Você está na página 1de 273

NO OUTRO LADO DO MUNDO

NO OUTRO LADO
DO MUNDO
J.C.Cardoso

Rio de Janeiro, 2020


“Quando a gente quer fazer graça,
mente às vezes um pouco”.
(Antoine de Saint-Exupéry,
“O Pequeno Príncipe”)


“É verdade esse ‘bilete’.”
(Criança do interior de São Paulo que
tentou enganar a mãe com um falso
bilhete da professora)
ÍNDICE

Prefácio.....................................................................................9

Capítulo - I - Welcome to Beijing.............................................15

Capítulo - II - Pequim, a cidade em que a salsicha é doce e a


limonada é quente..................................................................19

Capítulo - III - Maio ainda.......................................................25

Capítulo - IV - O filme que Hitchcock nunca dirigiu, baseado


no livro que John Le Carré nunca escreveu............................47

Capítulo - V - Julho..................................................................85

Capítulo - VI - Agosto: “estágio” e verão..............................121

Capítulo VII - Não me xingai, mas Xangai é um The


Bund....................................................................................165

Capítulo VIII - Eu venho do futuro........................................229

P.S. ........................................................................................271
PREFÁCIO

M
inha relação com a China começou em 2017. O jornal
em que trabalho há mais de 10 anos - MONITOR
MERCANTIL, diário de economia do Rio de Janeiro - tem
parceria com a Agência Xinhua, estatal chinesa de notícias. A
rigor, a agência é livre de direitos, qualquer um pode copiar e
colar seus textos e fotos, desde que dando o devido crédito. Mas
quem tem parceria tem umas vantagens a mais.
Além disso, a cada ano, o gigante asiático realiza o Fórum de
Mídias China-América Latina, organizado pelo Gabinete de
Informação do Conselho de Estado em cooperação com a
Xinhua, oficialmente para tanto eles como nós, latino-
americanos, trocarmos informações sobre mídia (sic), direito à
informação... etc... etc... e tudo o mais. O fórum alterna-se, um
ano na China; e no seguinte, em algum país latino-americano.
Em 2016, meu chefe (diretor de Redação e, mais que isso, dono
da empresa) havia ido representando o jornal. O encontro foi
em Santiago, no Chile.
Mais além: a China, desde 2013, através de sua Associação
de Diplomacia Pública, organizou seu Centro de Imprensa China-
Ásia e África, a rigor para intercâmbio entre jornalistas das duas
regiões. Profissionais da África e de outros países da Ásia são
convidados a passarem meses na China, pagos pelo governo
10
chinês, para conhecerem e divulgarem o que o eles fazem. É
essa a função, resumindo.
Em 2017, entraram os latino-americanos. Virou Centro de
Imprensa China, América Latina e Caribe (CLACPC, por sua
sigla em inglês). O jornal em que trabalho foi sondado pela
embaixada chinesa e somente uma colega – a única mulher
entre nós – preenchia os requisitos. Enviou currículo, foto,
documentos, tudo o que era pedido, fez uma entrevista e uma
prova escrita mas... não passou. Foram duas representantes
brasileiras, uma jornalista da Agência Brasil e outra, do Diário
Comércio Indústria e Serviços (DCI). Os demais dos 11
profissionais eram da Argentina, Bolívia, Costa Rica, Cuba,
Equador, México, Peru e Venezuela.
(Aliás, um pequeno parêntese, um erro aqui cometido no
Brasil e que também acontece na China: classificam “América
Latina E Caribe” – como se as ilhas, Cuba sobretudo, não
fizessem parte da América Latina – ou então “Brasil E América
Latina” ou ainda “Brasil, América Latina E Caribe”. Eu desde o
tempo do colégio achava um erro nosso não nos considerarmos
latino-americanos, mas vi que do outro lado do mundo é igual...)
Bom... o grupo foi em maio e voltou, salvo engano, em outubro,
depois de uma prorrogação de última hora por mais um mês no
gigante asiático. Como eu disse, o MONITOR MERCANTIL
não foi.
Em outubro, aconteceu, outra vez, o tal Fórum de Mídias,
desta feita, lá. O jornal foi sondado, meu chefe havia chegado
de uma viagem recente ao exterior, não queria outra tão cedo e
perguntou a mim: “JC, está com seu passaporte em dia?”
- Sim.
- Quer ir para a China? Tudo pago por eles.
Assim, fiz as malas, fui para a China, junto com mais um
brasileiro (carioca que vivia em Brasília e trabalhava no Correio
Braziliense) e mais 13 hermanos de vários países, passar uma
semana em Pequim, na última de outubro.
Depois de 26 horas de voo pela Emirates (aliás, espetacular,
mesmo na classe econômica), com conexão de quatro horas em
11

Encerramento do Fórum de Mídias China-América Latina de 2017; estou mais ou menos


no meio da foto, na fila da trás, embaixo da palavra “Comunicación”
Dubai, chegamos, finalmente, exaustos ao “outro lado do
mundo”, Pequim, 11 horas à frente do Brasil.
Apesar de eu falar espanhol fluentemente, tínhamos uma
tradutora só para nós (além da que traduzia para espanhol) que
aprendeu português em Macau (e, obviamente, falava com
sotaque lusitano). Aliás, depois vim a ver, um ano à frente,
que esse é o referencial que os chineses têm da língua
portuguesa. A pronúncia do brasileiro para eles soa como...
italiano!
Além do fórum propriamente dito, fomos brevemente
apresentados à culinária chinesa, cerveja, água e refrigerante
ao natural (não se bebe gelado no Oriente como um todo) e
chá, muito chá. Conhecemos a Muralha da China, uma sensação
indescritível (apesar do frio, embora na Região Metropolitana
de Pequim, e do ar mais ou menos rarefeito) e fomos ao
encerramento do Congresso do Partido Comunista Chinês.
Achei a cidade cinza, sempre, o ar muito poluído, embora
muito florida, limpa, com muitas bicicletas, carros elétricos,
mas a atmosfera sempre “pesada”, até no pouco tempo em que
fez sol. Depois soube que o país era todo assim pelo uso maciço
de termelétricas. Um baita contrassenso.
12
Experiência incrível, embora rápida. A turma se fala até hoje,
criou grupo nas redes sociais e ainda atualmente mantemos
contato.
O ano de 2018 entrou e, tão logo virou, a embaixada chinesa
procurou o jornal outra vez para sondar se havia alguém a ser
enviado para o segundo programa de intercâmbio, agora, com
duração de seis meses (a rigor, cinco meses e três semanas, como
faziam questão de frisar sempre). A colega, reprovada na
primeira seleção, já não trabalhava mais conosco.
De acordo com as exigências, não havia mais ninguém que
preenchesse os requisitos (os poucos que eles nos informavam,
até porque os chineses – e isso ficou bem evidente depois –,
apesar de o país já ter se aberto muito, ainda têm isso da “pouca
informação”, um grande problema para nós, jornalistas).
O único que tinha interesse e talvez tivesse o perfil mais
próximo fosse eu, mas esbarrava na idade. O limite era de 45
anos e eu já tinha 46. E quando o programa entrasse em vigor
eu já teria completado 47, em março. De qualquer forma,
perguntamos.
Num portuñol de chinês, trocando R por L e vice-versa,
pediram meu currículo. Enviei mesmo sem esperança. Essa
história de “dar jeitinho” e “quebrar galho” não me parecia ser
coisa de fora do Brasil. Ainda mais de governo chinês.
Alguns dias depois, recebo retorno de que o meu currículo
havia sido aceito, porque estavam com dificuldade de encontrar
pessoas com o perfil que queriam no Brasil. “Qual o perfil?”,
perguntei. De novo, a pouca informação. Desta vez, não havia
prova escrita, somente análise de currículo e pediam material
do jornal em que eu trabalhava.
Exigiam também uma foto 3x4 para ser anexada. Digitalizei
a que tinha em papel, já era um pouco antiga. Não serviu. Estava
fora da resolução. E porque eu estava de óculos (meses depois,
na China, percebi a enorme dificuldade que eles têm de nos
diferenciar, sobretudo em fotos com e sem óculos). Digitalizei
13
outra, da mesma leva, um pouco antiga, mas dava para ver que
era eu. Não servia também, até porque “não podia ser foto em
que ‘apalecia’ os dentes”. Depois descobri que o isso queria
dizer: que não podia foto sorrindo.
Fiz uma, às pressas, com o celular, no trabalho. Não servia,
porque o fundo era amarelado (de fato, as paredes da Redação
são beges). Manipulei no computador de
novo a imagem, para “branquear” a parede.
Não servia porque estava fora de resolução.
Ainda fiz uma última tentativa em casa,
mas as paredes brancas aqui são de
chapisco. E... não servia.
Não me sobrou alternativa a não ser ir a
um fotógrafo e fazer o serviço: sem óculos,
3x4, fundo branco. 10 cópias em papel
(pediam para levar) e uma digital.
Finalmente, tudo foi
enviado e... aceito!
Solicitaram também para
entrar em contato com a
embaixada, mas antes levar um
certificado internacional da
Vigilância Sanitária. Tive que
tomar uma bateria de vacinas,
inclusive da febre amarela,
para a qual eu havia me
vacinado alguns meses antes,
mas não adiantava, pois
fracionada. E também uma
carta-convite em inglês que
enviaram ao jornal.
Recebi da embaixada a recomendação de preencher a
solicitação do visto como J1 (convidado do governo) e não visto
de jornalista, com o qual, segundo os próprios chineses, não se
faz quase nada no país.
14
Na hora de preencher, o visto J1 só dava direito a três meses.
Achei estranho e entreguei o formulário saltando essa pergunta.
Ao chegar ao jornal, recebo uma mensagem num portuñol de
chinês, trocando R por L e vice-versa que, eu, o amigo, havia
esquecido de “pleencher” o visto. Falei que não, que havia
saltado propositalmente, já que o prazo do J1 era menor do
que a minha estadia na China. Mas decidiram preencher o
formulário por mim. Aliás, na China mesmo, decidiram por
mim várias coisas sem me consultar.
Em assim sendo, finalmente em abril, peguei o visto no
consulado, recebi por e-mail as passagens (de novo, pela
Emirates), recebi o contato do outro brasileiro que iria desta
vez. Assim como da outra vez, o jornal não me mandou laptop,
apesar de ter um pessoal do dono, guardado há anos (que nem
mesmo ele usa), para alguma situação especial (só que sempre
em que acontece uma, ele diz que não precisa usar). Acredito
que quando for ser usado, vá estar danificado. Não estou
praguejando, só uma observação.
Em 2017, tive que ficar mandando textos, fotos e vídeos
pelo celular. Desta vez, deixaram para comprar na sexta-feira,
véspera da minha viagem, o que, obviamente, não aconteceu.
E, finalmente, no dia 5 de maio de 2018, um sábado à noite,
embarcamos os dois no Aeroporto Tom Jobim, no Galeão, para
26 horas de viagem, com conexão em Dubai, a fim de viver
quase seis meses NO OUTRO LADO DO MUNDO.
CAPÍTULO I
WELCOME TO BEIJING

C hegamos a Pequim no dia 7 de maio de 2018, após mais de


26 horas de viagem, exaustos, e fomos recebidos no
desembarque lá mesmo dentro do aeroporto por dois chineses da
Associação de Diplomacia Pública do país, um com uma placa com
as siglas do programa e o outro com uma câmera registrando tudo.
Aquilo que o Ocidente brinca dizendo que é coisa de turista japonês
eles também fazem. E muito. E acham o mesmo de nós.
Fomos os dois brasileiros e nossas bagagens levados ao micro-
ônibus e chegamos, enfim, ao condomínio em que iríamos morar
por quase seis meses, uma área para diplomatas e membros de
representações. Ficava no bairro Chaoyang District, uma região

Embaixada do
Iraque em
Pequim; na rua
de trás do
condomínio em
que morávamos
16
quase central da capital chinesa, repleta de embaixadas
(inclusive a brasileira) e era um complexo fechado com
cancela e segurança de 15 prédios (os mais antigos dos anos
80 e os mais novos do início dos anos 2000) de 17 andares,
com pracinha (na verdade, parecia um heliponto adaptado),
quadras de tênis e vôlei, um quiosque (barzinho), dois
minimercados, alfaiate, salão de cabeleireiro, parquinho para
crianças, lavanderia, lava-jato, centro de convenções, além
de hospital, escola canadense, restaurantes e algumas lojinhas
(esses últimos com acesso externo para a rua, não tendo
necessariamente que ser morador para frequentar). E, ainda além
disso tudo, algumas embaixadas de pequeno porte (como a da
Costa Rica; a de São Tomé e
Príncipe; e a da Jamaica, por
exemplo) representações comer-
ciais (como a de um certo
Sinbad, que depois descobrimos
ser um lugar no Marrocos) e até
o escritório da Cruz Vermelha.
Desembarcamos do micro-ônibus e tentei tomar cuidado
para não fazer nada culturalmente errado nas apresentações
(como beijo no rosto das chinesas ou esticar a mão para
mulher)... Eu queria mesmo que o outro brasileiro (um cara
viajado e que já havia estado no país há 10 anos) descesse
primeiro para eu ver como seria feito e fazer igual. Mas, sei lá
porque, desembarquei na frente e fomos recebidos por um
grupo de chineses com Welcome e buquê de flores (nunca soube
disso de mulheres darem flores para homens em recepção,
acredito que eles pensem que no Ocidente seja assim) que
nos recebia. Uma espécie de “Bem-vindos à Ilha da Fantasia;
sou o Sr. Roarke, seu anfitrião”.
Acabei meio automaticamente esticando a mão para a
chinesa que falou “Mr.” + alguma coisa incompreensível e
recebi e um beijo no rosto.
Um só, como quase todo o mundo, menos os cariocas,
fazem.
17
Como não entendia o que falavam em inglês disse que meu
nome era Cardoso. Tentei Cardoso, com pronúncia em inglês;
e Cardôsso, como se fosse um espanhol falando. Depois logo,
olhando a ficha de inscrição, percebi que o nome estranho
que falavam era o meu Silva, talvez o mais fácil para eles
pronunciarem, mesmo assim incompreensível para nós: Sâhva,
se em ideogramas chineses; Zêlfa, quando liam o S-I-L-V-A
latino.
(Aliás, fica uma dica para
quem for à China: fotografe no
seu celular seu nome, tanto em
letras latinas como, principal-
mente, em caracteres chineses,
pois quando pedirem para você Silva em ideogramas chineses; em mandarim,
se identificar, pegar alguma a pronúncia sai mais ou menos “Sâhva”
credencial ou coisa assim, não conseguem entender as nossas
pronúncias para os nossos nomes. É aí que você mostra o seu
nome “como eles falam”).
Mais fotos.
Fomos levados aos nossos apartamentos, com as devidas
bagagens e o buquê de flores, e as chaves (são atravessadas na
fechadura, sem piada pronta) nos foram entregues. Cada membro
da delegação iria morar em um apartamento gigantesco de três
quartos igualmente enormes (dois dos quais ficavam trancados),
duas salas espaçosas (a de estar, onde ficava a TV – que nem
assisti, ficou com a película de proteção por seis meses – dava
para pôr um piano de cauda e ainda andar de bicicleta em volta
do piano), megacozinha (mas a área de serviço vinha antes da
cozinha, depois reparei que em toda a China é assim), varanda,
banheiro, mais um cômodo trancado (que acredito fosse uma
despensa) enfim... toda nossa nova casa.
Os representantes (e a gerente) da administração do
condomínio apresentaram todos os aposentos, demonstraram
como funcionava o ar-condicionado, fogão, micro-ondas,
lavarroupa (com secadora), boiler, água quente sem boiler (havia
18
dois chuveiros no boxe) e o kit que entregavam à gente para um
primeiro momento: dois saquinhos de Nescafé, um saco pequeno
de pão de forma, chá, além de toalhas de banho e mão e piso de
banheiro (um de cada), lençol, colcha e fronhas (um de cada),
talheres, pauzinhos, panelas, faqueiro, leiteira, etc, e no final
assinávamos um termo nos responsabilizando por tudo o que nos
era confiado, tendo que devolver em perfeito estado ao fim do
período. Também nos mostraram um manual do morador, que tinha
todos os contatos, avisavam que qualquer defeito em qualquer
instalação no apartamento, para que não tentássemos consertar e
que o contato fosse feito imediatamente à administração.
No final de tudo, fecharam a porta, cumprimentaram-me e
disseram: Welcome to Beijing.
Só me sobrou tomar um banho (sem sabão, não estava no kit) e
dormir.... a semana inteira. Propositalmente, não havia atividades
para todos nos “aclimatarmos” ao horário local.
CAPÍTULO II
A CIDADE EM QUE A SALSICHA É DOCE E
A LIMONADA É QUENTE

U ma das primeiras coisas que os chineses pedem para você


fazer é instalar o WeChat (um aplicativo/rede social da
Tencent, megaempresa local) no seu celular, porque, oficialmente,
todas as redes sociais (Facebook, Instagram, Whatsapp...) são
bloqueadas no país, além do Google e Gmail. Claro, para proteger
seus cidadãos das empresas que não quiseram aceitar as regras
do país que pensa por e protege seus nacionais.
Tivemos também que comprar cartões com números da CU.
Calma: China Unicomm, a empresa de telefonia local. Do
contrário, se ficássemos com nossos números, uma simples ligação
para o colega do lado custaria uma chamada internacional.
Depois de todo mundo com seus respectivos telefones,
deram-nos um catálogo com nossos nomes, nossos países, os
veículos que representávamos, nossos e-mails e nossos
números de telefones (da China Unicomm). No final, havia
três pessoas extras: o representante da Diplomacia, sua
assistente e um certo “Chofer Bai”, que descobrimos ser o
motorista (chofer) do micro-ônibus que sempre nos levava.
Disseram que era para termos os contatos, poderíamos precisar
para alguma emergência. Detalhe: o Chofer Bai (na verdade
somente Bai) não sabia uma palavra de nenhum outro idioma
que não o mandarim... Como se fosse adiantar muito...
20
Bom, de qualquer forma, ainda no assunto internet, aliás, numa
das palestras que tivemos, mais à frente, falaram que, segundo o
governo chinês, os sites mais acessados no país eram de compras,
depois redes sociais – oficialmente a única que existe é o Wechat –
e o de notícias. Eu me lembrei que, no ano 2000, quando fui editor
do site (aliás, sítio, como faziam questão de dizer) da Associação
Brasileira de Imprensa (ABI), publicamos uma matéria que dizia
que os sites mais acessados no mundo eram primeiramente, de sexo,
nudez e pornografia. Depois, vinham os religiosos, indepen-
dentemente do credo. Notícias também vinham em terceiro.
Acrescentam também nessas palestras/aulas oficiais que o país
é o que mais acessa internet no mundo. Em segundo vêm os EUA.
Fato é que quando estive na China em 2017, não sabia dessa
restrição e alguém no grupo (acho até que alguém chinês)
recomendou que se baixássemos o VPN (que consome bateria pacas
e ocupa grande espaço na memória do celular) para se acessar o que
é bloqueado. Como no meu celular eu acesso a internet usando o
navegador do Instagram (que tem algumas restrições como não ter
barra de endereços – temos que dar um jeito, pelo Google –, mas é
muito, muito mais leve e rápido), acabava tendo que usar o VPN
para qualquer consulta. Sem isso, nem mesmo o navegador do
Instagram entrava. Nesta segunda vez, já ciente disso, instalei o
VPN nos meus últimos dias de Brasil.
Foi assim que consegui me comunicar com “o lado de cá” do
mundo. Até adquirir, às pressas, um computador, já que o jornal
deixou para comprar um laptop na véspera de minha viagem.
Obviamente, sem sucesso.
Maio foi o mês em que a grana durou menos. Assim que
recebemos os subsídios (o equivalente em iuanes – yuan, a moeda
chinesa de 1949 – a US$ 1.000 mensais, na cotação do dia), além de
ter que basicamente “montar um apartamento” (optei depois, com
o tempo, por compras semanais – mas no primeiro mês, caí na asneira
de compra mensal, o que, aliás, deu uma perda enorme –, e, além
disso, material de limpeza, ferro de passar, higiene pessoal, vassoura,
sabão, toalhas e lençóis extras...), ainda tive que correr atrás de um
21
celular novo (que ainda não usei até agora) e, mais urgentemente,
de um computador, até para poder escrever para o jornal. Sem falar
que tive que guardar para o desconto no final do mês da nossa
conta de luz. Eu não sabia quanto seria na China (embora soubesse,
que, mesmo usando termelétricas, a energia era barata), mas fiquei
impressionado com uma que estava na minha caixa de correio no
valor de 480 iuanes (R$ 240) deixada há mais de ano pelo vizinho
anterior do apartamento...
Eu havia levado US$ 1.000 do Brasil. Como soube que não havia
quase agências do BB (em que tenho conta) no país (há algumas
representações, escritórios para fechamento de negócios e somente
uma agência dentro da embaixada, que, aliás, nem vi nas duas vezes
em que entrei), deixei o cartão com minha família (desabilitadas as
minhas digitais) para administrarem o meu salário que ia caindo em
minha conta (o que, aliás, me rendeu um grande transtorno em
agosto, já que meu pai perdeu o cartão – dentro de casa, apareceu
quase dois meses depois – e só teve coragem para enviar um e-mail
avisando do ocorrido só em setembro...)
Como nas grandes cidades chinesas quase todos os pagamentos
são feitos por aplicativos (há lojas que nem aceitam pagamento em
dinheiro; e há outras, como o primeiro salão em que tentei cortar o
cabelo, no subsolo de um supermercado, em que o pagamento a
dinheiro era mais caro...), quando ganhamos nossa primeira bolsa
(essa mesma, que foi embora tão logo recebemos), a Associação
Diplomática (nosso anfitrião) perguntou se não queríamos abrir conta
no Banco da China, para poder atrelá-la ao aplicativo, que funciona
como rede social. Perguntei se era obrigatório, disseram que não.
Como não estava muito a fim de ser controlado por mensagem,
rede e agora também onde estava e o que eu comprava naquele
exato momento (nem mesmo no Ocidente eu gosto disso), optei
por não abrir conta. Sei que houve mais alguém no grupo que também
disse não. E assim vivi por seis meses, sem cartão, nem cheque,
nem conta em banco...
Voltando às compras, quanto ao material de limpeza, não há
vassouras como as nossas na China. Pelo menos, não vi. Ou usam
22
aquelas enormes, de bruxa (que não vi à venda), algumas lindas:
camponeses, garis, empregados e no interior usam essas. Ou umas
de plástico, que parecem de casinha de boneca, coloridas, com
pazinhas e com as cerdas macias demais. Muito ruins para varrer,
além de o cabo ser pequeno, tinha que varrer de modo corcunda.
Passei seis meses tentando ver se achava canos de PVC em alguma
caçamba de obra para “estender” o cabo. Não encontrei. E também
não vi rodo. Nem como os nossos, nem aqueles que são umas placas
de espuma como se fossem um esfregão de calafate. Só me restou
comprar um mop. No início, até funcionava razoavelmente. Depois,
você tem que ficar lavando e para secar era sempre um problema.
Como abaixo da minha janela da cozinha era uma marquise, eu me
dava ao luxo de, depois de lavá-lo, deixá-lo estendido para fora do
apartamento com a janela travando o cabo para não cair. Mesmo
assim, depois da limpeza, o mop ficava, apesar de tudo, nojento.
Um mês antes de o intercâmbio acabar, ele já estava em petição de
miséria. Eu mesmo fazia a limpeza todo o tempo. Houve gente que
pagou diarista, que parece que era um serviço relativamente caro,
mas não proibitivo. Eu procurava manter as telas das janelas
fechadas (mesmo com as janelas abertas, exceto quando viajava),
mas, como meu andar era baixo (terceiro, contando o térreo como
sendo o primeiro) e a cidade é muito poluída, já viram, né?

Tive que comprar às


pressas um laptop que
virava tablet; logo
quebrou a lingueta da
dobradiça e tive que
trabalhar com ele
apoiado numa
pilha de livros
23
Quanto ao computador, acabei comprando um laptop
Thomson às pressas no Mercado da Seda, um shopping que
depois soubemos ser caríssimo, coisa para turistas estrangeiros,
basicamente todas as lojas de um dono só. Paguei 1.500 iuanes
e era o segundo modelo mais barato que uma das lojinhas tinha,
já um tanto obsoleto. O mais barato de todos era totalmente
ultrapassado e não quis arriscar, apesar de só custar 700 iuanes
(R$ 350). O que eu comprei ainda tinha a vantagem de a tela
soltar da dobradiça e virar um tablet (com câmera), mas depois
conversando com um primo no Brasil soube que esses micros
têm vida curta, o que se confirmou, pois uma das linguetas que
faziam encaixar a tela/tablet no teclado quebrou e tive que ficar
trabalhando mais de quatro dos seis meses com ele apoiado numa
pilha de livros. Sondei pela internet e vi que não havia autorizada
da Thomson na China. As únicas (todas) eram na Europa, uma
em Portugal, com quem eu fiz contato, mas o conserto duraria
15 dias e eu não tinha como ficar esse período sem a ferramenta
de trabalho. Cheguei a cogitar enviar para Portugal nos meus
últimos dias na China, pedindo para que fosse devolvido para
meu endereço no Brasil. Mas a nota fiscal ficou sobre a mesa
junto com o ferro (que esguichava vapor), que vazou água e...
tchau, notinha; tchau, conserto.
E foi com o micro dani-
ficado por quase quatro meses
que eu escrevi a maior parte
das matérias para o jornal e a
maioria das histórias publi-
cadas aqui.
Aliás, uma de minhas pri-
meiras compras na China foi
um pacotinho com três “sal-
sichas em molho taiwanês”.
Horríveis. O molho é adi-
cionado, parece aquele Karo,
espécie de “mel” de milho.
24
Depois vi que na rua atrás do nosso condomínio havia um
quiosque que também vendia dessas salsichas. Aliás, o paladar
do chinês não é de coisas nem salgadas (mesmo considerando o
sal natural) nem neutras. Ou doce (carnes, inclusive) ou picantes.
Muito picantes.
Outra furada em que entrei foi num evento de informática em
que eu estava seco por algo gelado (estava escrito no cartaz
limonada)... Era... quente!
Chineses (e depois soube que
orientais, como um todo) não
bebem gelado, pois pela medicina
oriental, é ruim para a digestão.
Mais para a frente, num mega-
hotel que ficamos numa cidade
do interior o suco de laranja
também estava quente. Não digo
“ao natural”. Digo quente
mesmo, como se fosse café ou
chá. Assim era também a
limonada que bebi no tal evento
de informática. Fora isso, os únicos lugares em que vi gelado era ou
no bairro Chaoyang District, onde morávamos em Pequim, devido
à grande quantidade de estrangeiros; ou em Xangai, totalmente
ocidentalizado. Hotéis em cidades grandes têm as coisas em cima
do frigobar para que esses hóspedes ocidentais estranhos ponham
dentro para gelar. Nas cidades de médio porte para baixo nem frigobar
existe nos quartos dos hotéis...
Bom... depois dessas duas furadas pelas quais passei, escrevi
para o jornal, no dia 19 de maio de 2018, a seguinte frase: “Bem-
vindos a Pequim... a cidade em que a salsicha é doce e a
limonada é quente”.
CAPÍTULO III
MAIO AINDA

C omo disse um colega argentino da delegação: se você


passar um mês na China, vai querer escrever um livro;
se passar um ano, vai ver que não sabe quase nada sobre o
país.
Passamos seis meses (ou melhor, cinco meses e três
semanas, como os chineses faziam questão de frisar sempre)
e pude anotar algumas curiosidades.


“De nada” é “bokhete” (levemente aspirado no H). Bukeqi,
como se escreve em pinying (a transliteração para o alfabeto
latino, o modo como eles ensinam o povo do outro lado do
mundo).
Foi a saudação mais fácil de entender. Aí você começa a
rir e eles riem juntos.
Depois você se acostuma, mas sempre dá vontade de rir.
Eu tive até uma ideia maldosa de gravar vários vídeos em
momentos diferentes de mulheres chinesas falando bukeqi e
ia postar dizendo: “Ela só está querendo dizer ‘de nada’.”,
mas como sei que ia ter textão, abaixo-assinado no
Change.org, manifestação de peito de fora... e mais um monte
de gente problematizando a postagem, acabei arremetendo.
26
Na China, acocora-se para
tudo. Agacha-se para fumar;
agacha-se para para comer;
agacha-se para falar ao celular;
agacha-se para conversar.
Agacha-se até para K-H-ar.
Aliás, banheiro é algo meio
raro no país. Mesmo nas
cidades grandes. Num
Pictograma indicando latrina (e não vaso shopping – o tal Mercado da
sanitário) em banheiro de shopping
Seda – com cinco andares perto
de onde morávamos, em Pequim, só havia um banheiro
masculino e um feminino no segundo andar. E para servir ao
shopping todo. Em restaurantes, hotéis e lugares bacanas é a
mesma coisa. E isso, como eu disse, em cidades grandes. No
interior é pior.
Mas os próprios chineses (a população) e o governo central
têm consciência disso. Dizem eles que o presidente Xi Jinping já
falou várias vezes em vários discursos e até mesmo em tom de
brincadeira que a China precisa fazer a “revolução dos
banheiros”!
Passei alguns “sufocos” na rua por causa dessa carência de
sanitários. Aliás, é uma das primeiras palavras que procuro saber
como é. Cèsuo (com o tom do “E” descendente e o do “O”
descendente-ascendente). Há que se ser bem meticuloso com
esses tons. Falou errado e você pronuncia outra palavra que não
faz sentido ou que nem existe. E eles não conseguem fazer a
correlação. E o pior é que, pelo sotaque, é normal você,
estrangeiro, errar e eles não compreenderem.
Em um desses “sufocos” eu até estava perto de casa, sei lá, a
1 km, talvez até menos. Mas a urina estava quase pingando. E
olha que não havia bebido cerveja.
Entro num fast food de comida chinesa em que íamos com
alguma frequência, vejo num canto do salão um lavabo com uma
portinha do lado, ambos separados do resto por um biombo. Abro
e... pegadinha do chinês, era um pequeno depósito, uma
27
despensa. Vou ao outro lado do salão, há uma outra porta, tento
abrir e está trancada. Devem ter visto um ocidental amalucado
tentando abrir as portas e uma funcionária vem até mim, fala
alguma coisa que não entendo, ao que respondo: Cèsuo! Cèsuo!
Primeiro falo com o “O” final aberto, depois tento fechado.
Não sou compreendido.
Faço gesto de que estou apertado para urinar, segurando a
bexiga, levando as mãos cruzadas à frente da braguilha: Cèsuo!
Cèsuo! (“O” final aberto, depois tento fechado, de novo).
Acho que sou entendido porque recebo um meiyou (não tem).
Saio com mais vontade de urinar. Na esquina da rua (uma
loja depois), vejo que uma placa indica sanitários (públicos,
presumo) entrando pela perpendicular. Entro, apertando o passo.
Ando, ando e... nada mais de indicação (depois soube que o
banheiro público era na outra ponta da rua... eu ainda teria que
andar mais...)
Na calçada, paro em frente a uma construção de médio para
grande porte, toda de pedra, meio com cara de templo, mas várias
construções na China têm essa cara mesmo sem o serem. Do
outro lado da rua, mais adiante, três chineses estão agachados
(como sempre) fumando (como sempre - II)...
De novo, faço gesto de que estou apertado para urinar,
segurando a bexiga, levando as mãos cruzadas à frente da
braguilha da calça: Cèsuo! Cèsuo! (“O” final aberto, depois tento
fechado, mais outra vez).
Um deles faz gesto para eu entrar numa das portas (a de
pedestre, a outra, fechada, dupla, parecia para veículos) do tal
prédio. Entro cada vez mais apertado, há um corredor longo,
passo por um detetor de metais que começa a disparar. De uma
das salas que dá para esse corredor aparece um chinês com uma
longa bata étnica parecendo um camisolão, um gorro similar ao
dos árabes e realmente um tipo físico que fugia ao da etnia han,
a majoritária no país: era moreno, mais próximo de um havaiano,
e usava só barba (bigode raspado). Fala alguma coisa que não
entendo.
28
Urina quase pingando (agora sério, já não era mais jogo de
cena), mais outra vez, faço gesto de que estou apertado para
urinar, segurando a bexiga, levando as mãos cruzadas à frente
da braguilha: Cèsuo! Cèsuo! (“O” final aberto, depois tento fechado,
de novo e mais outra vez, uma das pronúncias deve estar correta).
Fala alguma coisa apontando para o corredor e faz gesto como
se fosse para seguir reto. E aponta que no final devo dobrar à
esquerda. Sigo correndo e consigo me aliviar no destino.
Reparo que, de fato, era um templo com algumas construções
(não uma única como estamos acostumados a ver no Ocidente)
com decoração bem oriental, meio árabe, meio igreja ortodoxa
russa. No meio do pátio (para onde dava o tal portão principal),
havia uma construção envidraçada, vazia.
O lugar por onde entrei e o chinês estava, uma edícula, seria
a sacristia (se fosse numa igreja católica romana). Ao fundo do
terreno, os banheiros e uma garagem com porta para a rua de
trás.
Bom... xixi feito, saio, me retiro, vejo o chinês por uma
janelinha num escritório, sei lá, agradeço (xiè xiè), recebo um
bukeqi (de nada) e volto para a rua, aliviado. Só aí reparei que do
lado de fora havia uma seta trilíngue (chinês, árabe e inglês)
apontando para o prédio indicando... uma mesquita!
Receberam um estrangeiro, ocidental, ateu, de sapatos (OK
que não entrei no prédio envidraçado principal, certamente onde
acontecem as preces, necessário descalçar-se) e ainda permitiram
urinar em seu templo.
E muita gente achando no Ocidente que muçulmanos só
fazem explodir bombas...


Ah, sim! Depois soube por outros do grupo que também pela
dificuldade em serem compreendidos ao falar cèsuo, eles costumam
entender a sigla WC (pronunciado à inglesa) fluentemente. Siglas
em inglês costumam ser fáceis para chineses (até para quem não
fala inglês). Aliás, é a tendência deles quando leem palavras
“estranhas” que não conhecem em qualquer idioma ocidental.
29
Passamos por isso quando precisamos nos referir ao PIB de uma
cidade. O produto interno bruto também é PIB em espanhol.
Nem pronunciado à inglesa (pee-ai-bee) os chineses conheciam.
Mesmo nos textos em espanhol apareciam como GDP (falado
gee-dee-pee), por gross domestic products.


Falando em templo, uma vez um dos hermanos da delegação
me diz que no seu país há uma Igreja Neopentecostal brasileira
que faz muito sucesso. “Qual?”, pergunto. Aquela “pare de sufrir”.
Demorei a ligar que era o slogan da... Universal do Reino de
Deus.
Fico também sabendo por outro hermano – este, argentino –
que no norte do seu país (mais próximo do Brasil) não são tão
católicos assim. Comentei que meu avô esteve na Argentina nos
anos 50 (no auge do Peronismo), a trabalho, e as padarias e
confeitarias só enchiam depois da missa, porque as pessoas iam
cumprir seus rituais realmente em jejum e não à moda avacalhada
que já era no Rio de Janeiro, mesmo naquela época.
Mas soube que não. Parece que há muito de misticismo no
norte da Argentina. Santería, diz.
Isso me lembrou uma ex-colega de colégio, uruguaia, que
falava o mesmo de seu país. Mas eu jurava que isso no Uruguai
fosse influência brasileira que lá ficou, quando o território era
Província Cisplatina.


As coisas funcionam quase que plenamente aos domingos
em Pequim. Não só na capital como em toda a China. E, se
fosse para arriscar, eu diria que no Extremo Oriente como um
todo. A explicação é meio óbvia: trata-se de um país
tradicionalmente budista e posteriormente ateu, embora, pelo
pouco que pude perceber, parece-me que tentando futuramente
30
ser um país agnóstico. No Ocidente, a pausa dominical, de raiz
religiosa, passou a ser cultural. Até nos lugares e com as pessoas
com maior desprezo pelo Cristianismo, para-se no primeiro dia
da semana, senão por guarda divina, pelo menos, por descanso
humano.
Digo “tentando futuramente ser um país agnóstico” por parte
da população, porque por parte do governo ainda me parece bem
intolerante, embora fingindo não ser. Tivemos, no ciclo de
palestras, algumas mostrando como a China é um país, embora
laico, aberto às religiões. Mais de 90% são ateus (porque o
querem, diz o governo). Tentam emplacar um discurso de que
são quase uma Islândia, mas sabemos que anos de mão de ferro
contra a religião acabou moldando o gosto e a crença da
população. Mais ou menos o que aconteceu com anos de
obrigatoriedade de filmes dublados em espanhol no tempo da
Espanha franquista. Hoje, não há mais exigência legal no país,
mas a população passou a gostar de filme dublado.
Voltando à China, dos 10% que não são ateus, 1% é
muçulmano. Dos 9% que sobram, há budistas, taoístas,
xantoístas... e cristãos, estes últimos, como um todo, não somando
nem 1%. A Igreja Católica Romana na China é controlada pelo
Estado e não segue os ritos e rituais do Vaticano (porque o
Estado considera ser interferência externa de outro Estado no
país). Além disso, o Vaticano tem relações com Taiwan. Pergunto
sobre os anglicanos e parece-me que há a mesma restrição
(consideram um Estado interferindo no outro), embora haja
muito menos gente da Igreja da Inglaterra do que católicos
(romanos) em território chinês. Sem falar que o Reino Unido
tem relações com a China, o que o Vaticano não tem, “embora o
papa Francisco e Xi Jinping estejam conversando”, como dizem.
Nem fui conferir se estavam mesmo.
Missas que seguem o rito romano são consideradas
clandestinas e quem estiver participando, se descoberto, vai
preso.
O Protestantismo (pelo menos, o histórico), por outro lado, é
mais “tolerado” na China. Sinceramente vi poucas igrejas (como
31
um todo) nas viagens em que fiz, mas me recordo ter visto uma,
batista, numa cidade do interior; e havia outra, presbiteriana,
perto de onde eu morava, em Pequim. As demais, poucas que
vi, eram católicas (romanas). Havia uma catedral, antiga, de
séculos atrás, de devoção a são José, perto de onde eu morava.
Mas que tinha poucas missas controladas pelo Estado chinês.
Alguns de nossa delegação foram ver como ponto turístico e
parece-me mesmo que funcionava mais assim do que realmente
templo religioso.
Fora isso, o Protestantismo era “mais forte” no interior e esse
Catolicismo (torto), nas cidades grandes. Assim explicavam nas
palestras sobre a “tolerância chinesa”. E mais: no passado, o
Protestantismo era mal visto, por associação com a Guerra do
Ópio; e o Catolicismo, mais aceito. Com o tempo, isso se inverteu.


Ainda no primeiro mês, logo que chegamos, a turma resolveu
sair para ver como era a night em Pequim. Na verdade, a “noite”
na China, como um todo, acaba cedo, muito cedo. Almoça-se às
11h da manhã, janta-se às 17h, no máximo 18h (com sol pleno)
e 21h está todo mundo em casa. “Esticar” uma noitada em
Pequim vai até... 22h, se muito. Muito tarde para eles. Eles até
saem para beber (cerveja quente) no fim da tarde. Mas isso quer
dizer que saem às 16h30, 17h e às 19h estão todos em casa.
Depois soubemos pelo nosso professor de mandarim (que fazia
parte do programa de intercâmbio) que isso faz parte da medicina
oriental: dormir cedo, comer cedo. Bom para a saúde e emagrece.,
segundo os chineses. Acredito que em Xangai (não pude perceber,
pois só passamos uma semana e corrida, de eventos, dormindo
em hotel), a mais ocidental das cidades chinesas e, chute, em
Hong Kong (aonde não fomos, pois precisava de visto) seja
diferente. Mas no resto da China é assim, mesmo nas cidades
grandes. Em Pequim, beber uma cerveja até tarde com os amigos
é dificílimo. Até encontramos, num hotel bacana, perto de onde
morávamos, mas só falavam... mandarim.
32
Talvez os dois bairros em que a “noite” ia até mais tarde era o
Chaoyang District (onde morávamos), por haver uma grande
quantidade de estrangeiros (nós, inclusive), em função de
embaixadas e representações; e Sanlitun, o bairro boêmio da
capital chinesa.
Mas o fato é que na primeira saída que demos, fomos ao tal
Sanlitun para conhecer e beber uma cerveja. Caro, muito caro. E
os barezinhos cheios, muito cheios. Eu e o outro brasileiro
acabamos nos afastando do grande grupo para fazer umas fotos
de prédios com fachada de neon. Era quando sempre vinha um
chinês e falava alguma coisa incompreensível. Aliás, vira e mexe
no tal Sanlitun havia algum chinês abordando o nosso grupo e
falando a mesma coisa. Eu não conseguia entender exatamente
o que falavam, mas pelo modo de abordagem (falando baixo e
tentando empurrar alguma coisa para fora do bolso), devia ser
droga, dólar no paralelo, garotas de programa ou qualquer coisa
assim e a gente dizia que não. Coisa boa não era. Só abordavam
ocidentais.
Acabamos indo beber em outro lugar e aí, conversa vai e
conversa vem, alguém se deu conta de que só os homens do
nosso grupo eram abordados. E outra pessoa conseguiu, com
dificuldade, lembrar que a frase era falada em inglês, numa
pronúncia sofrível: ofereciam... ladybar! (Casa de strippers).


Aliás, prostituição é proibida na China (como em vários países).
Passamos no Sanlitun por alguns barezinhos que tinham palco
com a dançarina numa vitrine e a galera lá dentro indo ao delírio.
Aliás, também usavam vitrine nos barezinhos em que no palco
havia música ao vivo. Você passava em frente e via os músicos
tocando. Chamariz.
Mas o fato é que, quando voltei ao Brasil, um amigo que já
esteve na China disse que seja qual for a modalidade de stripper
ou de “programa”, é sempre uma “furada” para o estrangeiro.
No final, aparece um “ex-marido” “traído” com a polícia exigindo
33
todo o seu dinheiro para você não ser preso. Ou o gerente da
casa faz o mesmo, senão vai chamar a polícia. Quem me contou
isso jura que não caiu no golpe...


Falando em barzinho... em uma outra dessas primeiras saídas,
uma hispânica do grupo me pergunta se a expressão em português
“p*ta que pariu” era o mesmo que em espanhol. Sim, digo que
sim. Havia comprado para o sobrinho (ou o afilhado, não me
recordo) um jogo (ou game, idem não me lembro) das Seleções
de futebol e o boneco do Brasil, quando errava o chute a gol,
gritava isso.

Feira internacional em que o Brasil era convidado de honra: nada de samba e a única
imagem do Rio de Janeiro, tudo isso propositalmente fugindo do lugar-comum

Fomos cobrir a feira em que o Brasil era convidado de honra. Se


quisesse pegar o ponto eletrônico com a tradução (para inglês) era
preciso deixar o passaporte como garantia.
Quando fomos devolver, estavam separados por países e entre
comuns e diplomáticos. Junto do meu, comum do nosso país, havia
o do outro jornalista e mais um terceiro de algum brasileiro que não
sei quem era.
Tiveram dificuldade ao olhar as fotos e diferenciar quem era
quem.
34
A garota perguntou qual meu nome. Disse “João Carlos Silva
Cardoso”. Continuou a dúvida. Disse “Zoaun”. Disse “Cardoso” e
“Gadôso”. Disse “Silva! Silva!” Nem assim.
Disse “ZÊLFA”!
Acharam.


Aliás, a coisa mais difícil para os chineses entenderem (ainda
mais em eu estando num grupo hispânico) é que meu último
sobrenome, se em espanhol, se escreveria com Z, mas teria som de
S. Em português, escreve com S mas, por ser intervocálico, tem
som de Z.
Ou seja:
Cardozo, em espanhol, pronuncia-se Cardosso. (Não existe o nosso
som Z no idioma);
Cardoso, em português, pronuncia-se CardoZo.
Aliás, os hispânicos, certamente, por não terem esse som (o nosso
Z), não compreendiam a diferença. E quando até percebiam alguma
diferença, não achavam tão gritante como é para os lusófonos.
Em Liupanshiu, foi difícil até para o chinês (da organização da
viagem) que falava inglês entender isso. Até porque ele via meus
outros colegas de delegação me chamarem de Cardossssso.


Mais além: os nativos de fala espanhola, mesmo quando sabem
que há dois sons em português (S e Z), acham ambos muito parecidos.
Não percebem muito a diferença entre “Cardosso” e “CardoZo”.


Já tinha acontecido da outra vez em Pequim e ocorreu de novo.
Sai sempre alguém por sobre o ombro do fotografado.
Quando falo para os hispânicos que isso no Brasil leva o nome
de “papagaio-de-pirata” (“loro de pirata”, tenho que traduzir),
morrem de rir e juram que vão levar o termo para os seus países.
Mais uma invenção brasileira for export.
35
Você diz que é baxiren
(brasileiro) e os caras falam em
Ronaldo, Ronaldo, em geral
fazendo o “gesto” de embai-
xadinha com o pé. Curioso 20
anos depois, muitos quilos mais
gordo, envolvido em escândalos
sexuais e praticamente fora da
mídia no Brasil, o cara ainda ser
referência no país. Neymar
alguns conhecem (até por conta
de um anúncio de automóveis
na TV). Fora isso, Kaká,
Paulinho e fechando a raia, Zico,
lá atrás.
Mas a primeira palavra
associada a Brasil ainda é
Ronaldo. Inclusive confundem
com Cristiano Ronaldo. Também Souvenir à venda num shopping de Pequim
acham que é brasileiro. com a cara do jogador Ronaldo Fenômeno

Logo no primeiro mês, houve uma reunião com todo o grupo
dos latino-americanos no escritório da tal Associação Diplomática
para explicar mais detalhes (de novo) sobre o programa, o que iríamos
fazer e, sobretudo, escrever sobre a China sem a influência da “grande
mídia hegemônica ocidental” (sic) e todos aqueles chavões que
também se ouve aqui no Brasil. Sem Google, sem Facebook, sem
redes sociais, “vocês não vão reproduzir o que a mídia diz, vocês
vão ter a oportunidade de ver com seus olhos, comprovar e vocês
mesmo escreverem o que viram”, assim o chefe da associação falava
em espanhol. “O que eu quero que vocês escrevam”, faltou dizer.


O melhor exemplo disso comigo foi uma matéria que sugeri
sobre reciclagem de Isopor. Em quase toda Pequim há coleta
36
seletiva e eles reciclam, além de papelão, papel, plástico,
latinhas... muito Isopor.
Enquanto aqui no Brasil isso é um problema – em 2004, fiz
uma matéria para um jornal diário em que trabalhava sobre
dois projetos de reciclagem (na verdade, reaproveitamento, o
Isopor não voltava a ser sua matéria-prima) do material (um,
em Barra do Piraí, no Estado do Rio, de uma empresa que
reaproveitava Isopor triturado na fabricação de lajes e tijolos,
claro, com fim comercial; e o outro, no Paraná, experimental,
uma parceria da Universidade Federal com a Prefeitura de
Curitiba para construção de casas populares usando tijolos de
Isopor colados com “cimento” de garrafa Pet... infelizmente
mudou o prefeito e não foi adiante) –, em Pequim, o que eu via
eram vários chineses de triciclos motorizados diariamente
recolhendo no nosso condomínio e/ou no bairro em que eu
trabalhava e, quando íamos para a Universidade, passávamos
por um ferro-velho em que estavam descartando o material.
Aquilo daria uma boa matéria: quanto movimenta, quanto gera
de emprego... E mais... uma matéria em favor da China:
enquanto o Ocidente, por anos, tinha aquele material como
inerte (que não há como reciclar, como louças, papel carbono
e por muitos anos foi o pneu) e um problema, a China,
adiantada, movimantava não-sei-quantos bilhões de iuanes com
aquele mercado. Além da informação relevante do ponto de
vista econômico (o foco do jornal em que trabalho), havia uma
propaganda chinesa.
Ficaram de ver e... nada.
Passou um tempo, levantei essa pauta. Vamos ver e... nada.
Quando “estagiei” no Diário do Povo (vocês vão ler mais
para a frente), dei a mesma ideia outra vez para outras pessoas...
burocratizaram a sugestão e... nada.
Enfim... passei seis meses e nem uma pauta em favor da
China partindo de mim eu consegui emplacar.
O brasileiro que foi no ano seguinte parece que sugeriu umas
pautas de esportes, sobretudo ginástica olímpica, vôlei e
basquete (em que o país se destaca, seria uma senhora
37
propaganda para o Estado chinês e seu “novo homem”) e passou
pela mesma situação... ficam enrolando... enrolando... enrolando...
e nada.
Em compensação, ficam mostrando aquelas maquetes
chatíssimas, de megaprojetos do governo... como se aquilo
rendesse inúmeras pautas aqui nos nossos países.
Também em compensação, por outro lado, no mês de agosto
(quando “estagiei” no “Diário do Povo”), eu estava com uma
entrevista marcada (não me recordo agora qual, mas acho que a
de chineses que estudavam português) para terça-feira, dia 21
daquele mês, e recebi na véspera um WeChat dizendo que havia
um evento no dia seguinte, uma atividade em conjunto e que era
obrigatória a presença de todos. Perguntei o que era e não
souberam me dizer. Apenas que estivéssemos no ônibus que nos
levaria ao evento a tal hora e o dress code era paletó e gravata.
Avisei que não estava sabendo de nada, não havia nada marcado
para aquela terça na agenda semanal que recebíamos e acabei
assumindo compromisso. O representante da Diplomacia
perguntou se era compromisso particular, eu disse que não, que
era uma entrevista para o “Diário do Povo”, pediu-me um instante
nas mensagens do WeChat. Daqui a pouco retornou dizendo que
tinha acabado de falar com o editor e desmarcado minha
entrevista. E que eu estivesse amanhã, às XXX horas, de paletó
e gravata para o tal evento que nem ele mesmo sabia o que era.
Além de ser de um autoritarismo enorme (minha agenda foi
reprogramada de última hora à minha revelia, por cima de mim,
por cima do editor, por cima da própria agenda que me havia
sido passada), de novo a pouca informação, porque não sabiam
o que era.
No dia seguinte, muito a contragosto, lá fomos nós para um
mega-hotel estatal, na periferia de Pequim para o tal evento que
não nos diziam qual. Para encurtar a história: era um “dia
histórico” para o país, porque El Salvador havia assinado relações
diplomáticas com a China, não sem antes ter rompido com Taiwan
(exigência chinesa de reconhecer “uma só China”) no mesmo
dia. O evento era a assinatura dessas relações. Muito contrariado,
38
fiz uma boa matéria, com foto, falas do embaixador salvadorenho
e do chanceler chinês. Talvez para os colegas hispânicos isso
tenha sido mais relevante do que para o Brasil. E certamente
para a China, com o ego inflado que seu Estado tem.
Mas, de longe, não era uma matéria que valesse pauta no
MONITOR MERCANTIL.
Enfim... como eu disse, não é “ter a oportunidade de ver com
nossos olhos, comprovar e nós mesmos escrevermos o que
vimos”. É ver e escrever o que eles queriam que escrevêssemos.

Recepção com vários embaixadores e diplomatas no Ministério


das Relações Exteriores chinês, para apresentar o megaprojeto
(bancado pela Inglaterra) da Nova Xioan, a cidade do futuro, 100%
ecológica, 100% big data, 100% inclusiva, 100% legolândia
socialista. Todo o bufê era bilingue (chinês-inglês) e o primeiro
“prato” (chamado de “Take One”) era uma caixinha com esse leque.
Quando você abria... o cardápio! Aprendam com os chineses.


A dificuldade que você tem para diferenciar um chinês de um
japonês é a mesma que eles têm para, por exemplo, diferenciar um
árabe de um sueco: na PF da China, quando fomos solicitar os vistos
de residência de curto prazo, o funcionário trocou os dois passaportes
39
de duas jornalistas (uma cubana, loura; a outra argentina, morena),
porque achou ambas iguais. Para piorar, no dia, as duas estavam
com camisetas listradas de azul e branco, um “par de jarras”, como
se diz. Isso ocorreu com outros da nossa delegação... ficam olhando
a nossa cara e conferindo no passaporte para ver se é a mesma
pessoa. Dava para perceber a dificuldade em identificar entre nós
quem é quem. E olha que, em tese, são pessoas acostumadas a lidar
com estrangeiros (o que inclui ocidentais).


Ah, sim! E podia-se usar bermuda na sede da Imigração. Eu,
acostumado com esse “pudor” carioca (não sei porquê, cidade
praiana, quente e cuja peça de roupa faz parte do nosso vestuário),
acabei indo de calça jeans. Outros também. Mas cansei de ver
estrangeiros lá com as pernas de fora. Aprendam com os (burocratas)
chineses.


Comum acharem na China que o Brasil fala espanhol, não só os
eles, os chineses, como pessoas de outras representações
diplomáticas.


Se falar “Macau” eles entendem em mandarim, mas Macao (com
O) é o nome em cantonês. Se você escrever o ideograma de Macau
e pedir para ler em mandarim (a língua em Pequim), vão falar Almont.
Aliás, o cantonês (segunda maior fala do país) é dialeto. Língua
oficial só o mandarim. A ideia é que um dia todo o país fale mandarim
(e seus dialetos locais). É um projeto antigo, desde o tempo da
Monarquia, mas parece que só andou mais depois da Revolução.
Mas ainda há um longo caminho a trilhar.


Jornalista argentino da delegação (que já veio várias vezes ao
Rio, a trabalho... até arrisca - e bem - umas poucas palavras em
português) disse que nunca viu uma cerveja tão gelada como no
40
Brasil. O assunto surgiu quando comentávamos que na Chna
elas são vendidas ao natural. Com muito boa vontade, se
conseguirem entender o que dizem, vêm refrescadas. Segundo
ele, nem mesmo em seu país, no auge do calor, a cerveja não se
mantém gelada e cremosa como as do Brasil. As do Rio são...
segundo suas palavras...¡genial!
Partindo de um argentino... ganhei meu dia.

Você segue a indicação


achando que é café e é
só pra dizer que tem
água quente (e potável)
no banheiro para se
fazer chá
(O símbolo do meio, que
parece um 7K,
pronuncia-se “xuê” e
quer dizer água).
Pegadinha do chinês.
Curiosamente, não conhecia os vinhos brasileiros. De início,
achei que era ufanismo naquela birrinha secular conosco, mas
depois descobri que não. Os outros argentinos (um deles havia
inclusive morado no Rio) também desconheciam. Fico sabendo
que há vários produtos brasileiros nas prateleiras dos
supermercados do país, mas vinho, não. Falo que, se tiverem
chance, experimentem. Falei que a maioria era produzida no
vizinho Rio Grande do Sul, terras bem similares às de seu país.
Chego a crer que tenham algum protecionismo, proibindo ou
sobretaxando vinho de outros países, já que a bebida é uma das
principais fontes de renda da Argentina.


Os argentinos (como todos já tinham estado no Rio e até
liam algumas palavras em português) por vezes perguntavam
41
como eram certas palavras no meu idioma. O “problema” é que
eu falava com o sotaque chiado e com os RRs do Rio. Perguntaram
como era arroba (@), disse ahoba (aspirado, como no Rio).
¿Ajoba?, perguntou a argentina. Ri. Falei que era aRRRRRoba
(forcei), é que no Rio, onde moro, falava-se assim.
Mesma coisa com o argentino da cerveja quando perguntou
se o “de nada” (do obrigado) era igual em espanhol. Sim, igual:
“Dji nada”, falei como falo no meu dia a dia.
“¿Dji?”.
Falei que era DE (forcei a pronúncia) nada, mas que no Rio
se falava assim, chiado. Deve ter vindo em sua cabeça portenha:
“yi” nada.
Idem a palavra rua (calle, em espanhol). Eu falava com
pronúncia carioca. Eles entenderam como “jua”.


Você tenta mostrar para os chineses algumas diferenças entre
espanhol e português e eles não conseguem perceber,
principalmente em palavras parecidas (como “homem” e hombre,
“mulher” e mujer, “olá” e hola, “adeus” e adiós). Eles pronunuciam
tudo em espanhol. Só percebem alguma coisa nas palavras muito
diferentes (como gracias e “obrigado” ou vaso e “copo”). Mesmo
assim, gracias sai fácil e obrigado com uma dificuldade enorme.
Até o meu nome: é “menos difícil” para eles falarem Juan do que
João. Não chega nem perto. Desisti.
Mesma coisa tentar dizer que knife é diferente em espanhol e
em português. Cuchillo o chinês até conseguia falar. Faca, com
muita dificuldade, saía “faco”. E não adiantava forçar faca,
porque só saía faco. Não percebiam diferença no som.


Idem o nosso José: só conseguem falar à espanhola /hôssê/
. Mas se falar San José, na Califórnia, sai. À inglesa /djozê/,
bem mais próximo do português. Só nesses casos. Mas se
mandar falar José Carlos sai /hôssê/. Não adianta.
42
Sem falar o -ÃO do meu nome “João”. Muito difícil para
todos os outros (para os hispânicos ainda é complicador por
causa do J, cujo som nosso não há na língua deles), só existe
em português. O -ÕES até sai (porque imaginam -OENS).
Mas -ÃO reamente eu reconheço que é complicado.


Restaurante no subsolo dentro de um dos prédios do
condomínio chamado Tony’s foi uma das minhas primeiras
experiências em comer frango xadrez em Pequim. Cheguei,
só havia eu de cliente, perguntei se falava inglês e surpreendeu-
me o bom domínio do idioma pelo Tony (aliás, Tong seu
verdadeiro nome), o proprietário e também do quiosque na
pracinha principal.
Depois, com o convívio, soube que morou por 10 anos nos
EUA, onde estudou Administração.
Pediu desculpas, disse que não os cardápios em inglês não
haviam ficado prontos a tempo (nos seis meses em que estive
lá não vi em dia nenhum, deve ter sido mera desculpa formal).
Começou a ler um cardápio em mandarim e traduzir para mim
o que dava para sair àquela hora. Foi quando passou pelo
kung pao ji (kung pao chicken, em inglês). Achei interessante e
resolvi pedir. Quando veio era nada mais nada menos que o
frango xadrez vendido no Brasil. Até comentei isso com o dono,
que no meu país era “frango xadrez”, chess chicken, em tradução
literal.
Duas garfadas e.... argh! Toma pimenta!
Não deu para continuar, nem mesmo pedir para levar o que
sobrou (o prato quase todo). Aparentemente, se eu fotografasse
era “igualzinho” ao frango xadrez vendido no Brasil, mas o
paladar... quanta diferença!
Com poucos dias na China, eu ainda não havia percebido de
que eles não gostam de coisas salgadas nem neutras. Ou doce,
como falei antes. Ou picantes. Muito picantes. E se for para o
sul do país é pior, nem o chinês do norte (onde fica Pequim)
aguenta.
43
Aliás, foi uma das primeiras palavras que eu fiz questão de
aprender em mandarim: lajiao, pimenta. Importantíssimo saber isso.
Wo buyao lajiao. Ou, no mandarim bem macarrônico: bu lajiao. O
bu é “não” em mandarim, mas sozinho não quer dizer nada. Tem
que usar com algum verbo ou algum substantivo. “Quer pimenta?
Não quero.”
Tem que falar isso indepentendemente do que vão servir, porque
do prato mais sofisticado ao mais simples pãozinho (bun) ela sempre
aparece. E quando você menos espera.
Bom, minha segunda vez no Tony... o cardápio em inglês ainda
não havia chegado... E, por falta de saber ler as opções, pedi... kung
pao chicken outra vez.
O dono riu. E falou: “Chinese way? Or Western way?” (Do modo
chinês ou do modo ocidental?)


Apesar de o paladar na China ser pró-doce, não se toma chá com
açúcar. E nem é por discurso contra a sacarose (como tem acontecido
no Ocidente). Não se consome chá com nada doce na mesma
refeição. Nem mesmo fruta. Em especial, melancia. Nem pensar.
Segundo eles, o chá com qualquer coisa doce libera toxinas. Curioso
é que não se tem esse mesmo conceito com relação ao café (que,
aliás, consomem pouco, parece que é hábito recente). De qualquer
forma, exceto pelo oolong (que é um chá fermentado) os outros são
intragáveis sem açúcar. Água quente. Nem mesmo eu, que quase
não uso açúcar, aguento.

Torta de pêssego de
aparência “duvidosa”
numa confeitaria de
Pequim
44
Com o tempo, percebi que comida salgada (ainda que sal
natural, sem ser o adição, antes que me critiquem) e neutra meio
que não existe na China. As coisas ou são doces ou muito, muito
picantes. Ah, sim: e amargo é ku em mandarim.


No último dia de maio, visitamos a Xinhua, agência de
notícias estatal chinesa (com quem o jornal em que trabalho
tem parceria). Tentei não ir, afinal já havia feito a mesma
visitação em 2017, procurei explicar isso, mas você tem que
ficar justificando porque não foi, um verdadeiro interrogatório,
disse que já tinha ido no ano anterior... dizem que vai ser
diferente este ano, que vai ser importante (tudo é importante
para eles). Um saco. Até a visitação ao laboratório de realidade
aumentada foi igual. A única diferença é que outras pessoas
nos receberam.
Para não dizer que foi tudo exatamente igual ao ano
anterior, desta vez, tivemos uma palestra numa sala de
reuniões sobre a Xinhua e depois nos perguntavam a cada um
quem éramos e o que achávamos dos serviços.
Começou com o argentino que representava a Costa Rica.
Foi até engraçado o modo como se apresentou: disse seu
nome, que era formado em Jornalismo e em Economia, que
seu jornal tratava de economia, política... “e um pouco de
glamour, porque é preciso...”
Riram.
Imagino que coluna social ou algo assim.
Fora isso, quase todo mundo ficou batendo naquela tecla
de que a Xinhua não era a mídia hegemônica internacional,
alinhada aos EUA. Repetitivo demais, mas agrada aos
chineses.
Chegou a minha vez e eu disse que sentia falta de mais
matérias em português que não fossem sobre China e países
lusófonos. Basicamente a editoria em meu idioma se
“limitava” a temas de China, Brasil e Portugal. Caso houvesse,
por exemplo, um mega-acidente nos EUA ou um incêndio na
45
França, eu, no Brasil, tinha que recorrer à Xinhua em outros
idiomas e traduzir para o português, minha língua.
Disseram que a observação foi boa, mas era porque a equipe
em português era diminuta, uma das menores de todo o
quadro.
E era verdade: depois visitamos a redação dos tradutores.
Lá, o grupo acabou se separando: os hispânicos foram para o
pessoal que escrevia em espanhol e eu e o outro brasileiro até
fizemos uma foto da equipe da Agência Xinhua que escrevia
em/traduzia para português: duas chinesas (que falavam com
sotaque de portuguesas) e uma brasileira, esta, uma mineira,
professora de Letras formada pela UFRJ.
46
CAPÍTULO IV
O FILME QUE HITCHCOCK NUNCA
DIRIGIU, BASEADO NO LIVRO QUE
JOHN Le CARRÉ NUNCA ESCREVEU

O s dias são muito longos em Pequim. Talvez estivéssemos


em horário de verão ou talvez (mais provavelmente) seja
a posição da cidade em relação ao polo. Para se ter uma ideia, às
5h da manhã já está dia claro. Aquele céu arroxeado que no Rio
faz por volta das 5h ou 5h30, em Pequim acontece às 4h da
manhã.
Por outro lado, o sol se põe às 19h e às 20h30 ainda há um
filetinho de luz roxa.

Embora bastante esvaziado à noite, o centro de Pequim iluminado é um espetáculo à parte


48
Não se dá gorjeta em Pequim (e parece-me que no Oriente,
como um todo). Mas também não se ofendem quando isso
acontece, prática comum em bares, restaurantes, casas noturnas
e hotéis frequentados por estrangeiros. Agora, em Xangai é
corrente. E o percentual é de 15%.

Embaixada brasileira na capital da China: Guanghua Lu, em Chaoyang District

No barzinho em frente à embaixada brasileira, um australiano


gordão, vermelho e careca me pergunta em inglês se sou
português. Digo que não, sou brasileiro, embora fale a mesma
língua. Pergunta, então, se trabalho na embaixada (e aponta para
o outro lado da rua). Digo que não. Pergunta se sou militar.
Também digo que não. Depois me pergunta rindo se sou traficante
de drogas!
F*ck you, man!


Aliás, depois descobri que os dois barezinhos em frente à
embaixada eram mais ou menos ponto de encontro de
australianos (talvez o vizinho, o Caravan, fosse mais). A
embaixada ficava mais ou menos perto (não tanto quanto a
49
nossa). Não sei o que era pior: se os anúncios australianos que
passavam na TV, se o futebol australiano (que não é futebol
americano nem rúgbi) ou se a torcida australiana. A nossa perde
fácil.


Nenhum dos jornalistas hispânicos ouviu falar em Ronald
Biggs e no assalto ao trem pagador. Quando conto, perguntam
se isso é livro, filme ou história real. História real, infelizmente.
Acrescento que genial mesmo foi o “nosso” assalto ao trem
pagador, realizado por Tião Medonho, dois anos antes do inglês,
infelizmente sem o mesmo glamour internacional.
Aliás, também acham fantasiosa aquela história de que Kim
Jong-un, da Coreia do Norte, tinha um passaporte falso como...
brasileiro. Para quem não sabe, o passaporte falso mais caro no
mundo é o nosso. Primeiro, pela variedade de biótipos que temos
aqui: negros, indígenas, louros, ruivos, orientais, latinos, gordos,
magros, altos, baixos...
Segundo porque o Brasil mantém relações diplomáticas com
quase todo o mundo.
Quanto a Kim Jong-un, adotava no documento irregular o
nome de Josef Pwag e era um descendente de japoneses, natural
de São Paulo. Não só os hispânicos, mas os chineses também
ficam meio embasbacados com essa história.


Mais além: descobri que Kim Jong-un não é tão querido na
China como pensamos no Ocidente. Nem seu país é tão amigo
assim. Aliados, certamente, mas com algumas distâncias. Comecei
a perceber isso na viagem de uma semana que fiz em outubro de
2017. Fomos visitar uma fábrica de vinho de arroz (mijiù, saquê
jamais...). Havia um visitante muito, muito parecido com o norte-
coreano: gordinho, sorridente e mesmo corte de cabelo. Só a roupa
é que não era aquele fardamento. Vestia-se como eu, como todos
os demais, ocidentalmente. Mas talvez fosse fã e adotava o
hairstyle. Eu e o outro brasileiro (que não era o mesmo que foi
50
em 2018 comigo) começamos a comentar e, naturalmente, rir. A
tradutora, com sotaque português (havia aprendido em Macau,
coisa meio comum quando se encontra um chinês que fale nosso
idioma), perguntou do que ríamos tanto.
– KKKK O Kim Jong-un! Quá-quá-quá!
– Quem?
– Kim Jong-un! Ali! (Apontamos com a cabeça).
Bom... ela não nos entendia porque a pronúncia das palavras
Kim Jong-un é totalmente diferente em mandarim, alguma coisa
mais ou menos como “Tching-Djang-Nem”. Mas entendeu a
mensagem quando viu a cara do visitante. Transfigurou-se e
respondeu seriamente:
– Ah! O Tching-Djang-Nem?
Aí fomos nós que não entendemos.
– O homem da Coreia, não é?
– É. Chamamos de Kim Jong-un em português.
Manteve a cara séria:
– Não brinquem com esse assunto aqui na China. Vocês podem
ter problemas.
A piada acabou ali, não sem uma última pergunta:
– Mas... não se parece?
– Sim, se parece muito – ela mesma reconheceu – mas não toquem
nisso aqui. Vocês podem ter problemas.
(...)
No ano seguinte, no período de seis meses, é que percebi que
realmente, embora não haja restrição à sua figura na China, os dois
não são tão amigos como achamos no Ocidente. Há algumas
ressalvas, você percebe isso tanto nas palestras oficiais, traduzidas,
como nos jornais estatais com edição em inglês (a menos que em
mandarim seja diferente) ou ainda conversando com os chineses
com quem consegue se comunicar.


Aliás e mais além: aquele cabelinho “coquinho” (como um tio
meu chamava, dizia que parecia um coco) de Kim Jong-un é muito
comum em crianças chinesas.
51
Voltando aos hispânicos, aliás, eles também não conhecem quem
seja Silvio Santos. Sabem que passam novelas mexicanas no Brasil,
que passa “Chávez” (“Chavo”, no original, em que Seu Madruga é
Don Ramón, eu mesmo não sabia). Mas não conhecem nem Senor
Abravanel pelo nome. Nem por fotos. Nem eu explicando quem
era.


Um dos hispânicos, que cobre Cultura por profissão e cinéfilo de
coração, elogia o cinema brasileiro, mas reclama que a seu país só
chegam dramas (ótimos, em seu ponto de vista). Pergunta se no
Brasil se produz comédia, diz que sente falta. Digo que sim, produz,
várias, mais que drama (se bobear), algumas bem bobas e totalmente
comerciais.
Jornalista chavista fala o mesmo sobre nosso cinema. Jornalista
antichavista que já foi correspondente nos EUA também.
Curioso é que também entram poucas comédias hispânicas aqui
no Brasil. O referencial nosso da produção latino-americana acaba
sendo o mesmo deles... drama.
Parece ser meio unânime para além das ideologias.
Alô, Ancine!


Há muitos anos, quando era adolescente, meu pai ganhou uma
garrafa de uísque importado cujo gargalo tinha um fecho patenteado,
segundo estava escrito... no rótulo de trás e na caixa vinha em várias
línguas como manejar aquela exclusividade. O último dos seis ou
sete idiomas era o português. Eu me lembro que a palavra “garrafa”
estava escrita errada: “CArrafa”, com C. Achamos aquilo engraçado,
talvez um erro de digitação... ficou para lá... Eu até tinha esquecido.
Os anos se passaram e eu na China disse para os hispânicos que
a palavra botella (latina) em português é “garrafa”, de origem árabe.
Falavam “CArrafa”, com C. Em outro momento falei para os
chineses a diferença entre português e espanhol e usei a mesma
palavra para exemplo. Também falaram “CArrafa”, com C...
52
Foi aí que minha cabeça voltou 30 anos e lembrei do rótulo
do uísque também escrito errado. Também me lembrei de um
amigo de adolescência, precocemente falecido, que trocava
algumas letras, sobretudo nas palavras “TA-tilografia” (por DA-
tilografia) e PON Marché (por BON Marché, supermercado na
época recém-inaugurado no bairro). Quando comentávamos da
troca de letras, ele dizia que era mais rápido - estalando os dedos
- falar daquele jeito. Que DA-TI-LO-GRA-FI-A (até conseguia
pronunciar, mas lentamente) e BON-MAR-CHÉ davam muito
trabalho.
Vai ver os chineses e os hispânicos devem achar o mesmo da
palavra “GAR-RA-FA”.


O time mais conhecido do Brasil (meio óbvio) é o FRA-mengo
(falam assim, não é piada minha). O segundo, quando conhecem
mais algum (coisa rara, só mesmo quem acompanha muito
futebol), é...
.
.
.
.
.
.
.
.
.
Errou. O Santos. Por causa de Pelé, por causa de Neymar
(Nêymar, paroxítona, como falam). E talvez porque o clube tenha
uma “embaixada” em Xangai, para fechar negócios internacionais
(aliás, tem o mesmo em outros países do mundo, uma boa
iniciativa, por sinal).


Aliás, eles também conhecem o Balangdong. Era assim que
perguntavam aos argentinos sobre... Maradona.
53
Alguns dias depois de que chegamos a Pequim, eu e vários do
nosso grupo (a maior parte mulheres) fomos a um dos dois
barezinhos em frente à embaixada brasileira, num dia em que haveria
música latina. O que encontramos foi uma turma gigante de russos,
alguns falando inglês, amigos dos músicos, também russos, que
tocavam Michel Teló num português ininteligível quando souberam
que havia um brasileiro na mesa. Comemos algumas coisas, falamos
besteiras, bebemos muito... até que eu, aproximando-me do balcão
para pedir mais uma... fiquei lado a lado com um sujeito de terno
escuro e gravata aberta, falando inglês com os RRR bem carregados
de francês... muito, muito bêbado... Perguntou de onde eu era... falei
que era do Brasil... apresentou-se, disse seu nome e que era do
Burundi, trabalhava na Diplomacia... falava francês e empolgou-se
com alguém que também falava seu idioma.
Daí para frente, o cara passou a encher bastante a sua cara e o
nosso saco. Com um canecão de chope na mão, a outra apoiando no
meu ombro, chamando-me de mon ami (“meu amigo”), pediu para
brindar, para tirar foto junto, um bafo insuportável de bebida....
falando alto... enfim... Lá pelas tantas, pediu-me para apresentar as
mulheres da nossa mesa, que riam, riam, riam muito da situação e
faziam-me sinal para não serem apresentadas. Inventei uma história
maluca de última hora sobre as colegas... enfim... fui mentindo e
contornando a situação... e o mon ami realmente incomodando muito.
Começou a dançar (sic) sozinho, exibindo-se para as jornalistas, que
riam mais ainda. Realmente estava engraçado. Como devia estar
achando que fazia sucesso, resolveu chegar na mesa, apresentou-se
para a mulherada, falou seu nome outra vez, que era do Burundi,
que era muito rico, que trabalhava na embaixada, estava a serviço
na China... abraçando todo mundo... chamando todo mundo de mes
amis (“meus amigos”), saiu em várias fotos nossas como se fosse
realmente do nosso círculo há anos. Não só como papagaio, mas
como arara, periquito e toda a fauna de psitacídeos que o pirata
possa ter.
Numa foto do grupo todo, saiu com um canecão de 500 ml
de chope numa das mãos e uma garrafa acho que de vodca na
outra. O cara estava realmente fora de si.
54
De engraçado, passou em pouco tempo a ser chato e, alguns
tragos depois, realmente inconveniente. Até eu que, já havia bebido
bastante, já estava achando o sujeito um saco.
Depois que a música já havia acabado, as pessoas começaram a
pedir suas contas e lentamente, o bar começou a esvaziar. Lá pelas
tantas... o cara pediu mais uma rodada em francês para ele e para os
amis. Acho que só aí o dono do bar (um marroquino) percebeu que
havia um cliente muito fora de si. Até então, casa cheia, o cara
atendendo muita gente, pessoal dançando... creio eu que não tinha
dado conta. Até os dois saíram numa foto consoco. Mas com o
restaurante mais para vazio... o bêbado falando alto... acredito que
só aí tenha chamado a atenção.
Bom... o dono do bar falou em francês que não ia mais vender
bebida para ele. O cara disse que tinha dinheiro, que era muito rico,
que estava ali como cliente e que queria uma rodada para todos...
aliás, que tinha dinheiro para pagar para outras mesas também. Sacou
um paco de dinheiro do bolso, muito dinheiro... tinha dólares, iuanes
e umas notas que eu nunca vi, talvez fossem de seu país. Um volume
realmente muito grande de cédulas. Nem sei se tinha tanto valor
financeiramente falando, mas impressionava.
O dono do bar disse educadamente que não, não tinha como, ele
estava muito bêbado, não serviria mais. O homem do Burundi
reclamou muito e... antes que acontecesse alguma coisa... fechamos
a nossa conta e fomos todos para nossas casas.
Durante algumas semanas isso foi objeto de comentários e de
piada no nosso grupo... até que caiu no esquecimento porque coisas
mais engraçadas e outros afazeres tomaram nossas agendas.
(...)
Passado 1,5 mês em Pequim e algumas atividades são
compartilhadas com o grupo da África, que, aliás, morava no mesmo
condomínio nosso, mas cuja agenda e blocos de apartamentos são
tão diferentes que nem sempre latino-americanos e africanos nos
esbarramos pelos corredores.
No segundo mês... em Cantão, numa das poucas atividades
compartilhadas... descobri que havia um jornalista do Burundi.
Resolvemos saber quem era o cara de 1,5 mês atrás. Perguntei se
55
já havia ido à embaixada de seu país, disse que oui. Baixei uma
foto do WeChat (única social chinesa) do nosso grupo em que o
cara aparecia. Tomei o cuidado para mostrar as menos
constrangedoras, não as em que o cara saía com cara de alucinado
com duas garrafas na mão.
Quando o jornalista viu as fotos, riu muito e disse que sim,
conhecia da embaixada. Perguntou se era nosso ami e eu disse
que não, que apenas que nosso grupo havia sido apresentado num
restaurante próximo.
Pediu para ver mais fotos... mostrei mais uma.
Sim, conhecia, não era amigo, mas conhecia. Falou seu nome e
que era...
.
.
.
.
.
.

O embaixador.

Com 1,5 mês em Pequim, consegui chegar ao restaurante do
chinês Pasqualino (onde param muitos brasileiros, muitos mesmo)
e pedir em mandarim um vinho, uma água e um espaguete à
carbonara (esse foi o mais fácil) e agradecer. E ser compreendido.
Tudo isso sem ler livrinho de turista. Senti-me feliz como um bebê
que aprende a falar “ma-mãe”.


Ainda no mesmo restaurante, Pasqualino (nome adotado pelo
chinês) me mostra um painel com fotos de vários frequentadores...
Diz que há muitos brasileiros em várias fotos. Tenho que pedir
para me mostrar quais são meus conterrâneos, porque, para mim,
todos ali – chineses, americanos, gregos, argentinos, filipinos,
gaboneses – têm caras de brasileiros.
56
Quando, na primeira em que fui lá, eu disse que era
brasileiro (baxiren), o dono do restaurante veio me mostrar
dois sacos de meio quilo de café. Ficavam fechados numa
prateleira, meio como um troféu, meio como objeto de
decoração.


Jornalista argentino pergunta se há algum artista
conterrâneo seu que faça sucesso no Brasil. Lembrei de Charly
García e, sei lá porquê, Patrício Bisso. Perguntou quem. B-I-
doble S-O. Soletrei. Nunca ouviu falar. Ufa! Que bom.
Também não tive que explicar quem era.

Visitamos a Rádio China Internacional, em Pequim. Longe,


quase na periferia da cidade.
Mostraram as origens da rádio, cuja proposta era combater a
propaganda estadunidense (sic) contra a República Popular. Tudo
em espanhol. Aparecia até Jorge Amado (que eles juravam que
era hispânico) como colaborador.
No final, um museu com toda a história da emissora, desde sua
fundação. Havia bandeiras de todos os países para os quais havia
transmissão (com os nomes bilíngues em inglês e mandarim).
Em português, havia para o Brasil (com locutores
brasileiros) e Portugal (com portugueses). Em espanhol,
procuram usar vozes de vários países para evitar unicamente
sotaques de uma só nação.
Enfim, procuravam vozes do país que recebia a transmissão.
Lá no meio, havia a bandeirinha do esperanto (shijie yu, em
mandarim, literalmente “língua do mundo”). Perguntei
quantas pessoas faziam o programa e quem era responsável.
57
Soube que infelizmente não havia ninguém no momento para
eu ver a transmissão, porque o programa ia ao ar, ao vivo, por
volta da meia-noite. Mas me adiantaram que a equipe toda
(produção e voz) era... um chinês. Sozinho.

Também neste mês, visitamos a Grande Muralha. Eu já tinha


ido em 2017, tentei explicar isso, mas estava no programa e – que
chato – tive que ir de novo. Nunca pensei que um dia na vida fosse
à Muralha da China. E mais: que, em menos de um ano, fosse voltar
outra vez! A rigor, não queria ir, tinha coisas para fazer e, como
disse, já conhecia (não falo por esnobismo), embora com outro grupo,
mas é chato fazer o mesmo programa duas vezes. Mas é difícil você
se evadir de alguns programas oficiais, mesmo explicando isso tudo
(foi assim também na Xinhua). Chato mesmo. E assim fui.
Da primeira vez, claro, foi mais emocionante, mas estava muito,
muito frio (apesar do sol). Só fui até a segunda atalaia (são cinco
na subida e 11 ao todo nessa parte da muralha, as seis seguintes
no topo, que é mais ou menos plano), é muito íngreme. Os degraus
são bem irregulares, cansam muito.
Em alguns pontos não é tão alto de cima do muro para o
chão, talvez não chegue a dois metros (sério). Há placas de No
climbing e câmeras monitorando por todos os lados.
58
Também há vários avisos bilíngues (chinês e inglês) para, em
passando mal, sentir dores de cabeça ou no coração, não forçar a
caminhada e ligar para um número que existe lá. Deve ser algum
resgate ou coisa assim. Além disso, há várias placas pedindo para
não usar o celular lá na Muralha, só mesmo nesse caso de emergência.
Desta segunda vez, em 2018, levei casaco e tal... mas estava
quente (apesar do vento). Consegui subir uma atalaia a mais. Houve,
como da outra vez, gente que foi até a quinta. Teve quem só foi
até a segunda (que talvez seja a parte mais puxada).

Monges budistas na Muralha da China: Há vários pontos de acesso à Muralha,


coincidência? “Show de Truman”? Não sei entramos pelo mais íngrime, depois soubemos
A sensação, claro, é linda. Mas não foi tão emocionante como
da primeira vez!
Apesar de ser praticamente na Região Metropolitana de
Pequim, fico sabendo que muitos pequineses não conhecem. É
perto (mais ou menos 2h), nem é caro (40 iuanes), mas deixam
para depois... um dia... Mais ou menos o mesmo que nós, cariocas,
fazemos com relação ao Cristo Redentor e ao Pão de Açúcar. E
59
mesmo o calçadão de Copacabana, que é grátis: está ali do lado...
qualquer hora eu vou... e acabamos não indo.


Tondji (oxítona) é a forma de tratamento comunista “camarada”
em mandarim. Mas o termo está em desuso, só mesmo ficou restrito
aos “velhos camaradas”. Hoje, para a rapaziada em geral... tondji
quer dizer.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
veado (e não é o bicho...)
(Foi o chinês da Diplomacia – e de esquerda – quem disse).

Reparem nessas placas de trânsito. Algumas têm o desenho


um pouco diferente das nossas (como o carro e a buzina), mas
que dá para entender; em outras há símbolos bem diferentes dos
que conhecemos no Brasil. E, por fim, algumas incompreensíveis.
Mas, em todas, uma curiosidade em comum: nas placas de
trânsito (nos lugares fechados, não) a faixa vermelha está por
baixo do objeto da proibição (e não por cima, como usamos no
Ocidente). Parece que criaram um gabarito e depois colou-se
por cima o objeto da proibição. É como se dessem o recado: o
negócio é proibir, depois pensamos o quê.
60

Mais uma daquelas placas difíceis de compreender. Só dá pra


saber porque está escrito em inglês. Sim, coexistem com aquelas
do cigarro com a faixa vermelha, como usamos no Ocidente.
Mas é muito comum essa do isqueiro (não parece, mas é um).
Isso me lembra o finado ministro da Aeronáutica Délio Jardim
de Mattos, fumante inveterado (acho até que morreu de enfisema),
mas que só filava dos outros, não comprava um maço sequer. A
abordagem era sempre a mesma: chegava para o subordinado
(sargento, major, coronel ou, por vezes, até mesmo um brigadeiro)
e perguntava se tinha fogo (jamais se tinha cigarro). Se ele
respondesse que sim, o ministro, então, dizia: “Então, me arruma
um cigarro”.
Em sua lógica, se o cara tinha fogo, tinha cigarro. Não teria
porquê andar com fósforo ou isqueiro se não fosse fumante.
Faz sentido.


Aliás, eu já tinha ouvido falar que se fumava muito na China.
Pensei até que fosse mais. Em Xangai, quase totalmente
ocidentalizado, há (como aqui) bastantes proibições. Já em
Pequim e nas outras cidades, só vi mais restrições nos prédios
novos. Acredito que tenha entrado alguma lei em vigor e, em
construções desde essa data para a frente, tenha passado a valer
a limitação. Nos prédios mais antigos, sei lá, de 15 anos para
trás, fumava-se livremente.
61
Instituições mundiais: além dos símbolos nacionais (Hino,
Bandeira, Brasão de Armas e dinheiro), tem também cadeia,
futebol e “V” da vitória. Este último até em países em cujas
línguas “vitória” não começa com “V” (no caso do mandarim,
shènglì)


Tivemos, finalmente, encontro com a delegação da África,
que já estava no país havia 1,5 mês antes de chegarmos. Foi
num dia de visita ao “China Daily”.
Falo português com o pessoal da Guiné Bissau e Angola.
Com esforço de memória, falo francês (embora cometa uns erros
bobos, coisa de iniciante, troquei difficile por um oxítono
diffCULLLLT – como se fosse Charles Aznavour cantando
“She” – e esqueci que combien era “quanto”... que bom que o
cara “arranhava” inglês...) com um jornalista do Gabão, que
começou a puxar conversa porque acho que falei uma besteira
em francês. Se não me engano, falei merci no lugar de um xiè xiè
na hora de receber um chá.
Papo vai, papo vem... tenho que gastar todo o meu francês
(literalmente a expressão). Já tinha passando por esse incidente
com o “senhor embaixador” do Burundi. Como quase ninguém
na China fala esse idioma, eles se empolgam quando há alguém
que aparece para se comunicar na língua deles.
Bom, o fato é que nesse dia, falei que não falava francês há
muitos anos. Disse também que os verbos compostos em
francês são difíceis para mim, porque não usamos isso no Brasil.
Quis dizer que em Portugal se usa, mas no Brasil (ou, pelo
menos, no Sudeste) não (embora exista na regra, afinal é a
mesma língua).
Ou seja, que a estrutura do francês seria mais fácil para um
português que para um brasileiro entender e falar.
No final, de novo, depois de, sei lá... 20 minutos fazendo
um esforço danado, pedi desculpas porque não falava muito
francês (Je ne parle pas beaucoup le français) e ouvi: Ton peu est
beaucoup (“Seu pouco é muito”).
62
Meu perfeccionismo sempre me tornou inseguro. Foi assim na
faculdade, foi assim com o piano, foi assim na minha Pós. O que
deveria ser uma qualidade, acabou, com o tempo, sendo um defeito.
Espero não chegar a ser um infeliz João Gilberto na vida lá na
frente.
Mas o fato é que nesse dia... ganhei meu dia.


Na hora de despedir, falei inglês com um representante dos
Camarões, que me perguntou se eram todos brasileiros na nossa
turma. Disse que não, só eu e mais um, apontei para meu conterrâneo.
Digo que há gente do México, da Venezuela, da Bolívia, do Peru...
enfim... outros da América espanhola. O camaronês me perguntou,
empolgado, se existia gente da Argentina. Disse que sim, três (a
maior delegação, embora um deles estivesse como correspondente
da Costa Rica, onde vivia fazia mais de 10 anos). Perguntou, então,
se havia mulheres na delegação da Argentina. Disse que havia uma.
Bom... despedi-me, cruzei o pátio do estacionamento e entrei
no nosso micro-ônibus. Lá dentro, caí na asneira de comentar o
feito com os dois argentinos. A garota tomou um susto. E o portenho,
com o sotaque mais ítalo-arrastado possível, disse que: Quiere conocer
Argentina por causa de Messi, por causa de Maradona, ¡por causa de dios!
Mas que... hijo de p*ta.


Aliás, ele mesmo, desde o início, várias vezes em que precisava
assinar um documento, fazia questão de mostrar a esferográfica e
dizer: “invenção argentina”. Só pulava a parte que o inventor –
Lazlo Biro – havia sido um húngaro fugido de seu país no pós-
guerra e que se estabeleceu em Buenos Aires, já tendo inventado
(mas ainda não patenteado) sua criação.


Quanto a Maradona, rolava sempre a pergunta clássica de um
terceiro quando via argentinos e brasileiros juntos: “Pelé ou
Maradona?”. Os argentinos torcem sempre por ele, até quem
63
inimigo do Boca Juniors, seu time. Aliás, a maioria dos hispânicos
também, na hora da pergunta, escolhiam Maradona no lugar de
Pelé. Alguns espanhóis que conhecemos numa espécie de
“apêndice” do “intercâmbio” também. Você sabe...

Tivemos aula de “Como a imprensa deve falar bem da China”.


Não é piada. Segue acima captura da tela com a programação
para você verem. Um amigão que morava em Hong Kong me
mandou urgentemente uma mensagem inbox na ocasião pedindo
para retirar a postagem, pois eu, mesmo sem saber, estaria sendo
fiscalizado pelo Grande Irmão chinês. Afinal, até o Facebook,
Instagram e Whatspp sendo banidos na China, os veículos estatais
chineses (toda a mídia, esclarecendo, afinal) têm páginas oficiais
nas duas primeiras redes. Não retirei, não havia porquê, aquilo
era público. Mas confesso que fiquei meio “cabreiro” depois do
conselho.


Quando você vai a uma rede
famosa de cafeteria ou a
algum genérico e não acertam
seu nome (o mais comum),
escrevem isso aí, que quer
dizer: “Meu amigo
estrangeiro”. Igual para todos.


64

Chinês ama bichinho de pelúcia. Adultos e homens, inclusive.


Bichinho de pelúcia no ambiente de trabalho, em casa, no restaurante,
redação de jornal, escritório de associação diplomática... sempre há
na mesa de alguém. Até sugeri isso como pauta quando “estagiei”
no “Diário do Povo”, mas acharam que a matéria iria “infantilizar o
povo chinês” (ou qualquer coisa assim) e a pauta caiu.
Mas o fato é que eles gostam dessa estética “infantilizada”. Tudo
tem bichinho, é coloridinho, com bonequinho... Isso é uma coisa
que você percebe que até entre eles é assim, não faz parte daquela
China “Show de Truman” para o estrangeiro. Comprei um “vinho
de kiwi” numa visita a uma fábrica. A embalagem, toda em
ideogramas, tinha uma estética totalmente infantil, com um kiwi
“humanizado” com carinha. Parecia que ali dentro havia um
brinquedo, não uma garrafa de bebida alcoólica.


No dia 14 de junho, visitamos a JD, segunda gigante de comércio
eletrônico da China, atrás somente da internacional Ali Express,
embora não se considere seu concorrente, porque cobre só dentro
do país (99% do território), enquanto a Ali Express é voltada para o
mercado externo.
Até rendeu matéria; afinal, iam importar do Brasil sandálias
Havaianas e... nuts. Falei que não podia ser, meu país não era
65
exportador de nozes. Nunca soube disso. Traduziam para espanhol:
nueces. Sim, eu sabia que nuts em inglês eram nueces em espanhol. Só
que isso me interessava como matéria para o jornal, não ia escrever
que o Brasil exportava nozes. Pedi para ver alguma embalagem do
que era, adiantaram alguns quadros do Power Point depois da palestra.
Brazilian nuts eram as... castanhas do Pará


De novo, no restaurante do Tony, no subsolo dentro de um dos
prédios do condomínio. Perguntou-me se quero paper (papel) na
batata frita. Não me liguei que queria dizer pepper (pimenta)! Aliás,
em outros lugares também pronunciavam as duas palavras iguais.


Peço para embalar (Can you pack?) e, fazendo o gesto, sou
entendido. Em todos os restaurantes entendo a palavra “Tapo”
como resposta. Chego a pensar que fosse algum termo chinês a
partir de Tupperware (como Kele quer dizer refrigerante, a partir
de Keka-Kele, por Coca-Cola, como pronunciam). Depois, nas
aulas de mandarim para espanhol, fico sabendo que a palavra é
dabao, que quer dizer “pôr no saco”, aliás, palavra que consegui
falar na última vez em que fiz todo o pedido em mandarim (feliz
como uma criancinha). Mas o fato é que todas as embalagens
para viagem eram verdadeiros Tupperwares! 10 X 0 nas nossas
“quentinhas”. Aprendam com os chineses.


Digo que sou brasileiro no bar do marroquino que fala vários
idiomas (seis ou sete, eu acho), inclusive um pouco de português.
Sem sotaque quase nenhum, passaria por brasileiro, mas o
vocabulário é bastante limitado, o suficiente, entretanto, para
atender ao pessoal da embaixada, do outro lado da rua. Aliás, é
um bar que divide o banheiro com o vizinho de parede (onde o
australiano havia me perguntado se eu era traficante). Eu soube
depois que inicialmente, os dois bares e mais um de comida
italiana – do Pasqualino –, já na rua da esquina, haviam sido um
66
espaço só, único, uma casa noturna brasileira (de um brasileiro),
que depois foi vendida e dividida em três negócios distintos.
Talvez isso explicasse a estranha disposição do único banheiro
para atender a três lojas.
Voltando ao dono marroquino, diz que aprendeu português
quando fez aulas de capoeira, porque os comandos eram na minha
língua. E também que conseguia ler perfeitamente no idioma,
entendia bastante os brasileiros (os portugueses, não), mas tinha
dificuldade de falar.
Aliás, num certo dia da semana (que esqueci qual) havia aulas
de capoeira no segundo andar.
No final, ganhei um presente, por conta da casa: uma cerveja
Super Bock, portuguesa.


Um dia, cheguei a subir nesse segundo andar. A professora de
capoeira era ocidental, mas me esqueci de qual país. Falamos
em inglês e, quando me apresentei como brasileiro, perguntou se
eu sabia capoeira. Disse que não. Mal sabia dançar sambar em
ballroom style, já tinha tido aulas de dança de salão antes de minha
ida à China. Fui convidado para fazer uma aula de iniciantes,
fiquei de voltar, mas nunca mais subi lá (apesar de ter ido ao bar
inúmeras vezes depois).
É curioso porque acham (da primeira vez em que estive na
China, em 2017, também passei por isso) que você, por ser
brasileiro, tem que saber sambar e/ou jogar futebol. Lembro de
um amigo aqui no Brasil, de Curitiba, que diz que todas as vezes
em que fala que é do Sul acham que comem churrasco e tomam
chimarrão na sua cidade.
Passei situações semelhantes na China e por algumas vezes.
E nem sempre com chineses (que pouco sabem de Brasil), por
muitas vezes com outros asiáticos, com europeus, australianos,
africanos, árabes e até com hermanos aqui do lado. Parece
engraçadinho da primeira, segunda, terceira vez, mas chega uma
hora que começa a cansar por ser sempre o mesmo
questionamento. Passei a dizer, quando me perguntavam sobre
67
samba e futebol, que eu não sabia sambar, não sabia jogar bola,
mas sabia beber café... O que, aliás, eu sabia fazer muito bem.


Pela segunda vez, tive que cortar o cabelo em Pequim, agora
em outro salão, porque no primeiro (logo que cheguei) eu e o
cara não nos entendíamos.... meu cabelo saiu quase do mesmo
jeito que entrou. Desta vez, mais caro, mas, além da praticidade
de ser dentro do condomínio em que morava, pelo menos, o
cara arranhava um inglês bem be-a-bá. Tentava puxar conversa,
perguntou se eu era italiano (já não era a primeira vez em que
isso acontececia), foi indo. Enfim... não saiu exatamente o que
eu queria (não entendeu que era para “fazer o pé” na nuca com
máquina, aliás, igual ao que ele mesmo usava), mas... paciência.
No geral, ficou bem bom. No final, falou pra mim em inglês:
“Como seu cabelo é crespo!”
Ele não conhece o Brasil. Imagina se ele visse o Lázaro Ramos
ou o Thiago Fragoso!


Aliás, o homem mediterrâneo tem, via de regra, uma cara
meio parecida (ainda que Portugal seja, por divisão, considerado
atlântico... mera divisão política... não se parece em nada com
ingleses ou o estereótipo dos franceses): portugueses, espanhóis,
italianos, turcos, franceses do sul, gregos, árabes, libaneses, sírios...
judeus... costumam ter um “jeitão” meio similar.
Digo sem juízo de valor ou sem ofensa, por favor. Tenho
origem e falo de cadeira. Na mulher, não, os biótipos são bem
delineados: a grega tem muito aquela cara de Melina Mercouri; a
italiana é aparência de Sophia Loren e a portuguesa é totalmente
Amália Rodrigues. Mas no homem, se não soubéssemos, Cavaco
Silva se passaria por espanhol, Onassis se passaria por italiano, e
o generalíssimo Franco se passaria por português. Até Mario Soares
se passaria por italiano. Tony Bennett, de origem italiana, se
passaria pelo líbio Khaddafi e Khaddafi, por Tony. É uma cara
meio standard.
68
Fico sabendo pelo marroquino dono do restaurante que eu
também me passaria por um deles. E pelo jornalista do Egito que
o biótipo do homem em seu país, nas cidades voltadas para o
Mediterrâneo, também tem esse “carão” como meu.
Perguntei se no seu país não eram negros.
- Negros? Não temos negros no Egito.
Mostrei aquelas caras como Sadat, Mubarak..
- Ah, não! Não são negros. São muwallad!
Muwallad é uma palavra árabe que deu origem ao termo mulato
em português, de um tempo para cá banido pelo politicamente
correto por considerarem ter origem em mula (?). Muwallad na
língua árabe designa aquele tipo do norte da África, que, tanto
para os árabes quanto para os negros subsaarianos, não são
considerados negros. Aqui no Brasil seria uma ofensa. Mesmo que
você tenha um não negro lá atrás você continua negro gerações
depois. Lá, não. E não só do lado árabe. Falei com um jornalista
do Sudão do Sul (país novo, emancipado do Sudão havia sete
anos. Aliás, havia um representante do Sudão também).
Perguntei qual a diferença dos dois. Disse ele, do Sudão do Sul:
- Nós somos negros.
- E eles, não?
- Não, eles são muwallad. Eu sou negro, eles são marrons (I’m
black, they are brown!)


Aliás, para os chineses (exceto os que já vieram para a América
do Sul), os brasileiros falam uma língua que... não sei. Sabem que
não é espanhol, mas também eles não sabem o que é. Meio
italianado, acham. Perguntam o que é e digo que falo português.
Essa situação aconteceu algumas vezes. Para o chinês “mediano”,
português é o que se falou por séculos em Macau. E por extensão,
em Portugal. Talvez Angola, Moçambique e as ex-colônias da
África. O Brasil fala outra coisa.
Tenho que explicar que aquele jeito “italianado” ou qualquer
coisa assim é o modo como se fala português no nosso país (e
69
olha que no Rio de Janeiro nem é nada italianado assim... imagina
Zona Leste de São Paulo...)
Aliás, os argentinos (e logo os de Buenos Aires) também acham
nossa pronúncia “italianada”...
Os chineses dizem quase sempre que tenho tipo de italiano.
Outros estrangeiros também. Falo que sou neto de portugueses,
tanto pelo lado materno quanto paterno e que, via de regra,
homens portugueses, italianos, espanhóis... têm um biótipo um
tanto parecido, já disse aqui.
“Ah! Então é por isso que você fala português!”
É sempre a exclamação. Acham que falo português por ser
neto.
“Não. Falo português porque a língua do meu país é português.
Se eu fosse neto de chineses eu também falaria português!”


Aliás, os chineses não sabem quase nada sobre o Brasil. Com
todos os erros que possamos ter, o brasileiro ainda sabe mais
sobre a China do que os chineses sobre nosso país. A exceção, é
claro, é quem já esteve por aqui, na América do Sul.
Por exemplo, em uma atividade em conjunto com o grupo da
África (no capítulo sobre setembro falo nela), havia igual
quantidade de releases em francês e em inglês. Como vi que ia
faltar em inglês, se todo mundo pegasse, e sei ler bem em francês,
optei por uma cópia na língua de Albert Camus. Não dava outra,
em todos os eventos, quando perguntavam de que país eu era e
dizia que do Brasil, olhavam para o papel e perguntavam se o
Brasil falava francês. Se eu estivesse com o outro release nas mãos
duvido que perguntassem se o Brasil falava inglês...


Em outra atividade em conjunto, com o pessoal da Ásia, na
hora da apresentação, cada um saía falando seu nome: Fulano
de tal, Laos; Beltrano, Índia... Quando chegou a minha vez, disse
que era do Brasil. E os chineses me perguntaram em lugar da
Ásia ficava meu país.
70
Mesmo “Escrava Isaura” poucos chineses conhecem. Só os mais
velhos. E com o nome de “Brazilian Slave” (Escrava brasileira,
literalmente; talvez tenha sido o nome com que passou lá). E acham
que era um filme (e não uma telenovela). Pode ser que tenha passado
compactada como minissérie, não consegui descobrir.


Dos 13 jornalistas da delegação, 11 eram da América espanhola
e nove sabiam que o nosso “Ordem e Progresso” é positivista.
Desses, três sabiam que a frase completa é “Amor, Ordem e
Progresso”. Mas nenhum sabia que a máxima completa é “O Amor
por Princípio, a Ordem por Base e o Progresso por Fim”. Mesmo,
assim, fico surpreso com a quantidade de hermanos que sabia sobre
nós. Aliás, é a única bandeira da América do Sul com lema.


Num dos dois barezinhos de sempre em frente à embaixada,
numa mesa, uma brasileira dava aulas, explicando em inglês, de
português para uma russa (descobri depois a origem). Quando
acabou, brinquei: “Também quero aula”. A brasileira riu, falou que
tinha percebido que eu era conterrâneo, porque olhei para elas
quando ouvi coisa em português. Disse que era professora por
formação e vivia de dar aulas para estrangeiros. Tinha acabado aquela
e iria começar outra, agora por Skype. Não estiquei a conversa para
não atrapalhar.
Não identifiquei muito bem sotaque... São Paulo?... Curitiba,
talvez?... Meio confuso, escorregava em alguns modos gaúchos de
falar... estava meio indefinido... dava para perceber que era de São
Paulo para baixo, mas eu não estava seguro (e olha que costumo
acertar)... talvez estivesse fora do Brasil por muito tempo, perdeu
um pouco da “identidade” (vamos assim dizer)...
Perguntei de onde era e disse que era de São Paulo (embora não
fosse exatamente os sotaques que conheço de SP, há mais de um
até mesmo na capital). Aí me perguntou: “Você é do Rio, né?”
Eu ri: “O sotaque denunciou, né?”
Ela riu: “Você fala igual surfista!”
71
Uma vez, na Bienal do livro em SP, já tinham me falado isso.
Surfishta, eu? P*rra, coé, mané?!


Aliás, ela, quando falava espanhol (muito bem) pronunciava os
LL à argentina (como o nosso DJ). O Y não, mas o LL, sim. Não
tinha aquele italianado dos argentinos, mas era muito característico
os LL. Fico sabendo que estudou na Espanha. Falei desse detalhe
dos LL e ela se ofendeu profundamente: “Muito diferente a
pronúncia. Não estudei na Argentina! Estudei em Málaga. De onde
você tirou isso?”
Depois, em outros eventos oficiais, havia um tradutor mandarim/
espanhol e até mandarim/inglês que tinha a cara (e os trejeitos...)
do ator brasileiro Luís Salém. Mesma pronúncia nos LL (como DJ),
mas o Y à espanhola. Elogiou meu espanhol. Agradeci e perguntei
de onde era...
De Málaga. E também nunca tinha percebido que seu LL era
assim.

—-
No outro dos dois barezinhos em frente à embaixada brasileira
(sempre eles), não conseguia entender o que pessoal de alguma
representação falava numa mesa na varanda. Meio italianado (mas
também não dava para compreender... OK... não falo italiano mas
tem palavras que “escapolem”), falavam alto, riam, mesa farta, caras
mediterrâneas... até que a criança saiu correndo do alcance dos
adultos e entrou no bar. A mãe veio atrás e chamou, numa pronúncia
bem latina: “Helena!”. Não sei porque perguntei se eram brasileiros.
Não, eram da Grécia, disse-me em inglês.
Por isso não entendia o que falavam! Parecia que falavam grego!
E eram.


Em Pequim (não sei se em toda a China), as sacolas de
supermercados são pagas, como em muitas cidades do Brasil. Uma
mixuruquice, 1 centavo do iuane. A diferença é que, quando a
72
compra é pequena, não se leva sacolas de casa (de pano, que
seja), nem se pede a caixa de papelão para servir de embrulho.
Sai-se do supermercado com as coisas entulhadas no braço (como
um bebê no colo). Isso mesmo em supermercados grandes.
Em uma de minhas saídas, como eu só ia comprar três
cervejas, até cogitei não pedir para ensacar... o caixa do
minimercadinho também não falou nada. Mas, sei lá, o bom senso
me deu um último alerta para empacotar as latas, já que se tratava
de bebida alcoólica.
Chegando ao apartamento, por curiosidade (jornalista é fogo...)
passei uma mensagem para o cara da Associação Diplomática
da China (nosso anfitrião) para saber se havia restrição à bebida
alcoólica na rua (faço que questão de dizer que não é consumir,
é só portar). Não, não havia. Nenhuma das duas. Não era crime,
nem se pagava multa, mas não se usava.
Coincidência ou não, no dia seguinte, vi, pela primeira vez
em quase dois meses, um chinês bebendo uma latinha de cerveja
e caminhando. E, pasme, no dia subsequente ao seguinte, vi um
tipo saxônico, de paletó e gravata, saindo de uma embaixada,
para atravessar a rua com uma long neck na mão, já desde lá de
dentro da representação. Ah, sim, a embaixada? A brasileira, claro.

No Caravan, em que sempre
parava em frente nossa à
embaixada, durante o período da
Copa, dividindo espaço com o
telão com os jogos, junto com
várias bandeiras de países, havia a
do arco-íris, fazendo par com a
de Portugal. Perguntei se sabiam
o que eram. Disseram que a
portuguesa era a do Brasil e a
LGBT era de um país que não
sabiam exatamente qual.

73
Depois vi que no bar havia numa parede sem muito destaque, lá
no canto... um diploma (acho que de alguma organização de turismo)
de ser um espaço gay friendly, embora eu nunca tenha visto nada com
temática ou “cara de gay” (sic) ali. Soube depois que durante uma de
nossas viagens a outra cidade (acho que a Xangai, mas não estou
seguro), houve uma festa LGBT ali.
Aliás, um dos jornalistas hispânicos, como também cobria
comportamento, quis fazer uma pauta sobre gays na China. Até 1997
(recentemente, considerando ser um país milenar), mesmo com todo
o discurso socialista, era crime ser homossexual. Foi descriminado,
mas ainda é mal visto. As famílias forçam casamentos de seus filhos
ou filhas homossexuais com pessoas do sexo oposto, porque acham
que assim, vai “virar hétero” ou qualquer coisa do gênero (sem
trocadilho). Quando não escondem e criam à margem da sociedade
por ser “desonroso” para a família. Particularmente até vi, ao longo
dos seis meses, chineses com gestos afetados que aqui no Brasil
certamente seriam tachados de gays (ainda que não o fossem).
Fato é que levantei essa pauta sobre o bar para o colega hispânico
e até comentei com o proprietário, que havia um dos nossos que
queria fazer matéria sobre o assunto. Propus-me a ser o tradutor, já
que o espanhol do marroquino não era fluente e o inglês do hispânico
era fraquíssimo. Mas acho que a matéria não foi adiante. Pena, seria
realmente interessante.


Dono do restaurante italiano que é point brasileiro, chinês que
adotou nome de Pasqualino se despediu de mim, quando, às 10 da
noite, levei o que sobrou embalado para consumir em casa: Bye-Bye,
Ciao, sweet dleams.
Que chinês estranho! Vai que pôs um “Boa noite, Cinderela” na
minha comida!


Exceto no conjunto para diplomatas em que estávamos (as
contas vêm no mês seguinte, abatidas dos subsídios) e outros
poucos lugares, fico sabendo que água no país é pré-paga. O
74
chinês vai a uma espécie de caixa eletrônico e paga o que acha que
vai gastar. Se estourar, babau, fica sem água no meio do banho.
Claro que há um discurso todo de bem-estar social para justificar
isso (educar o cidadão a economizar). Aqui no Brasil, por muito
menos, teria textão no Facebook, OAB, MP, abaixo-assinado no
Change.org, peito de fora e hashtag alguma coisa.
Idem o tal pagamento com Wechat (há lojas que não aceitam
dinheiro), que tem o discurso para evitar o superendividamento,
mas que é monopolizado pela gigante Tencent.

Em mandarim, Beijing. Em cantonês, Petkin (que deu origem ao


nosso Pequim, ao inglês Peking, ao espanhol Pekín, ao francês Pékin,
ao italiano Pecchino...) Escrevem-se iguais nos caracteres (acima).
Pronúncias diferentes.
Aliás, em Pequim faz-se muita questão que se fale Beijing, em
mandarim, língua local (e única oficial do país). Se você falar Pequim
(ou Pekín, em espanhol; ou Peking, em inglês), certamente um
pequinês vai corrigi-lo para que você fale Beijing. O cantonês (que se
fala no Sul do país), assim com tudo o que é falado no país que não
seja mandarim, tem status de dialeto. Há uma ideia antiga, do tempo
da Monarquia, que o Comunismo manteve e que a Abertura deu
sequência, de que toda a China fale mandarim. Além dos “dialetos”
(sic) locais. Coloco esse sic porque, estruturalmente um dialeto teria
a mesma raiz de uma língua, embora “hierarquicamente” abaixo
dela, em geral, restrita a uma região, grupo étnico e/ou classe social.
Quando o Estado classifica legalmente todas as demais falas que
75
não a oficial como dialeto, considera que todas têm a mesma
raiz que o mandarim. E não necessariamente é assim. Há locais
na China que, embora usem os mesmos caracateres, têm
ideogramas a mais (ou a menos) que o mandarim. Sem falar
que há regiões que usam tibetano, que tem até outro alfabeto
(nas cédulas de iuane, além do inglês e dos ideogramas chineses,
há escritas com o valor e a assinatura do Banco Central também
em tibetano): uma outra língua, com outra raiz, com alfabeto
próprio, mas que é considerada dialeto...
Se você perguntar para um chinês quantas línguas são
faladas no seu país, ele vai dizer que uma só. Parece para o
estrangeiro que a China inteira fala mandarim, o que, embora
projeto de Estado ou de nação, não é verdade. Não há essa
unidade (que existe no Brasil, por exemplo), mas para eles não
existe essa de “língua não oficial” (que talvez fosse o nome
mais apropriado). Ou fala-se o mandarim, língua, ou fala-se
um dialeto local (mesmo que seja falado em quase todo o sul
do país por 70 milhões de falantes).
Segundo a Wikipedia (que não é uma fonte confiável, porque
qualquer internauta pode mexer no texto alheio), “ainda que
os chineses prefiram falar de dialetos ao referir-se às variedades
do chinês falado, a inteligibilidade mútua entre estes é
praticamente nula pelo que muitos linguistas consideram o
chinês uma família de línguas, e não uma língua única.”
A mesma besteira que houve na Espanha franquista,
considerar todas as falas de outras regiões (que, para piorar,
eram proibidas) como dialetos. Inclusive o basco, que tem outra
raiz, não latina e desconhecida.
Enfim...
Voltando: o nome da cidade (Beijing) quer dizer: capital do
norte (bei, norte [o ideograma da esquerda, na foto]; jing [o outro,
obviamente], capital em mandarim). Antes, a capital do país
foi um dia em Nanquim (ou Nanjing, em mandarim), a “capital
do sul”: nan (sul) e jing (capital em mandarim). Nanquim, como
usamos, também vem do cantonês (Nankin), a língua local:
Nan como sul é igual para ambos; já o norte varia: bei (em
76
mandarim); pet (com “e” fechado), em cantonês. Capital é jing (em
mandarim) ou kin (em cantonês). Mesma grafia para tudo, um
consegue ler o outro, mas não consegue conversar.


Imagine escrever as letras S+A+R+N+E+Y, pronunciar
“Sarney” e saber que no Maranhão a mesma sequência de seis
letras se pronuncia “Divino”. Está explicada a diferença entre
mandarim e cantonês. Um consegue ler o outro, mas na hora da
escrita a pronúncia é totalmente diferente. Para as mesmas letras
(caracteres), sons totalmente distintos.


E já que falei em Espanha franquista, por muitos anos, no
período do generalíssimo, era obrigatório os filmes serem
dublados. Hoje, já há muitas décadas não é mais, mas o espanhol
gosta de filmes dublados. Prefere-os aos legendados. Quem me
disse isso foram espanhóis em épocas diferentes. Tenho para mim
que a obrigatoriedade nacionalista acabou “moldando” o gosto
da população. Apesar de terem outra opção, assim preferem.
A analogia é que na China acontece o mesmo com relação ao
serviço militar (opcional) e serem ateus. Gostam, por opção.
Moldados há décadas.


Quando estive lá, lembrei-me de um livro que li há muitos
anos chamado “Horizonte Perdido” (Lost Horizon), de James
Hilton. Virou filme duas vezes. Só vi a versão da minha infância.
Senti-me meio naquela situação.


Bem-vindos a Shenzhen, Cantão (Guangdong). Sul do país.
O calor é insuportável, mesmo com chuvas torrenciais e
palmeirinhas voando para todo lado. Praticamente um Vietnã.
Época das monções, explicaram. Vejam a programação que nos
passaram uma semana antes da ida à região.
77
Choveu todos os dias. E a umidade relativa do ar era de 80%
a 85%, muito mais que no Rio de Janeiro. Era praticamente
Manaus.


Aliás, sem dúvida, foi a
cidade que achei mais bonita
em toda a estada na China. A
arquitetura é um tanto
ocidentalizada, mas há um
toque oriental. Depois soube
que ocidentais costumam
gostar muito de Cantão. No
último dia, tivemos direito a
um city tour, mas só três foram,
eu inclusive. Pena que...
chovia. Mesmo assim, os outros não sabem o que perderam,
comentei com quem foi. Comentei também em espanhol que
fiquei “encantado por Cantão” e algum dos argentinos aproveitou

Apesar da chuva e vento constantes e do calor insuportável... encantado por Cantão: depois
soube que é a cidade preferida por estrangeiros
78
meu título-trocadilho para uma matéria sua sobre a cidade.
Paciência.
Depois, num outro momento, em Pequim, um dos argentinos
estava fazendo uma reportagem sobre conterrâneos seus que
viviam na China. Brinquei dizendo que eram “argen-chinos”. E
não é que o cara usou isso como título? ¡Hijo de p*ta!
Fato é que, no mês seguinte, quando fiz matéria similar sobre
brasileiros que viviam na China... fiquei surpreso. Primeiro,
porque havia menos de 1.000: eram, de acordo com nossa
embaixada, 728 os que viviam em todo o país; já governo chinês
falava em 105,2 mil só em 2017. Havia mais turistas brasileiros
do que moradores verde-e-amarelos no país.
Segundo, porque o número de argentinos morando por lá era
maior. Acho que 1.200 ou 1.400. Foi um dado que me deixou
perplexo: 1) O fato de haver tantos argentinos na China (e nem
eram argentinos de origem chinesa); e 2) O fato de haver mais
argentinos que brasileiros por lá.


Mas voltando a Cantão... os dias não são tão longos em
Shenzhen como em Pequim. Essa foto é às 5h10 da manhã. Em
Pequim, já estaria dia claro uma hora antes.
79
Cantão é uma das cidades mais violentas da China. Segundo
os chineses.


Fato é que do outro lado do Rio havia um favelão (plano).
Do quarto em que estive hospedado no hotel, num andar alto,
era possível ver. Aliás, favela é algo meio comum nas periferias
das grandes cidades chinesas (Cantão, Xangai, Shenzhen). A
exceção talvez seja Pequim, cuja periferia (o sexto anel) é rural.

Favela em Cantão: cena comum nas periferias das metrópoles, exceto a de Pequim, que é rural
Outra divisão evidente é que o Sul da China é mais
desenvolvido que o Norte do país. No Norte, basicamente, só
mesmo Pequim (capital) e Tianjin (cidade portuária, a 114 km).
Todas as demais grandes (Xangai, Cantão, Shenzhen e mesmo
Hong Kong e Macau, pequenas territorialmente, mas grandes
em peso econômico) ficam no Sul.


Aliás, em junho houve um terremoto em Hong Kong. Vários
parentes e amigos me mandaram mensagem do Brasil perguntando
se estava tudo bem comigo. Sim, estava. Digo que ficamos
sabendo disso em Pequim, mas era longe um do outro. Nem
sinal de tremor na capital da China.
80
Visita oficial à BYD. Mostraram vários programas de TI e
integração ao redor do mundo. Na América do Sul, destaque
para o Rio. Para ilustrar, uma tomada aérea da ex-capital que
nem é mais a maior cidade; em que aparecia o Santos-Dumont,
que só faz voo doméstico, com o nosso porto, que já caiu para
terceiro lugar em nível nacional. Só faltava aparecer a cara do
Rubinho falando “Diretas Já!”


Fomos visitar um laboratório que produzia remédios a partir
da medicina tradicional chinesa (não usando os conceitos
ocidentais). Visita guiada bilíngue (mandarim e inglês). Havia
uma tradutora para o espanhol que falava bem, mas escorregava
em palavras técnicas, não sabia os termos. Na hora de apresentar
um remédio que fazia bem para um determinado órgão, disse,
em espanhol, que não sabia a tradução, mas que em inglês o
nome do órgão era spleen. Eu mesmo não consegui me lembrar o
que era. Achei que era vesícula, depois me lembrei que vesícula
é gallbladder. Bom... o fato é que não consegui lembrar o que era
spleen. Aí, um dos caras da diplomacia que arranhava um inglês
razoável jogou no Google tradutor e apareceu: “baço”. Aí me
falou apontando para o aparelho: Baco (como o deus). Eu falei
“baço”. Repetiu “baco”.
Depois de muito baco-baço, falei, em inglês, que quando
tinha esse sinalzinho embaixo do C (nem disse que o nome é
cedilha, ia complicar mais ainda), o C tinha som de SS. “Baco”
seria sem o sinalzinho. Com o sinalzinho seria “basso”. E o cara
repetindo “baco”. Falei que era como em francês, quando
aparecia o sinal, o C virava Ç: français. Foi quando ele deu uma
exclamação e disse em inglês:
- Ah! Como em ÇE (sic) la vie!

PQP. Tá bom... pra facilitar, eu disse que era igualzinho a


“ÇE” (sic) la vie.
E o cara saiu repetindo, enfim, basso com uma pronúncia
quase perfeita!
81
Visita ao mesmo laboratório. No final, uma coletiva (com frutas
liberadas, inclusive ciruelas, que, de tão diferentes fisicamente eu
não associei que eram ameixas...) para vários pesquisadores nos
explicarem como funcionava a medicina tradicional chinesa...
enfim... quando abriram para perguntas, um dos argentinos
perguntou, em espanhol, para a tradutora, até que grau de doenças
a medicina chinesa curava. A resposta do pesquisador, traduzida,
foi “até câncer”. Microfone passa para o jornalista do lado, também
argentino, que rebate: “E aids?” O cara da Diplomacia se apressou
em responder em espanhol também, na frente do tradutor e do
pesquisador: “Na China não existe aids!”

Cantão é a cidade da China considerada mais bonita pelos ocidentais, segundo os chineses
Estávamos em Cantão nessa atividade conjunta com africanos e
asiáticos e alguns do grupo fizeram aniversário. Eles, os chineses
não têm muito o hábito de comemorar. Mesmo quando se fala a
idade, diz-se a idade completa do ano. Por exemplo, eu faço
aniversário em 27 de março. Vou fazer 49 em 27 de março de 2020.
Antes disso, eu tenho 48 (mesmo nos meses de janeiro e fevereiro).
Isso pela contagem ocidental. Eles, assim que viram o ano, já contam
sua idade no “novo ano”. Assim sendo, em 1° de janeiro de 2020,
eu, se fosse chinês, já diria que tenho 49 anos.
Por isso, é meio estranho o jeito como eles improvisam aniversário.
Fato é que a Diplomacia providenciou um bolo, uns presentes com
a marca do hotel e comemoraram os aniversariantes do mês. Valeu
82
a intenção. Mas chato mesmo foi a trilha sonora de umas crianças
cantando Happy Birthday to You (a letra em inglês não sai disso e
eles desconhecem que essa música tenha letra em outros idiomas
ocidentais) até a exaustão, porque a programação devia estar
com looping. Tocou uma, duas, três, cinco, 10, 20 vezes, sei lá,
mais talvez. Cantamos juntos a primeira, os aniversariantes
apagaram as velas, o bolo foi partido... depois veio o cafezinho...
os drinques finais e o Happy Birthday to You não parava de tocar.
Até que depois de uma hora para outra, alguém de bom senso,
cortou a música no meio.
Conseguiu ser mais chato do que Marilyn Monroe cantando
Happy Birthday, Mr. President.


Os portugueses (quando tínhamos evento com o jornalista
do “Diário do Povo”) cantam o “Parabéns” como nós (mesma
letra na íntegra, parece que a música lá chegou através de
brasileiros, assim entendi), e mais corretamente: “Parabéns A
Você” (e não “Pra”, como aliás, fazia questão Bertha Celeste,
a brasileira que fez a nossa versão), fazem questão de grifar.
Quem fala espanhol canta de vários modos diferentes, pois há
várias versões nos inúmeros países que falam o idioma:
Cumpleãnos a tí ou Cumpleãnos feliz ou ainda uma terceira forma
de que não me lembro. Fato é que os mexicanos, embora
conheçam, saibam a letra e até cantem, acabam cantando Las
Mañanitas, fico sabendo que mais usual cantá-la que Parabéns.
Ficam surpresos em saber que conheço a música (embora
eu não saiba a letra).
Ficam mais surpresos quando, num outro evento (que nem
era aniversário) cantam Cielito Lindo e digo que a música é bem
conhecida no Rio, de velhos Carnavais. Que há uma versão
“Está Chegando a Hora”, com a qual, por muitos anos, se
encerravam os bailes carnavalescos no Rio. Em geral, a
penúltima. A última fica sendo a marchinha “Cidade
Maravilhosa”, também carnavalesca e que virou o hino da
cidade.
83
Só estranham a letra: “Quem parte leva/saudade de alguém/
que fica chorando de dor....”
Sobretudo o “Ai, ai, ai, ai, tá chegando a hora/O dia já vem
raiando, meu bem/Eu tenho que ir embora”...
Totalmente diferente no idioma deles (exceto pelo o ¡Ay, ay,
ay, ay!).


Aliás, falando ainda em festa, a figura de Papai Noel costuma
aparecer em decoração de aniversário. O velhinho é associado
mais à festa do que a Natal (nem vou entrar na discussão sobre
a o controversa origem). Aniversário, Papai Noel; festa, Papai
Noel; boate, Papai Noel; música dançante, Papai Noel.


O jornalista do Gabão que já citei aqui disse, em francês,
que esteve no Riô, que foi a Copacabaná e a plage estava com
beaucoup de gens. Nisso, faz o nosso gesto obsceno de top-top.
Aliás, todas as vezes em que menciona a palavra beaucoup
(muito), vem junto um top-top. Perguntei o que era aquilo. Disse
que em seu país queria dizer muito, cheio até a tampa.
Falei que no Brasil jamé fizesse isso.


Num outro momento, numa viagem a uma zona especial
(atividade em conjunto com os grupos da África e da Ásia),
na hora do café da manhã fiquei na mesa em que um dos
nossos hispânicos pouco falava de inglês.
E havia dois da delegação da África, um que falava inglês
e esse, do Gabão, que até arranhava o idioma, mas falava em
francês.
Acabei tendo que ficar servindo de intérprete entre línguas
que não são as minhas nativas, sobretudo a conversa entre o
cara do Gabão (em francês) para o hispânico (e vice-versa).
Um exercício bem cansativo. Saí com dor de cabeça.
84
Ah, sim: Espanha em
mandarim é Xibanyá. Está aí do
lado. O primeiro ideograma
(Xi) é o mesmo que aparece em
Baxi (Brasil).
Quanto à pronúncia (Xibanyá), o chinês deve ter aprendido o
nome do país com algum professor galego...


Meus dias na China foram dignos daquele filme que Hitchcock
nunca dirigiu, baseado num livro que John Le Carré nunca
escreveu.
CAPÍTULO V
JULHO

V ocê chega a uma cidade do interior e logo vem um


jornalista local para entrevistá-lo com o irritante “O que
achou...?” Isso é recorrente. Não dão nem tempo de você ver
nada. Neste caso específico, fomos nós que visitamos a emissora
local, aliás uma senhora emissora para o tamanhinho da cidade.
Parece que cobria mais de uma cidade numa região que falava o
mesmo dialeto (sic).
Chegando lá, como disse, veio uma gentil jornalista até mim
falando um bom inglês, perguntou se podia me entrevistar, dei
OK. Quis saber se éramos da América Latina. Respondi que
sim. Perguntou de qual país, disse que do Brasil. Perguntou se a
gente falava espanhol. O Brasil, não. Era o único país do grupo
que falava português, eu e o outro brasileiro (apontei para ele),
todos os outros, sim. Nós éramos os “diferentes”, mas que eu,
pessoalmente, falava espanhol também, caso ela preferisse. Disse
que só falava inglês. OK, sigamos. Perguntou-me sobre como
era a imprensa no México.
- México? Mas eu sou do Brasil.
- Ah, sim, desculpa.
Falei que eu trabalhava num jornal de economia, que era uma
empresa particular... expliquei o que eu fazia no MONITOR
MERCANTIL, etc., etc., etc.
86
Lá para tantas, ela me chamou de mexicano de novo.
– Olha, eu sou Brazilian, brasileiro, baxiren.
Tentei reforçar nas três línguas.
– Não sou mexicano.
Mais na frente pela terceira vez perguntou de novo sobre a eleição
no México (que tinha acabado de acontecer).
P*ta que pariu.
Falei que eu não podia responder pelo México porque eu era
brasileiro, nunca estive lá, embora eu não tivesse nada contra o país.
Falei também que até havia três representantes mexicanas na nossa
delegação, se ela quisesse saber mais sobre o país, eram as pessoas
indicadas. Acrescentei que uma delas (apontei até para as caras),
inclusive, falava inglês fluente, já havia morado em Nova Iorque e
na Irlanda... enfim... eu achava até que era a pessoa mais capacitada
das três a responder as coisas que ela queria; eu até me ofereci para
apresentar, inclusive.
Disse que não era preciso.
A paciência já estava esgotando. Não por ser confundido com
mexicano, não tenho nada contra o povo, é um país legal, eu queria
conhecer, mas porque eu estava explicando várias vezes que eu era
do Brasil, não do México, que não somos nem vizinhos de fronteira,
somos longe um do outro, que não falamos a mesma língua, enfim,
eu nunca estive no México, eu não estou capacitado a falar pelo
país.
Não me sobrou outra alternativa a não ser dar uma de popstar
marrento, virar para a câmera que me gravava, pôr a mão na frente
e dizer: Pas de photo!


Na China, chamam os homens de Mr. + Nome. Eu era Mr. Zêlfa
(Silva) nos eventos formais. As mulheres jovens de Miss. E as
senhoras de... Madame (em francês).


Aí lembrei-me de que quando li, há mais de 20 anos, “One
World”, de Wendell Willkie, em inglês (há uma tradução de Monteiro
87
Lobato como “Um Mundo Só”), ele referia-se à Madame Chiang
Kai Shek. Aliás, os chineses lá também se referem assim a ela até
hoje. Visitamos um ponto em que o casal ia com frequência e assim
era traduzido.
Eu mesmo, por um erro do hotel, na viagem a Nanquim, fui
alojado, em vez de quarto individual (como usual sempre para todos
nós), junto com a representante da Argentina, como se fôssemos
um casal. Pode ter sido um erro, pode ter sido porque os chineses
nos achavam parecidos... sei lá. Fomos reclamar, tivemos que dizer
que não estávamos juntos, não éramos um casal, nem éramos do
mesmo país. Devolvemos as chaves iguais da suíte. Bom... o fato é
que veio Mr. Silva (eu) e Mme... (o nome da jornalista).


Quando chegávamos nós, da delegação latina, em algum evento
oficial, o cerimonial punha para tocar... “Des-pa-ci-to”. “Despacito”
no café, “Despacito” no almoço, “Despacito” no jantar, “Despacito”
na coletiva de imprensa, “Despacito” no coquetel na Chancelaria.
“Despacito”, “Despacito”, “Despacito”. Nem os hermanos
aguentavam mais.


Mais “Despacito”: fiquei sabendo por uma jornalista cujo pai é
músico (ou jornalista que cobre música, ou produtor cultural, ou
compositor... enfim que trabalhava com música) que o autor de
“Despacito” foi uma pessoa muito famosa nos anos 80. Depois
caiu no ostracismo completo. Mais de 20 anos fora da mídia, voltou
com essa bomba. Seria bom que tivesse continuado esquecido, não?


No dia em que alguém de esquerda sem argumento disser para
mim que “Você não entende nada de Socialismo”. Ou algum sem
argumento de direita mandar pra mim: “Vai pra Cuba”, vou
responder com grande prazer do mesmo modo: “Mas eu vivi na
China!”
88


Felizmente chineses não
sabem fazer aquela breguice de
coraçãozinho com as mãos. Mas,
por outro lado, quando o fazem
(e há vários em propagandas), sai
parecendo uma b*c&ta. Crian-
ças, adultos, mulheres, senhores,
todo mundo fazendo a genitália
feminina achando que é coração.

Quem disser que comida de avião não tem gosto e é tudo


igual não conhece a da China Southern (que faz a rota Pequim-
Cantão). Queimando minhas papilas até agora.


Depois de mais de mês tendo contato com os grupos da África
e da Ásia e até tendo algumas atividades juntas, finalmente houve
um jantar de confraternização. Num balneário chamado Beidahe.
Parece nome árabe, mas é chinês. Fica de carro a umas três horas
de Pequim, por aí. Muito, muito chique. Parecia o que vemos de
Malibu ou, como disse a representante do Peru, parecia Nassau,
nas Bahamas, onde já havia ido acho que em lua-de-mel. E o
complexo para missões diplomáticas, onde ficamos, mais ainda.
Era uma construção dos, sei lá, anos 50/60, tinha aquela cara
de casinhas de família de classe média americana de sitcom que
tem claque rindo. Só faltava sair James Stewart ou Fred
MacMurray dirigindo uma station wagon de lateral imitando
madeira.
Nossos quartos pareciam verdadeiros camarins, com o nome
na porta. Tudo fazia parte do mesmo sistema de Diplomatic
89

Nossos quartos, individuais, no tal resort, pareciam verdadeiros camarins de artistas internacionais

Residence Compound (DRC), que havia vários por Pequim,


inclusive o em que morávamos, para atender a representantes
diplomáticos, comerciais e outros estrangeiros em missão no país.
Atravessando a rua, era um mar que todo surfista queria.
Olhando até que era tranquilo, mas do nada vinha uma megaonda
e... cabum! Muito, muito revolto mesmo. Aliás, como é o Pacífico,
que de pacífico não tem nada.
Além do mais, Beidahe é a cidade em que a Muralha toca o
mar. Há até um parque, ponto turístico no local.

A 285 km de Pequim, Beidahe, onde a Muralha toca o mar; na próxima página, dentro do forte
91
No primeiro dia dessa viagem, nós, do grupo latino-americano,
estávamos esperando, assim que saímos dos nossos quartos para o
tal evento oficial, alguém da organização nos encaminhar para o
jantar propriamente dito e ficamos do lado de fora do prédio que
era o hotel do complexo. Não conhecíamos direito as caras do pessoal
do grupo da África (embora fosse bem evidente identificá-los) e
sobretudo da Ásia, até porque fomos para o tal balneário em ônibus
separados e em dias distintos.
Em dado momento, vimos um oriental vindo em nossa direção
e, achando que era alguém do hotel ou da organização do evento,
alguém entre nós arriscou Ni Hao e mais algumas falas em mandarim.
Foi quando o cara respondeu em inglês: “Não sou chinês, sou do
Laos e também sou jornalista como vocês no mesmo intercâmbio.
E também estou procurando o salão onde vai ser o jantar”.


Aliás, como bebia o tal cidadão do Laos! E falava francês
fluentemente – afinal, seu país havia sido colônia francesa. Em
ocasiões futuras, era figurinha fácil no condomínio em que
morávamos em Pequim, sentado na escadinha externa do
mercadinho 24h, até tarde da noite, fumando cigarrilha e com várias
garrafas de cerveja já vazias enfileiradas ao lado...


Sempre que falamos no excesso de pimenta da comida chinesa
alguém pergunta se nos nossos países não é apimentada. Falo que
no Brasil, via de regra, não. Exceto por um estado (prefiro usar
província, fica mais fácil de eles entenderem), a Bahia. Até brinco
com a história traduzida de My king, hot or cold? (Meu rei, quente ou
frio). Nesse jantar de confraternização dos três grupos (África, Ásia
e América Latina), um dos companheiros de mesa, da Nigéria, falou
que a comida no seu país é muito condimentada, que é o que eles
gostam.
Pelas tantas surgiu o assunto de idioma, falei que no Brasil só se
falava português. Acham estranho um país grande como o nosso só
ter uma língua.
92
Bem... existem outras... perto das fronteiras pode-se falar
espanhol, no Mato Grosso, o sotaque em algumas regiões puxa
para o espanhol e que há grupos étnicos que preservam suas
falas, mas, isoladamente, não chega a ser língua oficial nem
mesmo de uma unidade federativa, como vários indígenas no
Norte (depois soube que são quase 300 línguas), grupos de
origem alemã no Sul e grupos que falam iorubá na Bahia.
Mas tudo isso localizado, a unidade é o português.
– Oh! Fala-se iorubá no Brasil?
– Sim, fala-se na Bahia.
– Minha mãe é de origem iorubá. Eu e meus irmãos, quando
crianças, sabíamos falar alguma coisa. Então, tem muitos
negros na Bahia?
– Sim. Tem. Muitos. Demais.
– Tem brother negro, tem comida apimentada, fala iorubá...
Eu quero conhecer a Bahia!

Aliás, reparei que os africanos negros subsaarianos tratam


todo mundo de friends (amigos), pode ser um simples
conhecido ou uma pessoa que você só viu uma vez na rua.
Mas se você for realmente amigo, você é brother (irmão).
E como bebiam! E, quando isso acontecia, como tinham
uma abordagem rude com as mulheres! Vi isso nesse evento,
vi isso com outros, inclusive, em noitadas no Caravan. No
Brasil, teriam problemas por muito menos.


De novo, sobre Beidahe... no segundo dia, houve churrasco.
Sem sal.


Seco por um café. No hotel em que estávamos, só chá (dos
mais variados). Estava sendo assim desde a véspera em
Ghizou. Fico sem cerveja sem problema, mas, por favor, não
cortem o café da minha dieta.
93
Bom... na recepção no fim da tarde, vi um tonel fumegante
com a torneirinha escrito coffee. Fui, sedento. Era com leite. E de
soja.
Pegadinha do chinês.


“I left my heart...” in Ghizou...
E também minha cueca num banheiro público.
Ô, comida gordurosa!

Vi à venda essas cuecas de


papel: usou, sujou, joga fora;
não sei é se caberiam por aqui
no Brasil

Aliás, como no Brasil, o óleo de soja é o mais consumido nas


frituras. E no interior, gordura de porco. Perguntei sobre óleo de
algodão. Quase não usam. É caro. Como no Brasil.


A China tem estrutura para sediar Copa do Mundo, mas não tem
interesse. O contrário do Brasil, que não tinha estrutura nenhuma e
entrou naquele ufanismo todo... cuja conta pagamos até hoje.
Aprendam com os chineses.


Esqueçam Comunismo, Socialismo, Marxismo, Social-democracia
ou o que seja. O Capitalismo vai dominar o mundo. E vai vir... da China!
Quem viver verá.
94
Convoco a todos amigos de esquerda conhecerem a China. Os
de direita também. Garanto que muitos vão voltar com opiniões
trocadas... E arrisco dizer que vão ser os de
.
.
.
esquerda. Só arrisco.


Jornalista da nossa delegação que representava a Costa Rica
era argentino de Buenos Aires, de origem alemã (o sobrenome
“denunciava”), tinha passaporte britânico e amava o Rio de Janeiro
(onde já trabalhou). Isso me lembra uma história do produtor
musical André Midani, que, ao passar pela imigração num aeroporto
no México, teve seus documentos analisados por uma policial,
que disse: “Uma pessoa nascida na Síria, com passaporte brasileiro,
que mora em Nova Iorque, que vem de Medellín e passa pelo
México, que diz trabalhar com música, e que fala espanhol com
sotaque francês… não pode ser uma pessoa confiável!”


EUA e China têm relações graças a Henry Kissinger. Brasil tem
embaixada em Pequim desde 1975, no governo Geisel (assim diz
a placa no saguão).
Como canta Caetano... “Alguma coisa está fora da ordem...”


Aliás, o governo chinês prefere fazer negócios internacionais
com países... de direita. “São mais abertos ao capital estrangeiro”,
diz um estudioso sobre América Latina. Quando vejo que Getúlio
Vargas criou uma CLT baseada na Carta del Lavoro, fascista, baniu
nosso PCB, tinha afinidade com o Eixo e postura estatizante; e,
por outro lado, Lula entregou de mão beijada uma refinaria nossa
para o companheiro Evo Morales... está na hora de começar e repensar
meus conceitos...
95
Soda em inglês é qualquer refrigerante.
Soda no Brasil só de limão.
Descobri que soda em espanhol é água com gás.
E que água com gás em mandarim é shuda (chinês tentando
falar “soda”) shuê (água).
É soda!


Aliás, há um refrigerante local, Oceano Ártico a marca (rótulo
bilíngue, inglês para um lado, caracteres chineses para o outro),
orgulho nacional, a primeira marca deles, antes da Abertura em
1978.


Tofu (aliás dôfu, como pronunciam, paroxítona) não é
considerado queijo na China. É considerado... tofu. Aprendam
com os chineses.


Aliás, não só chineses, hispânicos também falam paroxítona,
só que tôfu. E também sáque, karaôke e dúrex (e ainda com som de
dyurex).


Aliás e mais além: karaokê (ou karaokê, como queiram) é
bastante comum na China, sobretudo das cidades grandes.
Demorei a associar que as lojas que tinham letreiro escrito KTV
(assim mesmo, com letras latinas) não se tratavam de alguma
emissora de televisão estatal, como a CCTV e sim, lojas de...
karaokê. Não fui a nenhuma, mas alguns foram e parece que há
várias máquinas pelo salão, como se fosse um cassino ou
videobingo, cada qual com dois banquinhos, dois microfones e...
fones de ouvido. Você não fica cantando enchendo o saco dos
outros, como a gente via (e ainda vê) em alguns bares do Rio de
Janeiro. O chinês coloca aqueles foninhos, fica lá cantando,
96
gesticulando e acompanhando aquelas imagens de paisagem, fundo
do mar (como aqui), etc... com a letra da música... tudo isso sozinho
(ou no máximo, em dupla), cada um ouvindo o seu e competindo.
Do lado, outras pessoas fazem o mesmo. Em alguns aeroportos,
cheguei a ver cabine de KTV (como cabines telefônicas) no mesmo
esquema: máquina, banquinho bossa-nova, microfone e foninho.


Em um dos barezinhos em frente à embaixada do Brasil (sempre
eles), o Spotify (ou qualquer outro programa assim) tocava “Love
Me Tender”. Chinês que atendia no balcão e que falava um inglês
horrível aponta para a caixa de som e fala: “Alfis”.
Sim, Elvis. Mostrei no celular outras coisas do cantor. Diz que
conhecia de ouvir, mas nunca tinha visto a cara do “Alfis”. Ficou
surpreso ao ver que era um... branco!
Apontou para a imagem no telefone apontou para a pele e
apontou para meu braço.
Com ajuda do tradutor automático, disse que não sabia que
Elvis era branco. Correu imagens no Yahoo, mostrando-me a cara
do “Natkigô”.


Barzinho, situação dois... a música continuava tocando até
que entrou uma bossa nova. Não era uma música brasileira
(nem mesmo versão), mas a batidinha é inconfundível.
Disse que aquele ritmo era do Brasil. Foi difícil tentar
explicar o que era ritmo... falei que tinha valsa... tinha samba...
tinha tango (tudo tentando fazer mímica) e tinha bossa nova.
Acho que entendeu o que era, mas a dificuldade estava na
palavra. Tentei pronunciar “Bosa-nova” “Bousa-nova”, “New
Bossa”, “New Style”, “Bossa Noufa”... enfim... o cara pediu
para escrever. Depois de ler “Bossa Nova” com a minha letra...
disse: “Ah! I know!” Pronunciou qualquer coisa que não entendi
como sendo “bossa nova”. E me mostrou no celular a cara
da...
Lisa Ono!
97
Alguns hispânicos da delegação diziam que dava para perceber
que sou brasileiro falando espanhol. Que, por vezes (raras)
“escorrego” em algumas pronúncias. E, em outras ocasiões (também
raras), até coloco algumas palavras em português, sem querer, no
meio. É possível. Apesar de dominar bem o idioma, fazia muito que
não falava no meu dia a dia (mais de 20 anos) e esqueço alguns
termos. Normal isso com qualquer língua.
Uma cubana a quem fomos apresentados perguntou de que país
eu era. E ficou surpresa em saber que eu era brasileiro. Achava que
eu era hispânico de um país que não sabia qual (mas que não era o
seu).
Os chineses, quando vinham nos entrevistar (há dessas coisas
no país...) em espanhol, achavam a minha pronúncia diferente. Eu
tinha que dizer que não era nativo, que minha língua era o português.
Só assim entendiam porque tenho uma coisa chamada... sotaque.


Fui apresentado a um espanhol das Ilhas Canárias que achou
que eu era do continente. Curioso é que depois tive contato com
um madrileno que achou que eu era... das Ilhas Canárias! Em
Nanquim, alguns meses mais para a frente, também acharam bom o
meu sotaque. Falando com um cineasta colombiano, lá para tantas
perguntou que, se o evento era para latino-americanos, o que um
espanhol estava fazendo ali.
– Espanhol?
– Sim, você.
– Ah, não! Sou brasileiro!
– Achei que você era do norte da Espanha!...
Isso me lembrou uma das últimas entrevistas com Omar Shariff
em que ele dizia que já havia feito papel de árabe, de grego, de
iraniano, de russo, de alemão, de mexicano, de inglês, de italiano...
no final brincava: “Tenho um sotaque internacional”...


Aliás, em Nanquim, no hotel (caro) na última noite, nós nos
demos ao luxo de um drinque no megarrestaurante-boate que ia
98
até... 23h, por aí. Animavam um salão vazio um cara cantando e
tocando teclado com duas dançarinas performáticas fazendo backing
vocals em duas vozes... enfim, simples, pouca gente, mas
mandavam muito bem, todos orientais, uma delas loura, inclusive.
O cara, especificamente, talvez tivesse mais um biótipo havaiano,
de barba. Os três falavam inglês muito bem. Quando soube que
a delegação era hispânica, cantaram vários boleros com um
espanhol muito bom (pelo menos, para mim). Um me chamou a
atenção, até porque pediram bis no nosso grupo: “Amor, Amor,
Amor”.
E tropeçava sempre num verso: “Sentir que tus besos se anidaron
en mí/Igual que palomas mensajeras de luz”. Falava mensejaras no lugar
de mensajeras. Como repetia a música, repetia o erro. E no bis a
mesma coisa, apesar da boa pronúncia. Falava tão seguro que era
como se a palavra mensageira em espanhol fosse mesmo mensejara
no lugar de mensajera. Na hora da pausa, vieram até a mesa (a
única ainda com cliente) em que nosso grupo bebia uns drinques
“quentes” e, como os hispânicos gostaram inclusive da pronúncia,
aí ficamos sabendo de onde eram: das Filipinas.


A propósito, sobre espanhóis e hispano-americanos, fiquei
sabendo que as opiniões de uns sobre os outros não são das
melhores, mesmo nos países que têm relações diplomáticas com a
ex-metrópole. Não é coisa engraçada como fazemos troça com os
portugueses. Os hispânicos consideram, além da crueldade com
que foram tratados no período colonial, que a Espanha ainda os
vê com olhos de colônia subdesenvolvida. E parece que se referem
aos naturais da América espanhola (sobretudo da América do Sul)
como sudacas. Achei a palavra engraçada (sud- de sur [sul]). Fico
sabendo que não há nada de engraçado, é termo ofensivo e os
hermanos falam para eu não me referir a eles assim. O colega do
Equador disse que recentemente havia sido achado nas águas de
seu país (ou em águas internacionais, não estou certo, mas por
mergulhadores equatorianos), um galeão espanhol com muito,
muito ouro e riqueza tomada daqui de nossos vizinhos. E que,
99
mesmo depois de séculos no fundo do mar, certamente a Coroa
espanhola nem sabia mais daquilo ali... fizeram questão de acionar
judicialmente para reaver o tesouro perdido.
Talvez a relação seja como os luso-africanos com os portugueses.
Diferentemente de nós, no Brasil, não têm simpatia pelo ex-
explorador. Eu mesmo fui falar que tinha ascendência portuguesa
(por parte de pai, meu avô era português e minha avó, embora
brasileira, filha de portuguesa; por parte de mãe, minha avó era,
idem, portuguesa e meu avô, embora tivesse um tipo um tanto...
digamos... saxônico, tinha portugueses e negros longe) e, por ter
falado “negro longe” fui chamado de racista numa mesa só de
angolanos. Se o ascendente fosse “português longe” (como era), eu
falaria (como falei). Se fosse japonês longe, eu falaria. Além do mais,
“se eu fosse racista não estaria aqui na mesma mesa com vocês
tomando cerveja juntos”. Convenci. Tanto que tomamos muitas
outras cervejas depois.


Exceto quem já veio ao Brasil, poucos chineses ouviram falar de
Brasília. E ficavam surpresos quando eu dizia que era projeto de
um comunista.
Achavam que a capital do país era o Rio.
Alguns arriscavam São Paulo. Eu também dizia que não, que
São Paulo é maior cidade, que é o centro financeiro, que tem a
Bolsa...
Alguns achavam que isso tudo era no Rio.
Perguntavam se São Paulo era a capital financeira, se o país tem
duas capitais. Não, só temos Brasília. São Paulo é uma cidade de
peso no mercado, mas não tem status de capital financeira.
Perguntavam se o Rio tinha muitas indústrias. Eu dizia que raras.
Que houve uma evasão enorme, havia algumas indústrias no estado,
poucas, mas quase nenhuma na capital. Aí vinha sempre a pergunta:
se o Rio não era mais a capital, não era a maior cidade, se o Rio
não tinha indústria, de que o Rio vivia?
100
A professora particular de mandarim que paguei por fora
também não sabia nada de Brasil, além de Rio e Copacabana
(refere-se a uma praia com a calçada engraçada).


Com meia hora em Hubei e tendo sido levado a somente um
ponto turístico, dois caras de uma TV local me pedem, em inglês,
para gravar um vídeo falando o que eu achei da cidade. Disse
que tinha visto muito pouco para tecer comentários (o que era
verdade). Insistiram. Falei que meu inglês não estava tão bom
assim. Falaram que eram só algumas palavras. Disse que não
tenho muita habilidade em dar entrevistas (o que também é
verdade). Disseram que era só um rápido bate-papo. Falei que
no Brasil há uma máxima no jornalismo de que “jornalista não é
notícia”. O cara riu. Mas insistiu. Pariu.

Rio Yangtzé, em Hubei; e o porto, ao fundo

Na China, furam fila facinho. E não era porque éramos


estrangeiros. Até entre eles é assim. O próprio chinês da Diplomacia
avisou-nos sobre isso. Tem que ficar bem “coladinho” na pessoa
da frente. Se houver qualquer espaço, eles acham que você está
só perto, não faz parte da fila. Mesmo que atrás de você haja mais
um monte de gente alinhada, acham que são duas filas e a primeira
terminou à sua frente.
101
“Cantada” – aquele “chega-junto” que hoje leva o nome de
assédio sexual – em espanhol se chama piropeo. E “cantar”, piropear.
Conversando isso com os hispânicos – inclusive com mulheres –
surgiu o assunto de qual o pior piropeo pelo qual já haviam passado.
Falei que existe no Brasil um termo – cafajeste –, que, não sei
como seria em espanhol (depois descobri que é “un chulo”), que é
um tipo masculino, muitas vezes rude, que despreza as mulheres,
trata somente como objeto sexual, mas muitas ficam encantadas
com isso. E que houve um ator que personificava isso: Jece Valadão.
Uma vez, já aposentado, numa entrevista a uma revista masculina,
perguntaram a ele qual a cantada que o cafajeste passa.
Jece rebateu que “cafajeste que é cafajeste não canta; espera
ser cantado”.
O jornalista do Equador disse:
“Igual aos argentinos”.


Fomos visitar uma empresa que desenvolvia projetos de
realidade virtual para treinamento de profissionais em logística
(grua e caminhão em porto), cirurgia e oficinas mecânicas (solda
e pintura com pistola). Na hora em que abriram para fazermos
os testes, fui detonado em quase todos. Teria matado o paciente,
soltei o contêiner antes da hora, esmagando o caminhão, pintei
escorrida a porta do carro, mas na hora da solda fiz bonito, mesmo
com a dificuldade de usar o óculos de grau para perto com o
óculos 3D. Primeiro, sem o óculos de grau, pespontei as duas
peças virtuais e depois vim completando a “costura”. Não ficou
muito bom... na hora de ser avaliada pelo computador... ficou
meio torto. Teria segurado a peça, mas não ficou como o da
demonstração. Pedi para fazer de novo. Agora com o óculos de
grau por baixo do 3D. E com mais calma. Levei o dobro do tempo.
Primeiro, de novo, pespontei as duas peças ligando-as. Depois,
vim “costurando” em zigue-zague de uma ponta a outra. Não só
passei no teste de ductilidade, como bati 90% pelos critérios do
programa, acima dos 88% do nerd que demonstrava o aparato.
Recebi congratulações em chinês. Ficaram surpresos.
102
Voltamos de Yichang para Pequim numa empresa aérea local.
Na hora do serviço de bordo, a comissária me pergunta:
– Olange? (Lalanja?)
Digo:
– Yes (Sim).
– Ass? (C* [ânus]?)
– WHAT???? (QUÊ?)
Sorriu de novo:
– Do you want ASS? (Você quer um c* [ânus]?)
Apontou para o balde de gelo (ICE).
Tentando segurar o riso, digo que sim em inglês e agradeço em
mandarim:
– Yes. Xiè xiè.
É quando recebo um “de nada” em mandarim com um sorriso
nos lábios:
– Bokhete.


Por causa de divergência quanto à letra de “Ai, Se Eu Te Pego”
entre nós, brasileiros, e os argentinos (que acertaram a discussão),
pergunto se Michel Teló é conhecido no país.
Não, não é.
Não conhecem mais nada do cantor. Só “Ai, Se Eu Te Pego”.
E acham que o verso: “Nossa, Nossa / assim você me mata” é
“Rosa/Rosa...”


Nas cidades do interior, já aconteceu com outros e finalmente
comigo. Veio uma criança arranhando inglês pedindo, por apelo
dos pais, para você tirar foto com eles. Quando consegue explicar,
diz que os pais nunca tinham visto um ocidental de perto.
Com a delegação africana, a situação era mais constrangedora,
porque tocavam o cabelo dos negros, passavam a mão na pele e
depois esfregavam uma na outra. Aqui no Brasil daria crime de
racismo por muito menos. Mas vamos considerar que a China,
embora multiétnica, de longe, não é multirracial. E ficou fechada
103
para o mundo durante séculos. Entende-se no contexto deles, por
mais estranho e constrangedor que nos pareça.


Uma vez, nosso micro-ônibus emparelhou com uma van que
levava uma família (eu acho): o homem ao volante, a mulher no
carona e várias crianças atrás, que começaram a rir olhando para
nosso veículo (que, por ser micro-ônibus, ficava num plano mais
alto), nunca deviam ter visto tantos ocidentais iguais juntos. Fiz
umas caretas idiotas, mostrei língua. Fizeram uma foto minha.
Deve estar rolando em algum lugar da China ou até no WeChat
minha cara de imbecil.

Visita a um laboratório especializado


em analgésicos. Perguntei o que era numa
embalagem de uns comprimidos a bandeira
do arco-íris. Quis saber o porquê daquele
símbolo. Disseram que era para indicar que
era para... Errou: crianças. É a indicação
de remédio infantil.

Numa conversa com uma australiana, ela diz seu nome (Zoe)
e eu digo o meu (João Carlos). Ela tenta repetir João (com
extrema dificuldade) e Carlos (mais ou menos). Digo que you
can call me Jay-Cee (“Você pode-me chamar de Jota Cê”).
Explico que João, embora seja difícil falar para quem não é
nativo do português, é um nome muito comum no meu idioma,
que é o equivalente a John, em inglês.
Aliás, acrescento que meu nome seria John Charles, em seu
idioma.
“Nome de príncipe”, ela diz.
Não entendi.
Depois ela fala que até tenho semelhanças com o “príncipe
John Charles”: o cabelo crespo e o nariz adunco.
Muito tempo depois é que eu saquei que ela estava querendo
falar do rei (e não príncipe) Juan Carlos, da Espanha.
104
Aliás, João é dificílimo para qualquer um que não seja
lusófono falar. Por causa do -ÃO. E, se for hispânico, exceto
pelos argentinos (e uruguaios, que não havia no grupo) por
causa do J também. Chineses, então nem se fala. Só no final
dos seis meses descobri que João em mandarim é Yuhan. Se eu
soubesse desde o início, acho que teria me facilitado muito,
sobretudo quando perguntavam, depois de um tempo, se eu já
tinha adotado um “nome chinês” (como os ocidentais que moram
por lá fazem, do mesmo modo que chineses que lidam conosco
adotam “nossos nomes”). Nas primeiras vezes em que me
perguntaram, eu falava que estava pensando em adotar Xing Ling.
O problema é além de não querer dizer absolutamente nada em
mandarim, xing ling, tal qual pronunciamos, nem parece chinês,
segundo os próprios nacionais dizem. Eles nem “entendem”
como alguém tentando falar o idioma.


Os hispânicos também acham engraçado xing ling para produto
chinês (ruim).

Duas chinesinhas em Beidahe, no parque em que a Grande Muralha toca o mar


105
Primeiro dia em Liupanshui: uma cidade minúscula, talvez
do tamanho do bairro da Urca, aqui no Rio, com um mega-hotel
no estilo do Quitandinha, em Petrópolis, quase todo vazio. Outro
hotel, do outro lado do rio que cortava o local, estava em
construção, já bem avançada. Fazia parte de um programa de
erradicação da fome e implantação de saneamento básico com
uma megaempresa privada, voltada para o turismo (chinês é o
maior turista na China) e exploração do kiwi (que corresponde a
¼ da fonte de renda da província).
Bom, nesse primeiro dia, chamam os visitantes para uma festa
étnica de boas vindas. Você é recebido por um pessoal com roupa
típica mais ou menos como eram os visitantes da Ilha da Fantasia
e fica todo mundo dançando em volta da fogueira como se fosse
festa junina. Várias etnias fazem isso e parece, assim dizem, que
não tem conotação religiosa alguma, unicamente é o modo de
receber quem é de fora. Muita gente, como eu, não acerta o passo.
E aí junta lourão, negão, moreno, ruivo, europeu, latino-
americano, indiano, muçulmano, ateu, protestante, budista e
chinês, todo mundo com as mais diferentes caras e roupas na tal
festividade. Eu me senti num anúncio da Coca-Cola. Até que
veio a chuva e acabou com a perfect harmony toda.


Aliás, falando nessa história de o kiwi corresponder a ¼ da
fonte de renda da província, cometi dois erros de apuração quando
estive na China. Faço o mea culpa. Um foi contra o país, numa
matéria sobre chineses que estudavam português. Por um erro
de digitação, saiu que a Beijing Foreign Studies University (BFSU)
já tinha formado 550 alunos em Língua Portuguesa, desde 1960,
quando o curso foi criado. Na verdade, eram 5.500. Faltou um
zero. A matéria saiu assim tanto no site como no impresso.
Pediram o PDF para ver. Pediram para corrigir porque era muito
importante, a diferença estava muito grosseira. Fui ver no meu
bloco de apurações e, de fato, com a minha letra, estava
manuscrito 5.500 (e não 550). Pedi desculpas, havia sido um
erro de digitação, falei que estava sem tempo (e, de fato, estava
106
mesmo), mas que iria corrigir na versão no site. No impresso
teria que ver, não era assim, não dependia só de mim, era editado
e diagramado no Brasil... enfim... não garantia.
Alguns dias se passaram e a professora (uma chinesa que havia
estudado português em Macau e falava igual à D. Maria da
padaria, aliás, usei essa comparação no texto...) me ligou de novo
se o número já havia sido corrigido. Pedi desculpas, falei que
havia me esquecido, fui transparente, estava cheio de atividades,
pedi para aguardar na linha e, como estava em frente ao micro,
corrigi no site exatamente naquele momento.
“Pronto. Pode digitar F5 e atualizar sua página”.
Deu um tempinho na linha e...
“Ótimo, obrigado. É muito importante. E no impresso?”,
insistiu.
Outra vez, pedi desculpas, como eu havia dito, havia me
esquecido. Ia ver isso com o pessoal na redação, no Brasil.
Desligado, mandei uma mensagem para um colega no jornal,
falei que os chineses estavam cobrando... ele disse: “Mas já é
uma matéria velha, já tem mais de uma semana, não tem como a
gente revisar isso”.
Mais um tempo, a professora retornou: “E então, Sr. Cardoso?
Há como nos mandar a correção?”
Cobrou mais uma vez. Falo com o colega.
Excepcionalmente, coisa que não fazemos (porque não se
usa cobrar isso no Brasil), publicamos um pequeno boxe com
uma errata, quase 15 dias depois dizendo que, em vez de 550
eram 5.500 alunos formados em Língua Portuguesa, pela BFSU.
Ficou totalmente anacrônico, fora de contexto e a nota deve
ter passado despercebida para a maioria dos leitores, mas assim
foi feito, geramos um PDF e mandamos para a universidade.
A professora e também o chinês da Diplomacia agradeceram.
Aquilo era “muito importante”. Aqui no Brasil nem o mais chato
dos assessores de imprensa insistiria numa correção assim com
tamanha veemência!
E o que tem o kiwi com a história? Acontece que na matéria
do kiwi também errei. E muito mais grosseiramente (tanto pelo
107

À dir., para um pequeno erro de digitação foi cobrada correção; na do kiwi, o erro gritante (em
números e no título) não só “passou batido”, como ainda foi para o porta-fólio do programa

número totalmente díspar, como por o erro ter saído inclusive


repetido no título), só que a favor da China. Escrevi que a
produção de kiwi naquela província correspondia a ¼ da fonte
de renda de toda a China. Era um erro crasso. Primeiro, porque
era ¼ da fonte de renda só da província. Depois, porque ¼ do
PIB da China seria o PIB de um país inteiro como a França ou a
Espanha. Era como se os franceses ou espanhóis só exportassem
kiwi para o mundo inteiro.
Quem chamou a atenção para o erro foi meu chefe, que ainda
me gozou no grupo do jornal... Mas... do governo chinês não
houve nenhum pedido de correção. Pior, não só não houve, como
ainda usaram justamente o PDF dessa matéria numa espécie de
catálogo que é editado e distribuído ao final do programa de
intercâmbio. Eu mandava semanalmente, a título de relatório,
as matérias “sérias” que produzia, as notinhas de besteirol eu
não enviava. Não só usaram nesse porta-fólio como também no
108
vídeo/Power Point que era exibido na cerimônia final. Mostravam
que a mídia ocidental se interessava pela China e aí iam passando
uma matéria de cada colega do grupo: o que o México havia
publicado sobre o país, o que os argentinos tinham escrito... Do
Brasil saiu uma matéria do outro veículo e do MONITOR
MERCANTIL advinha qual? Exatamente: ocupando página
inteira: “Movendo 3 bilhões de iuanes, kiwi é responsável por ¼ do
PIB da China”!

Aliás, sobre essa matéria de chineses (que saiu em outubro, mas
eu só “puxei” aqui no livro para o capítulo de julho para encerrar o
assunto junto com o outro) que estudavam português para o jornal,
como disse, a professora havia aprendido em Macau. Conseguíamos
nos entender perfeitamente. Uma das alunas havia feito intercâmbio
na USP, e falava tal qual uma paulista. Também me compreendia
perfeitamente e vice-versa. A outra havia feito intercâmbio em
Coimbra. Falava perfeito, chorando igual àquela senhora católica,
de buço, roupa preta e crucifixo no pescoço, mas tinha uma
dificuldade enorme em me entender. Disse que eu chiava muito.
Falei que era do Rio de Janeiro, que no Rio se falava assim. Aliás,
em todo o litoral do Brasil: herança portuguesa, embora na minha
cidade talvez fosse mais evidente.
– MãSSSH tu CHiaSSSH muito!
– Eu?


A maioria dos cursos de Letras é procurada por mulheres. Na
sequência, o português é a quinta língua estrangeira mais buscada
por chineses na BFSU. Primeiro vem o inglês, depois japonês;
seguem-se francês, espanhol (que tem as melhores notas) e nossa
língua.


Aliás, eles acham nossa estrutura muito difícil. Talvez seja o
ponto mais difícil do português para um chinês. (Para nós, ocidentais,
o mais difícil na língua deles é o tom).
109
Mais além: chineses que aprendem português o fizeram ou em
Macau ou em Coimbra. Falam com sotaque português. Aí você
pergunta porque escolheu o idioma e ele fala: para fechar negócios
com o “Blasil”.


Também na China (exceto os que já vieram para a América do
Sul) acham que a gente fala italiano ou alguma coisa parecida.
Espanhol, pelo menos, muitos sabem que não é. O referencial de
português para os chineses é Macau (que cada vez mais fala menos
o idioma). Ou a pronúncia dos portugueses. O que falamos aqui no
Brasil é outra coisa.
E mesmo alguns hispânicos (que sabem que falamos português
e compreendam talvez só 50%) costumam achar que em nossa língua
señor, señora e señorita é signor, signora e signorina.


Aliás, essa história da letra Ñ do espanhol me causou algumas
situações engraçadas: o meu celular não punha til no N. Nem tem a
letra pré-pronta. Então, na hora de escrever ano em espanhol, em
vez de año só me restava escrever ano (como em português). O
“problema” é que ano em espanhol é o nosso ânus...


Houve uma vez em que o chinês se superou: meu nome saiu
como Sr. Monitor do país Mercantil.

Há mendigo na China.
E de celular
110

Mausoléu de Mao Tsé-Tung: adiei a visitação; quando dei conta, acabou o programa e não fui

Antes de ter ido à China em 2017, eu achava que lá haveria a


cara de Mao Tsé-Tung em tudo quanto era lugar. Mas não foi o que
constatei. Em Pequim mesmo, só vi no seu mausoléu, que fica em
um dos lados da Praça Tianmen e é uma das entradas da Cidade
Proibida (já publicado aqui). Mas, no interior (interior mesmo) a
memória de Mao é bem mais marcante. Ele observa você das
paredes das casas mais humildes. Num programa que visitamos de
erradicação da fome e da implantação de saneamento básico, a
vila-modelo tinha a cara de Mao em várias casinhas, até porque
no planejamento “thomas-moriano” existia a obrigatoriedade de
haver, nos comitês de moradores, alguém do Partido.
Mesmo a cara de Xi Jinping não é vista a torto e a direito em
prédios públicos na China. Só me recordo de tê-la visto uma
única vez acho que na Chancelaria (onde havia alguns eventos)
ou na Imigração, quando fomos validar nossos vistos. Não me
lembro exatamente de onde e de quando. Fato é que o Mr. Xi
Jinping que o Ocidente conhece por imagem, assim como
aparecem nas grandes cidades é aquele homem de hábitos
ocidentalizados e paletó e gravata, um gentleman, um misto de
diplomata e homem de negócios.
Mas no interior a imagem é diferente. Nessa viagem a
Liupnashui, visitamos umas casinhas que haviam recebido água
111
e que faziam parte de outro programa de erradicação de fome.
Como disse, parceria com uma megaempresa privada
(diferentemente da anterior, que eram cooperativas).
Infelizmente, meu celular havia ficado no hotel, porque
descarregou e um dos colegas latino-americanos que estava
comigo ficou receoso de fotografar. O Xi Jinping com
personalidade cultuada em várias casinhas da minicidade tinha
tanque de guerra atrás, avião a jato e estava fardado. Verdadeiro
caudilho. Bem diferente de como o víamos nas cidades grandes.

Aliás, falando em Mao, intelectuais e a nova geração não
gostam dele. Foi o chinês quem disse.

Comum chineses que lidam com ocidentais adotarem nossos
nomes (em geral, os mais curtos) para se fazerem entender.
Ocidentais que vivem na China fazem o mesmo e adotam os
deles. Chinesa que nos ajudou na tradução em inglês numa viagem
a Ghizou – a segunda, desta vez, em conjunto com os grupos da
África e da Ásia – se chama Hu Ting (Hu é o sobrenome; Ting,
o prenome) e apresentou-se assim: “My name is Ting, but you
can call me... Sammy!” (“Meu nome é Ting, mas pode-me chamar
de Samuel!”).

Chineses (e parece-me que orientais como um todo) se
preocupam mais com a definição do nome ao registrar um filho
do que com a sonoridade ou com a “modinha”, como, em geral,
ocidentais o fazem (há exceções e conheço algumas). Aí pediam
para explicar o que é o meu João; digo ser a forma em português
para John; que é um nome bíblico que significa agraciado por
Deus. Pergunta número 2 é sempre se sou cristão. Não. E vou
mais além: os nomes bíblicos (sobretudo os do Antigo
Testamento) não são cristãos, são judaicos. Acham que todos os
nomes no Ocidente são religiosos. Xavier mesmo, que é basco,
acham que tem definição religiosa, por conta do são Francisco.
112
Digo que não, que o próprio Carlos, do meu João Carlos, é de
origem germânica e quer dizer “fazendeiro”. Não entendem
Carlos. Digo que é igual Karl, de Karl Marx, é a forma em
português. Funciona a explicação.
Mas também temos outros nomes, de origem indígena, africana
e até latina, como, por exemplo, Augusto, Máximo e Cláudio,
este último que quer dizer manco. Riem.
De novo, a pergunta irritante se sou cristão.
Não, não sou.
Então, você é... muçulmano?

Ghizou, China: crianças vendo um


ocidental (e acho que um celular) pela
primeira vez. Aliás, nem ocidental era:
jornalista do Afeganistão
também virou atração

No parque de Tuole Ancient Gingko Village, na cidade de


Panzhou, ponto turístico, os letreiros estão em chinês, inglês,
coreano e... latim! Pergunto porquê do latim. Dizem que vêm
turistas dos países latinos. Tento explicar que nos países latinos
não se fala latim (uma língua da Roma antiga, do tempo dos
Césares)... falam línguas que tiveram origem no latim, que
mantêm a estrutura, voca-bulário, mas são outros idiomas:
113
português, espanhol, francês,
catalão, etc, etc... romeno, etc,
etc, italiano... nem mesmo na
Itália fala-se latim. Latim é
língua morta, ninguém fala,
nenhum país. Corrigi rápido,
falei que, desculpa, havia, sim,
um único país que tinha o latim
como língua oficial, o
Vaticano: italiano e latim.
– Mas nós não temos
relações com o Vaticano.
– Eu sei.
– Então, por que as coisas
estão em latim?
– Boa pergunta.

Aliás, a mesma diferen-


ciação que há em inglês entre
latin (por latino) e latino/latina
(por latino-americano/a) há
em francês. Descobri lá que
sou “latinô” e não “latã”.


Último dia em Liupanshui.
Dormimos num hotel que mais
parecia um alojamento de
universidade. Quartos indi-
viduais, confortáveis, limpos.
Banheiros, idem. Tudo de bom
tamanho, sem o exagero
luxuoso desnecessário de
alguns hotéis em que já
havíamos ficado. Café da
Villa Romana; Ghizou, China
116
manhã numa espécie de
bandejão, outra vez com cara de
universidade. Isso foi até
comentário entre nós. E, assim
como no hotel, nada em inglês.
Tudo 100% chinês. Nada de
café, nem chá, nem suco. Água
quente, macarrão, salada... um
verdadeiro almoço às 6h da
manhã. E os tais buns, um
bolinho de massa de arroz, muito
leve, que os chineses amam. O
problema é o recheio. Por vezes,
é maciço, em outros casos, é com
doce; e em algumas terceiras
situações com salgado. Segundo
um amigo aqui no Brasil, quando
viu as fotos que mandei, disse
que mais se parecia com um
c(ânus)*u com hemorroidas. Villa Romana; Ghizou, China
É sempre uma incógnita saber o que tem dentro, sobretudo
quando está tudo escrito em chinês e os intérpretes chegaram
atrasados. Todos carentes por um café da manhã com cara dos nossos
cafés da manhã, caímos dentro iguais esfomeados. Um dentada foi
o bastante para todo mundo largar a comida. Os muçulmanos, porque
o recheio era de porco. Os demais, porque não aguentaram a
pimenta.
Pegadinha do chinês.


Aliás, como os chineses comem esses dumplings (ou buns)!
Traduziam em espanhol para ravióli, se bem que são bem
diferentes do que se vê em restaurantes italianos. Considerando
que as massas vieram da China, acredito que os de lá devam ser
os “modelos” corretos, originais; o que se come na Itália e por
aqui no Brasil deve ter sido adaptado ao longo dos séculos.
117
Acho que o nome é bao. Mas os chineses comem tanto que se
você falar bun (com uma pronúncia em português, não o “bân”
que seria o correto em inglês) eles entendem. Há várias palavras
adaptadas de idiomas ocidentais (como o biong para dizer que
está tudo bem, adaptado do bien francês) ou a cerveja (pijiù), em
que jiù é álcool (mesmo o hospitalar) e, portanto, faz a terminação
em todas as bebidas alcoólicas. E o prefixo pi- não quer dizer
nada sozinho. É um chinês tentando falar Bier (cerveja, em alemão,
afinal foram eles que introduziram a bebida no país).
Fato é que falam tanto bun (à inglesa) – ou bum (mesmo) –,
que não descobri como é dumpling em mandarim.
Ah, sim. E tomate é fruta na China. Aqui no Brasil, também
o é, mas fica junto dos legumes e verduras no mercado e na
feira. Nas refeições também. Lá, não. Se é fruta, é vendido e
servido junto com fruta.


Já acontece na Malásia e
agora Ghizou, na China, foi a
primeira cidade no país a
adotar. E certamente algum
engajado no Brasil tão logo
vai propor a modernidade:
nos shoppings,
supermercados, clubes, etc...
há um estacionamento só
para mulheres, para não
serem atacadas pelo macho
opressor. Dividem as vagas
com os carros para pessoas
com deficiência.


118

Numa entrevista em inglês, acabei soltando um palavrão em português; não sei se foi ao ar
Quem disse que “jornalista não é notícia”? Na China não tem
disso. De novo, a mesma situação: mal você chegou à cidade e
querem saber o que está achando. Não dão nem tempo para você
conhecer o local. Aí, como de todas as perguntas eu não estava
em condições de responder a nenhuma, acabaram me
perguntando da comida. Sim, dessa eu pude falar, em especial
de um dumpling de milfolhas sequinho com recheio de carne de
porco picadinha. No meio do texto em inglês, acho que acabei
soltando um “bom pra c*ralho”. Não vi como ficou o vídeo
editado. Vai ser engraçado se passou.


Nas atividades compartilhadas com o pessoal da Ásia e da
África, havia muitos muçulmanos, talvez metade de todo o grupo.
Os outros 50% congregavam alguns poucos católicos, muitos
ateus, hindus, budistas, alguns que eu não consegui saber e até
uma presbiteriana, representando a Escócia. O fato é que entre
esses muçulmanos havia muitos moderados (ou “maus
muçulmanos”, como acho que são chamados pelos mais linha-
119
dura): consomem bebida alcoólica, não fazem questão de frango,
cordeiro e boi abatidos pelo método halal. Havia, inclusive, a
representante da Malásia, que não usava nenhum tipo de véu,
vestia camiseta de alça e bermudinha jeans desfiada de fazer inveja
a muitas cariocas. Disse que seu país é secular - embora nas
escolas (do primeiro grau até a faculdade) se exigisse a roupa
islâmica - e que havia sido criada numa família extremamente
liberal.
Mas o fato é que entre todos, sem exceção, até mesmo os
mais liberais, nenhum comia carne de porco.


Nessa viagem compartilhada com o grupo da África... apenas
dois da delegação latino-americana, eu e o argentino que
representava a Costa Rica. Logo no primeiro dia, perguntaram-
me em inglês de que país eu era.
– Do Brazil.
– Are you Mr. Coo?
– Como?
– Mr. Coo, from Brazil? Coo, your name.
– No. Cardoso. Car-do-so. Não sei quem é C*.
Cara de surpresa. Mostrei meu nome escrito em caracteres
chineses.
– Ah! Mr... (para e pensa... nome difícil esse) Zêlfa (Silva)?
– Yes. That’s me.
Localizaram na tabela com os nomes dos vários representantes
dos países latino-americanos.
– And Mr. Coo?
– Não sei quem é Mr. Coo. Não conheço nenhum C*.
Mostram a tabela e apontam no Brasil o sobrenome Kern, do
outro brasileiro (que estava num outro projeto em Pequim).
Achavam que Zêlfa e Cu eram a mesma pessoa.
120
CAPÍTULO VI
AGOSTO: “ESTÁGIO” E VERÃO

E m agosto, começamos mais uma etapa do chamado


“intercâmbio”. Desta vez, tínhamos de “estagiar” em
algum meio de comunicação chinês, todos estatais, vale lembrar.
Havia várias opções em espanhol (que eu podia escolher, aliás)
e duas só em português (que também havia em espanhol):
Agência Xinhua (que o nosso jornal usa) e o Diário do Povo, o
jornal de maior circulação do mundo. Escolhi o segundo, porque
já havia visitado a Xinhua em duas ocasiões: em 2018, no início
da programação; e na ida anterior, por uma semana, em 2017.
Na primeira reunião, no megacomplexo em que funciona o
maior jornal do mundo, fomos apresentados à redação pequena
no nosso idioma: havia uma jornalista portuguesa e também um
conterrâneo seu com cara de cigano, mais alguns chineses, todos
sob coordenação de Juliano, nome ocidental adotado por um
chinês que aprendeu português em Moçambique (embora para
mim falasse igual a um português, bem diferente dos moçam-
bicanos com quem tive contato).
Visitamos a emissora televisiva do “Diário do Povo” (afinal,
os representantes de Angola do “intercâmbio” eram da TV do
seu país; por isso, interessava aos chineses mostrar sua televisão),
alojamentos, cantina, etc. O que eu queria mesmo visitar era a
gráfica. Aliás, eu também o quis quando visitamos o “China
122
Daily”, igualmente sem sucesso. Ficam enrolando, enrolando,
enrolando e outra vez a pouca informação. Tudo na China, até
as coisas mais bobas, são meio que “segredo de Estado”. Eu
mesmo não sei quais os critérios para a nossa seleção até hoje.
Eles desconversaram todas as vezes em que toquei no assunto.
Eu acredito, meramente um “chute”, que haja critérios “gerais”
que sejam adaptados a cada candidato. O outro brasileiro, por
exemplo, estava fazendo uma segunda Faculdade, de Relações
Internacionais. Isso deve ter pesado. No meu caso, falar alguns
idiomas, sei lá. Entre os hispânicos, havia uma chavista, havia
uma outra do jornal oficial do PC cubano... enfim... mas eles não
dizem. No grupo da Ásia, então, o perfil era mais heterogêneo
ainda: havia, sim, gente que cobria Economia e Política, mas
havia, pelo Paquistão, um jornalista que era repórter de rua e,
pelo que entendi, cobria Cidade, Dia a Dia. Não sei, entretanto,
se havia nos três grupos (Ásia, África e América Latina) quem
cobrisse Esportes.
Você procura saber e eles, os chineses, enrolam, enrolam até que
você desiste.
E isso é uma coisa que você vai percebendo aos poucos. Em
uma das vezes, quando recebíamos a planilha/agenda de eventos
da semana seguinte, havia algumas programações a confirmar. A
maioria desses “a confirmar” aconteceu. Alguém do nosso grupo
(ou até da África ou da Ásia, não conseguimos saber quem foi)
parece que divulgou para o seu veículo a programação semanal.
Até aí nada demais. Mas havia um “a confirmar” no meio que foi
divulgado. O chinês da Associação Diplomática, nosso anfitrião,
levou uma chamada do superior (não sei quem era) e publicou uma
advertência a todos nós, com cópia aberta, que eventos “a confirmar”
não deveriam ser divulgados. Pior e mais curioso é que foi um evento
que... foi confirmado.
Mas tudo isso para eles têm essa característica de “segredo de
Estado”. Isso é muito ruim para quem trabalha com informação,
como nós, jornalistas.
Voltando ao “Diário do Povo”, várias pautas que propus na
primeira reunião não serviram. Pensaram num projeto integrado
123
comigo, de um jornal de economia, com o pessoal da TV de Angola.
Demos (eu e eles) algumas ideias, ficaram de ser avaliadas e...
Acabou ficando combinado que eu trabalharia de casa. Era agosto
e estávamos no Verão no Hemisfério Norte, segundo o calendário
gregoriano (o adotado na maior parte do Ocidente, solar, que os
chineses até seguem). Pelo calendário chinês (lunar), que coexiste
no país, só há três estações (de quatro meses cada) que esqueci os
nomes. Fato é que foi o agosto mais quente em Pequim nos últimos
sei-lá-quantos anos. Digno de Rio de Janeiro.
Ar-condicionado ligado direto. Foi a surpresa quando minha conta
veio 250 iuanes (R$ 125) no final do mês, obviamente muito mais
do que os 60 ou 80 iuanes mensais que eu costumava gastar. Mesmo
assim muito abaixo dos 480 iuanes que estavam (ainda) na minha
caixa de correio, deixada há mais de ano pelo morador anterior do
apartamento.
Trabalhei de casa, fiz algumas pautas que nos passavam, repassei
algumas do MONITOR MERCANTIL (como exportação de
café do Brasil para o Oriente). Todas saíram com meu nome, até
uma que havia sido escrita pelo dono do jornal... Falei com ambos
(o editor chinês e meu chefe no Brasil), mas, segundo os chineses,
na China é assim (afinal, fui eu quem mandou a matéria). O diretor
de Redação e dono do jornal disse que deixasse para lá: pelo menos,
estavam divulgando a marca do veículo no outro lado do mundo...


Aliás, o salário mais baixo de um repórter na China gira em torno
de 8.000 iuanes (cerca de R$ 4.000). É baixo para os padrões deles.
Isso se for um repórter chinês que só fale mandarim. Se dominar
mais de um idioma (o que todo estrangeiro faz), pagam mais. Ah,
sim, e pagam por produção (como era o sistema na antiga URSS): se
você faz mais matérias, ganha mais. Uma besteira a meu ver: uma
matéria pode dar um senhor trabalho de pesquisa, apuração, tomar
seu tempo e você só fez uma. Ao passo que o outro jornalista pode
fazer um monte de notinhas sem profundidade e, como em número
fez mais, ganha mais pelo serviço...
Enfim...
124
Depois fico sabendo que os salários de jornalistas nos outros
países da América Latina também são baixos. Eu e o outro
brasileiro convertemos para dólares e aí vimos que, apesar de
nossa profissão ser um tanto aviltada aqui no país, nosso salário,
em relação aos hermanos, era bem razoável...


Como comentei de passagem anteriormente, a imprensa é
toda estatal na China, embora oficialmente um jornal seja do
Partido, outro seja do Estado, outro da Juventude Socialista....
outro da Federação de Mulheres, outro da Universidade tal
(pública), outro do governo provincial... vários donos, segundo
os chineses: o Estado.
Nem reparei se o “China Daily” (que todo dia era distribuído
no condomínio em que eu morava e em outros lugares) tinha
anúncios. Talvez até tivesse, mas não era a grande fonte de
sustento. E o mais chato: só tem notícias boas: “Para que
noticiar coisas ruins? Tem que mostrar que o governo resolve
os problemas e não os problemas”.
É um discurso digno de 1984 e bem cansativo para nós, do
Ocidente, acostumados (mesmo na mídia pública e/ou estatal)
à prática do “good news, no News” (“boa notícia, sem notícia”, em
tradução literal), que veio dos EUA: notícia boa não “vende”.
Há colegas aqui no Brasil que questionam isso, que é uma
lógica mercantilista, que se você tiver uma imprensa totalmente
gratuita, pública (sic) e isenta (sic sic), o leitor se interessa por
notícia boa. Eu realmente discordo. O espectador/leitor cansa
de só notícias agradáveis, simpáticas, porque no fundo, seu
subconsciente sabe que é falso (ou mascarado), que o mundo
não é assim. Mesmo numa emissora estatal aqui no Brasil, se o
programa tiver queda na audiência, a grade muda, mesmo não
tendo patrocinador bancando.


Voltando à China, numa das viagens internas, naquela à terra
do kiwi, havia na delegação da Ásia um senhor com traços orientais
125
(que participou de poucas atividades) que não era jornalista. Isso
era meio comum algumas pessoas serem “agregadas” ao grupo e
participarem de algumas atividades apenas.
Bom, fato é o que o “chinês” entregou-me seu cartãozinho,
eram dois nomes longos, cheios de consoantes. Fugia totalmente
ao padrão chinês de nomes próprios. Perguntei e fico sabendo
que, embora nacional, era de origem tailandesa. Filho, eu acho.
Pediu o meu cartãozinho, de novo, eu não tinha. Falei que eu era
do Brasil. Já havia estado aqui a negócios. E teve ótima impressão
de meu país: Porcão, a churrascaria (aliás, estrangeiros ficam
mesmo loucos como as nossas); Amsterdam Sauer, com quem
fechava negócios... eu não entendia quando ele tentava se lembrar
da empresa e falava gems (gemas); e.... Manus. Achou linda a tal de
Manus. Depois, com muita dificuldade, descobri que queria dizer...
Manaus.


Xin é coração em mandarim.
Zero é ling, que, aliás, pode ser sobrenome também. É difícil a
grafia inclusive, até para eles. Tanto que preferem usar o zero com
a notação indo-arábica (0) e não a chinesa.
Bom... o fato é que para falar “coração zero” você pronuncia
xin ling.
Como já disse antes, xing (o X tem o mesmo som do CH em
alemão) ou shing (o SH soa como o nosso CH) ou ainda ching (o
CH como o nosso TCH) não quer dizer nada. E o som de xing ling,
tal qual pronunciamos, nem se parece com mandarim, segundo os
próprios chineses.


Aliás, apresentado a um alemão que falava muito bem espanhol
(e a outros hispânicos), comentei da brincadeira (em português e
traduzindo) do “As aftas ardem e doem; as hemorroidas, idem”.
Não parece sonoridade de alemão para um alemão. Do mesmo
modo que “O ‘Ó’, que som tem? O ‘Ó’ tem som de ‘U’?” não tem
sonoridade de inglês para quem é anglófono.
126
Idem a brincadeira do pseudocigarro argentino “Dosotros”.
Os argentinos não entendem a piada, mesmo você explicando
que “dos otros” seria “de los otros” em portuñol e é um termo que
se usa para quem fila o cigarro... dos outros.
O único que achou esses trocadilhos curiosos foi o dono do
Caravan (meu “barzinho-escritório extraoficial” em frente à
embaixada brasileira), um marroquino que, entre os muitos
idiomas, falava alguma coisa de português. Mostrei o clássico
“Socorram-me, subi no ônibus em Marrocos”, traduzindo em
francês e em inglês a frase e explicando que, se lida de trás para
frente, dava no mesmo. O cara gostou e saiu mostrando para
todo mundo no bar.
Por ele, fico sabendo também em francês que gari (de Alexis
– por vezes, aportuguesado para Aleixo – Gary, francês de
nascimento, primeira pessoa a assinar uma contrato de limpeza
pública com o Ministério Imperial aqui no Brasil) não é gary.
Usam balayeur (varredor).
Idem para cavanhaque: não é cavaignac (por conta do general
Louis-Eugène Cavaignac, que usava esse tipo de barbicha). Em
francês usam chèvre (cabra).
Aliás, os angolanos chamavam o cavanhaque com bigode de
“cadeado”. E os hispânicos de encandado (literalmente, cadeado).
Perilla, em espanhol, parece que é só usado para o cavanhaque
sozinho (coisa rara).


Voltando aos trocadilhos, os próprios hispânicos, quando falei
que existiu no Brasil o padre Óscar Quevedo, espanhol que nunca
perdeu o sotaque, não percebiam brincadeira em “Isso non
eckziste”. Afinal, sai assim quando tentam falar português...


Do mesmo modo aquela HQ “Rhalah Ricota” não parece
língua da Índia para eles. Você explica, acham engraçado, mas
dizem que não se parece com nada no idioma deles. E mais além:
falando em indiano, acharam (não só eles, mas também
127
paquistaneses, cingaleses e bengalis) curioso haver no Brasil
uma cerveja com o nome de... Brahma! Só conheciam a Deus,
belga, nome que eles acham que está em espanhol. Afinal, não
percebem diferença entre Deus e Diós.


Ainda sobre indianos, soube por um assessor da embaixada
de Moçambique (professor universitário, que já havia alternado
o meio acadêmico com a Diplomacia algumas vezes) que a
população branca não soma nem 1% em seu país. Moçambique
é majoritariamente negro, mais de 90%. O segundo povo que
mais existe por lá são... isso mesmo... indianos! E migração
recente. A maioria veio de Goa quando o território, em 1961,
voltou para as mãos da Índia. Muitos fugiram do conflito. E
em Moçambique se estabeleceram por também falar português
e pela relativa proximidade entre os dois países.


Esse mesmo assessor já havia estado no Brasil. Disse que
em seu país somos muito queridos (bom saber), somos
chamados de “brazucas” e, quando fui-lhe apresentado,
perguntou se eu era da “Folha de S. Paulo”.
“Antes fosse”, disse eu. “Meu jornal não é tão grande assim”.
“Por que ‘antes fosse’? Pare e pense... você veio para cá e o
jornalista da Folha não veio”.
Faz sentido.
Ah, sim! E ele também conhecia... Brahma (a cerveja).


Esse acadêmico licenciado trabalhava como consultor na
embaixada, pelo que entendi, analisando pontos críticos e
aconselhando o embaixador onde e em que na China seu país
deve ou não se meter. Falei que no Brasil havia uma piada do
“Ministério do Vai dar M.”, uma ideia gaiata no início do
primeiro governo Lula (2003), para que o presidente criasse a
pasta. Funcionaria assim: “a cada decisão importante, esse
128
ministro seria chamado. Se o governo decide recadastrar os idosos,
Lula convocaria o ministro e perguntava: ‘Vai dar M.?’ O ministro
analisaria o caso, via que os velhinhos iriam ser humilhados nas
filas, e respondia: ‘Vai dar M.” Em outros pontos polêmicos,
sempre o conselho: “Presidente, não faz isso. Vai dar M.”
Riu muito e falou: “É por aí. Eu funciono como o consultor
do ‘vai da M.’: ‘senhor embaixador, vai dar M.”


Fico sabendo que a maioria dos chineses que vieram ao Brasil
a turismo voltou antes do previsto. Porque foi assaltada.

Proibido camelô; difícil Outra vez a do camelô e agora há também a do mendigo (só
compreender sem texto dá para entender por conta da indicação em inglês)

Fui cortar meu cabelo de novo. No mesmo barbeiro que disse


que era muito crespo. Chegando, atendia outro profissional. Só
sabia falar em inglês cut (cortar) e wash (lavar). No final, pedi
para passar a máquina no “pé” do cabelo. Achou engraçado eu
ter pelos no pescoço atrás. Pedi para aparar os pelinhos da orelha
e do nariz. Começou a rir. Digitou no tradutor chinês-inglês:
“Como você é peludo!”


Depois comentei isso em um dos barezinhos em frente à
embaixada (o do chinês que falava um inglês também sofrível) e
129
ele puxou a gola da sua própria camisa atrás e suspendeu as pernas
das calças (pescando siri), mostrando que também era liso. Para
comparar que latinos são mais peludos, via de regra, que orientais,
falei que havia um Brazilian actor chamado Tony Ramos... não me
entendia. Falei Tony Ramos com sotaque inglesado, não
compreendeu também. Pedi o tradutor do celular, ele me entregou
o aparelho. Digitei: Tony Ramos. O aplicativo traduziu para
caracteres chineses e ele pronunciou: Toní Lamô (ambos oxítonos).
Falei para procurar imagens do ator. Jogou no Bing (na China não
roda o Google). Apareceram várias fotos e algumas eram de sunga,
sem camisa. Ao que chinês falou: monkey (macaco).


Muitas pessoas achavam que eu era da Itália. E que, quando
eu falava português ou espanhol, estava falando... italiano! Mas
um dia, a dona do mercadinho se superou. Perguntou se eu era
alemão. Pelo sotaque, porque só comprava cerveja na sua loja e
porque era “a cara” dos seus clientes alemães. E você achando
que chinês e japonês é tudo igual...


E o outro brasileiro que era de origem italiana com frequência
era confundido com russos. Até por russos. Talvez porque houvesse
perto de onde morávamos um “bairro russo” (alguns quarteirões
onde viviam e tinham negócios muitos deles). Não sei se chegava
de fato e de direito a ser um bairro oficial. Acho até que não. Mas
com frequência, quando saíamos para comprar alguma coisa ou
beber uma cerveja, aparecia alguém e perguntava: Russkiy? Russkiy?


Já um hispânico que saía conosco, pelos traços indígenas,
comumente era confundido com um nacional.


Isso quando os chineses não acham que indígenas (mesmo os
descendentes já miscigenados) são... brancos!
130
Chinesa que nos servia de tradutora foi falar em espanhol
plaza (“plaça” a pronúncia) Tianmen e falava praça (em
português). O mesmo para playa, que eles falam praia. Acabam
falando português quando é para ser espanhol. E, ao contrário,
espanhol quando tentam português.


Eles costumam trocar mesmo (e não é caricatura de
ocidental) R por L e vice-versa. Embora eles tenham os dois
sons em suas palavras. O “problema” talvez seja porque ao
falar ren (pessoa, em mandarim), por exemplo, eles não pensam
no som R + E + N (como vem à nossa cabeça), mas e um
“todo” (que é o ideograma) com som de ren. Por isso talvez
fique muito difícil explicar FRANGO com o mesmo R de
REN. REN deve ser uma coisa única na cabeça deles, com
um som que em FLANGO não acontece.


Eu mesmo dei uma bola foríssima uma vez... Fui me referir
ao filme espanhol de terror “A Espinha do Diabo” (aliás,
recomendo) e, no lugar de falar “Espinazo del Diablo” (o título
no original), não consegui me lembrar de como era a espinha
dorsal – não era columna (coluna), tinha a ver com espina
(espinha), mas a palavra era maior, tinha espin- alguma coisa
de que eu não me lembrava), acabei soltando “Espinaca del
Diablo” (“Espinafre do Diabo”)...
Também numa outra vez fui corrigir o outro brasileiro, que
falou “anéis” em portuñol, e disse que era “aneles” (e não
anillos).
Eu mesmo tinha dias que estava com o espanhol tão afiado
que quase passava por nativo (embora logo percebessem que
eu tinha um “cantado” – assim me falaram depois – que não
era do nativo hispanoablante. Um pouco, mas tinha. Descobri
depois que eram nos sons nasalizados, não abria tanto como
eles, por exemplo, quando falava JuÁÁN, minha pronúncia
131
saía meio JuÃ). Em outros dias, quando ficava só conversando
com chineses, depois saía horrível tudo o que eu falava. Acho
que eu absorvia aquele modo de trocar R por L e vice-versa e
os problemas com masculino e feminino: la pincel, la mar
(embora esta forma seja reconhecida pela Real Academia
Española) e sobretudo platicar (regionalismo mexicano
coloquial para conversar) no lugar de practicar (praticar). Já
falei rodillas (joelhos) quando deveria ser rueditas (rodinhas)
na mala e lectura (no lugar de charla ou conferencia) para me
referir a palestra. Nesta última vez, felizmente, a colega
hispânica falava bem inglês, deve ter associado a lecture e foi
compreendido.
Fora esses deslizes, nada que um hispânico depois não me
corrigisse ou que dias de convivência com estes me fizessem
voltar ao meu sotaque normal.


O outro brasileiro, embora cara de pau, falava um portuñol
tão ininteligível que, por vezes, ouvíamos baixinho na tradução
simultânea a voz chinesa que ia verter para o mandarim dizer:
no compreendo. Vazou o áudio...
Em algumas ocasiões, era motivo de piada (mas não
percebia) quando fala ligación (por llamada, ligação telefônica;
ligación seria um “tórrido affair”), pantalona (por pantalón, calça,
os hispânicos perguntavam se “pantalona” era a esposa do
pantalón..) e “tchêfe” no lugar de jefe (chefe). Perguntavam
sempre em que restaurante ele trabalhava... Mas, como disse,
quem é cara de pau acaba sempre levando vantagem e ele
conseguia muitas vezes ir mais além do que eu, com a
preocupação de tentar falar corretamente.


Orejón (literalmente, orelhão) mesmo significava “orelha
de abano” em espanhol e não uma orelha grande (como seria
numa tradução literal). Sutilezas da língua.
132

Pequim: seis “quadrados” concêntricos; no centro geográfico (primeiro anel), a Cidade Proibida
Pequim foi projetada com seis “quadrados” concêntricos
(chamados de anéis), sendo que no primeiro está realmente a
administração pública federal e municipal (não existe a figura do
governo provincial, mas, se tivesse, certamente estaria ali). É uma
estrutura bem antiga, que vem desde quando a capital do país foi
instalada na cidade. Portanto, anterior ao Comunismo e, mais além,
anterior mesmo à República.
O mais interessante é que no primeiro anel (onde ficam os três
Poderes, o mausoléu de Mao Tsé-Tung, a Praça Tianmen, o BC,
alguns Ministérios, enfim, o “cérebro” do país), o “olho” geográfico
está na Cidade Proibida, onde viveu um dia o imperador, verdadeira
cidade para nobres, mas proibida aos comuns.
Diferente do que se diz por aí nos guias de turismo, a Cidade
Proibida não é UM palácio imperial com luxuosos cômodos (como
a nossa Quinta da Boa Vista, Buckingham ou Versailles), mas um
complexo com vários “médios” palácios em que um era o quarto
do imperador, o outro era o da imperatriz, a outra, a ala das
concubinas; mais um a cozinha, mais outro palácio que era a sala
de jantar; o outro, a biblioteca; o outro, salão de baile; o outro, a
Chancelaria.... enfim... todos separados entre si por gigantescos
pátios internos.
133
Não formam um prédio único, diferentemente do conceito
ocidental de palácio. Todo esse complexo fica dentro de uma
megacidadela, devidamente fortificada com muralhas, bastiões
e guaritas. Tudo isso numa ilha (provavelmente artificial, ou talvez
“aparada” pelo homem, pois muito “certinha”) no meio de um
lago ou um rio, não consegui saber, que serve de fosso.
Além de uma estrutura extremamente radial a partir do
imperador, para o inimigo atacar o centro do poder, era preciso,
além de ultrapassar seis zonas de residências, respectivamente
dos moradores mais pobres e rurais até os mais poderosos (e
isso concentricamente, ou seja, de qualquer direção que o inimigo
viesse haveria os mesmos obstáculos), e, ainda assim, se chegasse
ao anel principal, teria que encarar uma ilha devidamente
fortificada até alcançar o monarca. Ou seja, vários já teriam
tombado (e provavelmente o governante teria sido retirado em
segurança) até o inimigo conseguir triunfar. Antes disso, soldados,
camponeses, fortificações, cavalos, templos e até a imperatriz já
teriam sido atacados antes do soberano.
Isso lembra muito um jogo chamado...
.
.
xadrez.

Cidade Proibida: complexo com vários palácios separados entre si por gigantescos pátios internos
134
Aliás, Shian Qi (pronuncia-se Xian Tchi) é xadrez em mandarim,
jogo bastante popular no país. Quando o cara vem mostrar como
é, trata-se daquele xadrez chinês (como conhecemos no Brasil),
que, por vezes, vem até como joguinho para crianças.
O xadrez, como o conhecemos, não é nada popular. Pouca
gente joga e menos ainda conhece. Quando o conhecem, o nome
é Guoji Shian Qi (xadrez internacional).
Ainda quanto à Cidade Proi-
bida, na penúltima semana,
soubemos haver, na periferia de
Pequim, uma similar, mongol,
muito anterior à que fica no
centro geográfico da capital
chinesa. Essa, mais antiga, está
em ruínas (segundo nos
disseram) e só pode ser vista de
longe, o acesso pelos pátios e
ruas, é restrito. Proibida mesmo.


Pequim não é a maior cidade
da China (nem em população e
Cidade Proibida: aguardando um rapaz, muito menos em território). Isso
a jovem nem viu que foi fotgrafada era uma ideia que eu tinha antes
de ir ao país. Em termos populacionais, a número-um é Xangai
(no sul, mais desenvolvido). Pequim é a segunda (no norte do
país, que só tem duas cidades de peso: a própria e Tianjin,
quase vizinha – existe uma cidade separando –, onde fica o
porto). O resto do norte é menos desenvolvido.
Em termos territoriais, a número-um é Sichuan (assim os
chineses me falaram), depois vem Shenzhen (onde fica uma
das Bolsas de Valores), depois Xangai... da quarta eu não me
recordo, mas Pequim (que também tem status de municipalidade;
não tem o governo provincial) é a quinta.
Ah, sim. E Hong Kong é infinitamente maior do que Macau.
135
Tive aulas particulares de mandarim, além das oficiais que o
programa oferecia, não porque o professor da universidade fosse
ruim (muito pelo contrário, tinha ótima didática e falava espanhol
muito bem), mas porque a carga horária era pequena e não daria
para aprender quase nada com só aquelas classes.
Por indicação da colega argentina, que contratava uma professora
particular que ia à sua casa, paguei a mesma garota, mas marcava
sempre no restaurante. Não sei como funcionava essa história de um
homem e, ainda por cima, estrangeiro e, sobretudo, ocidental, pôr
uma chinesa dentro do apartamento. Pode até ser uma coisa normal,
como no Rio, mas, na dúvida, para evitar algum possível problema,
preferia marcar sempre em um restaurante dentro do condomínio.
Outras pessoas também faziam o mesmo. É meio comum encontrar
chineses dando aula do idioma para estrangeiros (e vice-versa) nos
restaurantes e barezinhos na área de embaixadas em que morávamos
(mesmo nos estabelecimentos fora do condomínio).
No meu caso, a garota falava um inglês razoável, tinha boa
pronúncia, mas o vocabulário era beeeeem limitado. Perguntei se havia
aprendido inglês no colégio ou em cursinho e disse que aprendeu “na
rua”, “por aí”. (Aliás, coisa que não acontece ao contrário... não se
aprende mandarim “na rua” ou “por aí”, como acontece aqui no
Ocidente quando se vai para um país em que se fala outra língua).
Bom... fato é que, em geral, quando acabávamos as aulas, sempre
agendávamos (ou pré-agendávamos, porque eu ficava sempre no
aguardo da minha tabela oficial de atividades, por vezes recebida
em cima da hora) para a semana seguinte. Na China não há muito
isso de repouso aos sábados e domingos. Algumas coisas até fecham,
mas, pelo menos em Pequim, não ficava aquele marasmo que se via
nos nossos finais de semana no Brasil.
Fato é que perguntei se podia marcar sábado, como, aliás, já
havíamos feito algumas vezes. Ela disse que naquele sábado,
excepcionalmente, já tinha compromisso.
Perguntei, então, se domingo. Ela, então, disse: Never on Sunday.
136
Aliás, o ensino básico obrigatório na China é de cinco anos para
a criança ler completamente. Menos que isso, eles dizem, é impossível
aprender chinês. Mesmo assim, eles se gabam de, em apenas três
anos de Revolução (de 1949 a 1952), terem erradicado o
analfabetismo e todos já sabiam ler.
Alguma coisa não fecha nessa conta...


Eles costumam pular muitas coisas entre 1949 e 1976. Alguns
até falam dos abusos (assim mesmo) da Revolução, mas não entram
em detalhes. Saltam, na maior cara de pau, a Revolução de Mao
para Deng Xiaoping, herói no país. Aliás, lá existem heróis, mais
um daqueles tópicos que acho que esquerda e direita vão voltar
com opiniões trocadas. Só acho.


Ah, sim: e pouco falam em Henry Kissinger.


Já me ferrei tanto com
comida que eu achava que
era doce e era picante (e
vice-versa), que passei a
fazer que nem cachorro e
gato, cheirando antes de levar
à boca. Difícil errar depois
dessa.


137
Tive um almoço de domingo informal, improvisado de última
hora, com um grupo de angolanos, cabo-verdianos e gente de São
Tomé e Príncipe (PRRRíncipe, como eles falam) que moravam no
complexo. Ninguém jornalista, todos gente de negócios, das
respectivas Diplomacias ou até mesmo fazendo Doutorado.
Acharam que eu era português:
- Seu acento é igualzinho!
Ao que respondi:
- Eu ia falar o mesmo de vocês!


Já tinha acontecido algumas vezes e um dia de novo. Você
tenta dar um dinheiro “a mais” para facilitar um troco “redondo”
e eles não entendem como tal. Devolvem dizendo que tem
dinheiro extra e enchem você de moedinhas e notinhas de baixo
valor, mesmo quando têm visivelmente 10, 20 ou 50 iuanes
em caixa.
Fui pagar uma conta de 61 iuanes num mercadinho de noite
e, como, acima de 60, eu só tinha uma nota de 100, dei 111
(para me retornarem 50 redondo). O caixa disse que não
precisava e me devolveu 49 em uma de 20, duas de 10, uma de
cinco e quatro de um. Apontei para o caixa aberto (em que
havia uma de 50) tentei mostrar que, se eu desse 111, ele podia
me retornar 50. Não entendeu. No restaurante mais cedo
também foi assim. Na lojinha de eletrônica, no supermercado,
na hora de comprar roupa, material de limpeza, o que for... é
sempre a mesma situação. Em Pequim, em Cantão, em
Shenzhen, idem, ibidem. Não entendem que aquele dinheiro “a
mais” é para facilitar o troco redondo. Até os que já moraram
no Ocidente não compreendem que você está tentando facilitar os
dois lados (ele fica com o troco miúdo para vendas futuras e você
com menos volume na carteira).
Algumas semanas depois comentei isso com Tony, o chinês dono
do restaurante no subsolo, que falava inglês fluentemente e já havia
morado nos EUA. Ri e depois me diz:
“É porque você é estrangeiro. Acham que vai trapacear na conta.”
138
Houve outras situações que eles tentam “justificar” com
discurso bonitinho: por exemplo, ao entrar num elevador (a menos
que seja em visita oficial) é difícil acontecer de entrar um chinês
com você, eles cedem a vez. Dizem que “ficam tímidos” com
estrangeiros (aliás, eles também alegam timidez para não porem
suas fotos nos perfis do WeChat, nem do Face, quando o têm; em
geral, são fotos de costas, de flores, de paisagens... muito raramente
seus próprios rostos). Nunca fui enxotado de loja ou se recusaram
a me atender, mas acontecem umas situações sutis que, se eu fosse
distraído, diria que não fui discriminado.
Cheguei a cogitar que era por eu ser ocidental, mas soube depois
que com estrangeiros do Extremo Oriente é até pior: filipinos e
japoneses, por exemplo, são extremamente discriminados por lá.
E olha que os dois países têm relações diplomáticas com a China.
As embaixadas (sobretudo a das Filipinas) era pertinho até lá de
casa. No grupo da Ásia, inclusive, havia um jornalista das Filipinas,
mas não sei se passou algum sufoco por sua origem.


Em outra ocasião, numa das palestras oficiais, uma professora
doutora formada em Hong Kong começou a conferência em inglês.
Ótima pronúncia. Não fosse pelos traços chineses, falava igual à
mais fiel súdita da rainha da Inglaterra. Daqui a pouco, no auditório,
veio alguém da tradução, falou alguma coisa baixinho em seu
ouvido e ela disse depois ao microfone, ainda em inglês, que pedia
desculpas, mas que não podia continuar falando no idioma conosco.
“Por respeito aos tradutores” (sic), teria que seguir falando em
mandarim para que eles vertessem para espanhol. E assim foi feito.
Sorry.


Aliás, eles não sabem (já comentei aqui no livro) quase nada de
fora do seu país. Nessa mesma palestra, a professora falava do
número de acessos à internet em todo o mundo: China, EUA e
citou alguns países da África. No meio da lista estava a Eritreia.
139
Fez uma pequena pausa, disse que desconhecia o país, que achava
que era no Leste Europeu, questionou o que estaria fazendo ali.
Pedi um aparte, em inglês, disse que a Eritreia ficava, sim, na
África, era vizinha da Etiópia, à qual pertenceu por muitos anos.
Era um país que já houve um dia no passado, deixou de existir, e
voltou a ser soberano outra vez.
Agradeceu. E perguntou se eu era cidadão eritreu.


Falando em chineses que falam inglês, aliás, quase não há
professores estrangeiros na China, mesmo nas faculdades de
idiomas. Até vimos alguns (havia um jornalista peruano que foi
no intercâmbio de 2017 e lá na China, rompeu contrato com o
jornal do seu país e passou a dar aulas de espanhol para chineses -
afinal, dominava bem o idioma), contratado pela Beijing Foreign
Studies University (BFSU, onde estudávamos). Tanto que no grupo
de 2018, quando fui, a representante do Peru disse-nos que teve
que assinar um termo de responsabilidade de que, ao fim do
intercâmbio, voltaria a seu país para trabalhar como... jornalista.
Mas o fato é que, fora esse peruano e mais alguns que
conhecemos, o chinês parece-me que não gosta de ocidentais
falando em seu idioma para alunos locais. Preferem que cidadãos
nacionais formem-se nos outros países (vão estudar português em
Coimbra, espanhol em Havana, inglês em Londres...) para voltarem
e serem professores na China.
Assim, fica garantida a Revolução.


Decididamente, há uma China para o chinês e outra para o
estrangeiro. Isso é muito evidente o tempo todo, seja no interior,
seja na mais cosmopolita das cidades grandes.


Aliás, a maioria dos chineses que vai ao exterior, assim dizem
eles lá, quer voltar para a China. Questão de patriotismo. Qualquer
140
dia vou fazer essa pergunta para algum chinês de pastelaria aqui no
Rio para ver se é isso mesmo ou propaganda do Estado.


Vários já me acharam com cara de italiano. Já acharam até que
eu falava italiano quando estava falando português. Já me acharam
parecido com Al Pacino. Quanta honra!
Um dia, quando fui abrir minha caixa de correio, havia uma
correspondência grande, enviada ao morador do apartamento 11-
31 (o meu), escrita numa letra ininteligível, em que eu só consegui
identificar as duas datilografadas (à moda antiga) palavras finais:
Pechino - Cina.


Quando íamos ao sul, comíamos mais comida temperada, mais
gordurosa, bebíamos mais chá, quase nada gelado e menos bebida
alcoólica. Sempre perdia peso (talvez pela pouca cerveja). Vários
dos outros grupos (asiáticos e africanos) me achavam mais magro
quando eu voltava. O que é bom, já que, quando fizemos os exames
lá para concessão do visto de residente de curto prazo... eu estava
com quase 100 kg (99,7 kg, algo que nunca me havia acontecido).
Mesmo considerando calça jeans e blusão de lã (estava frio), vamos
abater 1,5 kg de roupa, eu estaria com 98 kg. Na mais otimista das
hipóteses, 95 kg. Nunca pesei isso em toda minha vida.
Além de sempre perder peso nessas viagens ao sul da China, a
mudança na alimentação também regulava meu intestino e depurava
o Y do padrão CMYK.
Quando voltava a Pequim, comia mais pratos (mais ou menos)
ocidentais (ou fazia em casa), menos tempero, mais secos, menos
chá, mais gelado e mais cerveja, voltava a constipação e depurava o
K do CMYK.


Falando nesses exames, não consegui saber se o hospital em que
fomos avaliados era público ou privado (que nem sei se existe lá),
embora aqui no Brasil parecesse mais padrão deste último. Na
141
educação, eu vi escolas privadas. No condomínio em que morávamos
havia uma, canadense. Mas saúde eu não sei. Soube que existem
coisas que são pagas (ainda que sejam na rede pública, se assim o
for): tratamento dentário, por exemplo. E oftálmico. E são caros,
muito caros. Tanto que é muito comum chineses com problemas de
visão (assim nos falaram, não dava para perceber que precisavam
de óculos ou não) e com problemas nos dentes, este último
muitíssimo comum até mesmo entre professores universitários,
jornalistas e até alguma gente da Diplomacia. No povão então
(operários, camponeses...) e nas cidades menores, é quase totalidade
com dentes estragados.
Mas quanto à educação, uma conhecida aqui do Brasil que é
educadora e petista até o último fio de cabelo até me pediu para ver
isso numa conversa que tivemos, mas não consegui saber.


Americano que morava no nosso no condomínio... cara bom
de papo, tocava violão, curtia muito jazz e muito de música latina.
Perguntei se conhecia alguma coisa da nossa. Só John Gilbert
(sic) e um outro nome que eu não entendia. Pedi para repetir e
continuei sem compreender. Pedi para escrever. Rascunhou:
Los Mucho Antes.


No minimercadinho no nosso prédio havia ovo de galinha (escrito
egg chicken), ovo de pata (escrito egg duck) e ovo... de ovo (egg œufs).
Perguntei e achavam que œuf era um animal, não “ovo” em francês.


Numa outra ocasião, fui fazer umas compras nesse mercadinho
do térreo e havia uma cliente do Gabão. A chinesa que atende falou,
em inglês, que sabia algumas pequenas coisas em francês (aliás, já
tinha dito isso uma vez).
Quando os três nos despedimos, meio que para agradar, fez o
gesto de “tchau” e falou, igual a um Teletubbie: OUÁÁÁÁ!
142

Shu Zài Zhuo Zi Shàng.


E você acha fácil The book is on the table, né?


Experimentei cerveja de abacaxi. Se é que dá para chamar de
cerveja. Talvez um fermentado alcoólico e gaseificado seja mais
adequado. O sabor do abacaxi é bem longe. Não chega a ser
ruim, mas é um pouco enjoativo, no final estava descendo meio
“empurrada”. Não sei se é porque eu já havia bebido uma cerveja
convencional antes, não sei se é porque eu estava só bebendo.
Mas... acompanhando (ou “harmonizando”) um prato de carne,
um churrasco, vai bem.


No minúsculo restaurante em que param muitos brasileiros,
na mesa ao lado, uma mãe (a cara da Carla Perez antes de ser
loura) com a filha, criança (que ia ficar igual) conversavam em
bom inglês com uma senhora aparentemente chinesa que também
dominava o idioma. Cheguei a achar que eram brasileiras, mas o
modo de falar os termos italianos era bem inglesado. De repente,
a criança deixou cair um troço na minha mesa, pediu desculpas
em inglês e perguntam de onde eu sou. Falei que era brasileiro.
A mãe disse para a filha em inglês: “Fala português”. Digo que
sim e a criança emenda também em inglês: “Fala português igual
ao Joaquim”. Não sei quem fosse o Joaquim, talvez algum amigo
português das duas. A mãe diz que não: “O português de Portugal
é totalmente diferente do português do Brasil”. Eu disse que
nem tanto. Que tínhamos contato com portugueses e que dava
para entender muita coisa. Que eu era neto de portugueses. Que
143
era como... francês da França e francês da Bélgica e da Suíça.
Disse que não, que são muito diferentes. Sim, já havia ouvido
dizer essa história de que na Suíça a diferença é tão grande que
se chama “franco-suíço” e não “francês”. Mas já li textos em
“franco-suíço” e sinceramente o pouco que já vi deu
perfeitamente para entender. E olha que não sou fluente em
francês. Talvez, comentei, pronúncia e vocabulário, mas que as
regras eram do francês. Falei, mais além, que isso também
acontecia no Brasil. Havia regionalismos no interior do nordeste
incompreensíveis para quem era do Rio, como eu, ou do sul do
país.
Foi aí que se apresentaram como francesas e a senhora com
quem conversavam como japonesa.
Mas ela e a filha, francesas de origem argelina.

Particularmente, acho escr*to isso no francês de quando o


cara é filho, neto, bisneto de alguém das ex-colônias ser sempre
lembrado como “franco-qualquer-coisa”, como se fosse um
francês menor. Isso já foi objeto de ensaio de uma escritora
marroquina (não me recordo do nome) criticando essa prática.
Lembrava ela que Nicolas Sarkozy, presidente na ocasião, era
filho de pai húngaro e nunca era lembrado como “o presidente
franco-húngaro”; citava também Charles Aznavour, filho de
armênios, mas que não era lembrado como “o cantor franco-
ar mênio”. Esse tratamento não era o mesmo dado aos
descendentes de imigrantes das ex-colônias, reclamava.
Lembrei rapidamente de Zidane, filho de imigrantes da
Argélia, que vai carregar para o resto da vida o rótulo de jogador
franco-argelino, mesmo tendo nascido em Marselha, na França,
a mesma cidade em que nasceu o ator Louis Jourdan, que é
sempre lembrado como galã francês.
Para mim, franco-argelino seria quem nasceu na Argélia
quando era colônia francesa. Na verdade e a rigor, seria tão
argelino quanto quem nasce lá até hoje, mas se quiser um
preciosismo, daria para aceitar essa classificação. Entre os franco-
argelinos estariam o ator Daniel Auteuil e o escritor Albert
144
Camus, mas, claro, como são brancos e certamente de nenhuma
raiz árabe, só são lembrados como franceses. O mesmo para o
ator Jean Reno, nascido no Marrocos, filho de pais espanhóis,
mas também sempre lembrado só como francês.
Essa escr*tice também foi comum nas ex-colônias britânicas e já
publiquei uma vez usando os rostos da cantora Sade e do ator Hugo
Weaving (o V, de “V, de Vingança”). Ela é lembrada sempre como
anglo-nigeriana (porque nasceu quando seu país era colônia
britânica), mas o mesmo tratamento não é dado ao lourão, sempre
citado como ator inglês. Ambos nasceram na mesma Ibadan, capital
da Nigéria, com menos de um ano de diferença. Aliás, entre o
nascimento de Sade, em 1959, e de Hugo Weaving, em 1960, houve
um evento importante no país: sua independência do Reino Unido.
Portanto, se alguém tem que ser considerada inglesa é ela e ele como
nigeriano, já que o país havia se emancipado.
Nem mesmo nos textos portugueses atuais, ninguém no Brasil é
luso-brasileiro por ser filho de português. Mesmo nas ex-colônias
africanas. Quem nascia em Moçambique ou Angola antes das
independências era considerado português (no máximo “português
de Angola” ou “português de Moçambique”, do mesmo modo que
se fala “português de Lisboa” ou “português do Algarve”. É só
lembrar de Ruy Guerra (se bem que eu acho que gosta de ser chamado
de moçambicano) e do jogador Eusébio, que inclusive está entre os
heróis portugueses. Depois da separação, levam seus gentílicos locais.
Nesse ponto, o britânico conseguiu ser hors concours. Só perde
para o francês, que ainda bota o rótulo até nos descendentes.

Bom... mas o fato é que, jogo jogado, não entrei na polêmica e


foi a hora de dizer os nomes, já que a garotinha me perguntou em
francês.
A mãe era... não me recordo e a criança era Leila. Falei, em
francês também, que é um nome comum no Brasil, inclusive em
pessoas que não têm origem árabe. Aí veio o problema de falar o
meu. Disse que meu nome era... Jean-Charles!
Perguntou se era meu verdadeiro nome, achou estranho um
brasileiro com nome em francês. Disse que era o equivalente em
145
português, mas que Jean era difícil de pronunciar em português,
então, que me chamassem de Jean-Charles, sem problema, topava
que traduzissem meu nome para facilitar. Ou que me chamassem
de Ji Cé (JC em francês) ou até de Jay Cee (minhas iniciais em
inglês), porque no meu trabalho mesmo eu era chamado de Jota
Cê, em português.
Foi quando perguntou como é Jean-Charles em português.
Falei que era João Carlos. E ela repetiu Juan Carlos, como o “ex-
rei” de Espanha (sou sempre lembrado por isso). O Carlos estava
certo, aliás, tinha boa pronúncia, mas Juan era em espanhol, em
português era João. Foi aí que ela fez biquinho e falou: Juan (à
francesa) Carlos.
Só me restou rir.


Aliás, os chineses – e, de certa forma, os estrangeiros como
um todo (talvez a exceção fossem os hispânicos) – achavam
curioso como eu, brasileiro, conseguia conversar perfeitamente
com gente de São Tome e Príncipe, Angola e Moçambique... na
mesma língua. Fato é que o colonizador português conseguiu
uma unidade que mais nenhum outro explorador conseguiu.


Papo rápido e algumas cervejas com Tony (aliás, Tong), dono
também do quiosque dentro do condomínio... surgiu o assunto
dos nomes em português e em espanhol. Falei que alguns eram
escritos e falados diferentes, como era o caso do meu João, que
em espanhol é Juan. Outros se grafavam iguais, mas as pronúncias
eram totalmente diferentes, como José. Outros, como o meu
Carlos, grafia e pronúncia igual (na verdade não é tão 100% igual,
mas como é compreendido e para facilitar...). Aí me perguntou
como é Robert. Falei que Roberto em português e em espanhol.
O jeito de falar o R é que era um pouco diferente, mais vibrante
no espanhol, mas que se entendia perfeitamente.
Perguntou como se falava em português Roberto Carlos (saiu
com uma pronúncia americanizada).
146
– Como??????
Seguiu em inglês:
– Roberto Carlos, do seu país. É muito popular aqui.
– Não pode ser.
Correu umas fotos no Bing e mostrou-me o jogador.
– Ufa!
Pensei que era outro, muito, muito famoso no Brasil e na
América hispânica (porque também cantava em espanhol, apesar
de brasileiro).
“Não sei quem é. Nunca ouvi falar”, disse, mas pediu para
correr mais fotos. Foi quando perguntou:
– Mas... wait a minute... Ele é índio?


Aliás, um jornalista de origem indígena de um país hispânico
que estava na nossa delegação também me perguntou o mesmo.


E um outro, peruano, também jornalista, também de origem
indígena a quem fomos apresentados num evento, também
perguntou o mesmo. E que só cantava “italianado”. É assim que
“entendem” o português do Brasil.

Desde que fui morar em Pequim, quase não dava mais descarga
no vaso. Enchia galões vazios com a água do ar-condicionado e
da lava-roupa para fazer descer os dejetos abaixo. Minha conta
não saía mais barata por isso (mesmo que água e luz viessem em
separado, o que não era o caso). Aliás, no mês de agosto a conta
veio bem alta porque trabalhei em casa, “estagiando” no Diário
do Povo e fez um calor fora do comum na cidade (os próprios
chineses reclamavam) e, por isso, tinha usado o ar-condicionado
muito mais que nos outros meses. Não me importei. Não me
importei também que desse muito mais trabalho do que apertar a
descarga. Tinha que encher os galões, ficar atento para não
transbordar, trocar o tubo de garrafão. Ou seja, tinha que monitorar
147

a lavagem e não ligar a máquina e deixá-la fazer seu trabalho sozinha


enquanto ia realizar outra atividade.
Além disso, era preciso, depois de encher o balde com essa
água, despejá-la no vaso sanitário. Não era nada demais, mas
envolvia mais etapas do que pressionar um botão assim que usasse.
E, quando chegava “apertado”, ia primeiro ao vaso para depois
voltar à área e realizar o resto. E, como disse, não tinha vantagem
financeira alguma, reconhecimento ou moção de honra. Então...
Por que eu fazia isso?
Não dá para aceitar a quantidade de litros de água que são
despejados fora pela lava-roupa e que ainda podem ter um último
uso antes do descarte final, que não necessita ser tão limpo.
É um desperdício jogar mais de 20 litros de água fora num
mundo em que se discute falta de saneamento básico.
O apartamento não era uma construção ecologicamente correta,
como também não é a casa em que moro no Rio. Não faço questão
de que seja. Na minha casa no Brasil ainda é pior porque a lava-
roupa fica numa espécie de nicho entre o tanque e a parede, para
tirar o tubo de esgotamento é realmente complicado, é preciso
arredar a máquina... realmente muito trabalhoso.
Tampouco sou um ecochato ou ativista de qualquer causa (todos
igualmente patrulheiros, em minha opinião), não estou fazendo
aqui militância para ninguém seguir o que faço.
148
Eu mesmo dava descarga talvez uma ou duas vezes por
semana, quando a água ficava muito escura ou quando eu tinha
visita. Se fosse visita todos os dias, não me incomodaria em dar
descarga eu mesmo ou que ela desse. Já li uma vez que no Rio dá
para se reduzir à metade a conta d’água fazendo isso. Mas, mesmo
sem desconto ou redução, acho que estava valendo do mesmo
modo.
Fica aqui o texto e na página anterior uma foto para pensar.


“Saúde!”, como brinde, em chinês é gan bei! (bei é copo, xícara
ou taça; e gan é virar). Ou seja, é o nosso “vira-vira-vira”.
Falou gan bei, tem que virar o copo de bebida alcoólica de
uma vez só. Se não for assim, não se brinda. Essa história do
nosso “saúde!”, dá um gole e depois para para conversar ou comer
não existe.
Como no Ocidente, não se brinda com bebida não alcoólica.
Também não se é obrigado a brindar, não se exige isso, mas se
brindar é gan bei e tem que virar tudo de uma só vez.
Se você não virar, só der uma bicada à moda ocidental, o
chinês do lado pergunta em inglês ou com a ajuda do tradutor:
“Você não vai virar, não?”
Ah! E dizem os chineses que os melhores negócios são
fechados depois de muitos “gan beis”.


Barzinho em frente à embaixada brasileira tinha numa quinta-
feira uma “noite latina”. Chegando lá, era um DJ com cara de
WASP, chapéu australiano, camisa havaiana e falando um sofrível
espanhol com R de americano, sozinho no pequeno palco,
dividindo espaço com a mesa de som virada para o salão, vários
instrumentos de percussão, um estandarte com a bandeira cubana
e a frase “Que linda es Cuba” e um telão atrás escrito El Manicero
(assim mesmo, errado, com C no lugar em que seria S). Parecia
aquele quadro do percussionista do Jô Soares (quando ele fazia
humor), que saía batucando nos objetos mais estapafúrdios, na
149
garrafa de cerveja ou na cabeça do vizinho e dizendo: “Sonou,
malandro, sonou”.
Além de pilotar a mesa, ainda saía batucando nos
instrumentos, descia do palco para dançar com a mulherada numa
pista em que ninguém se arriscava, ou ficava dançando sozinho
apitando no meio do salão, claro, entre uma canecada e outra de
cerveja.
Sinceramente, eu não entendi se ele estava sendo pago para
divertir os outros ou ele mesmo se divertir...


Quando fiz as malas para a China, coloquei um terno que
ainda cabia e um paletó reserva sobressalente, que, apesar de
apertado, quebraria um galho caso caísse uma taça de vinho ou
uma xícara de café acidentalmente no titular.
O primeiro, na verdade, não era um terno propriamente dito,
mas paletó e calça de cores e padrões bem parecidos que de
noite davam para passar como fazendo uma roupa só. Já os havia
usado em várias situações no Brasil, de casamento jet set a visita
de estrangeiros no jornal. Em mais de 15 anos nunca me deixou
na mão nas poucas vezes em que precisei de paletó e gravata.
Mesmo nesses seis meses do “intercâmbio”, cheguei a usar no
almoço de boas vindas do governo chinês junto ao pessoal das
embaixadas cujos jornalistas estão no programa. Saí na foto oficial
com ele, inclusive.
Mas percebi que estava na hora de comprar um novo, para
ocasiões muito formais. Para as demais, eles seguiriam firmes e
fortes.
Cotei preço e os primeiros que encontrei estavam na faixa de
1.000 iuanes (cerca de R$ 500). Pagável, mas um pouco caro
para o que eu recebia de subsídio. Além disso, em geral, eram
apertados, porque eles, os chineses, costumam ser magrinhos e
pequenos; você até vê gente alta (o da Diplomacia, que nos
recebia, por exemplo), mas é difícil encontrar um gordo ou,
minimamente, com este corpo “quadrado” que nós, latinos,
temos. Mais fácil ver um chinês alto do que gordo. (E como os
150
chineses comem! É surpreendente: muita fritura, muito doce,
causa espanto mesmo um chinês – ou pior, uma chinezinha –
magrinho/a conseguir consumir tanta coisa numa refeição).
Depois, porque eles amam ternos justos e pescando siri, parecem
saídos de uma tirinha publicada aos domingos num grande jornal
do Rio de Janeiro e/ou xadrezes (eles amam xadrez e madras),
ou risca-de-giz ou então com cores berrantes, mistura de Gangnam
Style com Agostinho Carrara juntos num filme de Almodóvar.
Sem falar que amam paletó cintado, troço que já saiu de linha no
Ocidente faz décadas.
Cheguei a separar os 1.000 iuanes, mas o fato de não ter visto
nada mais clássico e de ter precisado do dinheiro algumas vezes
para contas mais urgentes foi adiando o “projeto terno”. Até que
um dia, procurando bermuda de
jeans e camiseta para comprar
numas lojas de russos perto de
onde morava, entrei numa de
material esportivo em que
atendia um chinês que só sabia
falar sua língua e meia dúzia de
palavras mal pronunciadas em
inglês.
Revirando as araras em
busca de camiseta, apareceu
um lindo terno, perdido lá no
meio, azul-petróleo, corte reto,
Magrelos e longilíneos, chineses amam calça clássico e que parecia ser meu
pescando siri e cores berrantes tamanho (apesar de a
numeração chinesa – em geral, muito menor que a nossa – indicar
54, número muito maior do que visto no Brasil). Perguntei em
inglês se estava à venda, o chinês deve ter entendido e disse yá,
yá, apontando para o provador. Era um dia muito quente, eu
estava muito suado, não quis arriscar vestir. Botei o paletó
apoiado no ombro, coube. A calça eu medi dobrada ao meio
desde o umbigo até o meio das costas (coisa de tia-avó),
aparentemente coube. As pernas talvez estivessem um pouco
151
longas, mas nada que um alfaiate não ajustasse. Perguntei o
preço e o chinês falou yi ibá (100) iuanes (que dão R$ 50!).
Não podia ser. A diferença era muito grande de 1.000 para
100. Perguntei what e ele grunhiu ândred (hundred), digitando
na calculadora 100. Negócio fechado.
Negoçaço, já que a média de um terno (descobri depois)
era 500 iuanes.
Fui para casa, terno zero-bala, com cheirinho de roupa nova,
etiqueta de um fabricante desconhecido, me perguntando o
que aquela roupa fazia ali, no meio de numa loja de material
esportivo...
Semanas depois, resolvi, após o banho, enfim, experimentar.
Paletó perfeito. A calça, embora um pouco comprida e um
pouco apertada na cintura, fechava. Dava até para ser usado
em algum evento de urgência. Nada que um alfaiate não
resolvesse, o que, aliás, foi
providenciado a 20 iuanes (o
equivalente a R$ 10).
A surpresa veio agora:
quando fui realmente experi-
mentar o terno novo, descobri
no bolso traseiro da calça um
lenço usado (eca!); no interno
do paletó, um pente; e no
próximo à lapela uma caneta
e alguns cartões de visita.
No mês seguinte, estreei,
enfim, o terno. Pior é que
esqueci que os bolsos
externos do paletó (no Brasil
também é assim) vêm
costurados. Acabei tendo que
carregar um monte de coisas
na mão.
Com a nova vestimenta,
tive também que comprar
152
sapatos e cinto novos. A dificuldade foi em comprar um cinto
com uma fivela “normal”. Aí reparei que chinês ou não usa
cinto ou então é com aquele fivelão de cowboy americano.


Sobre os sapatos, além de a numeração ser totalmente
diferente da nossa (aliás, a nossa não se parece com nenhuma
no mundo, estavam até para rever isso), eles usam muito uma
espécie de couro molengo, desestruturado, mais ou menos uma
sapatilha, com cadarço (os cadarços são largos, todos eles),
meio com cara daquele 752 da Vulcabrás de amarrar, mas sem
salto. Há de várias cores e os chineses usam aquilo com tudo:
com terno, com bermuda, com calças jeans. Homens, mulheres,
crianças e adolescentes. Na cidade ou no interior. Não sei se
um dia fez parte de algum projeto socialista de todo chinês ter
que ter um sapato ou algo assim. Ou aqueles bicudos, com
cara de matar barata em canto da sala, como se fala brincando
aqui no Rio.
Foi difícil encontrar um sapato, sapato mesmo, sem cara de
tênis ou de sapatilha e que não fosse estiloso ou exagerado.
Achei um “meio” pontudo, mas razoável para meu gosto. De
couro. Por 200 iuanes (R$ 100).
Mais caro que o terno (que também, pudera, estava com um
preço irreal), mas um valor justo. Troquei os cadarços com o
do sapato preto antigo (que eram mais delicados) e pus os
grosseiros no velho. O problema é que o sapato tinha um
pequeno arremate, um acabamento, no primeiro furo do
passador de cada pé, um ilhós parecendo uma espécie de olho
de dragão, bem pequeno, de metal.
Em toda alfândega, revista ou raio-X aquilo apitava. E eu
tinha que tirar o sapato. Inclusive na volta, na conexão em
Dubai. Aliás, foi uma das primeiras coisas que fiz quando
cheguei ao Brasil: com muito cuidado e um alicate de bico retirar
aquele arremate com cara de olho de dragão.
153
Outra coisa que sempre esbarrava nas revistas era minha capa
de óculos. Como só usava apenas para leitura, nem sempre estava
com eles no rosto e quase sempre levava-os no bolso. A capa
original, de pano, estragou tão logo os óculos me chegaram da
ótica. Na época, minha então esposa me arrumou uma caixinha
bacana, que havia sido de uns óculos escuros seus que haviam
quebrado. O problema é que fazia muito volume no bolso e
ocupava espaço na minha pasta de trabalho. Acabei conseguindo
uma bem jeitosa numa sucata na casa de meus pais, que, na
verdade, era para aqueles óculos meia-taça. Os meus, de leitura,
na verdade, eram de tamanho normal, redondos, havia
aproveitado uma armação que eu tinha em casa.
A capa que me acompanhou era estreita, de um material
sintético imitando mal couro (nem sei se posso escrever isso,
há uma lei que diz que o termo “couro” só pode ser usado se
for efetivamente couro) e que, no lado oposto ao da abertura
por onde se inseriam os óculos, tinha um cortezinho em diagonal
para a perna (haste) dos óculos dobrados passar e ficar “de
fora”. No início, como os óculos não eram meia-taça, entravam
muito justos ali. Depois, com o uso, acabou servido para mim
por mais de ano, inclusive nessa viagem à China. E o principal:
não fazia volume e cabia até no mais raso dos bolsos da
bermuda.
Era batata: em toda vistoria, alfândega ou até no simples
detector nas estações de metrô, iam me apalpar e pediam, numa
língua que eu não entendia, para retirar o objeto suspeito.
Estava lá: a capa de óculos com óculos dentro! O chinês sorria,
quando muito falava sorry e lá ia eu pronto para outro raio-X.
Até que um dia, numa viagem, perdi essa capa no saguão do
hotel em que estávamos em Yangzhou. Quando dei por falta,
já estava no restaurante do mezanino. Até voltei ao local onde
havíamos estado sentados, no saguão, mas... nada. Falei na
recepção (falavam inglês bem), perguntei durante a nossa estada,
mas... algum chinês deve ter gostado. E provavelmente vai
sofrer o mesmo constrangimento a cada revista pela qual passar
pela frente... Que seja feliz!
154
Falando em óculos, se eu soubesse que ia ter que fazer novos
assim que voltasse ao Brasil (meu grau aumentou muito, sobretudo
na média distância), teria comprado as armações que vi por lá.
Numa outra viagem interna, entrei com mais alguns hermanos
numa ótica de rua para fazermos hora para o evento em que
íamos. Vi algumas bem interessantes: 16 iuanes (R$ 8). As um
pouco mais caras, 50 ou 60 iuanes (R$ 25 ou R$ 30) e as muito,
muito, muito caras 250 ou 300 iuanes (R$ 125 ou R$ 150).
Cheguei a pensar em comprar. Depois achei que seria futilidade
demais, que não teria uso, que ia ser um gasto (ainda que
pequeno) à toa, que ia me encher a mala, pesar na bagagem e...
devolvi.
Logo que cheguei, quando fui fazer óculos novos... penei para
conseguir uma armação mais em conta (até tentei aproveitar a
antiga, mas não ia suportar mais) e o mais barato que consegui,
chorando muito, foi R$ 170.
Ah... se eu soubesse...


Ainda sobre vestimenta: perto da universidade em que
estudávamos mandarim havia, do outro lado da rua, uma cafeteria
e umas lojinhas de roupas. Entrei para dar uma olhada, fazendo
hora e realmente os preços das camisas de botão eram beeem
convidativos e as estampas, a meu gosto. A chinesa (vendedora,
gerente, sei lá), que só falava mandarim quando me viu
escolhendo nos cabides, chegou perto e dizia fazendo gesto de
grande com as mãos: Meiyou! Meiyou! (Não tem). Aliás, tudo ali
era meiyou para mim.
Comentei com o grupo. Só um dos hermanos é que se deu bem
na loja, porque era baixinho e magrinho. Fez a festa com as roupas
que não me serviriam.


Aliás, ainda sobre roupa, quando estive em 2017 no país,
para uma semana somente, levei alguns casacos, bermudas,
155
camisetas... e acabei não usando. Só serviu para fazer volume na
bagagem. Como daquela vez fiquei sabendo que o clima em
Pequim não era muito diferente daquilo, desta segunda não me
preocupei em levar bermudas e camisetas. Além do mais, teríamos
visitas e entrevistas oficiais, não creio que ambas fossem a roupa
mais usual nessas situações. Apesar de ter várias aqui no Brasil
(são meu “uniforme oficial” quando não estou trabalhando), não
levei nenhuma.
Mesmo assim, comprei uma de cada para ficar em casa ou
sair por ali por perto. Daria para os seis meses (até porque eu
tinha várias no Brasil) Mas em agosto, auge do verão no
Hemisfério Norte, mudei de opinião e tive que correr às pressas
para conseguir duas peças.
Foi nesse dia em que aconteceu essa história do terno. E nesse
mesmo dia entrei efetivamente numa loja em que eu passava
sempre em frente. Jurava que era uma loja de roupas. Mas não
era. Vendia “apenas” botões de terno de vários modelos (tanto
para fechar como para o pulso), cabides, etiquetas de pano,
etiquetas de papel, caixas e bolsas. Da Armani, da Gucci, da
Givenchy. E também da Armoni (sic), Cuggi (sic sic) e 61Wenchy
(sic sic sic).


Mais além: falando em produtos de renome, nem todos os de
marca baratos que você vê na China são necessariamente falsi-
ficados. Há os que são excesso de produção. A marca ocidental
encomenda coisas na China, dada a mão de obra barata. Eles
fabricam mais do que o encomendado. A empresa recusa aquele
excedente não contratado. É aí que eles escoam no mercado
interno (e até externo), por preços bem mais baratos do que o
que leva a marca original.


Minha cabeça “bugou” algumas vezes. Certa feita, fui fazer
um pedido em francês para o dono do restaurante e soltei con no
156
lugar de avec (com no idioma). Por duas vezes, inadvertidamente.
O cara fez cara feia. Pedi desculpas. É que con é b*baca, idiota,
termo grosseiro em francês...


Chinês pediu ao tradutor que nos intermediava a conversa
para dizer que eu parecia com um ator famoso. Se podia dizer
qual.
– Claro.
– Mr. Bean!
– P*ta que pariu! Eu?
– Sim, o nariz e os olhos grandes.
Decididamente, todos os ocidentais são iguais aos olhos dos
chineses...

Conhecem o termo “pudim de cachaça”? Na China existe.


Uma espécie de arroz doce feito a partir de um fermentado
alcoólico do próprio arroz.
Pega, viu?
157
No intercâmbio no “Diário do Povo”, eu via que o jornalista
português esforçava-se por vezes para que eu o compreendesse.
Tentava usar termos nossos, mas achava estranho eu falar “chegar
em casa”. Eles falam “a casa”, mesmo no coloquial. Só uma pessoa
ligada à embaixada de Angola (filha de pai cubano e mãe angolana)
é que vi falar “em casa”. (Aliás cometi uma “bola fora” porque uma
vez pediu para eu lhe chutar a idade – sempre fui ruim nisso – e
acabei dando a ela uns 10 anos a mais... tive que me desculpar).
Mas, voltando: aqui no Brasil há uma explicação porque nós,
brasileiros, “chegamos em casa”, seria influência do francesismo
chez (em casa de): chez moi, chez toi...
Fato é que escrevo chegar em casa, mesmo em textos formais.
Chegar a casa, para mim, é muito “duro”, parece que está faltando
algo “chegar à casa do João”... Ao apartamento, ao trabalho, à casa
de João, de Maria, de Pedro... mas à minha casa (sem o possessivo
“minha”)... acaba ficando em casa. É como se usa no Brasil.
Além disso, soube que em Portugal, nos anos 90, passava
“Esquadrão Classe A” com a nossa dublagem. Deve ter sido depois
de 1991, quando estive no país.
Mas o fato é que, quando o português esforçava-se por vezes
para que eu o compreendesse, eu dizia: pode falar no seu ritmo e
com as suas palavras. Eu entendo bem portugueses falando.
Foi quando ele brincou:
– Ah, entendes bem? Então, vou fazer-lhe um teste. Sempre
fazemos isso quando um brasileiro diz que nos entende. O que quer
dizer culxtrol?
– Quê?!!!
Os dois, o português e o chinês que havia aprendido nossa língua
em Moçambique, entreolharam-se e riram.
– Culxtrol, ué?
– Bom. Eu conheço Castrol, marca registrada.
– Vou soletrar como vocês falam: CU-LEXX-TE-ROL.
Culxtrol, viu? É que vocês, no Brasil, esticam muito as sílabas!
– Curioso, a gente acha que vocês, em Portugal, “comem” as
sílabas.
O que é o referencial, não é mesmo?
158
Você acha que chinês tem olho pequeno e o nosso é “normal”.
Eles acham que os deles são “normais” e os nossos são grandes.
Você acha que eles são pelados; eles acham que nós somos
peludos.
Você acha mandarim complicado; o chinês acha que a estrutura
das línguas latinas é difícil demais.
Você acha um século muito tempo e os chineses consideram
poucos anos: “A cerveja entrou na China há pouco tempo.” Você
pergunta quando e ele diz “antes da I Guerra, em Tsingtao, ex-colônia
alemã”. Idem para as fraldas, que entraram há 40 anos, com a abertura
(mesmo assim tradicionalmente, eles usam em suas crianças um
peça de roupa chamada kai dang ku, que é uma calça com uma espécie
de “braguilha” sempre aberta atrás. Sentiu vontade de defecar, agacha
e faz ali na frente de todos, seja onde estiver. Depois falo disso.
O mesmo para a roupa de noiva ser branca (tradicionalmente o
branco é luto no Extremo Oriente e casais usam vermelho, porque
significa boa sorte e felicidade). Entrou há pouco tempo... 40 anos.
Já 40 anos é muito tempo para angolanos e moçambicanos
quando se referem à saída dos portugueses de seu país. Por isso,
dizem o sotaque ser tão diferente de Portugal (embora para brasileiros
ambos soem tão parecidos...). Para nós, não é quase nada, já que
deixamos de ser colônia no século XIX!
Você acha o nome do jornalista do Sri Lanka difícil. E o jornalista
do Sri Lanka diz que é comum, que difícil é... João!
Você acha que árabe escreve ao contrário. E o jornalista do Egito
diz que quem escreve ao contrário é você!


Aliás, através desse jornalista do Egito, fico sabendo que a única
palavra que sei em árabe (salam, paz – com a variante salama’lek e a
resposta alek salam, que deu origem ao termo em português
salamaleque, para reverência –, mas usado para “bom dia”, “boa
tarde” e “boa noite”) é uma saudação muçulmana. E, em seu país,
quem não é muçulmano não gosta de saudar assim. Usam sabah el
khair para “bom dia”; e massal khair para “boa tarde” e “boa noite”.
159
Aliás - II: Fico sabendo pelo jornalista do Sri Lanka que seu
país, além da colonização inglesa, teve anteriormente holandeses e
portugueses. Falei que no Brasil só houve portugueses.
Que bobeira a minha! Depois me lembrei que tivemos holandeses
e franceses aqui em Pindorama. Tentaram, não conseguiram, mas
deixaram suas marcas.


Aliás - III: Falando em roupa de noiva, quando fui em 2017,
paramos, num dia corrido de visitas, num mega-hotel para almoçar.
Ao subirmos para o andar em que era o restaurante, passamos por
um salão em que estava havendo um casamento. Nem sei se era
religioso (havia megapôsteres nos corredores com fotos do casal,
com roupas de noivos à moda ocidental); havia gente de um lado e
de outro de um corredor principal, em que, ao fundo, o casal ficava
de costas para o público e de frente para um homem de cabeça
raspada que “comandava” a cerimônia). Vários hispânicos
adentraram para sair fotografando. Eu me recusei, achei aquilo uma
invasão (fosse casamento budista, civil ou ateu). É um momento
do casal, do ministro (que seja) e seus convidados, não de
tresloucados estrangeiros de caras iguais e olhos grandes, vestidos
inapropriadamente para o evento, saírem “captando” suas imagens,
sem falar ou desejar nada ao casal e irem embora. Achei um abuso.
Mas o fato é que realmente predominava o vermelho.
Nesta segunda vez, em 2018, fomos a um museu da roupa ou
algo assim. Realmente a roupa dois noivos é vermelha e meio igual
até nos enfeites para homem e para mulher (para elas é um pouco
mais detalhado): um quimono (pareceu-me de um tecido grosso).
Detalhe: a “amarração” do quimono é como usamos as camisas,
casacos e paletós no Ocidente: para os homens, o quimono amarrava
da esquerda para a direita; para a noiva, trespassava ao contrário.


O jornalista do Egito me falou uma vez que pouso sabia do
Brasil, mas que gostava de dois presidentes nossos. Perguntei quais.
160
“Temer, porque é um dos nossos”, referia-se, pelo fato de ser
árabe. “E Da Silva, porque acabou com a fome no seu país”.
Da Silva é Lula e é triste saber que essa enganação que não
temos mais fome no Brasil tenha chegado do outro lado no mundo.
Não só esse egípcio, mas também chineses acham isso. Aí você tem
que explicar que existe um subsídio do governo (o Bolsa Família) e
se você ganhar R$ 55 (na época, o valor mínimo) – converti para
dólar – você não é mais considerado faminto.
“Mas R$ 55 não dá para nada”, eles todos dizem.
“É, mas é considerado ascensão social”.
É triste ver o desserviço que o Ipea fez criando novos parâmetros
(ideológicos) para as classes sociais. Pior: essa história enganou a
ONU (por serem números oficiais), que propagou essa mentira pelos
quatro cantos do mundo...


Sobre presidentes brasileiros, tanto o português que era repórter
n’O Diário do Povo como o editor chinês (que aprendeu português
em Moçambique) haviam feito uma vez (antes de eu chegar) uma
matéria sobre lei trabalhista no Brasil e tiveram que pesquisar quem
havia sido Getúlio Vargas, porque nunca haviam ouvido falar até
então.


Também era curioso porque pronunciavam o P de “sumptuoso”.
E o mais engraçado: falavam “velhote” como termo corriqueiro
quando falaríamos “idoso”, ou carinhosamente, “velhinho”. Os
angolanos também. Aqui no Brasil alguém evocaria o Estatuto do
Idoso por muito menos.


Falando em “Diário do Povo”, fui eu sair na rua com o crachá do
jornal todo em mandarim, que por várias vezes vinha algum chinês
falar alguma coisa comigo que eu não entendia.
Devo ter ficado com uma cara de chinês, porque vinham falar
com se eu fosse nativo!
161
Barzinho em frente à
embaixada começou a ficar
intelectualizado e trocou as
prateleiras de bebidas por muitas
de livros que você podia levar
para casa, inclusive. Ou até
deixar coisa lá. Tem até “100
Anos de Solidão” em mandarim
(capa bilíngue) e Hong Hé Hei
(“O Vermelho e o Negro”),
também só a capa bilíngue.
Gerente do bar que pouco
falava de inglês me perguntou se
o livro era alemão (Shuo shi dayu
ma?). Falei que não era dayu
(alemão), era fayu (francês).
O cara digita no tradutor uns caracteres que estavam na capa
e pergunta “Não é alemão?”. Quando vira a tela, a palavra
(traduzida) que ele achava era... Stendhal (o autor francês).


No mesmo barzinho, alguém deixou um para troca, em
espanhol com uma dedicatória assinada por um certo Pepe. O
gerente me pergunta num inglês sofrível se está em espanhol,
digo que sim; depois me pergunta o que é Pepê (sic). Disse que
Pepe (e não Pepê) é o apelido em espanhol para José (“Hossê”).
Perguntou se em português também era Pepê (sic outra vez). Falei
que não, em português José virava Zé.
- Zé? - saiu uma pronúncia perfeita e deu uma risadinha.
- Sim, José vira Zé.
Começou a rir igual a um doido e ficar repetindo igual ao
“Barboooooosa”: “Zé! Hahaha. Zé! Zéééééééééé!!!! Hahahahah”.
(...)
No mês seguinte, estivemos em Dunhuang. Quis tirar uma
dúvida sobre isso. Perguntei para o intérprete chinês para inglês
162
que existia um nome no Brasil e se parecia com alguma coisa em
mandarim.
– O som Zé... significa alguma coisa em mandarim?
– Zé? - saiu uma pronúncia perfeita outra vez. Nada, disse.
Não, sem antes dar uma risadinha igual ao gerente do
restaurante...
Perguntei outra vez em outro lugar a outra pessoa o que queria
dizer Zé. Disse que em português era o hipocorístico para José.
Fiquei de novo surpreso com a pronúncia perfeita. Disseram que
não queria dizer nada. A tradutora pedia para escrever em pinyin
(transliteração para o alfabeto latino). Escrevi no guardanapo:
ZÉ.
Bom... diz a tradutora, Z com E, em mandarim, faz TSÂ – e
não Zé (pronúncia perfeita outra vez) – e é a gíria para homem
mulherengo.
Mc Donald’s, Burger King
e outras redes adaptam seus
pratos aos paladares locais.
Em Portugal, por exemplo, o
Mc Donald’s parece que
oferece sopa no copinho
(assim li, quando eu estive lá,
em 1991, ainda não havia a
rede no país), porque havia
feito uma pesquisa e descobriu
que na Europa eram os
portugueses os que mais
consumiam sopa no conti-
nente.
No Nordeste do Brasil, o
Mc Donald’s serve água de
coco.
Bom... depois de um voo para mais do que atrasado, a
organização nos providenciou um KFC, à guisa de jantar.
Caímos dentro, é claro. Mas... PQP! Como era apimentado!
163
Essa história foi realmente coincidência, mas, se fosse uma
fábula, teria terminado assim:

Chegando ao prédio em que morava, vejo, já dentro do


condomínio, uma senhora chinesa falando ao celular, perto de
um jardinzinho e acenando para alguma coisa lá no meio das
plantas. Olhando melhor, era um gato que não dava a mínima
para ela. Parecia estar dormindo e assim continuou na mesma
posição. Quando passei em frente, fiz o pspspspspssss e o gato
se levantou, vindo até mim.

Moral da história... Se isso fosse uma fábula de Esopo, o gato


falaria:
“Nesse cara de olho grande eu confio. Em quem come até
cachorro, melhor me fingir de morto”.


Falando em cachorro e em animais de rua, tive a frustação de
não ter visto, em seis meses, nenhum cão pequinês em Pequim.
Queria ter fotografado, mas... não deu.
164
CAPÍTULO VII
NÃO ME XINGAI, MAS XANGAI
É UM THE BUND

B em-vindos a Xangai! Fala inglês como no Ocidente; tem


café como no Ocidente; tem internet livre como no
Ocidente. Ops...


Xangai é a Paris da Ásia. Segundo os chineses.

Sexshop em Xangai: cidade bastante ocidentalizada, tanto na arquitetura como nos costumes
166

The Bund: a margem do Yangtzé que foi colonização inglesa


Até hoje não sei porque Ibrahim Sued dizia que estava Xangai
quando se referia a algo brega, feio. Garanto que nunca esteve
nem na parte velha da cidade. (Aliás, quando eu comentava isso
com os árabes da delegação... sobre no Brasil ter havido um
jornalista de origem libanesa que falava desse jeito... todos
estranhavam o sobrenome Sued. Diziam ser estranho à sua
língua).


Mas... voltando a Xangai: a cidade fica dos dois lados do Rio
Yangtzé, que faz ali uma espécie de cotovelo, quase um Y. No
vértice do meio, a parte nova, totalmente futurista, parece Marte.
Na outra margem, como se fosse de cada lado do Y, bastante
herança ocidental (embora com um toque deles): um dos lados
foi semicolônia (sic) inglesa. O distrito virado para o rio mantém
até hoje o nome de The Bund. Um desbunde, com o perdão do
trocadilho. Lindíssimo e imponente. “Não me xingai, mas a cidade
é um desbunde”. Foi o que me veio à cabeça para um poema que
nunca saiu.
Do outro lado, embora bem menor, houve colonização
francesa. Protetorado, eu acho. Não ficou resquício do idioma
(ao contrário do inglês, nos dois pontos), mas há herança
arquitetônica. Achei mais simples e aconchegante do que a
167
imponência inglesa. Enfim, eu me identifiquei mais. Além do
inglês (dos dois lados) não falam mandarim, falam xangainês,
uma língua local (mas que, como todas as outras que não são o
mandarim, tem status de dialeto, já falei anteriormente sobre isso).
A palavra “Shanghai” mesmo quer dizer, na língua (não oficial)
deles, “perto do mar”.
Do lado francês, um dos primeiros lugares apresentados é o
prédio que serviu como sede inicial do PC, estourado por
denúncia de um vizinho nos anos 20. Afinal, foi ali que tudo
começou, muito antes de triunfar a chamada Revolução de 1949.
Originalmente, é um casinha simples, bem simpática, de frente
de rua e revestida de tijolinhos (amarração inglesa, como
chamamos aqui no Brasil), decorada à moda dos anos 20, um
museuzinho no qual você passa pelo meio. Sem cara de museu.
Parece realmente que era um escritório, alguma coisa funcional
e todo mundo foi abduzido. Arrumaram como era na época: um
rádio, uma máquina de escrever, uma mesa de reunião com
algumas (não todas) cadeiras meio fora de lugar. Como se alguém
tivesse ido buscar café (chá, no caso) e não voltou. Bem
interessante. Atrás, um prédio novo, anexo, onde há realmente
um museuzão sobre o PC, toda a história e muitas, muitas fotos.
No final, numa galeria, há vários quadros com as formações

Do lado francês, museu do Partido Comunista, no prédio que foi sua primeira sede
168
originais do Partido, que eles não cansam de indicar: “olha, essa
foi a primeira mulher a ingressar no PC”... “este aqui foi o primeiro
da etnia tal (não me recordo qual, mas não era da han, a
majoritária) a aderir à causa”...
Mas realmente meus olhos bateram num quadro com um
ocidental que havia no meio de tantos chineses. Depois me
disseram que era alguém do PC soviético (não se lembravam do
nome) que foi à China e engrossou o quadro de intelectuais do
Partido local. Mas, quando fiz a pergunta sobre quem era, tive
que ouvir piada sobre ser “eurocêntrico”...


Ainda em Xangai, no café da manhã do hotel, a jornalista
mexicana que estava em minha mesa falou-me em espanhol:
“JC, há um casal ali falando português”.
Tentei prestar atenção... “Não, não é português”, respondi.
“Ah, é sim. Tenho certeza. Eles falam igual a você.”
Falei que a igual a nós (eu e o outro brasileiro) não eram, talvez
fossem portugueses, mas estava bastante difícil de entender.
Olhei bem para os rostos... a mulher lembrava um pouco nossa
Lília Cabral, embora mais gordinha. O senhor era bem semelhante
ao falecido pianista José Iturbi, espanhol.
Tentei fazer leitura labial na conversa dos dois... talvez algumas
palavras que a mulher falava até dessem para ser entendidas longe...
já com o homem estava bastante difícil.
A jornalista mexicana (que falava zero de português) provocou:
“Vai lá, JC, pergunta se são do Brasil”.
Desafio aceito: “Vou, mas do Brasil garanto que não são”.
Cara-de-pau, fui até a mesa, pedi licença, identifiquei-me como
brasileiro, acho que compreenderam mais ou menos, e perguntei
de onde eram. Não entendi a resposta. E também eu tive uma
dificuldade enorme em me fazer entender pelos dois.
Escrevi no guardanapo de papel do casal, repetindo oralmente
palavra por palavra, quase escandindo as sílabas, tentando forçar
um sotaque de português ao escrever, lendo: “Sou-do-Bra-sil. Vi-
que-vo-cês-fal-am-por-tu-guês. De-on-de-são?”
169
Ufa! Fui entendido. Foi quando o “José Iturbi” falou:
– MDZHAIRA! (Ilha da MADEIRA).


Outra situação digna de “Show de Truman” que nos aconteceu
em Xangai foi num coquetel a que fomos. Dentre as músicas
clássicas que um quinteto de câmara tocava, executaram o tango
“Por uma cabeza”. Depois disseram que não sabiam que havia
argentinos (uma delas, tangófila) no grupo. Sei...

Torre de Xangai: piso de vidro a 632 metros de altura; confesso que a sensação não é das melhores

Ainda na cidade, eu me perdi do grupo na saída da visitação


à Torre de Xangai. Eu me distraí fotografando uma loja de
souvenirs na saída do ponto turístico e... quando vi, o ônibus já
tinha ido embora. E estava sem internet no telefone. Sufoco
para mim e um pouco também para eles que voltaram para me
buscar. (Aliás, eu também me perdi na viagem a Nanquim; fiquei
170
conversando com uns mexicanos e outro brasileiro de um outro
grupo – o de palestrantes – e quando vi... onde estava o nosso
micro-ônibus? Essas duas perdidas minhas foram motivos de
muita gozação na nossa delegação).
Mas, voltando a Xangai, o lado bom é que falam inglês
fluentemente (embora não seja língua oficial) e pude saber
para onde o ônibus nosso havia ido. Depois, foi só esperar no
lugar, que acabaram voltando, ao perceberem que faltava um.

O lado moderno de
Xangai: nem
influência inglesa,
nem francesa
171
Na Torre de Xangai, uma jovem oriental, toda estilosa, de
chapeuzinho-coco e muito bem arrumada, vestia uma camiseta
com a figura de prisioneiros num campo de concentração
durante a II Guerra. Embaixo, a palavra Awestruz (assim
mesmo, em vez de Auschwitz).


Aliás, falando em chapéu, aquele cônico, de palha, quase
não é visto nas cidades grandes, onde a população se veste de
modo mais ou menos ocidentalizado. Aquela figura do chinês
de bata étnica (de amarrar) com a cobertura é mais presente no
interior. Nas metrópoles, outras etnias que não a han (a
majoritária), mesmo que mais tradicionais, acabam adotando
camisa, calça e sapato ou tênis (ainda que o gosto seja duvidoso
aos nossos olhos). Mas, nas cidades grandes, esse chapéu
característico do país persiste em trabalhadores que ficam
expostos ao sol por horas. É comum vermos jardineiros,
operários (quando não estão com capacetes) e garis (que, pelo
menos, em Pequim, usam jaleco e calça de brim laranja, como
no Rio de Janeiro) com essa cobertura.

Nas grandes cidades, é possível ver o chapéu cônico, de palha, em jardineiros e garis
172
Se a China fosse o Brasil, Xangai seria São Paulo;
Salvador seria Nanquim;
O Rio teria sido Chongqing;
E Brasília, Pequim.


Quando estivemos nesses 10 dias em Xangai, um dos prédios
(fechado havia algum tempo) atrás do condomínio (mas já fora
dele) em que morávamos em Pequim estava totalmente diferente.
Quando partimos da capital, ele (em formato de L, numa esquina)
estava sendo desmontado (isso mesmo, desmontado, não
demolido): afinal, a estrutura era de aço e as paredes, de drywall.
Quando voltamos, um das “pernas” do L já não tinha mais o
último andar e o penúltimo (agora último) piso dessa face estava
terminando de ganhar uma varanda com um jardinzinho. Isso
tudo em 10 dias apenas. Quando estava para voltar ao Brasil, o
prédio, que havia sido amarelo no início desse intercâmbio, já
estava branco, com janelas em fumê e os jardim cheios de plantas.


Uma das coisas de que mais senti falta na China, ao longo dos
seis meses, foi o café. Exceto por Xangai, totalmente
ocidentalizado – tanto na arquitetura como nos costumes (tem
até sex shop!) –, quase não se bebe café no país. Quando o bebem,
nas cidades grandes, é a juventude quem o faz. E é caro. O café
“entrou” para valer por lá faz 40 anos, depois da Reforma e
Abertura, em 1978. Portanto, gente da minha idade quase não
consome café. Até existem Starbucks – e uns “genéricos” com
logomarca igual e nomes semelhantes (a cara dos chineses) – em
Pequim, sobretudo nas áreas onde há mais estrangeiros, mas são
caros. E horríveis. Vêm do sul do país. E, salvo engano, alguma
coisa do Vietnã.
Até vi na universidade em que estudávamos mandarim, logo
que chegamos ao país, uma caixinha de madeira de Cafedo Brasil
(sic), assim mesmo, com esse erro de português. Sabor muito,
muito diferente do que é vendido aqui, ainda que pese aquela
história de que “os melhores grãos são exportados”. Vi também
outra igual no Departamento de Espanhol e Português da
173
instituição, quando fui entrevistar as chinesas que estudavam
nosso idioma. Depois soube pelo representante da Costa Rica
(um argentino, aliás) que também havia um Cafede Costa Rica
(sic), que ele foi beber e era também horrível. E que nem vinha
de seu país, era uma marca patenteada de um café chinês.
Provavelmente, o mesmo acontecia com o Cafedo Brasil (sic).

Fui apresentado à representante da Cruz Vermelha em


Pequim., um sueca que falava vários idiomas, até arranhava
espanhol, mas zero de português. Quando disse que eu era
brasileiro, falou que já havia estado na do Rio... na “Crux Rótcha”
(sic). Ainda perguntou: “não é assim em português?”. Também
falava “gracioso”, quando queria dizer “obrigado”. Sabia que
não era gracias, como em espanhol, mas acabava falando um
idioma próprio, que soava como língua neolatina, mas que só ela
entendia. Gracioso em português é formoso e em espanhol,
engraçado. Jamais agradecimento.


Mais ou menos a mesma situação de quando estive na China
por uma semana em 2017. Uma representante argentina, quando
eu disse que era do Rio, falou que já tinha estado aqui e gostado
muito da cidade. Inclusive, sabia falar alguma coisa de português.
Soltou meia dúzia de palavras ininteligíveis que nem mesmo eu,
174
carioca, conseguia entender. Depois, em espanhol, disse que os
amigos surfistas da cidade falavam assim. Deviam ser aquelas
gírias de praia aqui do Rio: “coé”, “mermão”... faladas com aquele
ítalo-arrastado sotaque portenho. Quase um subdialeto
esperantesco.


Fomos cobrir o fim da obra daquela polêmica ponte de 55 km
que liga Zhuhai a Macau e a Hong Kong. Atividade conjunta do
nosso grupo com os jornalistas da África e da Ásia. E era muito
comum ou virem falar conosco em inglês ou tentar espanhol
(poucos sabiam que eu era do Brasil). Pedi em inglês a um
jornalista que depois vim a saber que era de Moçambique que
me passasse alguns dados da coletiva (que não tive tempo de
anotar... muita informação em pouco prazo) e o cara me
respondeu – achei na ocasião – em um espanhol esquisito. Aí vi
que suas anotações estavam em... português. Falei: “Pode falar
em português, sou do Brasil.” Foi quando ele, com o mesmo
sotaque estranho, me respondeu: “Mas eu estou a falar
português!”...
Até o prefeito de Zhuhai falava português. Aprendeu em
Macau e, justamente por isso, já tinha trabalhado na embaixada
chinesa em Brasília (como adido ou algo assim) por seis anos.
Mesmo assim, algumas palavras eram para mim de difícil
compreensão. Quando perguntei se Macau – do outro lado da
foz do rio, dava para ver dos janelões do hotel em que estávamos,
do chamado “lado continental” – vivia também de turismo, além
do jogo, disse que “só cassino”. Mas falava casino (com som de
Z), como os portugueses falam. E mais o CA saía CÂ. CÂzino e
não CASSIno, como falamos.
Macau, como se sabe, é o único lugar em toda a China que
tem jogos de azar. Não sei se só para estrangeiros ou se é
permitidos para nacionais (como existe – ou existiu, um dia –
essa restrição em Mônaco). Depois descobri que há uma outra
cidade perto da fronteira com a Coreia do Norte que também
tem cassinos.
175
O pior é que não anotei na hora e posteriormente pesquisando
aqui no Brasil não apareceu o nome, só mesmo Macau.
Falando em português, lá pelas tantas, no final de todo período
na China, dava uma vontade louca de encontrar algum carioca
para falar com nosso sotaque arrastado, inconfundível: VTNC,
seu FDP!
Falei um CARIOCA, P*RRA! bem arrastado quando fui
apresentado a um outro brasileiro no Caravan, um professor de
Educação Física de São Paulo que me perguntou se eu também
era paulista.
Vi que o cara fez cara feia com o meu palavrão. Depois soube
que, além de professor de Educação Física, era também pastor.
Batista, salvo engano.


Bom... de novo, no hotel, a festa de aniversariantes do mês
(neste agosto só teve um, o representante do Camboja) e de novo
a gravação com Happy Birthday to You com coral de crianças
cantando até a exaustão.


A vida imita a arte – Lembram do “Jorge Horácio by Night”,
colunista social interpretado por Luís Fernando Guimarães em
“Minha Nada Mole Vida”? Na delegação da Ásia havia um
semelhante. Das Filipinas.


– O Sr. quer release em inglês ou em francês?
– Tanto faz. Falo os dois.


Havia uma jornalista da Papua Nova Guiné (Papua New
Guinea em inglês, sua língua).
Perguntei o que significava. Papua (pronuncia-se para eles
PÁpua, proparoxítono, tanto em inglês como na língua local e
não PaPÚa, paroxítono, como em português) é termo local e
176
quer dizer cabelo crespo. New Guinea foi posto pelos ingleses
devido à cor da pele (Nova Guiné).


Já me perguntaram se sou traficante.
Já me acharam a cara do Al Pacino (várias vezes).
Depois perguntaram se sou cubano.
Estive pensando em mudar meu nome para Tony Montana.


Havia uma colega jornalista na delegação que come muito
pouquinho. Nada contra. A questão é que quando íamos a um
restaurante, ela não tinha por hábito pedir para embalar o que
sobrava. Uma vez, cheguei para almoçar e ela já estava
saboreando um amarelão arroz com curry e gengibre, bem
apetitoso visualmente. Sentei-me à mesma mesa, batemos um
papo sobre o programa de que fazíamos parte, fiz meu pedido
e ela se desculpou: “J.C., eu já estava de saída”. Pediu para
pagar e, quando a veio a conta, provoquei: “Você não vai levar
o que sobrou?” Fez carinha de nojinho: “não, não precisa”.
Obviamente, quando ela se foi e o garçom trouxe meu prato,
pedi para embalar o dela para viagem. Almocei e o que o sobrou
do meu também foi embalado. O meu almoço ainda me serviu
de jantar naquele dia e o dela, do meu almoço seguinte.
Aliás, estava bem bom o tal arroz com curry e gengibre. O
problema é que alguns minutos depois comecei a suar e não
fazia outra que não sair do banheiro. Devo ter perdido uns dois
quilos depois de algumas garfadas.
(...)
Mais de mês para a frente, depois de dois dias trabalhando
direto de dentro de casa, resolvi sair no fim da tarde. Parei no
quiosque do Tony dentro do condomínio, pedi uma cerveja e,
na mesa ao lado, uma chinesa com o marido jordaniano
começaram a puxar papo. Ofereceram o petisco que comiam;
eu disse, por gentileza, que não queria, mas o cara, como bom
177
árabe, insistiu que eu, o novo amigo, comesse. Era, segundo
ele, um prato de origem filipina (kinilaw o nome), em que o
peixe (no caso, atum), cru, era “cozido” no vinagre. Nada de
forno nem fogão. Bem similar ao ceviche peruano, que leva outros
peixes e é “cozido” no limão. Acompanhava... gengibre. Aliás,
por eu estar sem óculos e já estar escuro, foi uma das primeiras
coisas que eu peguei errado. E levei com vontade à boca.
ARGHHH!!!
Bom... o fato é que, como da outra vez, pouco tempo depois,
eu comecei a suar. Muito. Só que desta vez não deu tempo de
chegar ao apartamento...
Desta vez foi barra pesada. Passei a noite toda suando e
indo ao banheiro. Tive que cancelar o tour por Pequim que me
inscrevi no último domingo. Mandei uma mensagem por WeChat
alegando problemas “técnicos” de saúde. Poucos entenderam.
A maioria achou engraçado, mas pensou que eu estava de
ressaca.

Números em francês sempre foram um problema para mim.
Todas as vezes eu me enrolo depois do 70 (inclusive), porque
você tem que “somar”. Até 69 (soixante-neuf) vai fácil. Já 70,
por exemplo, é soixante-dix (sessenta dez, em tradução literal);
71, soixante-onze (sessenta onze) e assim vai até 80 (quatre-vingt,
literalmente quatro vinte). 81 é quatre-vingt-un (quatro vinte-e-
um); 82, quatre-vingt-deux (quatro vinte-e-dois)... e assim vai até
chegar ao 90, que é quatre-vingt-dix (quatro vinte dez). A mesma
lógica de somar vai do 91, quatre-vingt-onze (quatro vinte onze)
até o 99, quatre-vingt-dix-neuf (quatro vinte dezenove) De 70 a
99 é um problema para mim que só se resolve no 100 (cent).
Explicando assim, é fácil, eu me lembro, mas na hora de falar
no meio da conversa, é sempre um rolo. Ou sai alguma pedrada
ou falo algum desses números errados. Ou ainda tenho que parar
para fazer o “cálculo”. Como eu já disse aqui, falo razoável, mas
não é minha primeira língua e não pratico no dia a dia. Talvez se
eu tivesse que falar de manhã, de tarde e de noite, de segunda à
sexta-feira isso até entrasse na minha cabeça mais facilmente.
178
Uma vez, sem querer, ao ter que me referir a 1984, acabei soltando
mille neuf cent huitante quatre, quando deveria ser mille neuf cent
quatre-vingt quatre. Eu sabia que era quatre-vingt (por causa de “A
volta ao mundo em 80 dias”), mas – que bobeira a minha! – acabei
soltando essa aparente pedrada.
O cara do Marrocos, dono do bar, me perguntou onde eu havia
aprendido aquilo, porque ele só conhecia gente de Nova Orleães
que falava assim.
Depois fui checar... existem as formas septante para 70 (no lugar
do usual soixante-dix), huitante (com variação octante) para 80 (no lugar
do usual quatre-vingt) e nonante para 90 (no lugar do corriqueiro quatre-
vingt-dix). É um francês bem antigo, quase arcaico, mas cujas formas
ainda persistem nos cajuns em Nova Orleães, nos arcadien do Canadá
e na Suíça que fala francês. É a estrutura latina original do idioma,
que foi sendo perdida com o tempo e acabou-se misturando com o
alemão (que soma números), mas que ainda resiste nesses locais.
Fica, então, a dica: se, um dia, vocês soltarem um vacilo como
eu, usem a desculpa que aprenderam quando passaram o Mardi
Gras em Nova Orleães...


Falando em números, aliás, os chineses se enrolam (mesmo os
fluentes em inglês e em espanhol) com nossos. A sequência de
centena-dezena-unidade é diferente do que usamos. Muito comum
falarem 1971, quando querem dizer 1917. Dizem que nasceram em
1959, quando na verdade, nasceram em 1995.


Chineses, japoneses e coreanos são todos iguais. Foi o chinês
quem disse.


Como já disse, havia três argentinos na delegação. Um era de
Buenos Aires, mas vivia fora de seu país havia cinco anos,
representando a Costa Rica no programa, como também já falei.
Esse era fácil de entender. Percebia-se que é argentino, tinha
179
aquele arrastado italianado da capital, além do yeísmo, mas já devia
ter perdido um pouco do sotaque... dava para conversar numa
boa.
A outra morava em Bs. As. havia muitos anos, mas era de La
Plata. Talvez por isso, o arrastado não fosse tão pesado. Sem
problema também.
O terceiro era realmente complicado. Era porteño e vivia desde
sempre na capital. Tinha o yeísmo, falava arrastado tal qual italiano
e mais além: falava muito mais do rápido que os outros e usava
muitos termos e gírias locais (pileta, por piscina; guita, por
dinheiro) e comia os D do particípio (cansao, por cansaDo; hablao,
por hablaDo, falado).
Na hora do restaurante, foi um problema para acertarmos o
que seria uma espécie de churrasquinho. Primeiro porque
tínhamos que chutar o que era (não parecia carne) e segundo
porque eu não conseguia entender o que falava:
– ¿Qué es eso, Jotacé? ¿Berenjena?
Eu disse que parecia porco (cerdo).
Provou e disse que se parecia... agora veio o problema.... pecao.
– ¿Qué?
– Pescao.
– No comprendo.
Acho que ele pensou que eu não conhecia a palavra (na
verdade, queria dizer pescaDO, como é chamado o peixe - pez -
depois de... pescado). O problema é que eu não entendia o que
falava, devido ao sotaque.
– ¿Nescau?
– ¡No! ¡Pescao! (Devia estar pensado... que brasileiro burro...
tão fácil!) ¡Pez después de pescao, de muerto!
– Desculpa, não entendi mesmo, falei em espanhol. Tá difícil
seu sotaque.
– Como vos dicen (sic) en Río.... PEYTCHE.

Ah, sim: outros hispânicos (sobretudo os mexicanos e a
representante de Cuba) também tinham alguma dificuldade em
compreendê-lo.
180
Com a representante de Cuba, cujo povo tradicionalmente leva
fama de falar “embolado” e “comer” letras, eu não tinha dificuldade
alguma. Só uma vez ela foi falar do esporte mais popular em seu
país e eu entendi errado. Levamos boa parte da conversa cada um
entendendo uma coisa até que chegou um momento em que o
papo se distanciou. Ela falava em boxeo (boxe) como o esporte
mais popular. E eu entendi buzeo (mergulho). Primeiro porque não
me lembrava do termo boxeo em espanhol. O primeiro que me
veio à cabeça era pugilato (usual na Espanha). Segundo que faria
total sentido o mergulho (ou pesca submarina ou o que seja) ser
popular numa ilha do Caribe como Cuba. Foi quando falei em
praia que “caiu a ficha” na jornalista e ela repetiu gesticulando o
movimento do boxe: “Boxeo, lucha. No buzeo” (Boxe, luta. Não
mergulho).


Há uma grande variação de vocabulário entre os hispânicos, talvez
até maior do que existe entre norte e sul do Brasil. Os argentinos
falavam pileta (por piscina) e moño (por lazo, laço). Outros hispânicos
entendiam. Eu tive dificuldade de associar as coisas. O mesmo
aconteceu quando fizemos uma festinha na casa de uma
representante do México e ela pediu para levarmos bocinas (buzinas).
Outros (hispânicos, inclusive) perguntaram o que seria. Caixa de
som ou alto-falantes em seu país. Porque a buzina do carro lá é
klaxon (como em francês) e não bocina como para outros hispânicos.
O micro-ônibus mesmo que usávamos era chamado de autobús
por alguns, Kombi (embora não fosse VW) por outros (acho que
argentinos), camioneta por alguns mexicanos e até buseta (sim,
pronuncia-se “buceta”) por alguns andinos.


No Brasil, a variação existe também. Uma certa vez, o outro
representante brasileiro, um gaúcho, me perguntou se eu tinha um
“TÊ” para emprestar. Não soube responder, cheguei a achar que
era CHÁ num português hispanizado, mas o cara falava que um TÊ
era um TÊ, gesticulava, pouco consegui entender.
181
Bom... depois de muito rabisco e explicação, era o que
chamamos no Rio de benjamim, aquele acessório elétrico utilizado
para conectar diversos aparelhos numa mesma tomada. Aliás,
no Nordeste do Brasil acho que também falam T (analogia com
o formato). Benjamim é termo do Sudeste, talvez até mais
especificamente do Rio de Janeiro.


Imagine dois países: X e Y. Fictícios, claro.
X fornece commodities (bens básicos, matéria-prima) para Y,
nada além disso.
Y retorna com produtos manufaturados (ou industrializados)
para X, nada além disso. Enche o mercado de X com seus
produtos, quebrando qualquer chance de haver uma indústria
local. X cada vez mais fornece matéria-prima para Y, que, como
contrapartida, domina os produtos industrializados de X.
Para tanto, Y monta um megaesquema logístico em X, com
alegação de ajudá-lo. Não há possibilidade de a transação ser ao
contrário. Ou é assim, ou nada.
Y faz assim com X, com Z, W e com A, B e C. Com todos os
países com quem tem relações.
Como se chama mesmo historicamente esse tipo de transação?


Falando nisso, estive conversando com um homem da
Diplomacia de Angola (não era o embaixador) e perguntei-lhe o
que seu país exportava para a China. Disse que basicamente
amendoim e laranja. E o que importava? Disse: “tudo”.
Provoquei, questionando o que seria o “tudo”. Gêneros? Frutas?
Legumes? Não. Eletroeletrônicos, móveis, roupas, tudo
industrializado. Perguntei-lhe o nome desse tipo de transação e
ele disse: “O mesmo que Portugal fez com a gente: colonialismo”.


Por falar em África, no grupo de intercambistas deles, havia o
tal jornalista gente boa representante de Moçambique. Disse que,
182
ao longo do tempo, grupos chineses compraram muitas terras
em seu país, em nome de plantar arroz e erradicar a fome dos
moçambicanos. Disse também que por um tempo chegou-se a
ver o tal arroz no mercado, que era de ótima qualidade. Mas foi
por pouco tempo. Hoje, as tais fazendas em seu país
administradas por chineses produzem arroz para... a China! Como
se fosse um pedaço da China dentro do seu país.


Aliás, colonialismo e imperialismo, segundo os chineses, é o
que praticam os EUA. Aí exibem uma foto de um mariner em
ação no Oriente Médio. Não só os EUA, mas é repetido até à
exaustão nas aulas e palestras: The French colonialism in Shanghai;
the Portuguese imperialism in Macao, the English imperialism in Hong
Kong and Shanghai, the German imperialism in Tsingtao... Aí você
pergunta sobre Japanese e Mongolian imperialism e eles (todos) têm
a cara de pau de dizer que são good friends. Sério. Nós mesmos
fomos a Nanquim e sequer nos mencionaram o monumento aos
mortos de 1937 (que é ponto turístico na cidade), quando houve
um massacre impetrado pelos japoneses.


Falando em Nanquim, em um “seminário” sobre China e
América Latina, fui apresentado a um senhor que é presidente
da Câmara de Comércio do México.
Até batemos um papo rápido, porque acabei ficando na sua
mesa na hora do jantar (a do meu grupo já estava cheia). Fala
português bem, havia morado 15 anos no Brasil, estava há 11 na
China.
Além disso, viveu em outros países. Todo e qualquer negócio
internacional do México passa por sua mão. Disse que de todos
os países com quem teve relações, a China é o mais difícil de
transacionar. É sempre assim: só em favor da China. E são
irredutíveis. Disse que já houve propostas que seriam
interessantes para ambos, mas os dois lados teriam que ceder. E
os chineses não cedem.
183
Sem falar que um dos palestrantes falou para nós, convidados,
que havia trabalhado no Equador e que achou os latino-
americanos preguiçosos. Porque paramos aos domingos e só
trabalhamos oito horas por dia. Além da grosseria (que depois o
palestrante tentou se desculpar), essa sobrecarga horária que o
chinês usa é algo totalmente na contramão de alguém
minimamente de esquerda. Mais exploração capitalista,
impossível. Parece-me que no Oriente todo é assim. Mas num
regime que defende o fim da exploração, um baita contrassenso.


E ainda existe mais esta: a China é fraca, um “país em
desenvolvimento”, que nunca invadiu ninguém, que é amigo de
todos... E o Ocidente é forte. Se falar que a China é forte, eles
veem como uma ameaça ou preconceito ocidental...


Essa história de “a China ser fraquinha” e não a potência que
o Ocidente imagina é também um saco. E não só. A China “não
pratica imperialismo”. É “ajuda internacional entre os povos”.
“Princípio humanitário do Socialismo”. A China não deseja o
mal a ninguém. É um discurso ensolarado digno de “1984”. Não
sei o que é pior... se é escutar isso dos chineses ou ouvir brasileiro
que vive no país repetindo essa baboseira.


Falando nisso, essas palestras (sobretudo as que existiam na
nossa universidade) em geral eram muito, muito chatas. Além de
longas demais (levavam de três a quatro horas, com uma breve
pausa de 10 ou 20 minutos na metade), eram verdadeira lavagem
cerebral sobre como o Estado chinês é bonzinho e preocupado
para com seus cidadãos e com o resto do mundo e da humanidade.
Era um problema faltar à aula: queriam sempre saber o porquê,
enchiam o seu saco dizendo que ia ser interessante, que era
importante (tudo para eles é importante, irritante demais isso),
enfim, realmente a maioria foi cansativa e eu só usei como pauta
184
de matéria as primeiras a que fui. Depois passei mesmo a ir só
para marcar presença. A cabeça estava longe, bem longe.
Pensando no jornal aqui no Brasil, na minha família, na minha
profissão, na casa em que moro... Acho que outros também
fizeram o mesmo.
Ao final, tínhamos que avaliar cada matéria. Era-nos entregue
um formulário para apreciarmos como foi a palestra que havíamos
acabado de assistir. Além da situação totalmente constrangedora
(você tinha que se identificar e assinar o formulário), em geral,
sempre havia um chinês da organização por perto olhando. Era
muito constrangedor para darmos notas baixas. Sem falar que as
perguntas eram muito marotas para você, ocidental, concordar
com eles. Perguntavam se o professor foi pontual (nota de 1 a
5). E, em geral, você dava 5, porque chegava lá e o cara estava
na hora; se sabia usar bem o recurso audiovisual (sempre havia
um Power Point), você também dava cinco; se a tradução estava
boa (como se soubéssemos mandarim a ponto de avaliar se estava
correto e coerente com o que nos era passado...) ou seja, no
final, você para se livrar daquilo, acabava dando nota 5 para
tudo. E tínhamos que avaliar isso já extremamente cansados.
Talvez fosse até de propósito, como os adestradores de cães
fazem: põem o animal para passear, cansam-no bastante e, no
final, o bicho acaba cedendo mais fácil. Sem dúvida, fosse
proposital ser assim conosco. E aquilo infla o ego do Estado
chinês (que não é pequeno...)


Michael Fuck You. É assim que vários deles falam Michel
Foucault, tanto em chinês, como quando traduzem para inglês
ou espanhol.
Você ri (é inevitável). Eles também.


Como de hábito, estava jantando no barzinho em frente à
embaixada quando desceu do segundo andar um oriental falando
lá para cima (onde havia aula de capoeira): “Obrigado”.
185
Perguntei em português se era brasileiro. Fez cara de que não
entendeu.
Perguntei em inglês. Disse só sabia algumas palavras em
português, quando havia aprendido capoeira com uma professora
marroquina. Só sabia “obrigado”, “capoeira”, “berimbau”, “rabo-
de-arraia” e “paranauê”.
O detalhe é que a pronúncia era.... perfeita!


Oscar Niemeyer, João Amazonas, Luís Carlos Prestes, Carlos
Marighella e Jorge Amado, nenhum deles é conhecido na China,
nem mesmo por membros do Partido Comunista (pelo menos,
pelo “baixo clero”). Talvez mal e porcamente Jorge Amado,
mesmo assim, só de nome. Não sabem como era cara e acham
que era hispânico. Só de “já ouvi falar”.
E nem sabem que no Brasil existem PCB e PCdoB.


Falando em Partido Comunista, em uma visita a uma feira de
informática e inteligência artificial, logo que chegamos, no meio
daquele excesso de gentileza irritante (que, no fundo, acredito
que seja fiscalizando você... só faltam entrar no banheiro para
balançar sua genitália...), perguntaram-me se já conhecia a China.
Falei que, sim, que havia estado, em outubro de 2017, por uma
semana, para o Fórum de Mídia China-América Latina e o
encerramento do congresso do “Partido Comunista de vocês”.
Lembro-me de que usei esse termo. A garota disse: “Mas eu não
sou do Partido”.
O outro brasileiro e o cara da Diplomacia me corrigiram:
“Nem todo chinês é do Partido”.
Na verdade, eu não falei com essa intenção. Quis dizer “de
vocês”, chineses, portanto, do Partido Comunista Chinês; não
do Partido Comunista aqui do Brasil. Mas não fui entendido
assim. E foi considerado por eles uma gafe, mesmo eu tentando
explicar isso.
186
Já tinha ouvido bossa nova na China. Já ouvi Michel Teló. Já
até ouvi nosso Hino Nacional. Mas nada se compara à “Aquarela
do Brasil”. Caiu um cisco no olho.


Um dos argentinos teve sua bicicleta de 100 iuanes (R$ 50)
furtada dentro do condomínio de diplomatas. Pediu para ver as
imagens das câmeras e... nada gravaram.
Como diz Ancelmo Gois... “Deve ser terrível viver num país
assim”...


Estive conversando em português no restaurante com uma
garçonete de São Tomé e PRRRRíncipe (sic). Quando a conversa
acabou, chegou-me um cliente de uma outra mesa que havia
ouvido o bate-papo e eu nem tinha reparado: um cara ruivo
bastante bêbado, apresentou-se como irlandês e disse-me em
inglês: “Você parece espanhol, mas não é espanhol. Sua cara... a
língua que você fala... Você deve ser... italiano ou português.
Vou arriscar português porque você falou a única palavra que eu
aprendi na Ilha da Madeira: ‘obligata’.”


Uma das coisas mais difíceis em mandarim é o tom nas vogais
(ascendente; descendente; descendente-e-ascendente; e reto).
Mudou um e você fala outra palavra que eles não entendem. Outra
coisa difícil é a unidade. Você não compra uma cerveja, se falar
assim eles não compreendem. Você tem que pedir uma lata, uma
garrafa ou um copo de cerveja. Idem para o café. Idem para tudo.
No meu grupo não há dois brasileiros (baxiren, literalmente “pessoa
do Brasil”). Você tem que falar que há duas pessoas brasileiras (Er
REN baxiren). Pior é que a unidade muda dependendo do que for.
O “macetão” é usar ge (pronuncia-se “gâ”, quer dizer “ser vivo”)
para tudo. É meio um curinga. É considerado um mandarim pobre,
que a geração de internet usa, mas para quem não domina a língua
ajuda mais do que saber o castiço.
187
Aí veio a palavra poço. Não se cava um poço. Ou você usa kou
(boca) como unidade para o poço (como é falado na maior parte)
ou você usa, em algumas regiões, a palavra relativa a olho, como
unidade. Aí o professor fala em espanhol: “Porque nós, chineses,
temos a metáfora de entender o poço como a boca da terra ou como
o olho da terra. Haveria mais algum jeito de fazer analogia?
Sim, né?

Ainda sobre o tom, só para exemplificar a dificuldade: em


português (ou em espanhol, em inglês, francês...) se eu falar “água.”
(como afirmação), “água!” (como exclamação) ou ainda “água?”
(como interrogação) continua sendo... água. Em mandarim, não. Se
você quiser perguntar se é água (shuè, descendente), tem que falar
shuè ma? (O ma não tem tradução e serve para fazer pergunta caso
não haja “quem”, “como”, “por quê”, “quando”, “onde”, “quanto”
no questionamento. Na verdade, não existe o ponto de interrogação
em chinês. Só escrevi aqui – e costuma-se fazê-lo quando se escreve
em pinyin, com alfabeto latino para o estrangeiro – para se entender
qual o tom.
Se você falar shuè? (como pergunta, do mesmo modo que se
perguntaria “água?” em português) eles não entendem que é uma
pergunta para shuè. Na cabeça deles acho que corresponde a algum
caráter ou ideograma que não existe. O mesmo para he (reto), beber;
hé (ascendente), a conjunção “e”; e h (descendente-e-ascendente),
que é garça, a ave. Errou o tom (e você erra, por força do sotaque),
você fala outra coisa que não faz sentido na frase ou até que não há.
“Comer e beber”, por exemplo, é “tchi hé (ascendente) he (reto)”.
Parece uma bobeira, mas esse hé he para eles são sons
muuuuuuuuuuuuito diferentes. No caso em questão, descobri que
no dia a dia, acabou virando somente tchi he (comer beber, a
conjunção “e” (o hé ascendente) não se usa no dia a dia. Facilitou
muito para mim.
188
Havia dois representantes do Paquistão na delegação da Ásia.
Perguntei sobre futebol e fiquei sabendo que o esporte mais
popular no seu país é.... críquete (por influência inglesa). O
segundo é... golfe (por influência inglesa). Curioso é que os
indianos também respondem a mesma coisa: golfe (o número 1)
e hóquei (o segundo mais popular). Por colonização inglesa.
E o futebol, como o conhecemos... qual é mesmo a origem
das regras de boa civilidade?

Vamos ver como está seu mandarim.


Alguns países como são pronunciados. Arrisca dizer quais
são?
Bilu, Baxi, Agentíng, Weineiruìla, Wulagwi, Balagwi,
Eguaduoer, Bolìweiyá, Gelunbiyá, Zhìlì, Banamá,
Hóngdulasi, SarwÎduo, Weidìmala, Gesidá Lijiá, Gubá,
Yamaijiá, Haidí, Duominijiá Gong Heguô, Telìnidá Hé
Duobague, Baimuda, Kulasuodao, Aluba, Putaoyá, Xibanyá,
Faguô, Yìdalí, Dâguô, Fandìgang, Monaguê, Helán, Bilishí,
Xilá, Yingguô, Nuowei, Fenlan, Moxiguê, Meiguô, Jianadá,
Moluoguê, Aiji, Angla, Sudan, Mosangbike, Yineiyá,
Wugandá. Fu De Jiao, Xulìyà, Libanen, Yiseliê, Yuedan,
Yilang, Yilake, Aodalìya, Xinixlan, Yindu, Bajistan,
Sililanká, Yuenán, Zhongguô.
Vietnã e China.
Austrália, Nova Zelândia, Índia Paquistão, Sri Lanka,
Verde, Síria, Líbano, Israel, Jordânia, Irã, Iraque,
Egito, Angola, Sudão, Moçambique, Guiné, Uganda, Cabo
Noruega, Finlândia, México, EUA, Canadá, Marrocos,
Alemanha, Mônaco, Holanda, Bélgica, Grécia), Inglaterra,
Curaçau, Aruba, Portugal, Espanha, França, Itália,
República Dominicana, Trinidad e Tobago, Bermuda,
El Salvador, Guatemala, Costa Rica, Jamaica, Haiti,
Equador, Bolívia, Colômbia, Chile, Panamá, Honduras,
Peru, Brasil, Argentina, Venezuela, Uruguai, Paraguai,
Respostas:
189
Existe Polícia militarizada.
Que usa taser.
No mendigo.
Há segurança armada no condomínio.
Templo não paga imposto.
Fuma-se.
Há saleiros sobre as mesas.
Há pena de morte.
Dois turnos de 11 horas.
Não há folga semanal.
Não há greve.
Não há sindicato.
Não há ONG.
Existe arma de brinquedo.
Existe anúncio de brinquedo.
Existe anúncio de refrigerante.
Há anúncio de bebida.
Há refrigerante, cigarro, bebida alcoólica e brinquedo na mesma
prateleira.
Existe zoológico.
Banheiro para homem é azul e para mulher é rosa (ou vermelho).
Mulheres não representam nem 30% na política.
Zero tolerância a LGBT.
Não há oposição.
Fala-se em disciplina.
Existem heróis da Pátria.
Mulheres procuram mais Humanas. Homens procuram mais
Exatas.
Bem-vindos...
.
.
.
.
.
.
à República Popular da China.
190

Aliás, falando sobre banheiro para homem ser azul e para


mulher ser rosa (ou vermelho), ainda há um detalhe: o ícone
feminino é menor que o masculino. Até quando aparece a figura
do banheiro família (homem, mulher e criança).

E mais além: o feminismo está em baixa na China. Foi o chinês


quem disse.
Segundo ele, já foi forte, mas hoje não mais. O yin e o yang... a
complementaridade, homens e mulheres estão nos seus papéis
de se complementarem.
Por isso, não precisa.
Quem fala no assunto é mal resolvido.
De novo, foi o chinês quem disse.
191
O carro da Polícia chinesa traz as palavras “Segurança Pública”
(na verdade, pública + segurança, a ordem é inversa).
O ideograma de segurança somam as palavras mulher (nü) e
teto. A ideia é que proteger a mulher (sob o teto) é segurança.


Ainda sobre gênero, fico sabendo pelos argentinos que a
“língua do X” (aquele “neutro” politicamente correto para
abranger homens, mulheres...) não se usa mais no espanhol de
seu país: não se diz mais, por exemplo, los alumnos (para homens
e mulheres), como mandaria a regra, tampouco alumnXs. O arroba
(alumn@s) pouco emplacou por lá. O usual hoje é usar o E: les
alumnes.
Parece um pseudocatalão macarrônico, né?


Jay-Lo é como todos os angolanos chamam...

João Lourenço, seu presidente.

Chegamos a Nanquim (ou


Nanjing, como prefere o
governo, em mandarim, embora
na cidade fale-se cantonês)
com atraso na programação. O
breakfast previsto oficialmente
foi cancelado. Para quebrar o
galho, entregaram para nós um
“café da manhã socialista (com
características chinesas)...”: um
pão semelhante a pão árabe
(comum nesta região), mais
massudo, mas bem saboroso;
leite de soja (eles amam) em
192
caixinha, uns vegetais picantes num outro saquinho e o tal ovo
cozido (marrom), fervido na água de chá. O resto é guardanapo
e toalhinha umedecida. Para quebrar o galho, nada mal (apesar
de eu sentir falta enorme de café).


Também em Nanquim, no
grande evento a que fomos, fui
apresentado a um cara do
PCdoB que disse o seguinte: o
PCBão tem boa pautas, mas os
seus quadros não representam
a grande massa de trabalha-
dores. Já o PCdoB representa
mais o povão, mas as pautas
são uma b_sta.
Antes que me xinguem de
fascista, foi um cara do próprio
PCdoB quem disse isso.


Ovo cozido no chá; em várias cidades se come

No mesmo evento (de dois


dias, bem longos), num breve
coffee break (que tinha café!)
havia esse docinho.
Os chineses chamam de
“pastel de Macau” (assim
mesmo, em português, só que
com um baita sotaque chinês).
Em quase nada diferente do
pastel de Belém.
E fez sucesso. Até entre
eles. Pastel de Macau, pronunciado assim mesmo
193
Sobre Macau: no ano seguinte, falei com o brasileiro que foi
no intercâmbio de 2019 e fiquei sabendo que foram à ex-colônia
portuguesa como programa oficial. E que, para ele, foi a maior
decepção. Além de não falarem mais português, o que não o
surpreendeu (e também não me surpreenderia, já que li uma vez
nas “Seleções”, nos anos 80, quando ainda era território de
Portugal, que quase ninguém mais falava), o território é 36 vezes
menor que Hong Kong e quase não há mais herança lusa na ex-
colônia. “E eu crente que ia comer um pastel de Belém...”,
confidenciou.
Falou que alguns prédios antigos, as placas de rua bilíngues –
cantonês (por ser no sul) e português – e, no máximo, soltam uns
“obrigado”, “por favor”, “senhor” no meio da fala local.


Voltando ao mesmo evento (bem cansativo) em Nanquim, o
tal membro do PCdoB, apesar de bem mais jovem do que eu e
também carioca, era uma pessoa extremamente formal. Numa
pausa no evento em que estávamos... havia mais brasileiros e
acabou ficando uma roda de conversa só nossa (havia um
panamenho “infiltrado”), alguns com mais anos de China e outros
com menos tempo, como eu.
Lá pelas tantas, surgiu o assunto do excesso de tempero na
comida chinesa. Unânime foi o fato de que todos passaram mal,
pelo menos, alguma vez durante sua estada. Eu contei a minha
história do gengibre. O camarada do PCdoB, com a cara mais
séria do mundo, também disse que havia comido algo
condimentado e, muito formalmente e mantendo a fleuma, disse
que... “balançou o ânus”.


No final das atividades como visitas a empresas, a cidades e a
projetos governamentais, no final havia sempre aquela foto
clássica, do grupo todo segurando uma faixa escrita em chinês,
com o nome do projeto de que fazíamos parte (assim nos
disseram). Como eu era um dos mais altos, com 1,79m, acabava
194
ficando sempre na última fila junto com o outro brasileiro, o chinês
da Diplomacia e, em caso de atividade em conjunto, algum altão do
grupo da África ou da Ásia. Costumam ser três fotos: só sorrindo;
sorrindo e fazendo dedão positivo; e sorrindo e fazendo o V da
vitória. O fotógrafo pede para falar Xiè xiè (obrigado, mas, na verdade
é para ter o mesmo efeito sorridente do cheese americano; do whisky
dos hispânicos e do X brasileiro). Todo mundo rindo e... Yi, Er, San
(1, 2, 3) e click! Sai você fazendo chifrinho no chinês à sua frente,
seja diretor de empresa, prefeito da cidade ou até diplomata.


No grupo da África havia um representante de um país que era
muito, muito baixinho. Media 1,48m. Foi objeto de brincadeira (ou
bullying...) de vários outros, africanos inclusive. A mais light foi chamá-
lo de “Pequeno Polegar”. Em uma viagem numa atividade em
comum estava na fila do aeroporto, atrás havia uma família de
chineses com uma filha adolescente e ele conseguia ser mais baixo
do que a menina. Nessa fotos em público era pior. Quanto tínhamos
que posar para essa foto do grupo todo segurando a faixa em chinês,
como acabava ficando na primeira fila (por conta da baixa estatura),
só aparecia a sua cabeça por sobre a faixa.


Um dos hispânicos me falou de um amigo seu de infância que
havia sido gordo e depois perdeu muitos quilos. Como ficou flácido
demais parece que recebeu o apelido no grupo de amigos de perra
parida (cadela parida). Como se pode ver, brincadeira (ou bullying...)
é comum mundialmente.


Mamahuhu quer dizer “mais ou menos” em mandarim. Mas juro
que parece nome de praia do Havaí.


No dia 7 de setembro, a embaixada brasileira ficou fechada,
por ser feriado nacional. A festa do Dia da Independência
195
aconteceu no dia 17, num
grande hotel mais ou menos
próximo de onde morávamos.
Mas fomos de táxi, até porque
tivemos que pegar mais de um
metrô na volta (era preciso
baldear entre mais de uma
linha). Entre os convidados,
diplomatas (de outros países,
inclusive), grandes negociantes
e nós, os dois jornalistas lá.
Também estava o marroquino
dono do barzinho/restaurante
em frente à embaixada, porque
fazia capoeira (aliás, onde havia também aulas) e havia, naquela
noite, o lançamento de um documentário comparando o kung fu
com a capoeira (dança marcial brasileira, como é o nome em
mandarim, segundo o marroquino).
Além de vinhos de marca brasileira (tentando penetrar no
país), estavam servindo brigadeiros. Na verdade, a festa era um
coquetel, não um jantar. Acho legal quando vejo a nossa
Diplomacia mostrando outras coisas do Brasil para além do
triunvirato bunda + samba + futebol. Já havia sido assim na
feira em que o nosso país foi convidado de honra.


Foi a única vez em que peguei táxi em toda a China. O próprio
chinês fala para você (sobretudo estrangeiro) evitar, “porque são
desonestos”. Existem os com taxímetros e os sem, que, apesar
de funcionarem ao arrepio da lei, você tem que negociar a corrida
(ao final). Esses são os piores. É o chinês quem diz.
Não há Uber na China. Mas existe o Didi, que não é muito
diferente (embora legalizado pelo Estado, todos os taxistas acham
certo), apesar de eles dizerem que é totalmente distinto. E
existem os tuk-tuks (que lá têm outro nome, mas eles entendem
196
– e não ligam – se você falar assim): aquele triciclo motorizado
com cabine para transporte de passageiros ou mercadorias. Queria
andar, mas o próprio chinês fala para você, estrangeiro, não fazer
uso. “São altamente desonestos”, diz. A população sabe disso,
mas, como você é de fora, acaba ficando ao lado do nacional.
Você fica com a fama de quem não pagou, chamam a polícia e
você ainda vai preso.


Mas voltando ao evento do 7 de Setembro – comemorado no
dia 17 – três dias antes, em 14 de setembro, o venezuelano Nicolás
Maduro esteve na China para firmar acordos de cooperação com
Xi Jinping. A cerimônia era no Palácio do Povo (o prédio do
Parlamento na capital), em evento caprichado no credenciamento
e na segurança. Alguns dias antes haviam nos perguntado por
WeChat quem queria se credenciar, eu havia dito que sim, mas
acho que minha resposta criou alguma dúvida. Fato é que depois
de penarmos do lado de fora para conseguirmos as credenciais
(muda para cá e para lá, de acordo com a segurança, acabamos
aguardando na sombra de um obelisco), quase todos conseguiram,
mas, por sei lá que razão, a minha credencial e de mais dois
periodistas (curiosamente nós três com a letra inicial J) não
apareceram. A de um deles, que tinha nome em inglês, acabou
sendo localizada e parece-me que o nome havia sido escrito
errado. Eu e o argentino que representava a Costa Rica tivemos
que aguardar mais. Veio a chefe do cerimonial, que falava um
bom inglês, identificou-se como tal, pediu desculpas, não estavam
achando, iam fazer uma última tentativa. Falou em mandarim
alguma coisa para a subordinada. E ficamos esperando.
Esperando. Esperando. Como ficamos os três (quatro, porque
havia mais uma que não descobri quem era) um olhando para a
cara do outro, a chefe do cerimonial resolveu quebrar o gelo e
começou a puxar papo de onde éramos, se falávamos espanhol,
etc. e tal, certamente um monte de informação que eles já sabiam
a nosso respeito e só perguntaram por cortesia, etiqueta ou
educação.
197
Até que perguntou desde quando estávamos na China e se já
falávamos alguma coisa de mandarim. O argentino, bastante cara-
de-pau, disse que sim e soltou bastante coisa na língua local. Eu
disse que só falava few lines: Yo yao pijiù (eu quero cerveja), yo yao
kafei (quero café); (tsaidan, tchin) cardápio, por favor; baijiù (uma
aguardente de arroz forte pacas) e outras bobeiras. Não consigo
ir mais do que isso. Devo ter falado algum palavrão ou algo que
soasse como tal.
A mulher riu. As duas riram.
Mas nem assim conseguimos entrar.
Só nos sobrou voltar para casa de paletó e gravata num calor
descomunal, tentando achar a saída do labirinto de cercas vivas
e do esquema de segurança e carros pretos com caras de anos
60. A via principal era logo ali, do outro lado da sebe, mas estava
difícil para achar a placa de tchukou (saída) e nossa pronúncia
também não ajudava a pedir informação.

—-
Aliás, além da baijiù (aguardente), os chineses também têm
um fermentado de arroz. Chamam de vinho de arroz (mijiù,
literalmente álcool de arroz). Similar (igual) ao saquê japonês.
Mas se você disser isso, eles dizem que é diferente. Aconteceu
na visita a uma fábrica de “vinho de arroz” (sic) em 2017.
Aconteceu algumas vezes em 2018.
Do mesmo modo os pauzinhos. Kuàizi é como eles falam. Se
falar que é hashi (como nos restaurantes japoneses aqui no Brasil)
eles dizem que é diferente, que hashi é o japonês e que o kuàizi
não tem nada a ver.
Dica: se não se lembrar da palavra kuàizi, fale chopsticks (em
inglês). É muito mais aceito que hashi. Hashi é correção certa,
no mínimo.


Falando nisso, comem tudo com pauzinhos, até coisas que
no Brasil comeríamos com as mãos, na falta de garfo e faca. Por
exemplo, ovo cozido. Cravam os kuàizis (jamais hashis...) e levam
198
a comida à boca. O mesmo para pizza (que já vem cortada no que
chamamos “à francesa”). Aliás, mesmo nos restaurantes que
dispõem de garfo e faca, as comidas vem cortadas pequenininhas.
Hábito de quem come com pauzinho, chopsticks, hashi, kuàizi ou
nome que você queira dar...


Ah, sim: e mastigam sempre e qualquer comida de boca aberta,
fazendo barulho e quase não usam guardanapos. Arrota-se (não
pelos motivos árabes de demonstrar satisfação, mas porque pela
medicina chinesa não se deve prender nada ruim). Enfim... estive
num jantar oficial uma vez, de lugar marcado, fiquei ao lado da
autoridade que fazia barulho e arrotava o caldo servido. Perdi o
apetite. E numa posição em que todos olhavam para mim...


Eu deveria estar acostumado: em 2017, havíamos ido num
almoço oficial tentando nos receber de modo ocidental (o tal em
que comi salada de água-viva... não é ruim... e o melhor: não se
parece uma água-viva). Apesar de haver prato, garfo e faca,
faltavam guardanapos (de papel, que fossem). Chinês não tem por
hábito usar. Para começar, havia um caldo, mas não havia colher.
Chinês também não usa. Com muita dificuldade, conseguimos
umazinhas de louça, meio com cara de conchinha, comuns por lá.
Fora isso, chinês toma caldo e sopa virando a tigela com as mãos.
O que mais me surpreendeu foi, à medida em que o salão ia sendo
esvaziado, a maneira como os garçons (a maioria, garçonetes)
retiravam as comidas. Vinham com um saco preto de lixo do lado
da mesa, e jogavam todos os restos ali para dentro. Na maior sem-
cerimônia. Impensável em qualquer birosca aqui no Brasil.


Quando sobrava o último acepipe na travessa, os hispânicos
chamavam “bolinho (ou salgadinho, o que fosse)” de la vergüenza
(da vergonha). Aqui no Brasil chamamos de “o da cerimônia”
ou “apaga a luz” (para ninguém ver quem foi o último a pegar).
199
Recebi um aviso em espanhol de uma chinesa da Diplomacia
de que eu teria que devolver minha credencial (com foto) ao
“Diário do Povo”, em que havíamos “estagiado” durante o mês
de agosto, porque só faltava a minha.
Disse que já o havia feito.
Perguntaram para quem.
Falei que havia devolvido em mãos ao Juliano, o editor chinês
que aprendeu português em Moçambique. Dei o nome, passei o
contato pelo WeChat... em pouco tempo, a garota me retornou
dizendo que não estavam achando.
Falei que, sim, havia ido pessoalmente na última sexta-feira do
“estágio” até o 22º andar do prédio (piso em que funcionava a
redação em nosso idioma) e que havia sido entregue, inclusive, na
presença do repórter português que trabalhava lá há anos, já que
trabalhei em casa durante todo agosto, só estando lá três vezes.
Pedi para relembrar que havia sido até em um dia em que eu
havia levado um documento pessoal que precisei imprimir para
assinar e digitalizar e mandar de volta para o Brasil (pois não
tinha impressora no apartamento em que morava).
Ela me pediu o contato do repórter e assim o fiz.
Daqui a pouco, veio o pedido de desculpas. O português foi
quem esclareceu a confusão de quem era quem. É que os chineses
haviam-me confundido com o jornalista de Angola, que também
era João e falava português.
Um cara que era a cara do Eddie Murphy.


Isso aconteceu durante a única aula que tivemos de
taichichuan. Umas semanas antes nos enviaram uma espécie de
formulário para preenchermos os nossos tamanhos. A China
não usa os padrões da numeração brasileira. Uma bermuda que
comprei lá, por exemplo, é tamanho 38 (pela numeração local),
o mesmo que aqui no Brasil seria 46 ou 48. Aliás, o Brasil usa
(sobretudo nos calçados) uma numeração à parte, que nem
mesmo Portugal (de quem herdamos muita coisa) nem mesmo
o Mercosul segue.
200
Quando chegaram as
roupas, as sapatilhas não me
couberam. Até davam no
comprimento, mas o “peito do
pé” era baixo. Acabei trazendo
para o Brasil já com destino
certo para a filha de uma
amiga.
E usei o bom e velho tênis
da guerra. Outros fizeram o
mesmo.
Apesar da recomendação de
já irmos vestidos para a aula,
muitos tiveram vergonha.
Alguns foram só com a calça e
uma camiseta e vestiram por
cima. Outros trocaram de
roupa no banheiro no início e
no fim da aula. Eu não só fui,
como ainda depois, quando
voltamos, fui fazer compra com
o outro brasileiro no mini-
mercadinho do condomínio
ambos vestidos assim. Ainda
saí para tomar cerveja no
barzinho-escritório de sempre
(em frente à embaixada bra-
sileira).
Na própria aula de taichichuan, chegamos antes do professor à
universidade e no salão – imagino que usado como conservatório
de música e dança, já que numa outra sala pela qual passamos
uma estudante praticava escalas musicais ao piano – havia vários
instrumentos, dentre os quais uma bateria um outro piano. Um
dos argentinos montou a bateria numa outra posição e, como sabia
que eu tocava, disse: “JC, toca qualquer coisa”.
201
Mandei “Dream, a Little Dream Of Me” (aquela mesma do
“The Mamas and The Papas”). Queria mesmo tocar uma música
brasileira, mas estava muito fora de forma e além do mais, sem
ensaio, no improviso, certamente o argentino ia se enrolar com
samba. Tocar música dos países hispânicos... mando bem, mas
podia errar, acho que fiquei meio sem graça. Acabei optando
por uma música de fora, digamos... “neutra”. Ficou muito legal,
sobretudo em se considerando não ter sido ensaiado. A
representante cubana até gravou ao celular nós dois tocando,
vestidos com quimonos de taichicuan. Até me mandou como
Direct do Instagram usando Snapchat, mas infelizmente, não
abri no devido prazo (porque precisava do VPN para acessar) e,
quando consegui fazê-lo, só tinha mesmo o texto que ela escreveu
acompanhando o vídeo. A gravação em si já tinha expirado. Pena.
Depois que voltei ao Brasil, pedi a ela para me mandar por e-
mail, mas parece que o sistema também expira do remetente...


Depois, no fim da aula de
taichichuan propriamente dita,
mostraram para nós o
instrumento que acompanha os
exercícios: zheng. De cordas,
com longe similaridade com a
cítara (pode-se tocar no colo,
aliás), mas, em geral, usado
sobre dois cavaletes, fica mais
ou menos como uma telha
sobre uma mesa. Alguns foram
convidados a tocar e arriscaram
dedilhar. Não fui. Em outros
lugares que visitamos também
havia alguém tocando o
instrumento. O que me cha-
mou a atenção foram as
Todo desajeitado, saí no catálogo do programa partituras. Não usam os nossos
202
pentagramas, mas realmente há umas pautas parecidas. E muita
coisa escrita em ideogramas.

Lembram-se de Melina Mercouri, como Ilya, em “Nunca aos


Domingos”, contando tragédia grega com final feliz? A vida imita
a arte (quando se trata de relações internacionais)...


Sabe no Rio... as milícias em algumas comunidades que
surgiram para combater o tráfico e fizeram o mesmo?... É assim
que vi alguns discursos contra o colonialismo...


A propósito... o tal Cinturão e Rota (ou “Um Cinturão, Uma
Rota”) que o Estado chinês moderno criou, em nome de refazer
a antiga rota da seda, mas agora como “ajuda socialista entre os
povos”, levando portos, aeroportos, rodovias... tudo para escoar
produtos chineses (colonialismo é o que faz o Ocidente, né?)...
nunca chame isso de projeto. Qualquer chinês vai corrigir você.
É uma “iniciativa”. Que fique bem claro...


Aliás, um dos jornalistas argentinos mandou uma matéria para
seu país e o seu veículo editou com um mapa da China. Só que
na imagem de arquivo faltava Taiwan. Ligaram da China para
seu editor, pediram que aquilo fosse corrigido, é uma só China.
Que ficasse bem claro. E que nunca mais se repetisse!


O modus operandi enxadrístico de minar Taiwan não é em nada
diferente do embargo que os EUA fazem com Cuba. Só os
chineses dizem que não, que não é desumano como os dos EUA.
“Empresas podem fazem negócio, não são proibidas”, dizem.
Só que não mostram a você nenhuma que faça.
203
Mais curioso é que o chá oolong que ganhei de um tradutor
(quando falei que foi o que mais gostei em toda a China) tinha
escrito na embalagem: Made in Taiwan.
– Ué? Mas Taiwan não é uma só China?
– Mas temos relações comerciais...


Em julho, numa palestra em Cantão, grande polo logístico da
China, o palestrante (uma autoridade local) falava da alta
qualidade dos produtos (sobretudo eletrônicos) chineses
exportados pela cidade.
Na hora de abrirem para perguntas, um jornalista da África
disse que os produtos chineses que chegavam a seu pais eram
muito baratos, faziam uma concorrência desleal e de qualidade
muito baixa.
Foi motivo de extrema ofensa. A autoridade deu um soco na
mesa e disse que a culpa, claro, não era da China, mas dos
importadores inescrupulosos do Ocidente que só visam ao lucro
em detrimento do bem-estar do consumidor. Que esses
importadores agiam como traficantes que desrespeitavam as leis
da China! Que cabia a nós, e apontou para o jornalista, não
comprar os produtos desses bandidos!
(...)
Lembrei daquela piada que diz que para a bactéria a penicilina
é que é doença.


Em 2017, quando fui para o tal Fórum de Mídia China-América
Latina, assistimos ao encerramento do congresso do Partido
Comunista, na Assembleia Nacional, o Parlamento deles.
Realmente emocionante, pela grandiosidade do espaço e do evento,
inclusive com a execução ao vivo da “Internacional Socialista”
abrindo a cerimônia. De arrepiar. Não precisa ser de esquerda
para realmente achar aquilo sensacional. Mas, para além disso,
acontecem situações como esta: se você disser que na China há
partido único, eles dizem que não. Isso é uma ideia errada do
204
Ocidente malvadão. São oito. Todos de situação (“Para que haver
oposição se o governo faz pelo povo?”, é uma resposta meio
decorada). A função dos outros sete (que não o PC, que é realmente
quem decide) é ser braços seus em lugares em que o Partidão não
consegue penetrar. Na verdade são partidos... digamos... regionais.
Mas quem decide tudo ao final é mesmo o Partido Comunista. Há
mulheres no Parlamento e gente de etnias minoritárias (que não a
han, a maior do país). Eu não soube contar os dessas etnias (exceto
os que usavam roupas típicas), mas pude contar as representantes
femininas e não somavam 10% de todo a Casa. Isso aqui no Brasil
teria a esquerda gritando por muito menos. Mas na China... ah... na
China, “pelo menos há representação feminina e das outras
minorias... antes não tinham nada... Oh...”


O discurso de bem-estar social é bastante cínico partindo das
autoridades. E eles sabem disso. E acham que nos enganam. Beira,
por vezes, “1984”, em que o Ministério da Fartura era a pasta que
racionava a comida. E a máscara que cobre o autoritarismo
(debochado) vai caindo aos poucos. Verdade é que o país já se abriu
demais, mas não é exatamente como eles tentam nos vender. No
início, as coisas são bem mais favoráveis ao ocidental. Depois, com
o tempo, é que vão surgindo essas situações de ter mandar pergunta
antes para o entrevistado “se preparar e fazer uma boa entrevista”,
impensável no Brasil e no Ocidente. Não se faz isso. Mesmo que
seja uma entrevista a favor, as perguntas vão saindo na hora, no
momento da conversa. Com alguns entrevistados (e isso mesmo no
Brasil) a coisa flui naturalmente e ele até “ajuda” “queimando” duas
outra três respostas quando vai responder a primeira. Já há pessoas
com quem tem que ser “na base do saca-rolha”. Cansa. Mas mandar
perguntas antes, realmente não se faz. E não se fazia no início do
programa. Os comportamentos vão mudando; as máscaras, caindo
e as verdadeiras caras de como são realmente vão aparecendo ao
longo dos quase seis meses. Ah, sim, e se na entrevista surge alguma
nova pergunta na hora e você faz, o entrevistado diz que não vai
responder porque aquilo não estava na lista para a qual ele se
205
preparou. Mesmo você explicando que aconteceu na hora, que foi
espontâneo... Não adianta. É assim o “jornalismo com características
chinesas” (sic).


Mesma coisa quando eles dizem que não há conflito na China.
Todo mundo sabe que Taiwan, Tibet (desde sempre) e mais
recentemente Hong Kong são regiões problemáticas para o
Governo. Mas eles teimam em dizer que “não há conflito na China,
são coisas pequenas”.


Mais uma situação, por exemplo, que o jornalista que ia pela
Costa Rica assistiu em uma palestra e contou-nos, mas eu mesmo
não vi o resultado final: oficialmente, não há Censura na China. Há
um “comitê popular” que assiste antes e diz o que o pode ou não ser
exibido. E como é “popular”, é “o povo” que está ali, não é censura.
Todos os filmes têm classificação livre. Não mutilam cenas de sexo
nem nudez, nem sobrepõem aquelas faixas repressoras que o
Ocidente malvadão faz, mutilando a arte. Acrescentam, por
computador, sungas e cuecas nos atores e calcinhas, sutiãs e biquínis
nas atrizes em cenas de nudez e assim todos os filmes são livres.


Filmes com o filho de Jackie Chan (Chan Kong-sang, como é
conhecido na China, seu nome verdadeiro) – chama-se Jaycee Chan
o rapaz de 36 anos (ou Chan Joming, seu nome real) – não passam
mais na China. Por conta de seu envolvimento com drogas, Jaycee
Chan/Chan Joming é um mau exemplo para a juventude. Claro,
pelo “comitê popular” não é censura.


Também aquela imagem do tanque em frente ao manifestante
na Praça da Paz Celestial é proibida na China. Sua publicação é
considerada traição ao Estado. Matérias sobre o assunto também.
Até conversamos, com visão ocidental, que uma coisa é fazer
206
um blog pregando contra o governo. Outra coisa, como jornalista,
é noticiar que há uma manifestação contra o governo. Isso é fato
jornalístico. Não para eles. Para eles dá no mesmo.


Aliás, o jornalista que foi no ano seguinte comentou que a
internet “caiu” na China, inclusive o VPN em junto de 2019
(quando fez 30 anos daquele incidente). Eu mesmo, que
mantinha alguma conversa semanal com ele, fiquei sem contato.
E ele até sem o próprio jornal para quem trabalhava. No máximo
com VPN você conseguia mandar texto. Fotos, vídeos e áudios,
jamais. Coincidência, claro. E o governo parece que publicou
nota celebrando o feito. Foi uma atitude correta o que fizeram.
Segundo os chineses.


Mais além: aquela foto de 1963 de um monge se autoimolando
no Vietnã também é banida por lá. Fui mostrar no celular num
comentário e obviamente fui chamado à atenção.


Já que falei em Jackie Chan e seu filho, Bruce Lee também não é
conhecido como tal. Na China, conhecem-no como Lee Jun-fan,
seu nome verdadeiro.


Ainda sobre cinema: passava filme de Steven Seagal direto
na TV. Chineses gostam. Legendados, como as demais
produções estrangeiras (e muita coisa nacional, até porque
cantonês e mandarim se escrevem iguais, só se fala – muito –
diferente)ç.


Yossafu. É como os chineses traduzem José. João é Yuhan.
Se eu soubesse disso antes, teria sido mais fácil explicar meu
nome em mandarim.
207
Depois, numa reunião em 2019 no Brasil soube por uma
tradutora chinesa que dominava muito bem o português que ela
ensinava que João era... Joao (assim mesmo, sem o til), que seria
o som mais próximo para eles. Mas que isso variava de professor
para professor. Que, por exemplo, eles traduziam Davi para Tawit.
Mas que professores mais “moderninhos”, de um tempo para cá,
traduzem para David (à inglesa).


Vi chinês mendigo.
Vi chinês gay.
Vi chinesa stripper.
Vi chinês de cabelo ondulado.
Vi chinês moreno.
Vi chinês louro.
Vi chinês anão.
Vi chinês albino.
Vi chinês de olhos verdes.
Vi chinês com Down.
Vi chinês que falava português.
Vi chinês religioso.
...
Mas não vi chinês com terçol. Ou será que vi e não percebi?

Soube que existem (poucos) chineses louros. Naturais. Nem


caracterizariam uma etnia. A maioria desses, que não somam
nem 0,5% da população, moram em regiões próximas à Rússia.
Descendentes da miscigenação.


Aliás, o biótipo dos russos varia muito. No bar em que
parávamos, havia uma DJ russa, loura, mas de traços mongóis.
Primeiramente até achei que era uma chinesa (ainda que
misturada com ocidentais), embora tivesse corpo de violão, o
208
que não é comum no biótipo de chinesas e japonesas. No mesmo
bar, havia uma cliente russa que se parecia uma cigana. Talvez,
no máximo, uma espanhola. Morena, magra, sobrancelhas grossas.
Tentei conversar algumas vezes mas seu vocabulário em inglês
era bem limitado. Tentei francês e nada. Consegui saber que era
de São Petersburgo. Seu nome acho que era Maria. Falei que era
João, tropeçou (coisa comum com quem não fala português).
Falei que era a forma em português para John ou para Ivan (em
sua língua). Não me entendia. Tentei Iváááán, mais aberto.
Continuava sem entender. Bom, resumindo: do jeito que ela não
sabia falar João eu não sabia falar Ivan. Até porque a pronúncia,
consegui, enfim, saber, era Ifáááááán (como se fosse um F no
lugar do V).


A grande dificuldade que chineses (e estrangeiros não
lusófonos) têm em falar o meu João Carlos sai com facilidade ao
falar João Havelange, um nome do futebol brasileiro bem
conhecido na China (até mesmo por estrangeiros), assim como
Pelé, Ronaldo, Zico (menos) e... fechando a lista, Neymar (aliás,
Nêymar, paroxítona) e Fagner (pronunciado à francesa: Fanhér).
Só que acham que Havelange não era brasileiro... E não é que
estão certos?
Em outubro de 2019 fui a São Paulo, a trabalho, para
representar o jornal em um evento, de novo, da Xinhua e dos
chineses. Conversando em inglês com um representante russo,
falei que meu nome era João (a forma John em português, o Ivan
– aliás, Ifáááááán – deles). Quando mostrei meu crachá, a mesma
resposta: “Ah, sim, como João Havelange” (João em pronúncia
perfeita, Havelange nem tanto, bastante inglesado).


Mas... voltando à russa com traços mongóis, no grupo da Ásia
havia uma jornalista da Mongólia. Os traços eram bem parecidos
com a tal russa. Os olhos não eram tão “rasgados” (ops) como
os chineses e as maçãs-do-rosto mais altas. Falava inglês muito
209
bem. Depois soube que em seu país usam alfabeto cirílico (como
os russos) e não ideogramas chineses e muitas palavras são até
compreensíveis para nós. Em termos de alimentação (e isso foi
posteriormente confirmado pelo outro brasileiro, que já havia
estado lá), quase não há vegetais. É basicamente carnívora (come-
se carne de cavalo normalmente), há um espécie de churrasco
mongol e bebe-se muito (até por conta do frio). A bebida oficial
do país é leite de égua fermentado. Ou seja, um leite alcoólico.
Segundo o outro brasileiro, parece um Yakult, mas “pega”.
Resumindo, apesar dos traços “amarelos” (sic), culturalmente
são mais próximos dos russos.


Uma vez, logo nos meus primeiros dias na China, ganhamos
um kit de imprensa (chinês ama, brasileiros também), que trazia
CD (sempre CD), o material promocional impresso, um bloquinho
e... um lápis. Aliás, quase todo os press kits (como chamamos
aqui no Brasil) vinham com lápis em vez de caneta. Acabei
ficando com um estoque de lápis em casa. E acabei tendo que
usar. Alguns quebraram. A faca que eu tinha em casa não dava
jeito para apontar. E eu não tinha apontador. Desci ao mercadinho
do térreo com alguns lápis quebrados na mão e perguntei (em
inglês) se vendiam apontador ou faca (o que achei pouco
provável). A funcionária, toda gentil, disse que não podia entregar
a faca, mas faria ponta para mim. Fiquei surpreso com a habilidade
com a lâmina. Além da rapidez, na minha frente, saiu uma ponta
parecendo feita num apontador elétrico.
Que medo!


Em francês, China é Chine. Mas se você errar a digitação final,
sai chien (cão). Tá explicado o porquê do menu!


Aliás, eles se ofendem profundamente quando se toca em
consumir carne de cachorro. Muito contrariados, se você falar
210
nessa prática, só se come onde você não está. Se você está em
Pequim (norte), eles, muito contrariados, dizem que é hábito do
sul (onde as comidas são mais exóticas); você vai para Cantão e
Xangai (no sul), eles dizem que é no norte, por influência da
Coreia (Pequim mesmo fica a 400 e alguma coisa quilômetros
da fronteira coreana, mais ou menos a mesma distância entre
Rio e São Paulo). Mesmo da primeira vez em que fui, por uma
semana, em 2017, vi de relance, um cara numa van na beira da
estrada vendendo vários cães engaiolados. Fiz uma foto de dentro
do ônibus da delegação (em que eu estava), mas não ficou
muito boa.
Sinceramente, não acho que tenham perdido o costume nem
proibido a prática, mas querem ser simpáticos ao Ocidente e,
como o Ocidente reprova o consumo de carne canina...


Não duvido, aliás, que haja chinês que coma fezes e/ou que
seja canibal. Não nas cidades grandes e médias, mas naquelas
vilas perdidas no interior do país. Toquei no assunto canibalismo
uma vez e também a resposta foi atravessada. O mais didático
que ouvi foi que a prática já aconteceu, no passado, em épocas
de grande fome. Aliás, isso também deve explicar o consumo de
ratos (em Xangai, prato típico), escorpião...


Nessa mesma visita de uma semana, em 2017, havia uma
tradutora que falava português com sotaque lusitano, porque
havia aprendido em Macau (no ano seguinte é que vi que isso
era meio comum entre os – poucos – chineses que sabiam nosso
idioma). Todas as carnes apresentadas nos almoços e nos jantares,
quando perguntávamos, a resposta era “rês” (bovina). Os sabores
mais diferentes, as texturas mais estranhas e... “é carne de rês”.
Em uma das últimas refeições naquele ano, foi-nos servida
uma carne mole, flácida, visualmente até apetecia, o sabor nem
era tão ruim assim, mas a textura era gelatinosa. Mais outra vez
a pergunta e... “é carne de rês”.
211
Falei para o outro brasileiro que aquilo ali devia ser a
barriguinha do cachorro filhote. Fez gracinha, mostrou a barriga
e o chinês abateu.
“Que nojo!”, o cara largou a refeição.


Ainda sobre essa tradutora de 2017, era curioso porque usava
uns termos que não usamos no Brasil, como por exemplo, pedia
para nos dirigirmos ao “autocarro” (por ônibus). Num rápido bate-
papo, comentei isso, ela não sabia. Comentei também que algumas
palavras em Portugal e no Brasil há variação quanto ao B e o V. Aí
citei a palavra “covarde”, com a minha pronúncia de carioca. E
ela respondeu “cubarde”.
O mais difícil era explicar que o B e o V eram diferente na
grafia (variantes, como se chama), mas o CO- seria a pronúncia
mais certa, pois afinal ali era um O (“cobarde”). Trocar esse O por
U fazia parte do que chamamos sotaque. Falei que no Rio de Janeiro
era muito comum trocar O por U (e vice-versa) e E por I (e vice-
versa). Isso explicava as variantes “cobarde” e “covarde”, embora
na grafia não fossem tão distintas, quando pronunciadas saíam
como se fossem palavras totalmente diferentes.


Nesse intercâmbio de seis meses, um dos chineses que
trabalhava como assistente (em geral estudantes, ajudavam na
tradução, no apoio aos eventos) falava espanhol bem e estava
começando a estudar português, sabia poucas palavras e
pronunciava com sotaque lusitano (afinal, estava estudando em
Macau). Quando eu soube que estava estudando nosso idioma,
tentei conversar algumas palavras. Perguntei se sabia me
compreender. Disse que sim, mas depois, quando fui falando como
falo no meu dia a dia, percebi que tinha uma dificuldade enorme
em me entender.
Falei que era o Brasil e era do Rio de Janeiro. Só entendeu que
eu era do Brasil. Não conseguia entender a minha pronúncia nativa
para “Rio de Janeiro”.
212
Repeti falando mais devagar: “Rio de Janeiro”.
Repeti quase escandindo as sílabas: Ri-o-de-Ja-nei-ro”. Forcei
um já aberto (já-neiro) e não anasalado jã-neiro como falamos aqui
no próprio Rio.
Nada.
Escrevi.
Foi quando consegui ser entendido. Respondeu, esclarecido,
com um sotaque português de Macau: “Ah, Rio de J’naairo”!
Pode parecer uma besteira essa diferença, mas, considerando
que nem é a língua nativa deles (e sobretudo que ele era iniciante
no idioma) e que aprendeu com um professor que falava diferente
de mim, as pronúncias “Janêiro” e “Janáiro” devem ser duas
palavras totalmente distintas. Até porque chinês se liga mais em
som do que em letras (diferentemente de nós) e possivelmente
(chute meu) o som nei deve corresponder, na cabeça deles, a
um ideograma; e nai, a outro de desenho completamente
diferente.


Se você pedir a um chinês para falar em mandarim:
“Três oito – Três norte – Três b*cetas – Três ondas – Três
não”, vai sair uma música de Jorge Ben:
“San bá – San bei – San bi – San bó – San bu!”
Salve, simpatia!


Estava na cadeira do barbeiro já cortando o cabelo quando
chegou um cliente chinês aguardando a vez e sentou num
sofazinho que havia no salão. De repente, o celular do cara toca
em bom português: “Eu quero tchuuuuu/eu quero tchaaaa/Eu
quero tchu tcha tcha tchu tchu tcha/Tchu tcha tcha tchu tchu
tcha!”
– Ei, essa música é brasileira – eu me empolguei e acabei
soltando em português. Como o cara não entendeu, perguntei
em inglês e ele também não soube responder.
213
Quem intermediou a conversa foi o barbeiro, que falava um
inglês sofrível e ainda recorria ao tradutor do seu próprio celular.
A resposta do cara foi que não sabia que música era, não
sabia que era brasileira, não sabia o que falavam, só escolheu
para toque porque achou engraçado o som “tchu tcha tcha tchu
tchu”...


Show de Truman – Visitamos uma megaempresa e, depois
de recepção e palestra no salão de entrada, fomos convidados a
subir a uma sala de reuniões. Orientados pelo cerimonial, nosso
grupo tomou determinado elevador. Como acabei ficando para
trás, o elevador encheu com o último jornalista à minha frente.
Tive que subir em outro carro com o pessoal do próprio
cerimonial, da diretoria... E só eu, o grandalhão de olhos grandes
e cabelo crespo ali...
No elevador das luxuosas instalações, uma TV passava uma
imagem que me deixou boquiaberto. Fiquei tão impressionado
que, ao reencontrar o grupo lá em cima, perguntei a uma jornalista
nossa que foi no elevador das visitas se havia TV no deles e o
que passava. Disse que sim, havia, e passava umas imagens de
fundo do mar com música clássica.
Era bem diferente do que era exibido no meu: uma megaparada
militarizada, no melhor estilo da abertura de “Topázio” (1969),
aquele até hoje lembrado como tendo sido o pior filme de
Hitchcock. Só com crianças.


Aliás, várias situações em que vivemos lembrava o filme “O
Show de Truman”: aquele mega-hotel numa minúscula
cidadezinha do interior totalmente vazio, só conosco, esse
elevador passando um vídeo com uma imagem e no elevador
para chineses passando outra... Enfim... há uma China para os
chineses e outra para o estrangeiro. Isso é muito evidente desde
os primeiros dias. Seja na metrópoles ou na cidadezinha do
interior.
214
Além dessa sensação de “Show de Truman”, só esperávamos
em determinado momento não viver outro filme: “O Terminal”...


E mais: não duvido que nossos apartamentos fossem “visitados”
enquanto estávamos nessas viagens internas, de uma semana ou 10
dias. Não acredito que chegasse a ponto de haver microfones (como
alguns dos nossos supuseram) ou câmeras escondidas nas nossas
casas, mas que, de vez em quando, alguém fosse lá ver se havia algo
suspeito. Nas saídas para atividades que ocupavam um dia inteiro
em Pequim, acho que não. Era “pouco” tempo e alguém podia voltar
antes da hora (como chegou a acontecer), mas, durante essas viagens
a outras cidades que duravam três, sete dias ou até mesmo uma
semana, era bem possível. Como eu disse e vocês já devem ter
percebido, embora eles já tenham se aberto bastante, ainda mantêm
muito de Estado policial.

Dunhuang: cidade, que fazia parte da antiga Rota da Seda, fica no meio do Deserto de Góbi

Dunhuang. Uma cidade no meio do nada.


Chegando a Dunhuang, na hora de entregarmos o passaporte
e recebermos as credenciais, um dos nossos não apareceu. Seu
215
nome foi chamado várias vezes e a pessoa não se apresentava.
Era logo o primeiro da lista.
No final de todas as entregas, vi que quem não aparecia
era... eu!
Embora estivesse presente, realmente não me liguei que Mr.
ZIA era Silva. Achei que era alguém do grupo da Ásia (com
quem tivemos atividades conjuntas). Os outros nomes (João,
Carlos e Cardoso) eles não sabiam sequer ler.

Andamos de camelo em Dunhuang: a área em que ficamos tinha visível influência árabe
Dunhuang. Uma cidade no meio de um deserto. Um oásis
cercado de areia por todos os lados. Fortificações medievais. Na
Rota da Seda. Usam camelo para transporte. Povo moreno.
Comem carneiro. Alho. Uvas. Tâmaras e vinho.
Totalmente árabe. Na China.
Mas nada de café.
216
Já em 2019, em um restaurante perto de minha casa, estava
numa mesa em que havia um amigo em comum com o dono. E
este amigo, alagoano, estava com um conterrâneo (e família) que
veio passar uns dias no Rio. Foi quando fiquei sabendo que essa
família morou por alguns meses na China. E a filha do amigo do
amigo do amigo (que estava à mesa) morou especificamente em
Dunhuang, a negócios, por uns três meses. Levamos um breve
papo e soube que quase não há influência árabe no local, apenas
em um pequeno pedaço da cidade. De fato, é um oásis no meio
do deserto e realmente fez parte da antiga Rota da Seda, mas
aquela história de fortificações medievais, gente andando de
camelo, povo moreno, comendo carneiro, alho, uvas, tâmaras e
vinho... enfim... tudo aquilo que vimos quase não é praticado na
cidade. Apenas num pequeno distrito.
De novo, vivemos num circo no melhor estilo de “O Show de
Truman”.

Em Dunhuang, por várias vezes, tomei choque ao pedir o


elevador onde estávamos hospedados. Idem para pegar os talheres
na estufa do restaurante do hotel (eram assim servidos). Depois
fui saber que não só eu, todos tinham passado por iguais situações.
É que a baixa umidade (10%) – já que a cidade é um oásis no
meio do Deserto de Góbi – faz ter mais corrente elétrica
circulando no ar (assim disseram). E que, ao lado do elevador,
havia uma recomendação (em chinês) para o hóspede pôr a mão
na parede e “aterrar-se” antes de apertar o botão dos andares.
217
Nessa viagem, a progra-
mação em inglês trazia uma
visita e ao lado dizia TBC. A
visitação foi cancelada. Pro-
curei saber o que eram as três
letras. Disseram que não me
preocupasse, porque a visita
tinha sido cancelada. Insisti
que, sim, isso eu havia
entendido, mas eu queria saber
o que era o tal TBC que
teríamos ido visitar. Uma
empresa? Um hotel? Um projeto do governo? Teatro Brasileiro
de Comédia?
Nenhum dos chineses que falava inglês soube responder, só
diziam que havia sido cancelada. Até que uma senhora bilíngue
do cerimonial teve a ideia de pegar a mesma programação em
chinês. E dizia, no mesmo verbete, que a programação estava a
ser confirmada (o que não houve). Por isso, o TBC = To Be
Confirmed (a ser confirmado).


Na mesma viagem, um jornalista turco de outra delegação
que chegou depois me perguntou se o Brasil todo só fala
português. Digo que sim, embora haja índios que falam suas
línguas (quase 300 idiomas), grupos na Bahia que falam iorubá
e houve uma forte colonização alemã no Sul (digo que não chegou
a ser uma ex-colônia, um enclave, tal qual Tsingtao, na China,
como muitos no exterior pensam, mas cidades com forte
colonização daquele país) e, por isso, há redutos que falam alemão.
Acabou sendo uma variação local, por vezes não são nem
entendidos quando vão à Alemanha.
– Eu já tinha ouvido falar nisso, mas estava para encontrar
um brasileiro para perguntar. Então, responde-me uma coisa:
Hitler morreu mesmo no Brasil?
218
Em Tsingtao (ou Qingdao, como o chinês atualmente
prefere escrever) – não consegui ir, nem mesmo nas minhas
folgas – parece-me que, diferentemente de Hong Kong e um
pouco de Macau, não ficou população do europeu na cidade.
Foi colônia alemã no sul da China entre 1898 e 1914 e deixada
para lá quando começou a I Guerra.
Não há germano-descendentes, não se fala alemão. Só
sobrou a cerveja (foram eles quem introduziram a bebida no
país). Há até uma marca famosa, Tsingtao, que se bebe (quando
se bebe cerveja) em todo a China. Leve, mas saborosa. Boa
de beber, sobretudo estupidamente gelada (só em casa, na
rua quase não há).
Além da cerveja, ficou também de herança alemã a
organização da cidade na parte velha. E as salsichas (que os
chineses desconheciam até então).


Não só Tsingtao. Eu mesmo também deixei para ir ao
mausoléu de Mao Tsé-Tung (perto de onde eu morava) um dia
e... Também deixei para comprar bonequinhos de biscuit com a
minha cara e...
Também fiquei de voltar à Cidade Proibida para tirar uma
foto – paga, 100 iuanes (R$ 50) – vestido de imperador (um
tanto pagação de mico, fica um monte de gente vendo você
ser “montado”) e... Fiquei de voltar para comprar uma
caricatura no prato (mais 100 iuanes) e...


Depois de várias cervejas em casa, anotei algumas palavras
para que alguém musicasse quando eu voltasse ao Brasil:

Mamahuhu (mais ou menos) – Mamahuhu


Xiè-Xiè (obrigado), Bye Bye (tchau [eles entendem]) – Xiè-
Xiè, Bye Bye.
Bokhete (De nada).
219

Cavernas de Mogao, em Dunhuang: no meio do deserto, entalhadas na montanha

Cavernas de Mogao em Dunhuang. Templos entalhados na


montanha. Com mega-Budas dentro. Depois de horas rodando por
uma estrada no meio do deserto, como se fosse a Área 51, nos EUA.
O verdadeiro horizonte perdido.

Toda viagem era a mesma coisa: passavam a programação, por


vezes, havia coquetel ou recepção com a municipalidade local... e
vinha escrito dress code formal. Cansei de levar paletó e gravata, ficava
amarrotado na mala, ocupava espaço (principalmente o paletó),
chegava na hora H, o tal dress code formal era camisa social e calça
jeans (ou, no máximo, calça social). Desta vez, a mesma coisa de
sempre. Disseram que era bom levar, pelo menos, o paletó. Eu já
estava de saco cheio daquela mesma história há quase seis meses e
levei uma boa calça social, sapatos formais e camisa de manga curta.
Fui escolhido na última hora para ficar na mesa principal
(representando o ateísmo, num jantar com várias religiões...), com
prefeito, Relações Exteriores local... chefe de cerimonial... e eu, ali...
o único sem paletó nem gravata e de braços de fora...


Ainda em Dunhuang, no mesmo jantar, como havia latinos... a
trilha sonora tocava “Frenesí”, “Bésame Mucho” e “Tristesse” (de
220
Chopin), esta última não sei porquê. Acabou e o looping começava
outra vez. “Frenesí”, “Bésame Mucho” e “Tristesse” (de Chopin).
E mais outra vez: “Frenesí”, “Bésame Mucho” e “Tristesse” (de
Chopin). E outra e outra e outra, na mesma sequência. Aí, alguém
do cerimonial deve ter percebido que estavam se repetindo e tiraram
“Frenesí” da set list. Ficou só “Bésame Mucho” e “Tristesse” mais
umas, no barato, oito vezes. Depois “Tristesse”, “Tristesse”,
“Tristesse”... Deu “indigestão auditiva”.


Aliás, coisa que percebi nos hermanos é que se incomodam
quando, em suas homenagens, tocam “Macarena”. Também,
pudera, os Los del Río (que cantavam essa chatice que se
propunha a ser um ritmo, um nome de música, uma dança e um
estilo, tudo ao mesmo tempo) são de... Sevilha! Incomodavam-
se também com Julio Iglesias. É como se pusessem o lusitano
Carlos do Carmo ou Amália Rodrigues cantando num coquetel
para brasileiros, unicamente por falarem português.


Richard Cleyderman e música clássica tocam muito na China
em recepções para ocidentais. A segunda, creio que para não
pagar direitos autorais (pois a maioria, pela idade, já caiu em
domínio público). Já o pianista... é... não sei.


E, sempre, como já dito aqui anteriormente, tudo com looping.
Era assim na hora do “Parabéns”, era assim no minimercado
7-11 que ficava no condomínio em Pequim com uma música
que lembrava vagamente “A Banda”, de Chico Buarque. Era
assim em Liupanshui, na música ambiente dos elevadores. Em
um, tocava-se um trecho de “Sound of Silence” de Simon &
Garfunkel. No outro acho que era “Love Me Tender” por Richard
Cleyderman. Além de só a execução de algumas frases das
músicas com looping, mesmo que o elevador fosse direto (do térreo
221
ao andar desejado, alto que fosse), quando o elevador parava em
algum piso, começava tudo do zero. Verdadeira e literal “tortura
chinesa”.

Em Gansu é muito forte a presença tibetana, na religião, na cultura e no falar

Horizonte perdido – Em Gansu, é muito forte a presença


tibetana (étnica, religiosa e culturalmente; e no idioma), apesar
de ainda a muitos quilômetros do Tibet. É bem comum placas
de r uas e letreiros de lojas bilíngues. No hotel em que
almoçamos, uma das garçonetes falava mandarim e tibetano.
Com a ajuda da tradutora do mandarim para o espanhol,
procuramos saber algumas palavras. As pessoas perguntavam, por
curiosidade, como era “obrigado”, “até logo”, “por favor”... e as
duas se empenhavam em traduzir espanhol-mandarim-tibetano e
vice-versa.
Perguntei o que era Xangri-lá.
A tradutora riu e disse que todos os ocidentais perguntam
isso. E que quer dizer...
.
.
.
.
.
.
Utopia.
Monges budistas em Gansu, na região do Grande Tibet
224
A viagem a Gansu era compartilhada com os grupos da África
e da Ásia. Não sei porque em ônibus separados. Eles em um;
nós, os latinos, em outro. Numa viagem longa de ônibus, do
aeroporto a Gansu, propriamente dito, pedimos para parar, a fim
de usar o banheiro. Já comentei aqui que na China há uma
carência enorme de sanitários, mesmo nas grandes cidades e
mesmo nos lugares mais bacanas e mais bem frequentados. Os
chineses têm ciência disso. E em Gansu não seria diferente.
Depois de mais de duas horas rodando, os dois ônibus pararam
em frente a um banheiro público que mais parecia um saloon de
filme de faroeste. Logo adiante do banheiro havia uma obra de
beira de estrada com gente trabalhando.

Banheiro público em Gansu: letreiro em inglês, ideogramas chineses e letras tibetanas


Saltamos todos, latinos, africanos e asiáticos, apertadíssimos
e os banheiros estavam trancados: masculino, feminino, e o para
pessoas com deficiência.
Fomos ver atrás e não tinha outra entrada.
O próprio guia (um chinês, do programa de intercâmbio)
sugeriu urinarmos atrás, do lado de fora, do banheiro, onde havia
um matagal. Aliviamo-nos todos: latinos, indianos, paquistaneses
e até alguns chineses do receptivo.
Quando voltamos para o ônibus, a confusão já estava feita:
do nada apareceram, vindas da obra mais adiante, várias
senhorinhas da etnia local com cara daquela “senhora sioux” no
225
show de fim de ano que passa na TV no Natal, reclamando e
berrando, não sabíamos o que era. Nem mesmo o pessoal da
organização, pois falavam uma língua local. Deduzimos que
foi por termos urinado fora do banheiro. O fato é que eram
muitas.
Entramos nos ônibus, as senhorinhas entraram aos berros.
No coletivo em que eu estava uma delas apontava para uns e
outros, creio que achando que era eu (eles, na China, acham que
somos todos iguais), mais ou menos como se estivesse lançando
alguma maldição (como disse o outro brasileiro). Saíram.
Reclamavam muito.
O ônibus tentou sair, fizeram barreira humana.
Até que alguém do receptivo (não sei se do outro ônibus ou
dos carros que nos escoltavam, que, aliás, foram lá urinar
também) entendia alguma coisa da língua local. E, sim,
reclamavam porque estávamos contaminando a cidade.
Parece que naquela província há uma lei com pesadas restrições
para lixo e contaminação do solo.


Situação constrangedora – Quem me conhece sabe que sou
ateu e nem me dá presente religioso. Com quem não me conhece,
eu agradeço, mas recuso. É assim com santinho, panfleto de louvor,
docinho de Cosme e Damião ou o que seja. Dizem que é falta
de educação recusar. Não
acho. Do mesmo jeito que um
vegetariano recusaria um
jantar com carne ou um
abstêmio, bebida alcoólica.
Nada contra quem use, mas
eu não. Basta dizer: “Não,
obrigado”. Na viagem a
Dunhuang, visitamos um museu
com a história do Budismo.
Interessante, por sinal, em
termos de história. Ao final, o
226
presente era... uma pulseira com os mantras budistas. Falei que
“Não, obrigado”, que não era budista, mas o monge que servia de
guia (e que falava inglês bem) insistiu. Se fosse o cara no restaurante
me entregando aquilo eu realmente iria me irritar profundamente
e diria que absolutamente não, mas, em se tratando de uma visita
oficial patrocinada pelo governo chinês, agradeci, muito a
contragosto, mas, obviamente, não usei. Toda a delegação colocou:
ateus, muçulmanos, cristãos e até budistas da Índia e do Sri Lanka
(que seguem outra linha, portanto, sem usar essa pulseiras, assim
disseram).
Eu realmente recusei. Aceitei muito p*to, dei um sorriso e na
primeira oportunidade, passei para outro colega, que, aliás, veio
bem a calhar, já que a sua arrebentou pouco depois.
No último dia, em cada quarto no hotel, foi-nos deixado para
cada hóspede, um presente quando regressamos de uma visitação
pela cidade: era uma espécie de tambor com duas “bolinhas” presas
por duas cordas, que o budista bate enquanto faz suas preces.
Que coisa mais irritante!
Estrategicamente, “esqueci” a caixa do quarto quando
fizemos o check out para voltar a Pequim. Que sirva para outro.
Quando a delegação já estava no ônibus, veio uma pessoa do
cerimonial avisar que faltavam dois check outs a serem feitos.
Um realmente foi confirmado, havia sido o de um dos
argentinos que optou por aproveitar o feriado nacional do dia
seguinte e esticar mais um tempo na cidade, não voltando com
a gente.
O outro era... eu! Porque havia “esquecido” o presente.
E foi me devolvido de novo. P*TA QUE PARIU.
Na boa... gente... não está na hora de repensar nessas visitas
que nem todo mundo que vai ali a trabalho é budista? Será que
a população local não tem mais nada de souvenir para oferecer
ao visitante?


Chegamos dessa viagem a Gansu num domingo perto de oito
da noite. Passamos pela cancela com o segurança e Ni Hao.
227
Deixei a bagagem em casa e fui ao escritório de mídia receber
os subsídios mensais. De lá, segui para as compras semanais,
que já eram para ter sido feitas antes da viagem, mas optei para
quando voltasse. Tive que sair do condomínio por outro portão
e, na volta, acabei passando pela mesma cancela dos fundos pela
segunda vez, com as compras e o mesmo segurança:
Ni Hao, de novo.
Descarreguei tudo em casa e saí para comer algo, estava muito
cansado para cozinhar. Fui ao restaurante dentro do complexo,
jantei e, quando saí, a passagem interna já estava fechada, dado
o horário “avançado” para os “padrões chineses” (21h). O
resultado é que tive sair do condomínio por outra porta, caminhar
pela rua de trás (externa) e entrar outra vez pela mesma cancela,
com a mesma roupa, de novo só entrando, e quem estava lá? O
mesmo segurança.
O cara riu: Ni Hao, de novo.
Deve ter pensado: “PQP! Como esses ocidentais são todos
iguais!”
228
CAPÍTULO VIII
EU VENHO DO FUTURO

A primeira semana de outubro é toda de feriado no país, por


conta do dia 1°, data da fundação da República Popular da
China em 1949. Neste dia específico (que em 2018 caiu numa
segunda-feira), há uma megaparada militar na Praça Tianmen
(centro geográfico de Pequim) no melhor estilo da abertura de
“Topázio” (“Topaz”, de 1969), aquele que até hoje lembrado como
tendo sido o pior filme de Hitchcock e que a nossa Eva Wilma
agradece por não ter passado no teste para viver uma personagem
cubana. Gostaria muito de ter gravado umas imagens, já que o
evento é aberto ao público gratuitamente, mas eles falavam que
ficava, por conta da data, uma megaconfusão na cidade e nos
pontos turísticos do país. Diziam que ficava cheio de chineses...

Nesse período, quem esteve no país em visita oficial foi o


príncipe Albert, de Mônaco. Cerveja vai, cerveja vem no quiosque
dentro do condomínio, o chinês que até falava um bom inglês
me pergunta se Mônaco fala francês (fayu). Sim, fala.
– Fica no Mediterrâneo?
– Fica.
– Na África, né?
– Não, Europa.
230
Cara de surpresa.
– Rei, né?
– É monarquia, mas é príncipe, não é rei.
Mais confusão...
– Mas... não são negros?
– Não, o príncipe é louro.
Cara de confuso.
– Não foi território francês?
– Foi, há séculos. Hoje é um país soberano.
– Eu sei onde é. É rei, sim.
– Não. O título é de príncipe. É um principado. Inclusive, por
muitos anos, a princesa era uma atriz americana, Grace Kelly.
Mostro uma foto no celular.
O chinês diz que é linda, mas não conhece. Lá para tantas, diz:
Wait a minute...
Desfeita a dúvida.
Eu me referia a Mônaco = Monâgâ.
Ele se referia aos Marrocos = Molâgâ.


Eu não sabia se estaria falando mandarim quando voltasse, mas
sabia que meu espanhol, meu inglês e até meu francês iriam estar...
Ó!

E vocês achando que falta de


educação no trânsito é
exclusividade brasileira, né?


231

Seria um rocambole da Peppa Pig. Quer dizer, eu acho,


considerando a personagem estar em moda no país e a foto ter
sido numa doceria. Tudo na China tem a cara da Peppa Pig para
todo lado (até em coisas para adultos, já comentei que o gosto
deles é meio infantil para nós).


Um alemão a quem fui apresentado em Pequim me diz lá
pelas tantas que o nome do filho é Rio. Rio? Sim, river in Spanish.
Digo que em português também é igual, só não leva acento agudo
no I, como em espanhol. E que nunca havia visto prenome assim.
Disse que sou, inclusive, do Rio de Janeiro (River of January e
explico o porquê de a cidade ter esse nome). Perguntou se havia
algum nome para quem nasceu no Rio. Disse que era carioca,
uma palavra indígena que queria dizer “casa de branco”. Achou
engraçado (todos os estrangeiros, de hispânicos a chineses, acham
“carioca” uma palavra engraçada, não sei o porquê) e fica
repetindo com um sotaque inglesado nos Rs: carioca, carioca...
Pergunta lá para tantas se a comida de seu país é popular no
Rio. Falei do Bar Luiz, por exemplo. E contei a história de que
232
seu nome inicial era Bar Adolf, em homenagem a um dos sócios.
Mas no tempo da II Guerra foi depredado por acharem que era
por conta de Hitler. Restaurado, foi renomeado como Bar Luiz,
em homenagem ao outro sócio, que se chamava Ludwig (forma
alemã para Luiz). O cara achou a história tão fantasiosa que
começou a rir.


Oito em chinês é bá. E o gesto é a arminha do Bolsonaro.
Zero em chinês é ling. E o gesto é de VTNC.


Falando em eleição do Bolsonaro: chineses, argentinos,
portugueses, mexicanos, bolivianos, cubanos, angolanos... Todos
ficaram surpresos ao saber que o voto é obrigatório no Brasil.
Ainda sobre eleição, por
uma má infor mação do
Tribunal Regional Eleitoral no
Rio, eu não consegui transferir
meu título naquele ano.
E não consegui votar. Até
hoje sou criticado por isso.
Já fui xingado de fascista, cúmplice da ditadura Bolsonaro,
bloqueado em Face e excluídos de alguns grupos, por ter, na
cabeça de uns e outros, me omitido. Paciência. Mas foi realmente
um erro de informação: o TRE dá a entender que, em estando
no exterior, basta ir no dia da eleição com o título até a embaixada
que o eleitor vota “em trânsito”. E não é assim. Há que se transferir
o título para a cidade para, então, votar.
Afinal, o eleitor estava morando lá. E, de volta ao Brasil,
transferir de novo. Nisso, o TSE explica melhor que o TRE-RJ.
E, mesmo que soubesse da regra, eu não tinha nenhum
comprovante de residência para transferir meu título para a
China. Unicamente, sabia que iríamos morar no Diplomatic
Residence Compound (DRC), em Chaoyang District (em
233
Pequim), nada além disso. Nem mesmo o endereço tínhamos
antes de ir e, muito menos, na forma de documento oficial.
Em assim sendo, a partir do dia seguinte à eleição, tive que
justificar meu voto (eu o fiz pela internet, mas tive que depois ir
resolver pessoalmente no posto do TRE aqui do Rio, o que não
adiantou muito, enfim...) em cada um dos dois turnos. E, para
tanto, precisei de um documento que comprovasse minha
residência na China.
Como o apartamento em que morávamos era cedido,
basicamente não havia nada em nosso nome. Consegui, com
muita dificuldade, uma cópia das nossas contas unificadas de
luz, água e gás. Mas estavam em chinês. Então fui à administração
do DRC e expliquei que precisava de um comprovante de que
eu morava ali, para justificar junto à Justiça Eleitoral de meu
país que eu não havia votado, etc. e tal.
Consegui, também depois de muita dificuldade, uma carta
em inglês. Anexei junto com a tal conta em chinês no formulário
em que se pedia os arquivos (pensei que nosso TRE fosse recusar,
por não ter tradução juramentada, que eu até pagaria – e ia ser
caro – para não ter que desembolsar os R$ 3,51 da multa; afinal,
a multa é uma punição e eu não havia feito nada de errado, não
transferi meu título – e não votei – por um erro burocrático do
Estado brasileiro). Mas, para conseguir a tal carta junto aos
chineses era difícil. Eu realmente não sei se não estava sabendo
me explicar em inglês, se eles não estavam entendendo porque o
voto era obrigatório (e o porquê da justificativa) ou ainda se
estavam entendendo o que era eleição multipartidária para
presidente da República.


Chinês entrega dinheiro, conta, envelope e principalmente
cartãozinho de visita (chineses amam trocar cartões de visitas
– em geral, são bilíngues, de um lado está em ideogramas; do
outro, em inglês –, uma dificuldade pela qual passei, já que o
jornal não me mandou com nenhum, até porque eu não uso aqui
234
no Brasil... eu tinha sempre que falar a mesma desculpa... coçava
o bolso do paletó e “Ih, esqueci no hotel!”)... enfim, chineses
entregam qualquer coisa com as duas mãos. E fazem uma leve
reverência. Não se abaixam muito porque dizem que isso é coisa
dos japoneses: “se abaixar muito aparece o traseiro”, espetam,
rindo, os vizinhos. É considerado subserviência e certamente
essa mudança na postura deve ter vindo com a Revolução, em
1949.
Mas o fato é que entregar com as duas mãos resistiu e persistiu.
O mesmo acontece quando você entrega para eles. É sinal de
respeito. Não se incomodam (sobretudo se você for estrangeiro)
se não for assim. Mas... exceto nos Mc Donald’s, nos
supermercados... salvo essas exceções, acaba sendo assim. Aliás,
o mesmo até acontece entre estrangeiros. Acabávamos
assimilando esse estilo.
Em uma vez em que fui almoçar no barzinho de sempre fui
atendido pelo funcionário de sempre, um cidadão de Bangladesh.
Estava bastante sobrecarregado atrás do balcão, tirando um
chope, atendendo um telefone sem fio apoiado no ombro, tirando
pedido... e não dava para dar meu troco com as duas mãos.
Saiu-se assim, em inglês:
– Você não é chinês, eu também não. Sei que não vai se
importar com o troco entregue com uma mão só...


As definições desse funcionário para explicar o prato que
servia (quando você perguntava) nunca eram das mais
elucidativas. Sem falar que estava acostumado com comida
picante. Você perguntava se era apimentado e, na melhor das
hipóteses, ele dizia que era... um pouco. Você ia comer e o troço
saía rasgando goela abaixo. Chineses amam comida apimentada.
Gente da Índia, Bangladesh, Paquistão, Sri Lanka também. Aliás,
comida oriental como um todo, talvez a exceção seja o Japão.
Dizem que na Tailândia é pesadamente condimentada; até comi
uma sopa de cebola com macarrão – assim me pareceu – num
restaurante tailandês perto de onde morava, mas os condimentos
235
vieram em uns potinhos coloridos – lindos – em separado da
comida, mas só o fato de estarem abertos, o odor já estava
irritando.
Bom, mas o fato é que uma vez havia um prato com um nome
ininteligível, acho que de origem árabe (afinal, o dono do Caravan
era marroquino). Dizia no cardápio que eram vegetais, mas estava
sem foto (na China, sobretudo onde há estrangeiros, os cardápios
trazem imagens). Perguntei o que era e o cara disse que eram
vegetables. Perguntei se era salada e disse que “Not salad. Vegetables.”
(Não é salada, são vegetais). Já meio incomodado com aquela
definição que não explicava muito e com fome, pedi mesmo
assim. De fato, não era salada, eram vegetais. E desceram
queimando!
Numa outra vez, a memória afetiva me voltou mais de 20
anos. Pedi um pastelzinho, tinha um nome engraçado. Porção
pequena, acabava saindo caro, mas muito gostoso. Aí o cara veio
fazer sala e disse que no seu país se chamava samosa. Assim
entendi. Pedi para repetir e, de novo, samosa. Isso me lembrou
quando estive em Portugal com minha mãe em 1991. O que os
portugueses chamam de pastel, como em espanhol, é qualquer
bolo. Pastel de bacalhau, por exemplo, é o “nosso” bolinho de
bacalhau aqui no Brasil.
Nos 15 dias em que conhecemos o país, quando estávamos em
Lisboa, eu e minha mãe ficávamos hospedados num residencial (são
hotéis pequenos, em geral, administrados pela família, não o conceito
de residencial como um resort que temos aqui no Brasil) que ficava
num bairro chamado Anjos. Era até perto do Centro de Lisboa,
dava para ir andando, uma meia hora talvez, poucas estações de
metrô os separavam. Mas depois descobrimos que era um bairro
meio “B”: quando fazíamos excursões locais – algumas de um ou
dois dias –, quando o ônibus ia deixar o pessoal de volta no Sheraton,
no Ritz... aí nos perguntavam: “onde os senhores vão ficar?”
– Nos Anjos.
– Ah, nos Anjos nós não passamos – era resposta recorrente.
Foi assim que fomos descobrindo que, apesar de simpático,
lindo e tranquilo, era um bairro “B”. Além do mais, moravam
236
muitos indianos. Certamente gente que veio de Goa, Diu, Damão
ou até descendentes já nascidos no território português no continente
europeu. Além do biótipo característico, falavam com sotaque de
Portugal, mas “choravam” ao falar, certamente o sotaque nativo
deles.
No próprio hotel (residencial) onde ficamos havia um funcionário
assim. Em uma das vezes em que saí sem minha mãe, ele conversava
na recepção com outros iguais e numa língua que eu mesmo não
entendia.
Numa vez em que saí sozinho, passei por um mercadinho, uma
mercearia, e vi na estufa de vidro um pastel igual ao que se vende
aqui no Brasil. Só era triangular como uma esfiha, mas a mesma
massa cheia de bolhas de fritura como nos pastéis das feiras do Rio
ou de São Paulo.
Falei que “até que enfim, um pastel!”, a dona – com cara e
vestimenta indiana – disse que não era pastel (claro, para um
português, um pastel seria um bolo), era uma... (e disse algo
ininteligível, parecia xamussa, xamossa, chamossa, algo assim) de
carne (bovina, estranho para um indiano). Caí dentro. Ela tentou
avisar que era picante, mas eu já tinha dado a primeira mordida!
Passei anos, décadas, querendo saber o nome daquele prato.
Bom... só em 2018, depois dessa vez com o empregado de
Bangladesh no restaurante árabe e depois checando na internet,
descubro que o formato varia, mas que o nome é chamuça (ou,
como ele falava, samosa, que talvez seja a palavra original), “uma
especialidade de origem indiana constituída por fritos de forma
triangular recheados com uma mistura condimentada de feijão ou
grão, batata ou carne picada, ervas aromáticas e vegetais.
Ainda segundo a nada confiável Wikipedia “chegaram a Portugal
através da culinária indo-portuguesa de Goa, Damão e Diu, outrora
pertencentes ao Estado Português da Índia. Noutras regiões da Índia,
existem versões vegetarianas, que não são tão comuns em Portugal.”


Havia, como quando anteriormente falei sobre o troco, balcão
nesse bar, o Caravan, mas não era comum ficar cliente bebendo
237
apoiado ali, apesar de várias cadeirinhas altas (voltadas para o
salão, de costas para o balcão). Como eu costumava fazer quando
estava sozinho, ficar em pé no balcão bebendo (coisa comum
em botequim no Rio de Janeiro), não era usual, embora não fosse
proibido. Um dia, sem querer, tomando algumas no balcão, fui
pegar o que seria um cardápio para escolher alguma coisa para
comer e achei uma folha ofício, dobrada ao meio, plastificada,
com uma lista em inglês intitulada “Badr’s rule” (“Regras do
Badr”). Badr era o nome do marroquino dono do restaurante.
Abaixo, algumas regras rígidas de como os funcionários deveriam
se portar no trabalho: nada de celular; todo mundo barbeado;
gente de cabelo grande deveria usar preso; chegar, pelo menos,
meia hora antes de o expediente começar... enfim, uma lista quase
militar. Disciplina era palavra que aparecia a todo momento na
tal lista.
Isso me chamou a atenção porque o dono não parecia ter essa
postura. Era um cara estiloso, descolado, ele e a namorada (não
me recordo se a apresentava como tal), uma italiana linda. Gente
“muderninha”. O próprio bar tinha ganhado status de ambiente
gay frendly e mesmo quando estivemos em Xangai, parece que
naquele período, tinha havido uma festa LGBT ali. Embora nos
dias em que fui lá (e não foram poucas vezes) não vi nenhum
“lance” diferente...
O fato é que a postura liberal (ou libertária, mais me parecia)
do dono do bar não condizia que aquelas regras duras que
estavam escritas ali.
Um dia, entretanto, no dia do evento do 7 de Setembro num
hotel de luxo perto da embaixada, entre os muitos brasileiros,
quem estava lá? O Badr, de gravata, todo formal. Disse que
havia sido convidado pela embaixada por ter sido “promotor”
da capoeira em seu bar (defronte à Chancelaria brasileira). E
realmente naquela noite houve o lançamento de um
documentário (coprodução Brasil-China) sobre a “arte marcial
brasileira”, era assim o nome da capoeira em mandarim.
A festa acabou, mas eu ainda dei uma última passada no
Caravan antes de ir para casa. Afinal, era quase na esquina de
238
casa e eu teria mesmo que passar em frente. O Badr, engravatado,
fez o mesmo.
Foi quando apresentou um cliente que falava português. Era
o tal catedrático que atuava como assessor da embaixada de
Moçambique (já citado aqui no capítulo de agosto). Papo vai,
papo vem (em inglês), surgiu o assunto de ser dono de comércio.
Falei que particularmente achava uma escravidão danada para o
proprietário, ainda mais quando envolvia comida e sobretudo
bebida alcoólica, sem sábado, sem domingo, fiscalizando entrada
e saída de comida, cliente bêbado... bem complicado.
E foi quando lembrei das tais “Regras do Badr”. Aproveitei
para perguntar. Disse que havia visto sem querer uma vez, porque
tinha ido pegar achando que era um cardápio. E chamou-me a
atenção o fato de ele aparentar ser tão descolado, liberal, trabalhar
com regras tão severas.
Respondeu simples: “Tem que ser assim. Se não for assim,
não funciona. Até mesmo quando eu trabalhei como empregado
num restaurante antes de ter o meu aqui, já era assim. Disciplina
é a chave do sucesso”.
Palavras do marroquino.

Ao chegar ao Brasil, não quis


cerveja, nem caipirinha, nem
churrasco, nem feijoada,
nem beijo, nem recepção de
família no aeroporto, nem
abraço, nem festinha do
cachorro.
Nem quis saber
o resultado da eleição.
Quis café.


239
Quando me perguntavam (quando eu conversava com
brasileiros por e-mail ou rede social) se o custo de vida é alto na
China, eu dizia que não dava para comparar com o Brasil. Até
mesmo dentro do país, havia variação de uma cidade para outra:
Xangai, por exemplo, é considerada uma cidade cara, mesmo
para os padrões chineses. Pequim tem um custo mediano. São
eles mesmos quem dizem isso. Imóvel (seja para compra ou
aluguel) é caríssimo em todo o país, mesmo para quem é da classe
média deles.
Fraldas são caras também. E entraram no país relativamente
recente, há uns 40 anos (o que para a história da China é ontem),
depois da Abertura em 1979.
Além disso, da barreira do preço (só mesmo famílias ricas as
usam), há uma outra, cultural: a medicina chinesa fala que o
tratamento das doenças crônicas procura uma eliminação
permanente do mal, alguma coisa assim. Em assim sendo, espirrar,
tossir, arrotar faz bem. Não se deve guardar. E eles o fazem na
maior sem-cerimônia, nos lugares (para nós) mais impróprios,
nas situações (para nós) mais deselegantes.
O mesmo para as fezes. Não se deve guardar, deve-se expelir
tão logo deu vontade. Por isso, por essa questão cultural, fraldas
(descartáveis ou de pano) não são tão usadas e aceitas pelas
famílias chinesas, mesmo com uma razoável situação financeira.
Tradicionalmente, eles usam em suas crianças uma peça de roupa
chamada kai dang ku, que é uma calça (às vezes, calção) com
uma espécie de “braguilha” sem zíper, sempre aberta atrás. (Quase
comprei uma, não porque tenha criança em casa, mas de souvenir
para mostrar às pessoas quando me perguntam como é. Acabei
esquecendo). A criança (menino ou menina) vai andando com o
“rasgo” de fora, aparente para todo mundo. Sentiu vontade de
defecar, agacha e faz ali na frente de todos, seja onde estiver. Os
pais costumam “aparar” ou recolher, como gente educada faz
aqui com as fezes do cachorro quando vai passear. Vi turistas
estrangeiros fotografando ou filmando o ato, dado o inusitado.
E eles não se avexam. Uma vez, num ponto turístico (aquela rua
em Pequim com comidas exóticas), a mãe pôs um papelão para
240
“aparar” as fezes da criança. Havia um grupo próximo de senhores
e senhoras já meio idosos e com tipo anglo-saxônico. Aquela cara
“clássica” de turista vermelhão, bermudão, achando graça até nas
coisas mais sem-graças do país alheio. Um deles aproximou-se
para gravar o ato com uma handcam e ainda chamou um outro para
assistir de perto...
Bom... voltando ao custo de vida... há coisas, como o terno,
que são extremamente baratas (100 iuanes, o que daria R$ 50,
aproximadamente). Mesmo um terno em situação normal (não o
caso atípico por que passei) custa entre 300 e 400 iuanes (R$ 150
ou R$ 200). Se sob medida, ficaria em torno de 1.200 ou 1.300
iuanes (R$ 600, por aí), já incluído o tecido (palavras do alfaiate
que acertou a calça do meu). Roupas, em geral, eram baratas. O
problema eram os tamanhos e... os padrões.
Já o cartucho com três lâminas de barba custa 25 iuanes (R$
12). Se comprar o aparelho com uma única lâmina, vai pagar 12
iuanes (R$ 6). Ou seja: o aparelho com uma única lâmina + o kit
com o refil sai por 37 iuanes (R$ 18,50). Puxado, né?


Há umas lâminas chinesas (que não são da Gillette)... um lixo.
Piores que as de banheiro de hotel (que até tem algumas razoáveis).
São facílimas de serem encontradas em saquinho com duas
descartáveis a 7 iuanes (R$ 3,50). Duas barbeadas e acabou a
lâmina. Coisa para penugem de chinês.


Fomos visitar um escritório de coworking na área de design... várias
instalações usando uma antiga fábrica de tecidos em Pequim. Na
última visita, o designer mostrou que já havia estado no Rio... algumas
fotos no Corcovado... além disso, havia um altarzinho logo na
entrada com presentes religiosos que ganhou em lugares que visitou
no mundo... um Cristo que ganhou no Rio, uma imagem de
Aparecida de uma cidade do Brasil de que não se lembrava o nome,
um Buda da Índia, aquele “terço” muçulmano, uma estrela de
Davi... alguns símbolos que eu não identifiquei e um, bem no
241
meio, que me chamou muito a atenção. Não consegui fotografar.
Como o escritório era meio em formato de O... no final voltamos
para o ponto de entrada, o altarzinho ainda estava lá... mas a
imagem que me chamou a atenção havia sido retirada, enquanto
havíamos circundado as instalações: uma estátua, aos pés do Cristo,
do ateu e antirreligioso “são” Mao.


Visita a outra fábrica que virou escritório de coworking de design.
Lá pelas tantas... um salão com um piano de cauda... um espaço
para exibição de cinema e um cheiro inebriante de café. Visitamos
as instalações todas e, no final., em frente ao American bar, a
tradutora perguntou, em inglês: “Mais alguma questão?”
– Sim, falei, na maior cara-de-pau. A pergunta é: temos direito
a um café?
A mulher falou alguma coisa para a barista da qual eu só entendi
a palavra kafei (café). Daqui a pouco veio uma bebida espetacular
num copão de papel.
Perguntei quanto era e disseram ser cortesia.
Perguntei de onde era aquele café:
“Baxi kafei”.
E mostrou aquela caixinha escrita em português errado: Cafedo
Brasil (sic).


Aliás, quando falar Baxi, o X tem que ser pronunciado por trás
da língua, como o CH em alemão ao falar Richard, por exemplo. Se
você pronunciar BaCHI (na pronúncia do nosso idioma), vai estar
falando o baSHi deles, que é o número 80. Como os ideogramas em
chinês para Baxi e para Bashi são diferentes, eles não vão associar
que é Brasil falado com sotaque. E, pior, se você falar bashiren (no
lugar de baxiren, brasileiro), não quer dizer absolutamente nada.


O mesmo para Bali, oxítona (Báli, a ilha) e Baliiiii, oxítona
estendida (Paris). Parecem iguais, mas para eles faz muita diferença.
242

Caravan. O meu escritório extraoficial em Pequim, a Redação


avançada do MONITOR MERCANTIL, em frente à
embaixada brasileira. Um dos dois barezinhos em que mais
aconteceram os “causos” mais malucos contados aqui (o outro
ficou fora da foto, à esquerda). Onde se encontram brasileiros,
angolanos, espanhóis, moçambicanos, australianos... e até
chineses. Encontram-se, entre eles, diplomatas, beberrões,
jornalistas, tradutores e tantos outros que trabalham pela China.
Todos atendidos pelo garçom de Bangladesh ou o dono
marroquino, que fala sete ou oito idiomas, inclusive um pouco
de português. Aulas de kizomba nas tardes de domingo e
capoeira às segundas, quartas e sextas no início da noite.
Eu ia até dizer que se Pequim fosse “Casablanca” (o filme),
o Caravan seria o Rick’s Café. Achei que teria uma sacada genial
escrevendo isso. Mas aí soube pelo dono que todo mundo faz a
mesma associação...


Passei quase seis meses comendo nesse bar e nunca (nunca
mesmo) havia percebido que não havia batata frita, embora na
primeira página do cardápio houvesse um texto do dono falando
243
que muitas receitas ali eram de família; outras, que ele havia
aprendido quando morou em Nova Orleães; e que procurava servir
uma alimentação mais ou menos saudável e que contribuía com o
meio ambiente. Fato é que, num dos meus últimos dias em Pequim,
depois de algumas no Caravan, pedi batata frita ao dono e ele disse
incisivo: “mas eu não vendo nada frito”. Acabei ganhando uma
porção de petisco de batata... doreé.
Um pouco antes disso, soube que todas as carnes ali eram halal
(método de abate seguindo os rituais islâmicos). O dono não era
muçulmano, mas, como era árabe, a casa acabava sendo ponto de
encontro de muitos árabes e muitos muçulmanos. Para não ter que
fazer duas carnes, passou a optar por só fazer halal para todo mundo.
A carne bovina talvez tenha um sabor um pouco diferente (afinal,
entre outras regras, o sangue deve ser totalmente retirado da carcaça
antes de ser cortada). No frango, embora o protocolo seja o mesmo,
não percebi diferença.
Em maio, inclusive, às sextas, após o pôr-do-sol, havia um jantar
de ramadã (o mês muçulmano do jejum). Era aberto a clientes não
muçulmanos e eu mesmo fui experimentar. Não era barato, mas
como era rodízio, valia o “investimento”.
Uma vez perguntei a ele, o proprietário, se era de origem árabe.
Fiquei sabendo que metade árabe e metade berbere (que eu nem
sabia que era outro povo, achava que era uma etnia árabe). Não
recordo qual a metade paterna e qual a materna. Pedi para que não
se ofendesse, achei que tinha cara de judeu. Afinal, lembrava muito
um amigo judeu, justamente de origem marroquina.
Disse que não, nem um pouco. Afinal, “we are cousin” e repetiu
num português com sotaque: “Somos todos brimos, como vocês
falam”.
Imagino que algum brasileiro já deve ter falado brimo para ele
como piada e ele deva achar que é assim em português.


Depois de quase seis meses descobri que eu e o outro brasileiro,
no Caravan, por uma dificuldade em falarem nossos nomes, éramos
conhecidos como... “The Boys From Brazil”.
244
Filho de estrangeiros nascido em território chinês continua
sendo estrangeiro.


Todos os estrangeiros que conheci, fossem da nossa ou das
outras delegações do programa, fosse gente de embaixadas que
conheci lá, fossem africanos, americanos, europeus,
australianos, paquistaneses, indianos, árabes e até mesmo do
extremo asiático... tinham uma opinião mais ou menos igual
sobre sua estada na China: ninguém trocaria seu país por lá. A
China é para se passar um período (seja intercâmbio, seja para
fazer Mestrado ou Doutorado, seja missão diplomática) e voltar
para seu país. De todos os que conheci, só três estrangeiros
haviam trocado seus países pela China.
Um, na verdade, já estava lá havia quatro anos, era bem-
sucedido no que fazia, mas no fundo, tinha vontade de voltar.
Não sei se caberia bem no caso de estrangeiros que trocaram
seu país por lá. Era um baiano que entrevistei para uma matéria
sobre brasileiros que moravam na China. Era formado em
Relações Internacionais e havia trabalhado por quatro anos para
o Governo de Hong Kong em São Paulo. Era casado com uma
chinesa e já tinha até feito o HSK (exame de proficiência em
mandarim) e orgulhava-se de ter obtido o nível 5, numa escala
que ia até 6. Mas, apesar de trabalhar com negócios
internacionais, tinha, no fundo, planos de voltar ao Brasil “para
estabelecer uma ponte entre os brasileiros e os chineses, uma
consultoria”, assim disse para a matéria que escrevi.
O outro, efetivamente: era o marroquino dono do bar em
que parávamos. Perguntei se havia tido bar ou restaurante
quando vivia em seu país, disse que não. Também não entrou
em detalhes de qual havia sido seu métier. Tinha saído de seu
país fazia 14 anos para um projeto na China (também não disse
qual) que não deu certo. Acabou indo trabalhar em restaurante.
Primeiro, como empregado. Depois, como sócio em um segundo
estabelecimento e até, finalmente, ter um terceiro, próprio, para
chamar de seu.
245
A terceira foi uma angolana ligada ao pessoal da embaixada
e que era testemunha-de-jeová. Disse que se encontrasse um
chinês igualmente testemunha-de-jeová casaria e trocaria
Angola pela China.
Fora, isso, a resposta é quase unânime em não trocar.


Aliás, na China o estrangeiro é sempre estrangeiro. E isso
não é só com o ocidental: você só é “aceito” pela sociedade
chinesa se for casado com uma nacional (ou, no caso da mulher
estrangeira, com um chinês). Fora isso, pode morar lá há anos,
falar mandarim fluentemente, nem querer mais voltar para seu
país, mas é sempre estrangeiro. Por exemplo, se você não for
casado com uma chinesa, não o convidam para as casas deles.
Você pode trabalhar com o cara, chamar o chinês para um happy
hour, chamar para a sua casa... tudo isso ele vai. Mas ao
contrário, não rola. Só se você for casado com alguém do país.


Chinês acha que, em viagem, você chega dos eventos às 11h
da noite e às 6h da manhã do dia seguinte, partindo para outro
evento, passou a noite trabalhando feliz para seu jornal aqui no
Brasil. Não dorme, não toma banho, não faz nada além disso.


Quando tínhamos essas viagens a outras cidades, a agenda
era tão corrida, tão intensa, que não havia nem tempo para pôr o
peristaltismo para funcionar. Quando o “mecanismo” avisava
que era hora, você estava em algum compromisso; no pouco
tempo que havia disponível, a “máquina” estava pausada.
E assim aconteceu de, três dias depois nessa situação, você já
estar com dor de cabeça, mau hálito e tendo que correr o cinto
um ponto. Quando, finalmente, consegui conciliar cronograma e
peristaltismo, numa brecha de horário porque já não estava mais
aguentando... fiquei realmente impressionado com o que acabei
de parir. Com direito a dores de parto.
246

Mãe e filho em Yangzhou, a mais de 800 km de Pequim


Falando com um chinês que arranhava um inglês horrível (por
limitação de vocabulário e mesmo por sotaque)... perguntou de
onde eu era.
Falei: Brazil, Baxi.
Veio perguntar de qual cidade.
Falei: “Rio de Janeiro (à inglesa), Rio (à inglesa), Liô”.
Aí se empolgou:
Liô! Liô! Liô! I know! (E falava um troço que eu não entendia,
abrindo os braços).
Lá para tantas grunhiu:
“Stone man! Stone man!” (Homem de pedra), repetindo os braços
abertos.
Estava mesmo difícil de entender.
Foi quando me mostrou no celular uma foto e aí é que me
liguei que os braços abertos eram se referindo ao...
.
.
Cristo Redentor!
247
Quanabala Wan. É assim que os chineses falam... Baía de
Guanabara. E Ta Tang é como chamam... o nosso Pão de Açúcar.


Xangri-lá, de novo – No grupo da Ásia, havia um jornalista
do Nepal. Conversamos sobre Himalaia. A maior parte fica do
lado chinês (Tibet), mas o acesso é muito mais difícil... por isso,
seu país acaba sendo rota turística. Ele mesmo já havia subido
até a segunda base.
Foi quando me lembrei (de novo) da história de “Horizonte
Perdido”. Comentei sobre o livro que virou filme, que virou
remake musical e falei que a cidade da trama se chamava
Xangri-lá.
“Sim, que dizer utopia em tibetano. Todo mundo pergunta
isso. Mas não existe na vida real, só na ficção.”
E terminou dizendo:
“Xangri-lá não é uma cidade... Xangri-lá é um estado de
espírito. Xangri-lá está em cada um de nós.”

Yangzhou, a mais de 800 km


de Pequim
248
Em novembro de 2017, comecei a ler o livro “Duce! Ascenção e
Queda de Benito Mussolini”, de Richard Collier.
Como, além de muito longo (503 páginas), é uma leitura pesada
e eu não leio tão rápido assim... em maio de 2018, na semana de
minha viagem, eu pouco tinha passado da metade... cheguei a botar
na mala, mas, sei lá, achei meio prudente não levar a obra comigo.
Poderia ter problemas em sair com esse livro na rua. Acabei deixando
no Brasil para retomar (ou talvez recomeçar), quase um ano depois
(como fiz com “O Crime do Padre Amaro”, na época de minha
Pós-graduação... a interrupção foi tão grande que foi melhor
recomeçar do zero). Hoje, sinceramente, eu estou com medo é de
sair com essa capa no Brasil!

Enquanto no Brasil a venda de revistas e jornais impressos cai


cada vez mais (tanto que algumas publicações agora só existem na
internet), em Pequim, Xangai, Cantão... as bancas de jornais
continuam firmes e fortes. E são muitas, muitas mesmo, pelas
cidades. E olha que mesmo o chinês mediano nas grandes cidades é
altamente conectado.


Fui apresentado a um coreano na China que, quando eu disse
que era do Brasil e carioca, falou que já tinha morado no Rio (Xio,
como é na língua deles).
249
Só sabia três palavras que aprendeu: obligado (sic), valeu e tá
legal (estas duas faladas num português perfeito). Disse que era
tudo o que entendia ao telefone quando esteve aqui no país.

MONITOR MERCANTIL escrito em mandarim: literalmente “observador econômico”

A coisa no Brasil estava tão feia no período da eleição de 2018 que


propus, numa brincadeira, trocar de identidade com um chinês, ficar
no país e mandá-lo para ser recebido por minha família, no Galeão.
Meu emissário iria chegar ao LIÔ (Rio) usando o nome de MR. ZÊLFA
(Silva), ensinei como fazia para ir ao OBSERVADOR ECONÔMICO
(como eles traduzem MONITOR MERCANTIL), que sábado à
tarde é dia de BLAMA no mercadinho da PLAÇA do GLEGO e
domingo pela manhã, na PADALIA do KALINHOS. Domingo à
tarde é dia de passeio na PLAIA DA PICA. Só tenho que arrumar
agora um lugar para minha família esconder o Pet, o nosso cão.
Quanto a mim, ficaria na China de óculos escuros (para ninguém
perceber a diferença; no mais, o cabelo já havia alisado mesmo...) e
com a identidade falsa de XIN LING (Coração Zero). Por favor, não
espalhem o meu plano...


Meus olhos não ficaram mais “puxados” depois de seis meses na
China. Mas, sem dúvida, meu cabelo ficou mais liso. A água em
Pequim tem muitos produtos químicos, no tratamento que recebe.
Nem os chineses a bebem, só mineral. Acredito que tenha causado
algum efeito no cabelo. Outras pessoas da delegação acharam o mesmo
com elas próprias.


Quando fizemos um voo pela China Southern, de Yangzhou
para Pequim, a telinha do assento da frente ficava mostrando a
250
posição do avião num mapa-múndi escrito em chinês. Alguns
caracteres eu até sabia ler, mas o que me chamava a atenção era
um ponto no meio do nada em pleno Pacífico cuja palavra era
enorme para tão pequeno e os dois caracteres finais, muito
engraçados, se repetiam (o que queria dizer que significavam o
mesmo som). Tentei de todas as maneiras pensar que país seria...
não me vinha à cabeça nenhuma palavra. Até que, por uns breves
segundos, a tela piscou e entraram rapidamente todos os nomes
em inglês. O lugar misterioso era... Honolulu.

Serviço de tradução. Chinês


deve achar que russo em russo
se escreve Russian (e com
alfabeto latino); que espanhol
em espanhol é Spanish; que em
alemão o nome da língua é
German; que coreanos e japoneses vão entender, sim, o que está
escrito em inglês; e que francês (logo eles) amam falar French.


A pedido, ao longo de seis meses, tentei ensinar ao chinês
(que falava um inglês sofrível) do barzinho em frente à embaixada
algumas palavras em português, devido à proximidade com nossa
representação. Pedi um café (kafei) e veio um canecão (aliás,
com um café horrível). Falei “cafeZINHO”, forçando a
pronúncia em ZINHO e apontando para um xícara pequena que
havia no balcão... aí o chinês anota num caderninho que -zinho
é small em português. Foi difícil para explicar que small era
pequeno (até que o cara falava com uma boa pronúncia) e que
-zinho se punha no final da palavra para indicar que era pequeno.
Para facilitar, falei que era uma gíria (não é, eu sei, mas estava
complicado de entrar em mais detalhes).
Difícil foi na hora do big, porque o cara falava glande. Eles
trocam L por R e vice-versa, mas, como, em tese, não há letras,
é difícil você explicar o que é o som RRRRR (vibrante) e LLLLLL.
251
Mesmo tentando fazer analogia com outras palavras do idioma
deles (ren, por exemplo, que quer dizer pessoa), eles entendem
as palavras (ou sílabas) como um “todo”, não som por som de
letra por letra. Eu achei isso depois de seis meses. Apontei para
uma garrafa de uísque GRant’s, para tentar mostrar que o som
era igual. E o cara repetia GLants. Mostrei uma cerveja GRimberg
e o cara falava GLIMberg... estava realmente difícil.
Num gesto extremo, escrevi no caderninho do cara, repetindo
com a voz big = grrrrrrande. Embaixo escrevi GLANDE,
desenhei aquela genitália voadora, fiz uma seta para a cabeça e
falei hong tou (cabeça vermelha). Isso é GLANDE.
Acho que o cara aprendeu. Passou a falar GARANDE para
as coisas tamanho BIG.
Menos mal.

Pinceis de caligrafia chinesa à venda em Yangzhou: uma arte à parte

Eu queria ter sido mais lembrado por ser da terra do café do


que da terra do futebol...


Sabe a piada: “Vocêç gosta de b*ceta?/E de farinha?”
Vou atualizar para a China: “E de café?”
(Ni xihuan bi ma?/He kafei ma?)
252
Casais chineses não se beijam em público. Não é crime, não paga
multa, mas não é costume da etnia han (a majoritária no país). Não
recriminam quem faça (sejam estrangeiros ou nacionais de outras
etnias), mas deixam essas manifestações de afeto para momentos a
dois. Outras etnias também adotam isso. Aliás, a maioria das tantas
que existem lá. Mas fato é que vimos casais namorando em público.
Até comentamos isso quando soubemos da restrição. Depois que
voltei ao Brasil, lembrei que, como morávamos numa área de
embaixadas, pode ser que os casais nem fosse chineses, fossem de
outros países do Oriente.


Também homem não chama mulher para beber (bebida alcoólica)
nem para dançar na China. A menos, é claro, que sejam namorados,
marido e mulher, ou haja segundas intenções. Em caso de convite
sem qualquer conotação afetivo-sexual, homem só convida para
comer. Já elas, ao contrário, podem tudo.


Com a política de filho único adotada por décadas, homem é
maioria no país. Sempre ouvi falar isso. Mas não foi o que percebi.
No dia a dia, achei meio equilibrados os dois sexos, talvez até mais
um pouco de mulheres do que homens. Mas lembrem-se que eu
basicamente passei essa estada de seis meses em cidades (e grandes).
Acredito que na área rural (estive, mas não percebi) haja mesmo
mais homens do que mulheres.


E justamente pela política do filho único, toda aquela estrutura
familiar de nomes que eles ensinam nas aulas de mandarim (pai,
mãe, tio, tia, primo, prima...) está cada vez existindo menos. Foi o
chinês quem disse.


Ah, sim: homens aposentam-se aos 60 anos. E mulheres aos 55.
Independentemente da profissão.
253

Operária numa fábrica


chinesa. Não falava inglês.
Não sabia que seu avental
trazia escrito
“Se eu fosse um pássaro
saberia em quem c*gar”.

Em outubro (sobretudo no final do mês, quando já estávamos


para voltar) aconteceram uns dias de frio em Pequim. Muito frio.
Com sol (coisa rara no Rio). Foi aí que me dei conta de que calça
jeans só é quente no calor. No frio é fria à beça! Sempre falei que
curtia frio com sol, que era o melhor clima, coisa rara de acontecer
na minha cidade. Claro que meu referencial de frio com sol era
Petrópolis, Teresópolis ou, no máximo, Curitiba. Nunca meu
referencial havia sido Pequim, que fez 1ºC com sol.

“O bom filho à casa torna”.


Casaco chinês que comprei
em SP no ano de 2006 voltou
e terminou seus dias... na
China! Não havia mais
espaço na mala.


254
Aliás, fazendo as malas de volta (tive que comprar mais uma,
grande, de rodinhas, até porque o paletó que levei voltou na
mala – e ocupava espaço, devido às ombreiras – e o terno novo
veio no corpo), vi a quantidade de brindes que ganhávamos
nas visitas, a maioria CD e DVD. “Pronto, lá vem mais um cee-
dee”, falavam os hispânicos, pronunciando CD e DVD à inglesa.
Penso que falam assim mesmo nos seus dia a dia. Alguns era
verdadeiras “goiabas” (como diz meu pai), aquelas coisas inúteis
que alguns brindes são. Outros, como um gravata e um lenço
de seda (gravata para homens e lenço para mulheres, fazem
questão de dizer) numa caixa que parecia um álbum duplo de
LPs.
Aliás, muitos brindes só valiam mesmo pela embalagem.
Talvez seja o meu lado designer gráfico analisando. Infelizmente
não solicitei o serviço da DHL (pago pelo intercâmbio) para
trazer até 100 kg de minhas coisas fora da mala para o Brasil
(tinha que ser feito com antecedência demais e eu deixei para
fazer minha mala nos últimos dias). Em assim sendo, tive que
dar o jeito de alocar (e me desfazer) objetos pessoais nas
bagagens de volta.
E infelizmente, muitos brindes (até interessantes) foram
embora. Outros, só as caixas. Os brindes eu trouxe fora da
embalagem (que pesava muito).
Pau-de-selfie, livros e DVDs, mostruário de seda... Tive que
descartar tudo sem dó nem piedade.
Quando fui jogar na lixeira do condomínio (devidamente
selecionado papelão para um lado, plástico para outro...) vi que
alguém já havia feito o mesmo. E mais ou menos com os
mesmos objetos que eu fiz. Certamente alguém do nosso grupo
que passou pelo mesmo problema.


Depois, fui solicitar ao Tony que pesasse (na cozinha do
restaurante) as malas para ver se estavam no limite aceito pela
Emirates. Cliente folgado que eu sou, né? Outros também
fizeram. Fui explicar para uma representante de um país
255
anglófono da África e acabei me esquecendo que balança é
scale (e não balance). A mulher não me entendia. Tantas línguas
que eu acabo me confundindo...


Alguns dias antes da cerimônia oficial de encerramento no
mesmo auditório do condomínio onde tivemos a abertura,
houve uma outra, também de encerramento, só que das aulas
na universidade. Foi em uma das salas em que tínhamos as tais
palestras, com uma mesa enorme com vários lugares em frente
aos foninhos e microfones para a tradução simultânea. Não
seria, oficialmente, o que os chineses chamam de evento formal.
A maioria dos colegas foi mesmo de camiseta e tênis (e acho
que até havia gente de bermuda), como se ia para as aulas
regulares. Mas, como o tempo já estava esfriando, como já não
sou garotão, como ia haver um staff de professores,
coordenadores... e principalmente, como os chineses fazem
questão de alguma formalidade, vesti um paletó sem gravata e
uma calça de brim cáqui com sapatos (que eu havia comprado
no Brasil).
Depois, meio numa conferência (nós, de um lado da mesa; e
professores, gente da nossa anfitriã Associação Diplomática,
do outro, junto com mais alguns de nosso grupo que não
couberam de um lado só), tivemos que ouvir uma palestra (ou
entrevista, como os chineses insistem) sobre o programa (pela
enésima vez), sobre a importância de estarmos ali. Falou o
membro da Diplomacia, depois nosso professor de Mandarim,
na sequência, alguns coordenadores de alguma coisa e, ao fim,
tecíamos nossos comentários e observações ao longo de quase
seis meses. Fizeram questão que começássemos pela ponta e
viéssemos da direita (deles) para a esquerda. Começou uma
das representantes hispânicas, uma estudante de Jornalismo
(ainda não formada) de 22 anos. Muito tímida, como desde o
início, falou que era um momento único em sua vida e no início
de sua carreira, que a China era importante, que agora tinha
uma visão diferente do país, da “mídia não hegemônica”, etc,
256
etc, etc... Que agradecia ao governo chinês a oportunidade de
estar ali, que agradecia ao professor de Mandarim pelas aulas
que teve, que agradecia ao Mr. Shao, da Associação Diplomática,
etc. e tal.
Aplausos.
Passou para o nosso colega ao lado, que, embora mais
veterano, falou que era “um momento único em sua vida e na
sua carreira, que a China era importante, que agora tinha uma
visão diferente do país, da ‘mídia não hegemônica’, etc., etc.,
etc... Que agradecia ao governo chinês a oportunidade de estar
ali, que agradecia ao professor de Mandarim pelas aulas que teve,
que agradecia ao Mr. Shao, da Associação Diplomática, etc. e
tal.”
Aplausos outra vez.
Passou para o terceiro, falou mais coisas e também que era
“um momento único em sua vida e na sua carreira, que a China
era importante, que agora tinha uma visão diferente do país, da
‘mídia não hegemônica’, etc, etc, etc... Que agradecia ao governo
chinês a oportunidade de estar ali, que agradecia ao professor de
Mandarim pelas aulas que teve, que agradecia ao Mr. Shao, da
Associação Diplomática, etc. e tal.”
Aplausos mais outra vez.
Passou para o quarto, enfim, as pessoas tentavam acrescentar
mais coisas em cada breve discurso (10 minutos, era pedido),
sentados, mas as palavras acabavam sendo as mesmas. Talvez
aquilo inflasse o ego dos membros do Estado chinês em sua
vaidade de serem provedores, paternalistas e Grande Irmão.
Passou pelo outro brasileiro, falou em portuñol um pouco
diferente, que, quando havia recebido o convite para esse
intercâmbio, estava fazendo uma segunda Faculdade, de Relações
Internacionais, que teve que trancar para essa oportunidade, que
já tinha estado na China, a turismo, há 10 anos e que o país
havia mudado muito de lá para cá; e, principalmente, que antes
da viagem, ia fazer seu TCC sobre corrupção internacional e,
agora, depois do período, decidiu trocar o tema para China. Claro,
eu também faria o mesmo. Uma experiência única. Mas no final,
257
acabava sendo mais ou menos igual: “um momento único em sua
vida e na sua carreira... etc. e tal.”
As falas nossas não eram decoradas, mas, como todo mundo
tinha que falar, acabavam saindo mais ou mesmo as mesmas
respostas, até por questão de cortesia.
Chegou a minha vez. À medida em que os outros foram falando,
rascunhei no bloquinho que nos deram alguns tópicos para eu tentar
fugir do lugar comum. Comecei dizendo que minha opinião era mais
ou menos a mesma dos colegas. Acrescentei que já havia estado na
China em 2017, mas por uma semana somente e só em Pequim.
Que era diferente de ter morado por seis meses na China. Falei que,
quando soube que havia sido selecionado, comentei ainda no Brasil
com um amigo piloto que morou em vários lugares, que me disse:
“Vá, porque uma coisa é, quando perguntarem ‘Você conhece a
China?’, você dizer ‘passei uma semana em Pequim’; outra coisa é
você responder: ‘Eu morei na China’.” E falei que hoje eu podia
dizer que “morei na China”.
No final repeti aquela baboseira de “um momento único em
minha vida e na minha carreira, que a China era importante, que
agora tinha uma visão diferente do país... que agradecia ao governo
chinês, ao professor de Mandarim, à Associação Diplomática, etc. e
tal.” Mas, sei lá, num clarão de luz, tive a sacada de dizer que
agradecia também pelo profissionalismo com que fomos recebidos.
Profissionalismo é uma palavra que agrada sempre, sobretudo
a... profissionais.
Um breve parêntese aqui: uma vez, faz muitos anos, uns 15 talvez,
numa das raras vezes em que eu estive desempregado, fui ajudar
um conhecido que montou um quiosque de sanduíches num evento
do... digamos “mundo coiffeur” num domingo e segunda-feira (dia
tradicionalmente de folga nos salões) em um dos armazéns do nosso
cais do porto, aqui no Rio. Pagamento baixo, muita ralação (tive até
que carregar caixas de refrigerante), mas valeu a experiência e ainda
entrou algum, sobretudo quando se está parado.
Valeu, entretanto, por algumas experiências:
Uma foi rever alguns colegas de escola que hoje (naquela
época) tinham se tornado empresários e distribuidores de material
258
cosmético. Outra foi um espetáculo único, bem de perto, de dois
rebocadores “estacionando” um cargueiro ao longo do porto.
Praticamente quase todos os presentes (pelo menos dos que
estavam nos estandes do lado de fora) largaram suas atividades
para ver o vaivém (que durou quase meia hora) dos rebocadores
pequeninos manejando o grandalhão. E sentir o cheiro de lodo
que levantava das águas da Baía de Guanabara.
A terceira coisa interessante no evento foi uma premiação que
houve (e aí tem a ver com o encerramento na China) em que o
apresentador (que era presidente do sindicato ou associação de
cabeleireiros, sei lá), ao laurear, falava que aquele prêmio era pelo
reconhecimento “pelo seu profissionalismo”. E também “gostaria
de agradecer pelo seu profissionalismo”. Com o tempo passei a
perceber que profissionalismo é uma palavra que agrada a qualquer
profissional. Mais do que dizer que o cara é um profissional ético.
Até porque, nos tempos atuais, qualquer pilantra, safado,
imoral... sobretudo na nossa política, levanta a bandeira “pela
moralidade e pela ética na política”. Virou meio chavão e desgastou
uma causa tão nobre.
Sem falar que, voltando à questão profissional, o profissional
pode ser ético, mas ser despreparado ou fraco tecnicamente. Ou
seja, pode ser um profissional ruim, embora ético no trato com
seu cliente, concorrentes e sociedade.
Ao passo que quem age com profissionalismo necessariamente
inclui agir com ética. Um engloba o outro, mas a recíproca, embora
ande junta, necessariamente não seja verdadeira.
Enfim... parêntese fechado, voltando ao encerramento na
China... num clarão de luz, tive a sacada de dizer que agradecia
também pelo profissionalismo com que fomos recebidos e
tratados ao longo do período.
Aquilo além de ter impressionado (os chineses que falavam
espanhol aplaudiram na hora em que falei, coisa que não fizeram
com os outros, só faziam ao fim), deve ter estimulado os demais.
No final, como forma de agradecimento, dei a representante
da Diplomacia chinesa um livro trilíngue (português, inglês e
chinês) que o jornal em que trabalho publicara há alguns anos
259
com fotos de um artista chinês sobre o Brasil. Aliás, foi uma falha
na minha visita de uma semana em 2017... não levamos a
publicação... Só discutimos isso no jornal quando voltei ao
Brasil... Paciência...
Estourei os 10 minutos, aplausos finais e dali para frente,
todos os demais passaram e incluir o tal do “profissionalismo”
em suas falas...

Última aula de mandarim com Prof. Chang Fuliang (ou Luís, como se apresentava em espanhol)
Alguns dias antes do encerramento na universidade, tivemos
que gravar um vídeo curtinho sobre nossa experiência na China.
Eu imaginava que isso fosse acontecer mais cedo ou mais tarde,
porque na cerimônia de abertura nos foi exibido um, com o grupo
do ano anterior. Cada um falava, rapidinho, o que achou sobre
os seis meses no país. Um dos hispânicos daquele ano falou em
mandarim, porque realmente dominava o idioma. Deixou de ser
jornalista em seu país para ser professor de espanhol na BFSU.
Os demais (as brasileiras, inclusive) falaram em espanhol.
Para este ano, pensei, gostaria mesmo de dominar o mandarim
a esse ponto, mas não dava. E falar em espanhol, embora não
me seja problema, acho que num vídeo oficial para posteridade,
só iria reforçar a ideia de que no Brasil falamos a língua de
Cervantes Então, enfiei na cabeça: se for possível, quero falar
em português.
260
Fui escrevendo no computador, ao longo do tempo em que
passei na China, um breve roteiro do que deveria ser dito, ainda
que descontraidamente, nesse “discurso” final. Lembrei do de
abertura que a colega mexicana havia feito em maio... no púlpito,
falava da similaridade dos chineses com os povos da América,
da teoria de que o indígena teria vindo da Ásia pelo extremo
norte do continente, milênios atrás... de que chineses e hispano-
americanos eram unidos por prezarem a instituição familiar...
Enfim...
Como eu tinha o texto do discurso inicial guardado, serviu-
me de roteiro.
Pensei em abrir com Ni Hao (olá, em mandarim) e depois
dizer em português que gostaria de dominar a língua deles a
ponto de fazer o discurso no idioma oficial local, mas que ia
falar na “língua do meu país”.
Resolvi citar similaridades entre China e Brasil, de que
éramos (os dois), um gigante na região e o único que falava
um idioma que não era oficialmente de mais ninguém no
continente; que éramos parte do Brics; que devido ao tamanho
e à variedade étnica e cultural, costumávamos dizer no meu
país que existem muitos Brasis no Brasil. E assim também
era a China.
Escrevi também que eu já havia estado em Pequim a
trabalho, no ano anterior, por uma semana, mas que não era é
como passar quase seis meses no país. E citei essa frase do
amigo piloto que “Eu morei na China”.
Enfim, lisonjeei dizendo que o país se abria comercialmente
cada vez mais para o Ocidente. “Um país que quer conhecer
cada vez mais nós, ocidentais, esses seres estranhos, todos
muito parecidos, de olhos grandes, morenos, peludos e de
cabelo crespo! Que bebem gelado e que vivem fotografando
as coisas!...”, escrevi assim.
Enchi a bola do Cinturão e Rota, “não um projeto, mas
uma iniciativa” e falei que era “um país realmente socialista
na mais plena acepção da palavra. E com características
próprias, como fazem questão de dizer.”
261
Escrevi umas duas páginas de tópicos soltos ao longo dos
meses, depois iria gravar em casa para ver quanto tempo daria e
deixei de carta da manga. Mas não houve como fazer isso. Um
dia, no meio da última aula oficial de mandarim (não o
encerramento na faculdade), um dos chineses assistentes da
Diplomacia, do lado de fora da sala, no corredor, chamou um
dos nossos. A pessoa foi (acho até que era uma mulher), passou
um tempo fora da classe e quando voltou, disse que a presença
de outro (dava o nome) era solicitada. Quando perguntaram o
que era, disse que pediram para não dizer.
Como já disse, tudo na China tem essa história de sigilo, um
saco, às vezes com as coisas mais bobas.
Bom... chegou a minha vez de ser solicitado e fui lá. Era para
gravar o tal vídeo falando da China.
Putz.
Falei que não me havia preparado. Estava de cabelo grande
(realmente precisava cortar), com uma camiseta suada, de barba
por fazer. Não sabia que iria haver uma gravação. Disseram em
espanhol que melhor que fosse assim, porque aí iriam ver o João ao
natural. Perguntei se poderia falar em português. Podia. Um dos
chineses falava espanhol bem e estava começando a estudar nosso
idioma, falava poucas palavras com sotaque lusitano (afinal, estudava
em Macau) e tinha uma dificuldade enorme em me compreender;
eu já disse isso numa ocasião anterior.
Bom... Tentei lembrar do que tinha rascunhado... Falei Ni Hao,
meu nome, disse que era do Rio de Janeiro, no Brasil, e que gostaria
de dominar o mandarim a ponto de fazer o discurso no idioma deles,
mas que ia falar “em português, a língua do meu país.”
Puxei pela memória o que eu havia escrito e lá para tantas soltei
“Pequim”.
Pararam a gravação. “Pequim, não, Beijing”, pediram em
espanhol. Sempre esqueço disso. Pedi desculpas, falei que no Rio
“Pequim” é a forma mais usual e que acabei me empolgando por
falar na minha língua.
Comecei de novo: Ni Hao, meu nome, Rio de Janeiro, Brasil,
gostaria de dominar o mandarim, mas ia falar em português.
262
Disse que era uma experiência incrível, que já tinha estado na
China por uma semana em 2017, a trabalho, mas que não era como
morar no país, que tinha o amigo piloto internacional, etc... que
agora eu podia dizer que “Eu morei na China”.
Depois, fui enfático: “Hoje eu posso dizer: ‘Eu vivi NA China.
Eu vivi A China’.”
Terminei comentando que em português havia uma palavra
que dizem que não existe em mais nenhuma outra língua. Chama-
se “saudade” e, embora seja usada como uma coisa positiva, é
um sentimento triste, melancólico, pelo afastamento de uma
pessoa, uma coisa ou um lugar, ou à ausência de experiências
prazerosas já vividas, assim o dicionário definia. “Mais ou menos
como xiangnian para vocês.”
E terminei dizendo que era isso que eu ia levar da China
quando voltasse a meu país. “Saudade. Muita saudade.”
No final, falei Obrigado e Xiè xiè (o mesmo na língua deles).
Achei que tinha ficado ruim: “Eu não tenho muita habilidade
em aparecer para a câmera, o que é um contrassenso, partindo
de um jornalista”, disse.
“Ficou óóóóótimo”, respondeu o chinês que estudava
português, igual àquelas vendedoras que precisam bater cota e
empurram qualquer roupa para o cliente.
Pediram para chamar outro colega na sala para gravar o vídeo,
mas não dissesse o que era. Parece que o elemento surpresa faz
parte do jogo, sei lá.
Na cerimônia de encerramento, obviamente o tal audiovisual
foi exibido: o vídeo feito para estrangeiros era todo narrado em...
mandarim. E legendado em espanhol. E quando aparecia algum
hispânico falando, legendado para eles, os chineses. Primeiro,
falavam da turma de 2017, mostraram de novo alguns trechos
dos testemunhos dos que estiveram naquele ano (inclusive das
duas brasileiras e do hispânico que dominava mandarim). Depois
falaram do programa do nosso ano. Exibiram um trecho do vídeo
da abertura, mostraram várias fotos e vídeos de atividades
nossas, mostraram o catálogo do que havíamos feito ao longo de
263
seis meses e lá estava a página aberta... eu, todo barrigudo,
corcunda e torto fazendo taichichuan...
Risinhos no auditório entre nosso grupo.
Depois vieram os tais depoimentos. Nem todos apareceram.
Não fiquei sabendo se nem todos quiseram gravar ou o vídeo foi
cortado (por questão de minutagem) e alguns ficaram de fora.
Uma das primeiras caras que apareceram foi a minha, na tal
gravação no meio da aula, de barba por fazer, camiseta suada,
tudo legendado em chinês. Mas, por vezes, em algumas frases
que eu falava, vinham na legenda umas letrinhas dançando na
tela com alguma coisa que eles, sei lá, achavam importante.
Depois de todo o vídeo completo, aplausos e, de fato,
começou a cerimônia final.
Mais tarde, no coquetel, perguntei o que estava escrito por
vezes com mais destaque na minha fala. Foi a história do amigo
piloto internacional dizendo: “Vá, porque uma coisa é, quando
lhe perguntarem ‘Você conhece a China?’, você dizer ‘passei uma

Mãe e filho em Ghizou,


ambos de um outra etnia
que não a han,
majoritária no país;
na página seguinte,
criança em uma das
Escolas de Confúcio,
em Pequim
266
semana em Pequim’; outra coisa é você responder: ‘Eu morei na
China’.”
Acharam aquilo sensacional. Assim como a história da
saudade.
Enfim, no fundo, esse programa não é só para fazermos
propaganda (ou até mesmo relações públicas, mas jamais
jornalismo) da China nos nossos países, mas também servirmos
como peça de propaganda ufanista interna para eles mesmos.


Ainda na cerimônia de encerramento de todo o programa,
depois do vídeo, era incompreensível como chamavam nossos
nomes ao palco. Só soube que eu era eu quando ouvi Juan.


Ainda cerimônia (II) – Adivinha qual embaixada não
mandou representante? Nem mesmo um aspone?

No encerramento, só tenho foto com o grupo todo e esta, sozinho, segurando o diploma
267
Dá uma frustração FDP ver
todo mundo publicando foto
com o diploma de fim de
intercâmbio sendo cumpri-
mentado por alguém do seu
governo (embaixador ou o que
seja) e você não ter nenhuma,
simplesmente porque ninguém
foi reconhecê-lo. Eu me senti
um indigente.
Na abertura, nós fomos o
único que não tivemos
embaixador, mas veio um
representante, um secretário.
Um cara muito legal, por sinal.
Precisamos algumas vezes (não
só como jornalista, mas como
cidadão) e ele sempre chegou Rua em Ghizou, uma das fotos que postei
junto. Realmente profissional. mais curtidas em minha rede social
Na despedida, sabíamos que ele não iria, porque nos mandou
uma mensagem dizendo que estaria em viagem... Depois
soubemos que esteve doente... Que seja... pelo menos, teve a
preocupação de avisar. Legal isso. Mas pensamos que fosse
alguém. Não foi ninguém, nem mesmo um funcionário
subalterno. Aquela foto oficial segurando o diploma com o chinês
da Associação Diplomática e seu respectivo embaixador ou
adido... todo mundo fez, menos eu e o outro brasileiro.
Simplesmente porque não havia ninguém.
O Estado brasileiro (acima dos governos e das pessoas dos
embaixadores) – aqui representado na figura da Diplomacia – dá
muita bola-fora ainda. Até porque de onde foi a cerimônia (onde
morávamos) até a embaixada era apenas um quarteirão!
Parece-me mesmo que esse tipo de evento não tem relevância
para nossa Diplomacia; já tinha desconfiança disso quando
ocorreu na abertura oficial. Eu, de qualquer forma, muito p*to,
fiz minha parte e levei o tal livro trilíngue até a embaixada, como
268
presente do jornal que eu estava representando. Além do livro,
um catálogo final do nosso programa que nos deram no dia do
encerramento. Tentei fazer relações públicas (até porque além
de jornalista, também sou RP), embora a vontade tenha sido de
mandar todo mundo tomar no *.
Aliás, foi difícil entrar na embaixada sem horário marcado,
mesmo mostrando o passaporte, apresentando-se como cidadão
brasileiro, e mostrando o cartão de visitas do secretário com quem
eu queria falar. Há várias “barreiras” de segurança antes da
recepção. Por acidente, passou por mim, de carro, um amigo de
um amigo que era adido na embaixada e com quem eu havia
conversado na festa do 7 de Setembro. Nem reparei quem estava
dirigindo o veículo. Parou longe, veio andando a pé, falou alguma
coisa em mandarim para o cara da portaria e chamou-me para
entrar. Adentramos, aí expliquei a história do livro, com a maior
paciência. Deixei um exemplar para a embaixada, finalmente. E,
no final, ainda ganhei um cafezinho. Do Brasil.

Hotel que também abrigava parque temático


No meu último dia na China, postei o seguinte na minha página
numa rede social:
Eu venho do futuro.
Estive seis meses à frente do tempo de vocês, mas sempre com respostas
retardadas. E minha vida no futuro, enfim, chegou ao fim.
Passarei 24 horas voando num dia que não existe. Vocês tentarão falar
comigo, mas eu não estarei lá nem aí nem aqui e sequer mesmo na blogosfera
para respondê-los.
Não só porque estarei desconectado, mas porque vou estar na contramão
do tempo.
269
Vou estar num espaço de tempo tanto no mundo virtual como real.
Cruzarei continentes, países cujos idiomas não falo, povos que nem conheço,
terras para as quais não tenho visto.
E, apesar disso tudo, chegarei só seis horas depois.
E, neste meio tempo, não estarei nem ainda aí nem mais aqui.
Estarei no mundo, por aí, mas em lugar nenhum.
Num mundo paralelo.
Chegarei vindo do espaço, passando por vários tempos até estar no tempo
de vocês.
Chegarei vindo do espaço, voando com pessoas de outras nacionalidades,
que não falam minha língua, de outras religiões e com outros biótipos.
Passarei por vários fusos, dormirei de dia, ficarei acordado de noite. E
como as horas vão mudando, também dormirei de noite e ficarei acordado de
dia. Tomarei café na hora do almoço, jantarei na hora do café, visualizando
pela janelinha um mar de nuvens em que as horas não parecem passar.
E para essa viagem para trás, deixei objetos aqui no apartamento por
falta de espaço ou excesso de peso na bagagem. Fica um imóvel como se o
morador tivesse sido abduzido. Pelo tempo.
Chego ao Brasil e encontro minha nova ex-casa, certamente com
mudanças... terei que me adaptar ao lugar de onde saí um dia.
Sou uma espécie de nômade do espaço e tempo, vivendo um oitavo dia que
não existe na semana, 24 horas que vão sumir, mas ainda a tempo de ler
este texto ao chegar aí como se tivesse sido escrito agora.


Eu venho do futuro que é socialista. E volto para o Brasil atrasado.
Foi a Física quem disse.
270
P.S.

J
á no Brasil, foi dia de pôr as aulas de mandarim em prática
aqui no Rio. Comprei um pastel com Coca-Cola numa
lanchonete. E um cinto numa lojinha de quinquilharias.
Ambas de chineses. Na hora do troco, falei xiè xiè (obrigado).
Na hora do “de nada”, ouvi a mesma frase:
Yongyuan huílai ba (Volte sempre).
Algumas semanas depois, um grupo de chineses do Diário do
Povo veio “reforçar o intercâmbio” no jornal em que trabalho.
Como eu “falava mandarim” (entre aspas), fui chamado à reunião.
Alguns falavam inglês, outros arranhavam espanhol. Na hora
do xiè xiè (obrigado), responderam com... outro xiè xiè (obrigado).
Em nenhum dos três casos, nada de bukeqi (bokhete, como
eles falam “de nada”).

Xiè Xiè (obrigado) Bukeqi (de nada)


272

Você também pode gostar