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Trabalho e perspectivas de formação dos trabalhadores

Espaço Aberto

Trabalho e perspectivas de formação dos


trabalhadores: para além da formação
politécnica*

Paolo Nosella
Universidade Federal de São Carlos, Faculdade de Educação e Programa de Pós-Graduação em Educação

Quem não vê bem uma palavra, mais tarde, expressaria minha posição num texto es-
não pode ver bem uma alma. crito que somente agora consegui redigir.
Considero que os educadores brasileiros marxis-
(Fernando Pessoa, 1997, p. 9)
tas, ao erguerem na atualidade a bandeira da politec-
nia, acenam semanticamente para uma posição teóri-
Nossa idéia central era: ca historicamente ultrapassada que, entretanto,
como podemos nos tornar livres? representou, nos anos de 1990, o posicionamento
majoritário desses educadores. Quem discordasse dis-
(Antônio Gramsci, 1987, p. 622)
so era considerado, quase sempre, alheio ao campo
teórico marxista, ou, pelo menos, duvidava-se de sua
plena ortodoxia. No entanto, o marxismo é um méto-
do de investigação que continuamente se renova e,
Justificativa
por isso, amplia seus objetos de pesquisa, aprofunda
seus conceitos e atualiza sua linguagem, sem prejuí-
Há tempo, talvez mais que uma década, disserto,
em palestras e aulas, sobre esse tema. Toda vez que zo da ortodoxia metodológica.
Preliminarmente, esclareço que, do meu ponto
me envolvia no debate, prometia que, mais cedo ou
de vista, a crítica que dirijo à bandeira da politecnia
não é uma mera questão de pureza semântica. A lin-
guagem (e até mesmo a gramática) é uma expressão
* Conferência realizada no I Encontro Internacional de Tra- histórica que nasce do processo cotidiano de comuni-
balho e Perspectivas de Formação dos Trabalhadores promovido cação com toda a sociedade, e por isso revela inten-
pelo Labor, de 7 a 9 de setembro de 2006, na Universidade Fede- cionalidades e interesses práticos, políticos ou ideo-
ral do Ceará (UFC). lógicos. É um instrumento fundamental para a

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conquista da hegemonia: “A linguagem, enquanto educação” como princípio pedagógico, e só eventu-


locus de conhecimento, de projetualidade, de expres- almente como fato.
são e interação, é o campo no qual, já faz algumas A expressão “marxismo” indica a corrente de
dezenas de milênios, trava-se a grande batalha que pensamento que tomou o nome do pensador Karl
transforma os animais humanos, quando a vencem, Marx. É uma expressão complexa e polêmica. Para
em seres plenamente capazes de sentido e de histó- uns, é um “palavrão” que assusta. Para outros, é algo
ria” (Mauro, 2001, p. 21). Assim, quando alguém in- teoricamente ultrapassado, démodé. Para mim (e mui-
siste no uso de expressões lingüísticas que foram ban- tos outros) é o método de investigação científica que
deiras de políticas educacionais de outros tempos e melhor dá conta de nossas preocupações. Para a aná-
em outros contextos, se não objetiva tão-somente se lise que aqui me proponho, o termo “marxismo” indi-
comunicar com um restrito grupo de iniciados, subli- ca o pensamento expresso nos escritos de Marx (e
minarmente afirma que aqueles tempos e contextos Engels), Lenin, Gramsci, Mario Alighiero Manacorda
passados conservam hoje o mesmo significado cultu- e dos que, brasileiros ou não, fundamentam suas aná-
ral de antigamente. Mas isso não é verdade: os tem- lises nos escritos desses autores.
pos mudaram. Já escrevi em outro texto (Nosella, 2002) que mi-
Nestes últimos anos, a polêmica sobre o uso do nha leitura dos escritos marxistas parte de uma impor-
termo politecnia, para referir-se à formação dos tra- tante indicação feita por Norberto Bobbio. Diz este
balhadores desejada pelos marxistas, arrefeceu. Pou- que Gramsci introduziu na Itália o marxismo investi-
cos ainda falam em politecnia. Então, por que voltar- gativo, confrontando-o ao marxismo didascálico ou
mos ao assunto? Por duas razões: porque há várias doutrinário. Com isso, Bobbio contrapôs o marxismo
pessoas que ainda solicitam esclarecimentos sobre investigativo ao marxismo científico. Este, historica-
essa questão “semântica” e, muito mais, porque há mente determinista, influenciado pelo espírito cienti-
outras que indagam sobre qual seria, então, a expres- ficista e evolucionista da época, domesticou a dialéti-
são ou bandeira mais adequada aos dias de hoje para ca histórica, reduzindo-a a uma relação entre oposições
indicar o horizonte da política educacional marxista cuja síntese é conhecida a priori, e definindo o socia-
e socialista. lismo como o futuro dos homens, por meio de etapas,
estratégias, tempos e movimentos precisos. Assim, o
Esclarecimento dos termos e fontes de estudo determinismo marxista transformou o processo histó-
rico em metafísica, e o trabalho político em doutrina-
A expressão “trabalho e educação” pode indicar mento. O marxismo investigativo, ao contrário, a par-
um fato existencial e um princípio pedagógico. O fato tir dos anos 20 do século passado, interpretou o método
existencial refere-se à íntima relação entre o trabalho de Marx de forma diferente, entendendo-o como um
e a educação, que sempre ocorreu na história, pois processo de investigação contínua, pois a história dos
desde que o homem é homem existe reciprocidade homens está sempre aberta a vários desdobramentos,
entre as atividades voltadas para a sobrevivência hu- dependendo dos reveses econômicos, das lutas e das
mana e as formadoras da sua personalidade, valores, vontades humanas, e até mesmo da “fortuna”, isto é,
hábitos, gostos, habilidades, competências etc. En- da sorte. A compreensão desses desdobramentos his-
quanto princípio pedagógico, no entanto, o trabalho tóricos obtém-se através de contínuas pesquisas e aná-
como fundamento da educação tornou-se tema im- lises realizadas com base no método dialético marxis-
portante para os pedagogos e eixo principal da teoria ta, que aponta para um horizonte de valores humanos
educacional marxista a partir do surgimento da in- que, nesta sociedade, existem apenas potencialmente,
dústria e do aparecimento dos movimentos socialis- a saber, a liberdade, a igualdade e a justiça social en-
tas. Neste texto, considero a expressão “trabalho e tre os homens. Com isso, a dialética marxista investi-

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gativa pretende mobilizar corações e mentes para a traduzido para o português em 1991). Alguém
concretização desses valores, afirmando que a luta de objetará que se trata de uma leitura mediati-
classe desencadeia uma dialética cujo resultado, po- zada por um comentarista. Para mim, porém,
rém, não é garantido a priori, nem são conhecidas a Manacorda é uma mediação totalmente posi-
priori suas formas de luta. Dois intelectuais emble- tiva, porque é um lingüista e um filólogo.
máticos deste marxismo investigativo são Antonio Conhece o alemão, o inglês e o russo, além
Gramsci e Lev Semenovich Vygotsky. do grego e latim clássicos. Ele próprio tradu-
Se um certo determinismo filosófico, no passa- ziu do original os textos referentes à educa-
do, contribuiu didaticamente para motivar a militân- ção e trabalho dos clássicos marxistas e, por
cia socialista, a filosofia moderna dispensa o recurso ser filólogo, data-os, identificando, se possí-
a essa didática: “Com respeito à função histórica de- vel, os meses e os dias em que foram redigi-
sempenhada pela concepção fatalista da filosofia da dos, reconstruindo as circunstâncias político-
práxis, pode-se fazer o seu elogio fúnebre, reivindi- ideológicas que os influenciaram. Repito o
cando a sua utilidade para um certo período históri- que já escrevi em l991, nas orelhas da tradu-
co, mas, justamente por isso, sustentando a necessi- ção do livro citado, Marx e a pedagogia mo-
dade de sepultá-la com todas as honras cabíveis” derna: “Manacorda, neste livro, traduz as
(Gramsci, 1999, p. 112-113). Com efeito, a contun- nuanças semânticas dos termos e expressões
dente e exaustiva crítica que Gramsci moveu, no Ca- mais importantes da linguagem marxiana. Sua
derno 11 (l932-1933), ao Ensaio popular de sociolo- análise vai desvelando os sentidos exatos do
gia, de Nikolai Bukharin, representou o elogio fúnebre, ensino politécnico e do ensino tecnológico,
por ele próprio auspiciado, do determinismo marxis- propostos por Marx”. Portanto, Manacorda
ta. Obviamente, assim como o cientificismo positi- não representou para mim uma cortina de fu-
vista e o evolucionismo influenciaram o marxismo maça a embaçar o texto original; ao contrá-
científico, também a filosofia moderna do século XX rio, ele é um mistagogo que me conduziu à
influenciou o marxismo investigativo, sem, todavia, compreensão exata dele. Em suma, os textos
comprometer a originalidade e a ortodoxia do seu traduzidos por ele são mais confiáveis do que
método. Ao contrário, este foi enriquecido de novas muitas traduções para o português.
contribuições. De Manacorda, além dos dois estudos cita-
A distinção entre o marxismo doutrinário e o in- dos sobre os clássicos do marxismo, estão à
vestigativo é da máxima importância, equivalente à disposição várias manifestações críticas à
distinção feita anteriormente por Marx entre o socia- educação politécnica: desde conversas e car-
lismo utópico e o socialismo científico. tas pessoais, entrevistas e artigos publicados
As principais fontes de estudo que informaram o em revistas italianas, até a última videocon-
conteúdo deste texto são as seguintes: ferência, proferida na abertura do VII Semi-
nário Nacional de Estudos e Pesquisas: His-
a) Os clássicos do marxismo, Marx, Engels, tória, Sociedade e Educação no Brasil
Lenin. Com destaque para os principais tex- (HISTEDBR), em Campinas, a 10 de julho
tos que se referem às categorias trabalho e de 2006, e o DVD Mario Alighiero
educação. Observo que consultei essas fon- Manacorda: aos educadores brasileiros, pro-
tes por meio dos estudos feitos por Mario duzido em sua casa de campo, em Bolsena-
Alighiero Manacorda, principalmente Il mar- VT (Itália), a 7 de julho do mesmo ano.
xismo e l’educazione, Marx, Engels, Lenin b) Uma segunda fonte importante de consulta
(l964) e Marx e la pedagogia moderna (1966), foram os escritos de Gramsci, antes e durante

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o cárcere: cartas, ensaios, cadernos, artigos Os demais autores brasileiros que abordam a te-
de jornal, documentos. Em suma, tudo o que mática da politecnia participam, quase todos, do Gru-
ele escreveu, na edição crítica da Editora po de Trabalho Trabalho e Educação da Associação
Einaudi. Deste autor, não utilizo um especí- Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
fico comentarista como chave de leitura. O (ANPEd). Entre eles, destaca-se o nome de Lucília
próprio Manacorda, que muito me ajudou na Regina de Souza Machado, pela firme defesa que faz
leitura de Marx e Lenin, lê Gramsci à luz do da educação politécnica e do termo politecnia. Tam-
Partido Comunista Italiano (PCI). Discordo bém Gaudêncio Frigotto faz as defesas da educação
dessa chave interpretativa, sobretudo para a politécnica, embora se acautele, semanticamente, acres-
leitura dos Cadernos do Cárcere após l931. centando o termo “onilateral”, por ele preferido.
O estudioso italiano Giuseppe Vacca ajudou- Os principais textos desses autores sobre a te-
me na crítica à leitura de Gramsci feita pela mática foram apresentados na VI Conferência Brasi-
óptica do PCI como instância institucional. leira de Educação (CBE), realizada na Universidade
Assim, atualmente, leio este autor de forma de São Paulo (USP), de 3 a 6 de setembro de 1991, e
bastante autônoma. encontram-se publicados no volume Trabalho e edu-
c) A terceira fonte de estudo deste ensaio é um cação, publicado na Coletânea CBE, em 1992. Ainda
conjunto de textos de autores brasileiros, ge- em l991, Gaudêncio Frigotto publicou outro texto,
ralmente educadores marxistas que, abordan- “Tecnologia, relações sociais e educação”, na revista
do a relação entre trabalho e educação, defen- Tempo Brasileiro. Como já disse, no GT Trabalho e
deram para a nossa realidade a educação Educação da ANPEd a bandeira da educação politéc-
politécnica. Destaco, particularmente, o nome nica foi hegemônica nos anos de l990, embora alguns
mais conhecido entre esses educadores, o do participantes do grupo discordassem, declarada ou
professor Dermeval Saviani. Ao citar o queri- silenciosamente, da nomenclatura.
do Dermeval, não posso deixar de fazer uma Entre as poucas manifestações escritas que criti-
pequena observação: é o educador brasileiro cam a educação politécnica, além das minhas inter-
que mais admiro. Se alguém achar que entre venções nas reuniões da ANPEd, em palestras ou em
nós há alguma rusga que transcenda o âmbito breves parágrafos de textos, quero registrar a “Entre-
dos debates teóricos, está enganado. Antes de vista com Mario A. Manacorda”, realizada por
escrever este texto, o procurei, comunicando- Rosemary Dores Soares (2004) e publicada na revis-
lhe meus propósitos e meu ponto de vista. Ele ta Novos Rumos, do Instituto Astrogildo Pereira.
forneceu-me os escritos de sua autoria em que Merece, finalmente, atenção o trabalho de Eneida
faz a defesa da politecnia. Orientou-me, in- Oto Shiroma e Roselane Fátima Campos (1997),
clusive, na leitura deles, explicando-me o con- “Qualificação e reestruturação produtiva: um balan-
texto em que foram redigidos. Segui à letra ço das pesquisas em educação”, que sistematiza os
sua orientação. O primeiro texto, Sobre a con- principais estudos que marcaram o debate sobre tra-
cepção de politecnia (Saviani, 1989), foi apre- balho e educação nas pesquisas educacionais na dé-
sentado durante os trabalhos do Seminário cada de 1990. Nesse trabalho, o tema politecnia e
Choque Teórico, realizado no Politécnico da polivalência recebe destaque.
Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação
Oswaldo Cruz, nos dias 2, 3 e 4 de dezembro A crítica
de 1987. O segundo, “O choque teórico da
politecnia”, foi publicado na revista Trabalho, Neste tópico, exporei as razões que justificam
Educação e Saúde (Saviani, 2003). minha crítica à proposta de educação politécnica para

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a formação dos trabalhadores. As razões que funda- Seminário Choque Teórico, isto é, em 2003. Em segui-
mentam minha crítica são de natureza semântica, his- da analisaremos esse texto, que, além da questão se-
tórica e política. mântica, aborda questões de hermenêutica, isto é, de
interpretação de textos do passado.
Razões de natureza semântica O texto principal objeto de minhas observações
críticas é o da professora Lucília Regina de Souza
“Quem não vê bem uma palavra, não pode ver Machado (1992), “Mudanças tecnológicas e a educa-
bem uma alma”, escreveu Fernando Pessoa. Li este ção da classe trabalhadora”, editado na Coletânea CBE
verso, recentemente, visitando o Museu da Língua já citada. No tópico “Qualificação polivalente ou po-
Portuguesa, em São Paulo. Imediatamente pensei na litécnica”, Lucília atribui ao termo “politécnica ou
palavra “politécnica”. Com efeito, o sentido de uma politecnia” sentido e abrangência conceitual muito
palavra é como uma “alma” feita som e graficamente amplos e ideologicamente contrapostos ao termo “po-
fixada. É preciso que haja harmonia e equivalência livalência”:
entre a palavra e seu sentido. Destoa um sentido des-
proporcional à palavra. O horizonte da polivalência dos trabalhadores está
Os poetas e os filósofos tomam as palavras mui- sendo colocado pela aplicação das tecnologias emergentes
to a sério, lhes atribuindo função máxima na relação e tem sido interpretado como o novo em matéria de qualifi-
do homem com o mundo e na elaboração do pensa- cação. Já a questão da politecnia se inscreve na perspectiva
mento. Heidegger, por exemplo, chama a palavra de de continuidade e ruptura com relação à polivalência e se
“casa do ser”; Wittgenstein compara a linguagem com apresenta como o novíssimo. [...] Politecnia representa o
uma “caixa de ferramentas”: as palavras representam domínio da técnica a nível intelectual e a possibilidade de
as diferentes ferramentas (Wittgenstein in Abbagnano, um trabalho flexível com a recomposição das tarefas a ní-
1970, p. 35). Como se percebe, em todas as metáfo- vel criativo. [...] Vai além de uma formação simplesmente
ras perpassa a idéia de proporcionalidade e harmonia técnica ao pressupor um perfil amplo de trabalhador, cons-
entre o sentido e sua palavra. Assim, um sentido com- ciente e capaz de atuar criticamente em atividades de cará-
plexo e rico não cabe numa palavra pobre, pois, im- ter criador e de buscar com autonomia os conhecimentos
perceptivelmente, esta se torna uma gaiola ideológi- necessários ao seu progressivo aperfeiçoamento. [...] É ne-
ca daquele; nem se pode, diria Wittgenstein, aplainar cessário esclarecer que embora a qualificação polivalente
uma madeira com uma chave de fenda. represente um avanço face às formas tayloristas e fordistas
Contrariamente a essa preocupação, observei que anteriores, ela representa apenas um avanço relativo. A ciên-
os autores brasileiros dos textos analisados que defen- cia ainda permanece monopólio do capital [...]. A formação
dem a “educação politécnica” conferem ao termo politécnica pressupõe a plena expansão do indivíduo hu-
“politecnia” um conceito que transcende o sentido atri- mano e se insere dentro de um projeto de desenvolvimento
buído a essa palavra pelos dicionários, pela etimologia social de ampliação dos processos de socialização, não se
do termo, pelo senso comum letrado, pela história das restringindo ao imediatismo do mercado de trabalho. Ela
instituições escolares. Com exceção do professor guarda relação com as potencialidades libertadoras do de-
Dermeval Saviani, ninguém levanta esse tipo de pro- senvolvimento das forças produtivas assim como com a
blemática, deixando assim implícito que, para eles, é negação destas potencialidades pelo capitalismo. (p. 19-22)
óbvia e correta a relação semântica entre as palavras
“politécnico ou politecnia” e os conceitos que lhes atri- Em geral, os que defendem a proposta da educa-
buíram. Entretanto, essa obviedade não existe, prova ção politécnica expressam semelhantes idéias.
disso é que o próprio Saviani se vê forçado a enfrentar Gaudêncio Frigotto, para citar um importante nome,
a questão semântica, 15 anos depois da realização do aceita esses conceitos e essa terminologia, sem, entre-

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tanto, analisar o problema da adequação dos conceitos em geral, do ensino superior de engenharia (as
com a terminologia, acrescentando, porém, como dis- “Polis”). Considero importante lembrar a École
se, ao termo “politécnica” o termo “onilateral”, mais Polytechnique de Paris porque essa escola, junto à
caro, inclusive, a Marx e ao próprio Manacorda. etimologia,1 tem máxima importância na construção
Não pretendo questionar os conceitos, com os da significação do termo. É a escola em que se for-
quais, aliás, concordo em boa parte. O que me intriga mou Augusto Comte, entre outros nomes ilustres.
é a questão semântica e o fato de ela não ser levanta- Sabe-se que era com base nesse modelo de escola
da nesse debate, com exceção, como disse, de Saviani. que o filósofo positivista almejava reformar todo o
Ora, para quem simplesmente abre os dicionári- sistema de ensino. Essa escola foi referência tam-
os, a questão semântica torna-se evidente. Vejamos bém para Marx e para Lenin, que certamente dela se
três palavras: “politecnia”, “politécnica”, e “poliva- lembravam quando escreviam sobre o ensino e a
lente”. Politecnia não aparece nos dicionários (nada educação politécnicos. Consultando o verbete École
contra os neologismos, aliás...); sua forma lingüísti- Polytechnique de Paris na internet, pode-se ler:
ca, todavia, é a simples abstração do adjetivo
“politécnico(a)”. “Politécnico(a)” é o adjetivo apli- A Escola Politécnica de Paris nasceu em 1795. Ante-
cado ao ensino, à educação ou à instituição escolar, riormente chamava-se Escola Central dos Trabalhos Públi-
enquanto “polivalente” é um adjetivo aplicado ao su- cos. Nove anos depois, em 1804, Napoleão lhe confere um
jeito humano. Para mim, é semanticamente arbitrária Estatuto militar com o lema: “Pela Pátria, pelas Ciências e
a distinção que alguns estudiosos fazem entre uma pela Glória”. Em 1817, a Escola recebe um novo Estatuto,
educação burguesa que denominaram de polivalente, não mais militar. Sua vocação primeira, todavia, não mu-
e uma educação que avança para o horizonte socialis- dou ao longo das décadas: oferecer a seus alunos uma sóli-
ta, que denominaram de politécnica. da formação científica, com base na matemática, na física e
O Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2001) química e formá-los para ingressar nas Escolas Especiais
assim define os verbetes “politécnica” e “politécnico”: para os serviços públicos do Estado.

Escola que ensina muitas artes ou ciências. Que com- Nessa perspectiva, compreende-se como o pro-
preende, que abrange várias artes ou ciências. Diz-se do fessor Manacorda, toda vez que se refere à palavra
estabelecimento de ensino superior em que se leciona um politécnico, utilize como sinônimo um outro termo,
conjunto de disciplinas que concernem às ciências. Diz-se isto é, “pluriprofissional”. Diz isso em vários dos seus
de escolas em que se estuda engenharia. Etimologicamen- estudos e o repete tanto na entrevista concedida a
te, do radical grego poly (muito, diverso) e techniqué (arte, Rosemary Dore Soares em 2001, quanto na videocon-
habilidade): hábil em várias artes. (p. 2.253) ferência e no DVD realizados em julho de 2006:

O Dicionário Aurélio (Ferreira, 1999) e todos os


outros dizem a mesma coisa. O dicionário da língua
italiana de Giacomo Devoto e Gian Carlo Oli (1971) 1
O sentido etimológico nem sempre corresponde à semânti-
diz: “Concernente o ensino das ciências aplicadas”. ca corrente. Muitas palavras adquirem, ao logo da história, se-
O dicionário francês Petit Robert (1972) diz “Que mântica totalmente alheia à etimologia de origem. Vejamos duas
abrange muitas ciências. O nome da Escola Politéc- palavras como exemplos: “desastre” e “proletário”. A primeira,
nica”. E assim poder-se-ia continuar ad nauseam. etimologicamente refere-se aos astros, a segunda a filhos. Toda-
Para o senso comum letrado, o termo via, observe-se a palavra “politecnia”, como, aliás, inúmeras ou-
“politécnico” toma sua significação da etimologia tras, conserva para o senso comum letrado grande sintonia entre o
grega, da história da Escola Politécnica de Paris e, sentido etimológico e a semântica corrente.

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Em sua época, Marx, junto a Engels, considerava, Mas, já nessa primeira parte do texto, Saviani
sobretudo, as propostas dominantes no mundo burguês, in- percebe que o sentido literal do termo politecnia po-
dustrial, e a demanda que vinha daquele mundo era princi- deria levar a muitos para uma compreensão diferente
palmente voltada a uma nova instrução de caráter da que ele lhe atribui “Politecnia, literalmente, signi-
politécnico, isto é, pluriprofissional [grifos meus]. Embora fica múltiplas técnicas, multiplicidade de técnicas, e
pareça aceitar essa proposta na íntegra, na realidade ele a daí o risco de se entender esse conceito como a totali-
critica imediatamente considerando-a, já em 1947 – me dade das diferentes técnicas fragmentadas, autono-
parece “, “a proposta predileta da burguesia”, porque é uma mamente consideradas” (idem, p. 140). A preocupa-
forma de instrução destinada a fornecer à indústria uma força ção semântica (integrada com análises de caráter
de trabalho capaz de ter versatilidade pluriprofissional, hermenêutico) será por ele “solucionada” a partir da
adaptável a várias profissões. (Soares, 2004, p. 7-8) página 144, no tópico acrescido posteriormente. Em
síntese, Saviani começa dizendo que “grosso modo,
É apenas uma citação, entre as muitas possíveis, pode-se entender que, em Marx, as expressões ‘ensi-
em que Manacorda, referindo-se ao termo “politecnia”, no tecnológico’ e ‘ensino politécnico’ podem ser con-
acrescenta o sinônimo “pluriprofissional”, especifican- sideradas sinônimos” (idem, p. 145).
do: “proposta predileta da burguesia”. Do meu ponto de vista, a expressão cautelosa
Saviani é o único defensor da educação politéc- “grosso modo” não surte efeito, uma vez que as aná-
nica que enfrenta a questão semântica. Seu texto So- lises de Manacorda são contundentes no destacar a
bre a concepção de politecnia foi redigido em 1987 diferença entre as duas expressões. Marx atribuía à
para o Seminário Choque Teórico, realizado na Esco- “moderna ciência da tecnologia” um sentido mais pro-
la Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, do Rio de gressista do que a “politecnia”. Entretanto, continua
Janeiro, mas o tópico específico em que analisa o as- Saviani:
pecto semântico, “Revisitando a concepção de poli-
tecnia”, foi redigido e acrescido 15 anos depois, tal- [...] de lá para cá essa situação se modificou signifi-
vez porque se desse conta de que as definições cativamente. Enquanto o termo “tecnologia” foi definitiva-
conceituais aplicadas ao termo “politecnia” se apre- mente apropriado pela concepção dominante, o termo
sentavam a muitos semanticamente impróprias. Com “politecnia” sobreviveu apenas na denominação de algu-
efeito, na primeira parte do texto, diz: mas escolas ligadas à atividade produtiva, basicamente no
ramo das engenharias. Assim, a concepção de politecnia
A noção de politecnia se encaminha na direção da foi preservada na tradição socialista [...] e tende imediata-
superação da dicotomia entre trabalho manual e trabalho mente a ser identificada com uma posição socialista. (idem,
intelectual, entre instrução profissional e instrução geral. p. 146)
[...] A noção de politecnia contrapõe-se a essa idéia, postu-
lando que o processo de trabalho desenvolva, em unidade Caberia perguntar ao Saviani quem mais, além
indissolúvel, os aspectos manuais e intelectuais. [...] A idéia de muitos membros do GT Trabalho e Educação da
de politecnia se esboça nesse contexto, ou seja, a partir do ANPEd e de vários de seus alunos, identifica imedia-
desenvolvimento atingido pela humanidade no nível da so- tamente politecnia com a proposta educacional so-
ciedade moderna, da sociedade capitalista, já detectando a cialista. Com efeito, o senso comum letrado entende
tendência do desenvolvimento para outro tipo de sociedade o termo “politécnico” com o mesmo sentido registra-
que corrija as distorções atuais. [...] Politecnia diz respeito do nos dicionários, e ninguém, entre os muitos que eu
ao domínio dos fundamentos científicos das diferentes téc- próprio de forma espontânea entrevistei, associava ao
nicas que caracterizam o processo de trabalho produtivo ensino politécnico o ensino socialista. Recebi vários
moderno. (Saviani, 2003, passim) depoimentos de estudiosos marxistas e não-marxis-

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tas que estranhavam o uso da expressão “politecnia” fende, marxianamente, a “educação tecnológica”,
como bandeira de educação socialista, mas omitiam- embora prefira mais ainda a marxiana expressão “edu-
se de contestar. cação onilateral”. Lembro que em 1988, quando lhe
Quanto à “tradição socialista” a que Saviani se enviei o texto “Ao leitor brasileiro”, com que apre-
refere, é preciso distinguir entre tradição cultural so- sento a primeira edição do seu livro História da edu-
cialista e socialismo real. A tradição cultural, como cação – da Antigüidade aos nossos dias (1989), res-
veremos em seguida, não preservou, de forma homo- pondeu-me elogiando o texto, mas pedindo que
gênea, nem o termo nem a concepção de politecnia. modificasse na expressão original “fixa as bases de
Nos países do socialismo real, sobretudo na União uma escola politécnica para os trabalhadores”, a pa-
Soviética, após Lenin, a categoria de politecnia pou- lavra “politécnica”, substituindo-a com a palavra “tec-
co a pouco deixou de ser vista como estrutura estru- nológica”. Aliás, foi a partir desta carta de Mario que
turante do sistema de ensino como um todo. O termo atinei para o problema e me aprofundei nessa questão
não era entendido diferentemente de como o entende hermenêutica.
o nosso senso comum letrado. Nas décadas de 1960 e Efetivamente, fui logo entendendo que não se
1970, na União Soviética havia um sistema escolar tratava de uma mera preferência entre dois termos.
composto por um primeiro grau fundamental de nove Manacorda tomou posição clara e firme desde seu
anos, de cultura geral, unitário e obrigatório, discipli- estudo filológico de l964, Il marxismo e l’educazione –
nado e sério, cujos conteúdos davam ênfase às lín- Marx, Engels, Lenin. A mesma tese será por ele de-
guas e às ciências exatas. O ensino médio era dual, fendida e aprofundada no posterior livro, Marx e a
composto por uma rede de escolas técnicas, cujos alu- pedagogia moderna, de 1966, traduzido para o portu-
nos entravam logo em seguida para o emprego que o guês em 1991. Neste último, inclusive, desculpa-se,
Estado garantia para todos, e por uma segunda rede na nota n. 25 da página 41, por ter traduzido erronea-
de institutos, de cultura mais elevada, para os alunos mente, no estudo anterior, de 1964, às páginas 82, 83
que posteriormente entrariam na universidade. e 84, o termo “tecnológico” por “politécnico”. O erro,
Longe de mim afirmar que a conclusão de Saviani diz a nota, deve-se ao fato de ele ter, em 1964, utiliza-
não tenha algum fundamento, porém ela me parece do para a tradução italiana o texto alemão, que, salvo
exorbitante, pois a expressão “ensino politécnico” não num caso, utiliza sempre o termo “politécnico” mes-
foi a preferida por Marx, e sim por Lenin; entretanto, mo onde deveria dizer “tecnológico”:
nem durante o governo deste a fórmula da politecnia
foi consensual na União Soviética, nem sua opção (ou Pedimos desculpas aos eventuais leitores daquele
de alguns outros socialismos reais) chegou a atribuir volume. Atualmente, dispomos afinal do original inglês, The
ao termo politecnia a conotação de socialista a ponto General Council of the First Internacional, 1868-70,
de o senso comum letrado poder perceber, no passa- Minutes, Moscou, Progress Phublishers, s.d. (1864?), sob
do e hoje, tal significação conotada. responsabilidade do Instituto Para o Marxismo-Leninismo.
(Manacorda, l991, p. 41)
Razões de natureza histórica
Efetivamente, o texto original de Marx era em
As diferenciadas afirmações de Manacorda e de língua inglesa, e diz technological, que foi traduzido
Saviani sobre educação politécnica ou tecnológica em erroneamente para o alemão como polytechnisch.
Marx remetem-nos à história e à interpretação dos É evidente que Marx utiliza os dois termos
textos dos principais clássicos do marxismo. (politécnico e tecnológico); entretanto, em vez de
Já relatei a crítica que Manacorda faz da educa- concluirmos que são “grosso modo” sinônimos, de-
ção politécnica, “predileta pelos burgueses”. Ele de- vemos analisar os diferentes sentidos a eles atribuí-

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Trabalho e perspectivas de formação dos trabalhadores

dos e, sobretudo, a direção, o vetor para onde apon- turas contrapostas de Marx: a que se inspirava no Ilu-
tam. Nesse sentido, os estudos de Manacorda conclu- minismo/positivismo e a que se inspirava na filosofia
em enfaticamente: contemporânea, idealismo/existencialismo. Melhor
seria dizer, entre o marxismo cientificista/determinista
[...] o “politecnicismo” sublinha o tema da “disponibi- e o marxismo investigativo. Essa tensão ideológica é
lidade” para os vários trabalhos ou para as variações dos tra- emblematicamente representada pela detalhada (e
balhos, enquanto a “tecnologia” sublinha, com sua unidade contundente) análise critica que Gramsci faz, no Ca-
de teoria e pratica, o caráter de totalidade ou omnilateralida- derno 11, ao texto de Bukharin “Ensaio popular da
de do homem. [...] O primeiro destaca a idéia da multiplici- sociologia”: de um lado, o ensaio inspirado no mar-
dade da atividade [...]; o segundo, a possibilidade de uma xismo determinista; de outro, Gramsci, que de positi-
plena e total manifestação de si mesmo, independentemente vismo não tinha mesmo nada. O primeiro mestre que
das ocupações específicas da pessoa. (idem, p. 32) ensinou marxismo a Gramsci foi justamente Antônio
Labriola, que travou na Itália uma forte polêmica
Se a hermenêutica de Manacorda sobre os textos antipositivista:
marxianos é correta, como explicar que a União So-
viética, pelo menos até a morte de Lenin, tenha privi- Antonio Labriola [...] percebeu logo que o positivis-
legiado o termo “politecnia” nas políticas educacio- mo, absorvido pelos representantes oficiais do socialismo,
nais socialistas? A resposta de Manacorda é precisa: representava a antítese mais nítida dos princípios defendi-
dos por Marx, e começou, portanto, uma forte polêmica
Remonta exatamente a Lenin, na passagem citada, a contra aquele, acusando-o de ser uma nova espécie, mais
escolha do termo “politécnico” em vez de tecnológico para moderna, de utopismo e transcendência. (Geymonat &
o ensino na perspectiva do socialismo. Foi precisamente a Tisato, 1973, p. 361)
sua autoridade que, posteriormente, determinou o uso cons-
tante de “politécnico” não só na terminologia pedagógica Como se vê, o socialismo real não se identificava
de todos os países socialistas, mas também – o que é com certa tradição cultural socialista, ao contrário.
filologicamente incorreto – em todas as traduções oficiais Ou seja, os textos de Marx constituem um divisor
dos textos marxianos em russo e, daí, em todas as demais de águas. Podem ser lidos à luz do passado ou à luz das
línguas. (idem, p. 41, nota 25) filosofias do começo do século XX. O que Manacorda
diz é que, embora nos textos de Marx as expressões
Surpreendentemente, Gramsci, talvez, chegasse “politecnia” e “tecnologia” se intercalem, só a expres-
à mesma conclusão de Saviani, ao considerar os ter- são “tecnologia” evidencia o germe do futuro, enquan-
mos “politécnica” e “tecnologia”, se não “quase si- to “politecnia” reflete a tradição cultural anterior a
nônimos”, muito próximos. Sua conclusão, porém, foi Marx, que o socialismo real de Lenin impôs à termino-
radicalmente diferente, isto é: sendo os dois termos logia pedagógica de sua política educacional.
quase sinônimos, por que não descartar os dois? Esse debate no campo do socialismo entre as duas
Com efeito, num artigo de Manacorda, “Peda- correntes – determinista/positivista, de um lado, e
gogia e política scolastica del PCI, dalle origini alla historicista/idealista/existencialista, de outro – está re-
liberazione” (Pedagogia e política escolar do PCI, das gistrado, por exemplo, numa intervenção de Gramsci
origens à libertação), publicado na Critica Marxista, à federação juvenil comunista do primeiro de abril de
n. 6, em l980, é possível entender que essa questão l922, quando ele
ideológico/semântica, nos debates das primeiras duas
décadas do século XX no campo socialista/comunis- [...] denuncia o limite da política escolar dos socialis-
ta, era a expressão de uma forte tensão entre duas lei- tas que “cedem aos populares as escolas médias superiores

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Paolo Nosella

(colegial) em troca das escolas profissionais” e com isso, Esse era o clima dos debates entre os socialistas
“aceitam o conceito que a escola profissional seja a escola na Itália, nos anos de 1920. Já naquela época, tanto a
dos operários” e “admitem que as classes devam ser sem- educação tecnológica como (e ainda mais) a educação
pre hereditariamente duas”. (Gramsci apud Manacorda, politécnica representavam, na Itália, para o grupo de
1980, p. 158) Gramsci e Togliatti, Ordine Nuovo, categorias e no-
menclaturas pertencentes ao campo ideológico do
A marca registrada de Gramsci estava precisan- Iluminismo burguês. Tal afirmação pode ser compro-
do-se: desconsideração dos termos “politécnico” e vada por um fato bastante ilustrativo: em janeiro de
“tecnológico” e chamamento cada vez mais forte para 1921, um sindicalista da categoria dos professores,
os valores do rigor cultural e moral. Com efeito, o Pilade Garaccioni, que já havia publicado textos im-
que mais preocupa Gramsci na semântica dos termos pregnados de um humanismo meloso e de senso co-
“politecnia” e/ou “tecnologia” não era apenas o radi- mum, de repente, numa fala no Congresso Socialista,
cal polis ou logos, e sim, sobretudo, o radical tecnos,
isto é, o instrumento, a máquina. Mais de uma vez [...] torna-se um marxista tão rigoroso e ortodoxo, e
critica a supervalorização do instrumento de trabalho propõe teses que ninguém, nem Gramsci, havia até antão
considerado pelos positivistas algo metafisicamente proposto. “Cada cidadão – diz ele “ deve ser levado a co-
determinante. Por exemplo, na citada crítica ao “En- nhecer não apenas os rudimentos do saber, mas deve ser
saio popular de sociologia”, de Bukharin, diz: treinado num trabalho manual produtivo numa escola de
natureza politécnica, e somente aos dezoito anos se poderá
A filosofia da práxis não estuda uma máquina para definir aquele que tiver particulares dotes para continuar
conhecer e estabelecer a estrutura atômica do material, as nos estudos e se tornar um produtor intelectual”.
propriedades físico-químico-matemáticas de seus compo- (Manacorda, 1980, p. 161)
nentes naturais (objeto de estudo das ciências exatas e da
tecnologia), mas enquanto é um momento das forças mate- No dia seguinte (14 de janeiro de 1921), o jornal
riais de produção, enquanto é objeto de propriedades de Ordine Nuovo refere-se à intervenção do professor
terminadas forças sociais, enquanto expressa uma relação Garaccioni dizendo que o congresso dos professores
social, e isto corresponde a um determinado período histó- estava “surpreendido e desorientado [...]. De onde
rico. (Gramsci, 1975, p. 1.443) vinham estas fórmulas e estas idéias até então desco-
nhecidas até mesmo do Partido?” (idem, p. 161-162).
Pode-se tranqüilamente concluir que, para Naturalmente, alguém se perguntará por que
Gramsci, a dificuldade principal de utilizar as expres- Lenin se fixou no termo “educação politécnica” para
sões “educação politécnica” ou “tecnológica” estava a reforma educacional na União Soviética após 1917.
no fato de esses termos deslocarem o foco de análise A pergunta é legítima, ainda mais quando sabemos
do ser humano para o seu instrumento de trabalho. que “Krupskaja afirmava que as grandes massas dos
Leia-se ainda no Caderno 12: professores ouviam pela primeira vez este termo (de
instrução politécnica) e ninguém sabia de que se tra-
No mundo moderno, a educação técnica, estreitamente tasse” (idem, p. 163). Embora o sentido geral que
ligada ao trabalho industrial, mesmo ao mais primitivo ou Lenin deu ao termo fosse genuinamente marxista, na
desqualificado, deve formar a base do novo tipo de intelec- escolha do termo influíram problemas de caráter
tual. [...] da técnica-trabalho este chega à técnica-ciência e filológico (de tradução), bem como uma política edu-
à concepção humanista histórica, sem a qual permanece cacional que, inspirada no Iluminismo e no positivis-
“especialista” e não se torna “dirigente” (especialista + mo, privilegiou a preocupação com a indústria nas-
político). (idem, p. l.551) cente. Outras razões também devem ter influenciado

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Trabalho e perspectivas de formação dos trabalhadores

Lenin na escolha do termo “politecnia”, mesmo por- A proposta


que as escolas politécnicas da União Soviética eram,
apesar de tudo, as escolas que melhor funcionavam. É deveras muita pretensão elaborar uma propos-
Todavia, confesso não dispor de uma explicação de- ta para a formação dos trabalhadores. Entretanto, em
finitiva sobre o posicionamento de Lenin. reunião do GT Trabalho e Educação da ANPEd reali-
zada em 2004, em resposta às críticas movidas contra
Razões de natureza política a expressão “educação politécnica”, alguém indagou,
com razão, sobre qual seria, então, na atualidade, a
Há várias razões políticas que nos desaconselham expressão mais adequada ou o nome mais apropriado
o uso do termo “educação politécnica” como bandei- para indicar a proposta educacional socialista e mar-
ra, entre nós, para as propostas educacionais marxis- xista. É tentando atender a essa indagação que escre-
tas. A principal refere-se ao sentido que o senso co- vo os parágrafos a seguir.
mum letrado atribui a esse termo, conforme já Primeiramente: por que um nome? Certamente,
discorremos anteriormente. Na luta político-ideoló- um nome é fator de distinção, de união, de força, de
gica pela hegemonia as propostas devem ser apresen- direcionamento. É uma bandeira. Mas é também um
tadas numa linguagem moderna e acessível basica- fator de separação, fonte de novas ambigüidades, cau-
mente a todos. Nem todo mundo é obrigado a realizar sa de engessamento teórico e de limitação ideológi-
estudos de caráter histórico-filológicos para entender ca. Só a linguagem poética e artística, talvez, escape
o termo politecnia. Os bons dicionários são suficien- desses perigos. Os programas escolares inspirados nos
tes para os nossos interlocutores entenderem o que valores da liberdade, da justiça e da igualdade preci-
estamos dizendo. A não ser que consideremos a luta sam ser atualizados constantemente, e nem sempre
política um exercício de comunicação entre um res- um nome-bandeira nos ajuda nessa empreitada. Nes-
trito grupo de pesquisadores. sa altura não posso deixar de reproduzir aqui um de-
Existe uma segunda razão, que eu chamaria de poimento de Manacorda, gravado no DVD recente-
política científica. Refiro-me ao pensamento de mente produzido pelo HISTEDBR. Perguntei-lhe:
Wittgenstein, já citado, que atribui força teórica à pró-
pria semântica dos termos, pois uma palavra não apro- Por que o Senhor insiste em ser chamado de comu-
priada não prejudica somente certa harmonia entre nista quando este adjetivo é pelo menos fora da moda? –
palavra e conceito, mas interfere também nos concei- Resposta: Insisto, porque sei distinguir a tradição cultural
tos, forçando nossa mente a fixar-se e priorizar o con- do socialismo real. [...] Enquanto não sairmos da atual con-
ceito que lhe é próprio. Ora, “os conceitos aplicam-se tradição planetária, um ideal será sempre necessário, qual-
à investigação; são a expressão dos nossos interesses quer que seja o nome que a humanidade futura queira es-
e dirigem esses mesmos interesses” (Wittgenstein in colher [o grifo é meu]. Eu me chamei de comunista, sou
Abbagnano, 1970, p. 35). Assim, nos anos de 1990, o um homem do século passado; não seria decoroso que re-
termo politecnia operou semanticamente como um freio negasse a mim mesmo, como fizeram muitos outros.
à reflexão sobre a proposta educacional socialista. (Manacorda, 2006a)
Pouco a pouco, nós, educadores marxistas, aceitamos
tornar-nos especialistas do ensino médio profissio- É uma resposta que permite várias considerações.
nal, legitimando assim, indiretamente, a dualidade do A distinção entre “tradição cultural e socialismo real”
ensino. Talvez o termo e o conceito de liberdade para faz-nos pensar, como disse, que o ensino politécnico
todos estimulem melhor nossas pesquisas. Para isso, represente a política educacional do socialismo real,
porém, precisamos ler Marx como um teórico da li- bem limitado no tempo e no espaço, herdeiro da tra-
berdade. dição iluminista e cientificista. De outro lado, as ex-

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pressões “sou um homem do século passado” e ainda lho era. Gramsci desenvolve muito bem esse “germe
“qualquer que seja o nome que a humanidade futura marxiano” da unitariedade educacional, por isso afir-
queira escolher” confirmam como é difícil atualizar ma que, assim como todos os homens são intelectuais,
nosso discurso quando se adotaram nomes, bandeiras os intelectuais também são trabalhadores, pois nem o
e instituições burocraticamente estruturadas. O pró- trabalho braçal dispensa o cérebro, nem o trabalho
prio Manacorda o confessa. Entretanto, os educado- intelectual dispensa o esforço muscular nervoso, a
res, cuja função principal é ajudar os “filhotes” dos disciplina, os tempos e os movimentos. Infelizmente,
homens (de todos) a se tornarem homens livres, jus- para a sociedade em que vivemos, os jovens “traba-
tos e contemporâneos, não podem esquecer de atuali- lham” de dia e de noite “estudam”; ou então se diz:
zar seus conhecimentos, sua linguagem, seus méto- “Mas você só estuda? Não trabalha?”, ou seja, o estu-
dos e programas escolares. do não é considerado trabalho.
Em segundo lugar, é importante reafirmar que Marx foi mestre de método quando afirmou que
Marx, como todos os clássicos, é um mestre de méto- o trabalho burguês é historicamente determinado. Ora,
do, não de doutrina e, menos ainda, de linguagem. para educarmos o homem do futuro precisamos
Sua proposta educacional consiste na fórmula peda- idealmente ultrapassar os limites burgueses do traba-
gógico-escolar de “instrução intelectual, física e tec- lho alienado e nos inspirar no conceito marxiano de
nológica para todos [...] pública e gratuita [...] de união trabalho coextensivo à existência humana. Para Marx,
do ensino com a produção [...] livre de interferências o trabalho é fundamentalmente interação dos homens
políticas e ideológicas” (Marx apud Manacorda, entre si e com a natureza. Por isso, a “escola-do-tra-
2006a). A fórmula marxiana não permite privilegiar balho” não burguesa é a escola que educa os homens
um ou outro elemento. Nesse sentido, a expressão a dominar e humanizar a natureza, em colaboração
“onilateral” é feliz, porque conota o conjunto. Mais com os outros homens. Se, historicamente, o traba-
tarde, Gramsci utiliza o termo “unitário”, que acres- lho, de manifestação de si, tornou-se perdição de si, o
centa ao conjunto dos aspectos educacionais a idéia processo educativo precisa inverter esse movimento,
de integração. Todavia, tanto a expressão “onilateral” recuperando o sentido e o fato do trabalho como li-
como “unitário” acentuam o sentido quantitativo, isto bertação plena do homem.
é, que abrange todos os aspectos. Se indagássemos Tentarei ilustrar essa concepção marxiana da ca-
sobre qual seria a categoria fundante e estruturante tegoria trabalho por meio de três dimensões funda-
da fórmula pedagógico-escolar marxista, eu creio que mentais da interação homens-natureza, a saber, co-
deveríamos recorrer à categoria antropológica de li- municação/expressão, produção e fruição.
berdade plena para o homem, todos os homens. Quando o ser humano interage, física e espiritu-
Como se vê, essa fórmula pedagógica marxiana, almente, com o mundo e com os outros homens, pri-
mesmo permanecendo contextualizada em seu tem- meiramente se expressa, se comunica, admira, con-
po, evidencia os germes do futuro. Por isso Marx é templa, entende e explica. Dessa forma cumpre,
um clássico, porque ao criticar a burguesia propõe mesmo que parcialmente, com a primeira dimensão
uma fórmula que a transcende. do trabalho. Por isso, ensinar a comunicar-se é ensi-
A fórmula marxiana de formação onilateral ou nar a trabalhar, mesmo porque não se pode produzir
de escola unitária, para todos, é antes de tudo a supe- sem antes entender o mundo e se comunicar com os
ração da dicotomia entre o trabalho produtor de mer- homens.
cadorias e o trabalho intelectual. Obviamente, a ênfa- Também quando o homem produz e cria objetos
se que a história deu à produção de mercadorias materiais, artísticos, técnicos e intelectuais, interage
refletiu os valores fundamentais do modelo industrial com a natureza e com os demais homens, ou seja,
para o qual o trabalho intelectual, a rigor, nem traba- trabalha. Por isso, ensinar a produzir equivale a ensi-

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Trabalho e perspectivas de formação dos trabalhadores

nar a trabalhar. Todavia, nem mesmo a produção re- cita que os educadores ofereçam para todos os jovens
presenta o processo do trabalho na sua plenitude. uma escola que forme homens para o exercício pleno
Finalmente, quando o homem frui dos bens na- de sua interação com a natureza e com a sociedade.
turais, artesanais, industriais, estéticos, interage com Para isso, a escola precisa oferecer algumas ativida-
a natureza e com os demais homens, isto é, completa des formativas com grande rigor formal e disciplinar,
o processo do trabalho. Por isso, ensinar a fruir e a mas precisa também oferecer outras para o exercício
consumir é também ensinar a trabalhar. A conclusão responsável da liberdade e o desenvolvimento dos
é que compete à escola-do-trabalho educar o homem talentos individuais. Não é fácil determinar os con-
na realização do processo completo do trabalho: co- teúdos escolares que o mundo atual exige do cidadão
municar-se, produzir e usufruir. moderno. Certamente, todo cidadão precisa comuni-
Sabe-se que produzir objetos-mercadorias torna- car-se com propriedade, produzir algo útil para si e
ra-se a dimensão máxima, ou até mesmo única, no para outros, e usufruir dos prazeres simples e eleva-
modelo de sociedade industrial burguesa que criou o dos que a cultura e o planeta dispõem. Nesse sentido,
ensino dual: um para o trabalhador (educação profis- a escola não pode renunciar à disciplina do estudo e à
sional, politécnica ou tecnológica) e outro para o di- precisão científica e cultural, mas precisa também
rigente (educação “desinteressada”, voltada para a possibilitar aos jovens
comunicação e a fruição dos bens). Historicamente,
refletiu-se sobre o trabalho alienante burguês que só [...] um espaço em que cada um livremente se forme
produz mercadorias para agregar “plusvalia” ao capi- naquilo que é do seu gosto: pode ser a arte, a música, a
tal; refletiu-se menos, porém, sobre o trabalho como matemática, o aeromodelismo, o radiotelegrafismo, a espe-
produção de vida, comunicação e fruição. Vale a pena cialização na astronomia ou também no esporte, ou até
dizer algo mais sobre isso. mesmo nas técnicas artesanais. É preciso que a escola, ao
Atualmente, a rede de comunicação ampliou-se invés de ser um lugar aberto cinco horas diárias, durante
e complexificou-se enormemente. O planeta tornou- nove meses por ano, e pelo resto do tempo permanecer fe-
se uma enorme sala de aula, uma oficina imensa e um chada e vazia, seja o espaço dos adolescentes, onde estes
campo aberto de disputas. Encontrar as formas ade- recebam da sociedade adulta tudo o que é possível receber
quadas de interagir com os semelhantes e com a natu- e, ao mesmo tempo, sejam estimulados em suas qualidades
reza é um desafio tremendo para um jovem; a escola- pessoais e capacitados, responsavelmente, para gozar to-
do-trabalho não se pode omitir de orientá-lo nesse dos os prazeres humanos. (Manacorda, 2006a)
desafio. Em contrapartida, se o homem não consome,
não usufrui do que ele e a natureza produzem, o ciclo Essa concepção de escola de rigor científico e de
de interação homem-natureza-sociedade permanece liberdade responsável aproxima-se da idéia de escola
truncado: sem fruição, a produção humana é uma ab- de tempo integral, ou melhor, de educação plena. Não,
soluta frustração. Educar à fruição é tarefa dificílima, porém, de uma escola assistencialista para abrigar
mas indispensável da escola-do-trabalho. O consumis- pequenos cidadãos ociosos, ou até mesmo considera-
mo é uma sua deformação; a injusta distribuição dos dos “perigosos”. Trata-se um espaço educacional ri-
bens, outra. A produção industrial de mercadorias acu- camente implementado ao qual toda criança e jovem
mulou enormes riquezas; entretanto, uns poucos con- possa ter acesso, às vezes obrigatoriamente, outras,
somem demais, outros de menos, e todos de forma livremente. À escola-do-trabalho, neste sentido rico,
inadequada. Formar os seres humanos para a fruição amplo, para além do trabalho para produzir mercado-
adequada e igualitária dos bens produzidos pelos se- rias, associa-se a política de distribuição de riqueza
melhantes é um dos principais objetivos da escola. para além dos tradicionais salários relacionados aos
Em síntese, a sociedade atual, agonizante, soli- empregos do modelo industrial.

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Paolo Nosella

Alguém se perguntará, um tanto surpreso, se o dida por vários educadores marxistas sobretudo nos
autor deste texto conhece a realidade brasileira. Mi- anos de 1990. Com efeito, é uma expressão que não
nha resposta é afirmativa. Conheço a realidade brasi- traduz semanticamente as necessidades de educação
leira. Sei também que a escola unitária é uma pers- da sociedade atual. Mais ainda, é uma expressão in-
pectiva, porque a unitariedade escolar cresce pari suficiente para explicitar os riquíssimos germes do
passu com a unitariedade cultural e econômica da futuro da proposta educacional marxiana.
sociedade. Mas sei, sobretudo, que pensar de forma Esses educadores marxistas, entretanto, não dei-
justaposta a relação entre “o reino da necessidade e o xaram de ser críticos e criativos, às vezes até mesmo
reino da liberdade” é reflexo em nós da filosofia me- ousados, ao pensarem e fazerem educação. Porém, con-
tafísica, herdeira da tradição cultural judaico-cristã. sidero que a bandeira da “politecnia” os tem levado
Gramsci vacinou-me contra os perigos teórico-práti- preferencialmente a desenvolver estudos sobre a esco-
cos decorrentes dessa dicotomia, ao dizer: “Eis por- la média e profissional. Com isso, o trabalho como prin-
que a proposição (marxiana) da passagem do reino cipio educativo sofreu entre nós certo reducionismo. A
da necessidade para o da liberdade deve ser analisa- escola unitária, de outro lado, que progride pari passu
da e elaborada com muita sutileza e delicadeza” com a sociedade unitária, ficou fora de foco.
(Gramsci, 1975, p.1 .489). Em outras palavras, sei que O imanentismo filosófico sabe que a liberdade
muitas pessoas alcançam algum grau de liberdade até não espera que se abra o canal ideal para alcançar o
mesmo pela escola técnica ou por uma formação pro- coração do homem. Como água para o mar, infiltra-
fissional precoce, pela escola popular pública ou no- se, dribla os obstáculos, rompe até alguns diques e,
turna de baixa qualidade. Compete, porém, aos edu- salvo quando as barreiras são insuperáveis (e são
cadores lutar para abrir caminhos (escolas) mais muitas), mesmo que escassa e tardiamente, chega ao
apropriados e eficientes, a fim de que todos alcancem coração do trabalhador. A metáfora sugere que tam-
a liberdade que o atual momento de evolução da his- bém por meio de cursos profissionalizantes precoces
tória possibilita. Em outras palavras, o educador não ou noturnos, tardios e pobres, muitos trabalhadores
pode jamais perder de vista o horizonte de liberdade se tornaram livres. Aos educadores, porém, compete
plena, concreta e imanente como objetivo fundamen- abrir os canais educacionais mais adequados para que
tal da educação. todos sejam cada vez mais livres. Creio ter sido essa
Ao afirmar que necessidade e liberdade sincro- a idéia que orientou Gramsci e seus colaboradores de
nicamente se fundem, afirma-se também que a revo- Ordine Nuovo quando, em 1920, criaram uma escola
lução que promove a passagem da necessidade para a para os trabalhadores: “Nossa idéia central era: como
liberdade é um processo constante, fruto das lutas de podemos nos tornar livres?” (Gramsci, 1987, p. 622).
cada dia. Com efeito, existem datas precisas e memo-
ráveis referentes às “insurreições” sociais, mas não Referências bibliográficas
existem datas pontuais referentes às revoluções en-
quanto total mudança dos sistemas sociais. Ora, é a ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia – v. 14. Trad. Con-
revolução que interessa aos educadores marxistas, não ceição Jardim, Eduardo Lúcio Nogueira e Nuno Valadas. Lisboa:
a insurreição, mesmo que esta, raras vezes, tenha sido Presença, 1970.
a parteira daquela. CBE – Conferência Brasileira de Educação. Trabalho e educa-
ção. Campinas: Papirus, 1992.
Conclusão DEVOTO, Giacomo.; OLI, Gian Carlo. Dizionario della lingua
italiana.. Firenze: Le Monnier, 1971.
Este texto visou explicar porque considero ina- DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. Rio de
dequada a expressão “educação politécnica”, defen- Janeiro: Objetiva, 2001.

150 Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007


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alla liberazione. Estratto da Critica Marxista, n. 6, p. 153-175, 1980. deral de São Carlos (UFSCAR) e professor visitante do mestrado
.História da educação: da Antigüidade aos nossos em educação do Centro Educacional Nove de Julho. Atua nas áreas
dias. Trad. Gaetano Lo Mônaco. São Paulo: Cortez; Campinas: de educação e trabalho, e filosofia e história de instituições esco-
Autores Associados, 1989. lares. Publicou vários artigos e ensaios sobre problemas da educa-
. Marx e a pedagogia moderna. Trad. Newton Ramos ção brasileira em revistas especializadas. Em co-autoria, organi-
de Oliveira. São Paulo: Cortez; Campinas: Autores Associados, 1991. zou: BUFFA, Ester; NOSELLA, Paolo; ARROYO, Miguel. Edu-
. Marx e la pedagogia moderna. Roma: Riuniti, 1996. cação e cidadania: quem educa o cidadão? (13. ed. São Paulo:
. Mario Alighiero Manacorda: aos educadores brasi- Cortez, 2003); NOSELLA, Paolo; BUFFA, Ester. A educação ne-
leiros. Campinas: UNICAMP/HISTEDBR, 2006a. 1 DVD. gada. Introdução ao estudo da educação brasileira contemporâ-
. Videoconferencia proferida na abertura do VII Semi- nea. (3. ed. São Paulo: Cortez, 2003). É autor, entre outros, dos
nário Nacional de Estudos e Pesquisas: História, Sociedade e Educa- livros: A escola de Gramsci (São Paulo: Cortez, 2004); Qual com-
ção no Brasil – HISTEDBR. Campinas: HISTEDBR, 2006b. Dispo- promisso político? (Bragança Paulista: EDUSF, 2002). E-mail:
nível em: <www.cameraweb.unicamp.br/videoconferência_fl-html#>. nosellap@terra.com.br
Acesso em: jul. 2006.
MAURO, Tullio De. Mínima scholaria. Roma-Bari: Editori Recebido em outubro de 2006
Laterza, 2001. Aprovado em dezembro de 2006

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Resumos/Abstracts/Resumens

Resumos/Abstracts/Resumens

antropológica da liberdade histórica de permit the selection of one or another


Paolo Nosella todos os homens é o fundamento unitá- element as its structuring category.
Trabalho e perspectivas de formação rio da própria fórmula marxiana. Finally, it expounds the Gramscian
dos trabalhadores: para além da Palavras-chave: formação politécnica; thesis on the unitary school, according
formação politécnica formação dos trabalhadores; escola to which the anthropological category
O texto, na primeira parte, critica a ex- unitária of the historical liberty of all men is the
pressão “formação politécnica” ampla- Work and perspectives for the unitary foundation of the very Marxian
mente utilizada, sobretudo na década formation of workers: beyond formula.
de 1990, por educadores brasileiros polytechnic formation Key words: polytechnic formation;
marxistas. Defende-se a tese de que a This article begins by criticising the formation of workers; unitary school
linguagem humana é sempre expressão expression “polytechnic formation” Trabajo y perspectivas de formación
histórica reveladora de intencionalida- widely used, above all in the 1990’s, by de los trabajadores: para más allá de
des e interesses práticos e, portanto, Marxist Brazilian educators. It defends la formación politécnica
instrumento essencial para a conquista the thesis that human language is El texto, en la primera parte, critica la
da hegemonia. Nesse sentido, “forma- always an historical expression which expresión “formación politécnica”
ção politécnica” expressou uma posi- reveals intentions and practical ampliamente utilizada, sobretodo en la
ção teórica historicamente ultrapassa- interests and is, therefore, an essential década de 1990, por educadores
da. Na segunda parte, o texto esclarece instrument for achieving hegemony. In brasileños marxistas. Se defiende la
que a proposta marxista para a forma- this sense, “polytechnic formation” ex- tesis de que el lenguaje humano es
ção dos trabalhadores se encontra con- presses an historically outdated siempre expresión histórica reveladora
tida no conjunto da fórmula marxiana theoretical position. In the second part de intencionalidades e intereses
de “instrução intelectual, física e tecno- of the article, the text explains that the prácticos y, por lo tanto, instrumento
lógica”. Essa fórmula não permite ele- Marxist proposal for the formation of esencial para la conquista de la
ger um ou outro elemento como sua ca- workers is contained in the complete hegemonía. En este sentido, “forma-
tegoria estruturante. Finalmente, é Marxian formula of “intellectual, ción politécnica” expresó una posición
exposta a tese gramsciana sobre a esco- physical and technological teórica históricamente ultrapasada. En
la unitária, segundo a qual a categoria instruction”. This formula does not

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la segunda parte, el texto explica que la


propuesta marxista para la formación
de los trabajadores se encuentra
incluida en el conjunto de la fórmula
del marxismo de instrucción intelec-
tual, física e tecnológica”. Esta fórmula
no permite elegir uno u otro elemento
como su categoría estructurante. Final-
mente es expuesta la tesis gramsciana
sobre la esuela unitaria, segundo la
cual la categoría antropológica de la
libertad histórica de todos los hombres
es el fundamento unitario de la propia
fórmula marxista.
Palabras claves: formación politécni-
ca; formación de los trabajadores;
escuela unitaria

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