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Artigo - Laços e Desenlaces Na Contemporaneidade - Joel Birman
Artigo - Laços e Desenlaces Na Contemporaneidade - Joel Birman
NA CONTEMPORANEIDADE
Joel Birman*
RESUMO
A intenção deste ensaio é a de realizar uma leitura crítica das novas formas de
organização da família e dos laços conjugais, enfatizando seus efeitos sobre as formas
de subjetivação na contemporaneidade. Para isso, nós conjugamos a leitura psicana-
lítica com as leituras histórica e antropológica, para destacar o quadro complexo onde
se inscrevem as formas de mal-estar hoje. Neste contexto, a hipótese de Foucault sobre
a biopolítica na modernidade ocupa um lugar fundamental na nossa análise.
I. Estrutura familiar e
formas de subjetivação
neira que a irritabilidade crescente toma XIX, identificando-se assim com o incre-
totalmente aqueles de fio a pavio. Por isso mento do poder social assumido pela bur-
mesmo, o corpo se transformou num lu- guesia na tradição ocidental. Daí por que
gar crucial onde o mal-estar se enuncia essa configuração de família foi denomi-
como queixa, pelo qual o indivíduo indica nada seja nuclear seja burguesa, indi-
de maneira ostensiva que algo não está cando então com isso a sua ruptura com
bem com ele. A sensibilidade excessiva a família pré-moderna.
dos indivíduos em relação à auto-imagem Quais foram as mudanças cruciais
é transbordante, de forma que a depressão que então ocorreram? A família pré-
passa a dominar a cena contemporânea, moderna foi denominada extensa pelos
assumindo o lugar privilegiado que era ocu- historiadores e cientistas sociais. O que
pado anteriormente pela angústia. isso quer dizer, afinal de contas? Nada
Não pretendo retomar esta descri- mais nada menos que conviviam no mes-
ção no presente ensaio, já que foi por mim mo espaço diferentes gerações, além do
desenvolvida em outros contextos, a que casal parental, acompanhado dos filhos e
remeto o leitor (Birman, 2006a; 2006b). dos agregados. A autoridade do pai era
Porém, é evidente que esta problemática quase absoluta e incontestável, como a
se relaciona com o que está em pauta no figura do rei no espaço público, aliás,
presente ensaio, no qual vou permanecer condensando então o pater potestas
especificamente na relação entre estas (Ariès & Chartier, 1991) o poder sobera-
mudanças psíquicas e a nova configura- no que estava aqui no seu auge (Foucault,
ção da ordem familiar. 1974). A figura da mulher seria aqui um
De qualquer maneira, a pertinên- mero apêndice nesta estrutura, corpo que
cia teórica desta problemática para a se presta para a mera reprodução da
psicanálise é que as novas modalidades prole, não obstante certos avanços face à
de subjetivação colocam em questão o mulher realizados pelo Cristianismo.
dispositivo clínico da cura-tipo, confi- Ao longo do século XVIII algumas
gurado pelo discurso freudiano, como se transformações importantes começaram
evidencia claramente nas publicações a se evidenciar, no sentido da constituição
psicanalíticas dos últimos anos. Estaria jus- de espaços de privacidade no campo da
tamente aqui a atualidade desta problemá- família. Assim, os pais começaram a
tica eminentemente contemporânea. possuir um espaço privado no interior da
casa, no qual a intimidade seria preser-
II. Da família extensa vada. Os filhos, que viviam anteriormente
à família nuclear numa misturada promíscua com os pais,
passam a ter também um quarto privado.
A família moderna se iniciou na Na dependência dos recursos econômi-
passagem do século XVIII para o século cos da família, os meninos e as meninas
mente e de ser histérica em seguida, no mãe, pelo novo filho, a jovem se distancia
discurso psiquiátrico (Foucault, 2003). daquela e transforma uma outra mulher
Com a psicanálise o nervosismo e a em objeto de desejo e de identificação
histeria foram interpretadas numa leitura (Freud, 1914/1973b), que não era possível
libidinal, de forma que a insatisfação fe- com a figura materna. Em 1917, num
minina estava sempre em causa. Esta comentário inserido no ensaio inicial so-
insatisfação se redobrou numa leitura do bre Dora, Freud nos disse que o laço
masoquismo feminino, marca por exce- homossexual das jovens mulheres se ins-
lência que seria da dita experiência sacri- crevia nesta mesma problemática (Freud,
ficial. Posteriormente, o masoquismo sa- 1914/1973b), qual seja, pelo laço com
crificial assumiu francamente a forma da uma outra mulher a jovem buscava uma
melancolia, como se pode depreender identificação com o feminino, que não se
dos ensaios freudianos sobre a sexualida- encontrava na figura da mãe em função
de feminina (Freud, 1925/1973c; 1931/ de sua impossibilidade. Vale dizer, as
1973d; 1932/1936). jovens se voltariam e se dirigiam para
Aonde isso nos conduz, afinal das outras mulheres para descobrir o que é
contas? O masoquismo sacrificial condu- ser uma mulher, uma vez que, com a
ziria as mulheres a um total depau- figura da mãe depauperada e esvaziada da
peramento de si, no qual aquelas perderi- potência libidinal, isso não seria possível.
am qualquer viço e brilho. O discurso A contrapartida disso, no registro
freudiano nos mostrou isso com precisão do masculino, se evidencia no discurso
pela figura exemplar da mãe de Dora, freudiano sobre a fantasia dos meninos,
pois esta não poderia desta maneira permeada que seria essa pela oposição
escolhê-la como objeto de identifica- entre a maternidade e o erotismo. Com
ção, tendo que se servir para tal da Sra. efeito, a figura da mãe-santa não poderia
K, objeto do desejo do pai de Dora ser marcada pelo erotismo, pois este a
(Freud, 1905/1975). A ruptura entre as desqualificaria efetivamente como puta.
figuras da mãe e da mulher, destacada Daí a decepção e o nojo dos meninos, com
por Freud na leitura do imaginário infantil, a figura materna, ao descobrir nessa a
seria então a resultante deste processo presença do erotismo (Freud, 1905/1962).
histórico e biopolítico, no qual a figura da Não obstante o fato de nesta leitura de
mulher foi reduzida à figura da mãe, com Freud este fantasma sexual masculino
todos os desdobramentos que isso evi- ser considerado universal, parece-me que
dentemente implica. ele se inscreve no campo historicamente
O discurso freudiano retomou esta delineado pela biopolítica. Isso porque se
mesma problemática no ensaio sobre a a mãe representa o sacrifício libidinal
jovem homossexual, em 1919 (Freud, 1914/ face à devoção da prole, esse sacrifício se
1933). Decepcionada com a figura da faria às custas do seu erotismo.
SUMMARY
The aim of this essay is to carry out a critical reading of the contemporary forms
of subjectivity brought about by the new forms of family organization and conjugal ties.
For this purpose, a psychoanalytic analysis is made in conjunction with historical and
anthropological understandings, to depict the complex picture in which today’s forms of
discontent are inserted. In this context, Foucault’s hypothesis on the bio politics of
modern times holds a fundamental place in our analysis.
RESUMEN
Joel Birman
R. Marquês de São Vicente, 250 — Gávea
22451-040 Rio de Janeiro, RJ
E-mail: livrariamuseu@uol.com.br