poste aqui da rua, de


v
onde passa a reclamar (terrível, demiúrgico) um canário belga
escapado; asas; remunera-se ele deve estar de pé contra um muro em Lisboa, os braços
ramalhados à altura do peito, durante os quatro minutos que
ii seu irmão levou para voltar da tabacaria sentiu que os olhos se
lhe afundavam um pouco mais
pelo coração copado. A rua vai se insulando por mais alguns
metros, as árvores levam postas voltas & voltas de bijuteria
vi
barata. O brilho estanque que dão, Christmas in my soul, e
alguma tristeza bambeia dentro de si. Uma tristeza como um a queda da cristaleira foi um evento notavelmente compacto.
camelo Olhava para a cerração de cacos de vidro, trilha branca: a ama-
motor, zumbindo ártica a um canto da cozinha. Jantara fora
iii aquela noite, em companhia de um hd externo

porém, no dia seguinte, o portão estava a ferrolho. Sentou-se


vii
na amurada, o cotovelo apoiado sobre a caixa de onde há pouco
soltara o cão. Expediam uma ficção magnífica: tinha tempo, mas não devo pensar nestas coisas. A fita já fala, carpimos a
não tinha tempo, tinha os móveis de pátio tendendo ao branco máquina morta. Somos leões. Somos estudantes de cinema.
sol de janeiro. Quando lhe acontece deitar sobre o canteiro, o Desconhecemos o real sofrimento
corpo vai junto, acende cigarros, recepciona latidos no longo

62 63
viii cena contínua num restaurante
de beira de estrada
escreve alguma coisa a quente que ver com essa longa tradição
oral, o amor. Como dimensão épica, ou não conseguimos
suportar a solidão das coisas, domingo é uma baforada e dedos Nesta ficção, eles multiplicam sua correspondência por um
contusos do pernoite em seu corpo número escuso, decididos que se haviam conhecido desde
sempre. Na frente do cinema Gemini, sob signo ainda sem
ix nome. Inventaram nascer um baque impossível de horas,
concomitantes por conveniência
é cidadela conquistada de caminhos largos, fumegantes,
nenhuma alma em seu mais gentil. É bem longe que se assina O mundo se acabara em confissões &
a paz
sundae para o jantar, trapaças de pequena montra. Mas algo
x de luz se engasta nas frestas. Veja através. Diga, o medo é
uma emoção inculta, você vai na quarta xícara de café, sou eu
o meu é o trabalho do espanto. O nosso é o trabalho do mesmo o homem que te escreveu aquelas cartas. Não adianta.
espanto Já estamos doces.

O medo é uma emoção inculta

nos fundos, rangeria uma canção – capitania de ratos numa


jukebox quebrada – sinos e banjos, 1963 foi um bom ano para
os que prescindem de paraquedas, pelo menos é isso que os
garçons parecem dizer. De redor, ninguém significa mais (o sol.
Os ratos. Uma moça fala a um menino num francês professoril,
prolongando as vogais milhas sobre a terra fraturada)

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& the heartbreakers ele pensa em fazer a cama

à destra – no Utilitário – do pai quantas gerações que pulam, a


imóveis numa esquina de A., enquanto não vem passagem ventura, grupamento de
Maria canta decoroso pelo retrovisor, Gabriel também Recursos, cessarfluxo, e um sem
acompanha o curso de uma charrete que já número de recém
perco, lince, de vista planetas à montra
meus irmãos, duma Sony Trinitron. Quer
a hora sem douro, o céu de juta grossa ganha -nos parecer que tornamos ao
este plástico de fumaça sobre os vidros quando platô de lançamento, agora com cães
(meus irmãos, meus irmãos, cumpram-me) que flautam, vizinhos que vivem
o filme queima, descora, a tudo de militar contra a perfumaria. Bem
derrete branco pelo torcicolo de meu pai pode ser progresso. Não?
talvez não exista nada mais triste Morrerá de fogão?
do que perder-se momentaneamente Morrerá de nó nas tripas, ou quem
sabe, numa manhã de inverno, dão-lhe
nos olhos de um homem casado
nas ventas com uma ponte desabada?
E do que tem se ocupado o ano inteiro
que ainda nem fez a cama?
“Já sei!
Fazer a cama!” Acerca
da coisa, cautela, certo (Zeus, o
Ajuntador de Nuvens, aguarda
na Aduana) dizendo primeiro
compete fazer a cama. Para toda
viagem de ouro, há pé
em fazer a cama. Todos os meus
vizinhos, os teus inclusos, já
fizeram as suas. Por que você não
tenta?
Atrasado de novo, ele falha
ao embarque. Enquanto Ela parte; o
mar, lençol badernado.
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