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PATOLOGIA, DISTÚRBIO E VARIAÇÃO: A DIFÍCIL TAREFA DE DIAGNOSTICAR

Maria Cecilia Mollica


(UFRJ/CNPq/ FAPERJ/PGCI-IBICT)
Natália Lopes
(UFRJ)

Auxiliares de pesquisa:
Andressa da Silva Ribeiro (CNPq)
Gabrielle Costa de Jesus Lourenço (PIBIC)
Raquel Fernandes da Silva (PIBIC)
(UFRJ)

Introdução

Este capítulo volta-se para a interface Linguística/Fonoaudiologia,


focalizando sobremodo as dificuldades de se chegar a diagnósticos confiáveis
quando se trata de transtornos mentais, geralmente mesclados a fatores sociais e de
aprendizagem. Visa, ainda, a alertar para a adequada formação do fonoaudiólogo na
difícil tarefa de distinguir estratégias naturais da língua de trantornos de linguagem.
A título de exemplo, estabelecemos uma relação entre autismo e afasia, levando em
conta sintomas e dificuldades apresentados por sujeitos, com o fito de confirmar
dificuldades encontradas para identificar os quadros em referência e apontar
orientação para tratamento adequado.
Há muito que a Ciência, em diferentes campos do saber, procura aprofundar
a compreensã o das bases bioló gicas dos processos mentais, entendendo-as como
um conjunto de funçõ es cerebrais. A partir de investigações voltadas para a relaçã o
entre mente e cé rebro, questõ es em diversas á reas do conhecimento irrompem,
motivadas pelo desafio de aprofundar investigações a respeito de habilidades
humanas abstratas, como o pensamento, memó ria, aprendizagem e, sobretudo,
aspectos de linguagem geralmente implicadas, bem como alguns princípios que os
governam. Exatamente no bojo dos estudos sobre a faculdade da linguagem e seu
funcionamento, emerge o interesse sobre os denominados distúrbios de linguagem,
relevantes para as pesquisas linguísticas, neurolinguísticas e demais ciências afins.
Dessa forma, a fonoaudiologia tem ampliado em muito seu espectro de
interesses. Contemporaneamente, seu profissional atua em pesquisa, prevenção,
avaliação, assessoria, consultoria, perícia, diagnóstico, terapia, ensino, orientação,
promoção de saúde e aperfeiçoamento nas áreas da Linguagem, Voz, Audiologia,
Motricidade Orofacial, Saúde Coletiva e Geriatria. Não pode, contudo, prescindir da
Ciência da Linguágem e da Sociolinguística, tal como enfatizada neste texto.

1. Autismo e afasia

Relvas (2011: 78) entende que o autismo “é um distúrbio de origem orgânica


(lesão encefálica) cuja causa específica é de componente genético”. Não se conhece
com detalhes, todavia, esse distúrbio. Para Relvas, a lesão pode atingir outras áreas
cerebrais, o que pode aduzir sintomas, como hiperatividade e déficits motores. A
maioria dos casos, no entanto, não tem causas aparentes, e os exames, curiosamente,
nem sempre registram lesão no sistema nervoso. Trata-se de um quadro de
transtorno que altera a interação social e, consequentemente, atinge a linguagem em
pleno uso nos diferentes contextos interacionais. Suas características variam de
intensidade e, hoje, são tratados como um espectro composto por uma gradação.
Tendo problemas com a comunicação dialogal, os indivíduos com Transtorno
do Espectro de Autismo (TEA) desenvolvem a linguagem com interrupções, já que
apresentam dificuldade de olhar o outro e colocar-se na situação do interagente em
relação a sentimentos e emoções. Por vezes agressivo, é pouco ou nada acessível à
comunicação linguística. Grosso modo, o indivíduo com TEA pode apresentar gestos
imotivados e pode ser imune à autoagressão.
O autismo não necessariamente compromete a inteligência e a comunicação.
Há casos que se confundem com timidez, expressa por posicionamento de distância
às situações. Assim, incidindo sobre o módulo pragmático da linguagem, tudo leva a
crer que o TEA tem origem genética e seus vários sintomas podem mesclar-se e
induzir a disgnósticos errônios, como o de fobia social, por exemplo.
A afasia, por sua vez, se desenvolve geralmente a partir de lesã o na regiã o
posterior do lobo frontal esquerdo afetando a produçã o linguística. Quando
descoberta por Pierre Paul Broca, a síndrome foi relatada como um dé ficit específico
de produçã o linguística sem que o paciente apresentasse, necessariamente,
qualquer problema motor para justificar a dificuldade de articular sentenças
gramaticais completas. Entretanto, com os diversos estudos experimentais na área,
percebeu-se que, alé m do problema de produçã o, os afá sicos de Broca també m
sofriam de dé ficit de compreensã o, podendo chegar à perda de conhecimento. A
afasia de Broca compromete igualmente a linguagem no tocante à fluência do
processamento linguístico. Nessa medida, a discussão aqui desenvolvida
dimensiona quão difícil o diagnóstico dos quadros mencionados que, não raro, se
misturam com características de outros distúrbios.
Por se tratar de uma síndrome identificável através de tomografias, o
diagnóstico da Afasia deveria ser facilmente estabelecido. Entretanto, uma de suas
intrigantes características é, muitas vezes, o fato de vários de seus sintomas
surgirem mesclados ao de outros transtornso, bem como a variabilidade da lesão
que, quanto maior se apresenta tanto mais tende a comprometer outras habilidades
do indivíduo. Grodzinsky et al. (1999) acreditam que, em casos como a afasia, o
comportamento linguístico dos pacientes seria muito variado e, por esse motivo,
teríamos uma generalizaçã o das características do dé ficit. Esses pesquisadores
aplicaram testes nos quais foi observada a compreensã o de sentenças
ativas/passivas por indivíduos afá sicos de Broca.
O fato de desejar encontrar na afasia uma síndrome regular levou
pesquisadores, como Grodzinsky e seus colegas, a buscar formas de sustentar a
hipó tese segundo a qual a realização de estudos de grupo (mé dia geral das
características da patologia) sã o a melhor forma de avaliaçã o de afasias. De acordo
com Lima (1999), a falta de um modelo específico que sirva de base para que
conclusõ es sejam levadas a termo sobre a caracterizaçã o da patologia faz com que
“quaisquer conjuntos de sintomas possam ser arbitrariamente listados como
caracterizadores” do dé ficit. Badecker e Caramazza (1985) afirmam que todas as
formas de investigaçã o baseadas em crité rios empíricos tê m que possuir um
conceito pré -estabelecido a respeito da síndrome em questã o. Para Coltheart &
Davies (2003), torna-se praticamente impossível encontrar um paciente com dano
cerebral que aénas tenha afetada uma ú nica funçã o cognitiva.
De um lado, uma patologia adquirida por acidente, de outro, um quadro que
é resultado de um distúrbio genético. Ainda assim, indivíduos com TEA e Afasia
possuem um ponto em comum: o problema de definição de quadros suficientemente
específicos considerados dintistos de outras patologias. O fato de os sintomas do
autismo e da afasia poderem surgir acompanhados dos de outras síndromes torna
ainda mais difícil estabelecer-se um diagnóstico inequívoco.
Tanto o autismo quanto a afasia podem variar de intensidade, o que serve
para dificultar ainda mais o trabalho de defini-los. No caso da afasia de Broca, por
exemplo, dependendo da extensão da lesão, há características amplamente distintas
entre pacientes. No autismo, diante da variabilidade encontrada na patologia, alguns
sintomas podem surgir de forma mais intensa, em alguns sujeitos, e menos intensas,
em outros.

2. Patologia, distúrbio, variação.

Historicamente, pudemos assistir à mudança conceitual nos usos dos termos


“patologia” e “distúrbio”. Ainda hoje, há equívocos quanto à utilização das palavras,
embora tanto a Linguística quanto a Fonoaudiologia possam oferecer adequados
subsídios para se distinguir os conceitos, em especial no que diz respeito à
compreensão de fenômenos variáveis dessemelhados dos distúrbios.
O termo distúrbio mostrou índices representativos em levantamento de
alguns números da Revista da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia, disponível
em SciELO, nos anos de 2007 a 2011 (COSTA & MOLLICA, 2011). Segundo o National
Joint Comittee for Learning Disabilities (Comitê Nacional de Dificuldades de
Aprendizagem), etimologicamente, a palavra distúrbio é composta pelo radical
turbare e pelo prefixo dis. O radical turbare significa “alteração violenta na ordem
natural”. O prefixo dis tem como significado “alteração com sentido anormal,
patológico”, e possui valor negativo. Distúrbio, por sua vez, pode ser traduzido como
“anormalidade patológica por alteração violenta na ordem natural”.
De acordo com Joffre, o termo patologia vem do grego páthos, doença, e lógos,
estudo, tratado. Etimologicamente, significa estudo das doenças. A palavra pode ser
também definida como o ramo da Medicina que descreve as alterações anatômicas
e funcionais causadas pelas doenças no organismo. Patologia apresenta duas
grandes áreas: (1) patologia geral (que estuda os mecanismos básicos das doenças,
ou seja, aspectos comuns a diferentes doenças no que se refere às causas, aos
mecanismos patogenéticos, às lesões estruturais e às alterações na função); e (2)
patologia especial ou dos órgãos (que descreve as alterações de cada órgão ou
aparelho).
Um aspecto muito importante relacionado à utilização do conceito é o fato de
que o temo patologia não ser empregado como sinônimo de doença, sobretudo no
plural, como ocorre frequentemente, tanto popularmente quanto no meio científico.
No entanto, quase sempre se processa a substituição do termo patologia pelo termo
doença, a exemplo de frases ouvidas comumente: "A patologia deste doente parece
ser uma virose"; "o diabetes é uma patologia complexa"; "as patologias mais comuns
na infância são as gastroenterites e as amigdalites", dentre outras. Em nenhum
dicionário especializado, encontra-se registrado o termo patologia como sinônimo
de doença, enfermidade ou afecção. Dizer que o paciente tem uma patologia seria o
mesmo que dizer que o paciente tem uma cardiologia em lugar de uma cardiopatia.
Como se refere a significado mais dinâmico dos problemas de linguagem,
distúrbio pode significar um conjunto de sintomas. Para o adequado entendimento
dos problemas de linguagem, os casos podem se apresentar mais agudos ou menos
agudos, podendo situar-se num contínuo de graus de severidade e confundir-se com
outros transtornos. Já patologia, como vimos, refere-se a entendimento mais
estático dos fenômenos e não revela a compreensão da totalidade dos aspectos das
doenças.
Segundo Nutti, alguns autores utilizariam tais termos dependendo do tipo de
abordagem, ou seja, o termo distúrbio seria preferido quando se trata de uma
abordagem comportamental, enquanto os construtivistas seriam defensores do
termo dificuldade. No caso, o termo dificuldade tira o foco do aluno e o passa para
questões psicopedagógicas e sócio-culturais, enaquanto distúrbio causa o efeito
contrário, uma vez que sugere um comprometimento das atividades cerebrais.
Vale ressaltar que fenômenos linguísticos variáveis, se compreendidos a
partir do princípio de que as línguas são heterogêneas, não se refrem a qualquer
síndrome relacionada à linguagem. Dizem respeito à dinamicidade das línguas
naturais humanas que, sujeitas à variação inerente, podem apresentar opções ao
falante, formas variantes equivalentes a significado semelhante. A variação
constitui, pois, processo natural nos sistemas das línguas e não implica
irregularidades. É, portanto, esperada, sendo as construções alternantes
previsíveis e legítimas. Muitos processamentos linguísticos considerados como
índices de atipicidade dos sujeitos portadores de várias síndromes são também
operadas por indivíduos de desenvolvimentos típico. “Podemos considerar esses
fatos como pistas que nos levam a concluir que os aprendizes: (a) ainda não
entenderam perfeitamente que o espaço em branco é um indicador de limite de
unidade vocabular; (b) ainda estão fixando as normas ortográficas e refletindo
sobre as diferenças entre fala e escrita” (MOLLICA, 2003, p. 14).

3. Considerações finais

É notável atestar a importância da formação em linguística em profissionais


de saúde com vista à atuação responsável por parte do fonoaudiólogo. É desejável e
necessário que se ampliem as formas de trabalho, via de regra, restritas à indicação
de diagnósticos que podem confundir-se com eventuais mudanças linguísticas em
curso nas comunidades discursivas.
A Neurociência também trouxe uma contribuição muito grande para esse
assunto. Através dela foi possível, “devido a inúmeras pesquisas e às imagens de
ressonância magnética” (Silva, 2015:33), observar que a origem da dislexia, por
exemplo, está no nível cerebral. Com o avanço da Ciência e o mapeamento cerebral,
talvez, seja possível, um dia, a comprovação de que o autismo também possui origem
neuro biológica.
Para além dos cuidados com um leque grande de transtornos, a
fonoaudiologia atualmente conta ainda com uma especialização chamada
Fonoaudiologia Escolar. Maia (2011) refere-se à prevenção da saúde de alunos e de
profissionais que trabalham no meio educacional. O fonoaudiólogo, assim, deve agir
para alertar profissionais de instituições de ensino que nem sempre há distúrbio ou
patologia no processamento verbal oral e escrito dos aprendentes.
Ao subsidiar os docentes e a equipe pedagógica da Nova Escola Inclusiva,
torna-se imprescindível a qualificação apropriada de competências, de modo que o
fonoaudiólogo se qualifique adequadamente e assimile que nem toda alteração deve
ser confundida com distúrbios e patologias (prática conhecida como
hiperdiagnóstico), em lugar de obervar casos de variação linguística. Não por acaso,
os cursos de Fonoaudilogia no Brasil contam atualmente com até oito disciplinas
obrigatórias de Linguística. Também o PROFLETRAS, O Mestrado Profissional
credenciado pela CAPES em rede nacional, vem ai encontro de formar
apropriadamente os professores brasileiros que atuam no Ensino Fundamental
público. Ao final, não é de todo lembrar que, para os profissionais da saúde e de
educação, quanto mais claro for o diagnóstico, mais fácil se torna a necessária
intervenção. A interação Linguística/ Saúde é, pois, imperiosa e decisiva para a
correta orientação de anamneses acertadas e de orientação de tratamentos eficaez,
quando realmente indicados.

Referências bibliográficas
BADECKER, W.; CARAMAZZA, A. On considerations of method and theory governing
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case against agrammatism. Cognition 20, 1985, pp. 97-125.
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Cortex 39, 2003, pp. 188-191.
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GRODZINSKY, Y. et al. The critical role of group studies in neuropsychology. Brain
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Lima, R. (1999) Detecção de agramaticalidade em afásicos agramáticos. Rio de Janeiro,
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MAIA, H. (org.). Neuroeducação: a relação entre saúde e educação. Rio de janeiro:
WAK Editora, 2011.
MOLLICA, Maria Cecilia. Da Linguagem Coloquial à Escrita Padrão. Rio de Janeiro:
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RELVAS, M. P. Neurociência e transtornos de aprendizagem. Rio de janeiro: WAK


Editora, 2011.

REZENDE, Joffre M. de. patologia como sinônimo de doença. Acessível em


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SILVA, Elisane Nunes da. O diagnóstico de Dislexia e a postura do professor do
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Mestrado Profissional (Profletras), 2015.
NUTTI, Juliana Zantut. distúrbios, transtornos, dificuldades e problemas de
aprendizagem. Disponível em:
http://www.psicopedagogia.com.br/artigos/normas.asp. Consulta em
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