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VOLUME 25º
Medicina popular
nas caatingas
do Geopark
Araripe Ceará
UMA REVISÃO HISTÓRICO-RELIGIOSA DA
ETNOFARMACOBOTÂNICA EM ABORDAGEM
INTERDISCIPLINAR
157 FOTOGRAFIAS
251 FONTES DOCUMENTAIS PRIMÁRIAS
252 FONTES IMPRESSAS
254 BIBLIOGRAFIA
280 COLEÇÃO CADERNOS DE FOLCLORE
IMPORTANTE FONTE DE PESQUISA SOBRE A
CULTURA POPULAR BRASILEIRA
O primeiro volume da Coleção Cadernos de Folclore foi publicado em 1986, um ano após a
criação da Fundação Cultural Cassiano Ricardo. A coleção é reconhecida como uma das pri-
meiras ações efetivas da instituição, por meio da então existente e recém-formada Comissão
Municipal de Folclore. Nascia ali uma ferramenta valiosa de divulgação e propagação das dife-
rentes manifestações folclóricas do Brasil e, particularmente, da região do Vale do Paraíba.
A coleção ganhou ainda mais força com a criação do Museu do Folclore de São José dos
Campos, em 1987, iniciativa que também foi capitaneada pela Comissão Municipal de Folclore,
extinta em 1999. Naquele mesmo ano, foi criado o Centro de Estudos da Cultura Popular
(CECP), organização da sociedade civil que se tornou um importante parceiro da Fundação
Cultural para dar continuidade à Coleção Cadernos de Folclore.
Neste ano, a publicação chega ao seu 25º volume (Medicina popular das caatingas do Geopark
Araripe – Ceará) –, novamente pelas mãos da competente professora, especialista na área
de etnofarmacobotância e estudiosa da medicina popular, Maria Thereza Lemos de Arruda
Camargo, que em 2008 já havia contribuído com sua pesquisa e conhecimento, para o lan-
çamento do 18º volume da coleção (O Milho e a Mandioca nas cozinhas brasileiras, segundo
contam suas histórias).
Sem medo de errar, é possível afirmar que, percorridos 33 anos e muitos assuntos aborda-
dos, a Coleção Cadernos de Folclore se consolidou como uma importante fonte de pesquisa
sobre a cultura popular brasileira. Uma publicação que está à disposição de qualquer inte-
ressado na biblioteca do Museu do Folclore ou pela internet (no site www.museudofolclore.
org), em PDF e e-book.
12
COLEÇÃO CONTRIBUI PARA PROPAGAR A
DIVERSIDADE FOLCLÓRICA
Ricardo Savastano
Presidente do CECP
13
AGRADECIMENTOS
14 Agradecimentos
sas de campo e bibliográfica de assuntos de nossos interesses, considerando-a no
campo da etnomusicologia. Recordo os valiosos livros com os quais gentilmente me
presenteou, dos quais venho me servindo na elaboração de meus escritos. Destaco,
ainda, sua importante contribuição ao presente livro ao ceder dados de seu acervo
particular, concernente ao tópico referente aos penitentes tratado na Parte 3 desta
obra.
Meu profundo agradecimento à geógrafa Maria Araujo Ferrer, do Instituto Chico
Mendes – Flora Araripe Apodi, profunda conhecedora da área pesquisada, a qual
vem me assessorando quando de minhas andanças pelas caatingas, favorecendo,
sobretudo, o contato com informantes.
Enfim, meu mais profundo agradecimento aos professores amigos da URCA e
de fora dela, sobretudo as benzedeiras, os informantes, os vendedores de plan-
tas medicinais dos mercados e feiras livres das cidades que compõem o Geopark
Araripe. A todos eles, com os quais contatei por esses quase 20 anos de andanças
por essas paragens, recebendo-me com muito carinho, como é peculiar do povo
caririense.
À minha secretária Ana Lúcia Porfírio Lima Araújo, a qual, com muita eficiên-
cia vem há muitos anos no comando de minha vida doméstica, permitindo, assim,
minha dedicação plena aos meus escritos.
Ao meu filho mais velho, Aristides, o meu muitíssimo obrigada pelas pesquisas
desenvolvidas junto aos arquivos da Cúria Diocesana do Crato no levantamento
da documentação exposta no presente livro. Ao meu terceiro filho, Mário, por
acompanhar-me ao Ceará, nestes últimos anos, meu agradecimento pelo suporte
técnico no campo das tiragens fotográficas acompanhando-me pelas áreas das
caatingas percorridas. Ao Carlos Avelino, filho caçula, sempre muito próximo ao
meu cotidiano, animando na execução de meus escritos. Ao meu quarto filho, João
Paulo, e minha nora, Diana, os quais, embora mais distantes, tenho em meu coração.
Agradecimentos 15
Ofereço este livro aos meus irmãos
Fernando e Carlos Alberto e sua esposa Clara.
16
PREFÁCIO
Prefácio 17
Para além da popularização da cultura popular, a medicina popular é um tema
político e atual. Entendo que a desvalorização da medicina popular ao longo do século
XX é uma estratégia pedagógica e de poder frente à produção e ao uso bem-sucedido
das biotecnologias médicas na prática da saúde da população. Uma vez consolidado
no campo científico por meio de um longo processo de interdisciplinaridade entre
as ciências da vida e as ciências da saúde, o progresso científico em medicina
caminha de modo pragmático, seja para o controle das epidemias com atuação em
saúde pública, seja com o profissional da saúde no cuidado com seres humanos.
Utilizar a medicina popular como área de conhecimento, abdicando dos avanços da
biomedicina e do uso que se faz das biotecnologias médicas para o tratamento de
doenças, aparece como incoerência na atuação do profissional e gestores da saúde.
Em outras palavras, falar de medicina popular no ambiente profissional e acadêmico
no Brasil é algo que incomoda. Transforma-se em uma ameaça ao movimento do
progresso científico da medicina e também ameaça à legitimidade do profissional
da saúde.
É certo que os estudos interdisciplinares da medicina com as ciências humanas
têm longa tradição no Brasil. Desde as primeiras formulações de uma medicina
legal com Nina Rodrigues no século XIX até a antropologia de Roger Bastide nos
inícios século XX, as questões religiosas sempre estiveram na ordem do campo
científico nascente da medicina e das ciências humanas. A neurologia ainda nada
produzia na época. Na medida em que as biotecnologias avançam, por exemplo,
com a matematização proposta pela bioquímica nos anos de 1900 e mais tarde com
a genética dos anos de 1950, avança em consistência a abordagem mecanicista da
medicina. Os Prêmios Nobel em medicina desde o início do século XX atestam o
papel histórico do poder simbólico das descobertas científicas em circulação, dei
xando marcas para o consumo legítimo de bens da medicina tecnicista vencedora,
contraface à medicina popular, que foi sendo deixada para o passado sem sentido,
18 Prefácio
perdedora em eficiência e eficácia, e, portanto, mais bem adequada ficou na
identificação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que a nomeou com o
eufemismo de “medicina tradicional”.
Defendemos que a denominação “medicina popular” se encontra criticamente
no campo simbólico da saúde. E é com essa denominação que surgem os parâme
tros para a circulação de bens simbólicos das práticas de cura em geral no campo
da saúde. A medicina popular tende a perder força política no campo da saúde,
porém não se permite a sua extinção. Caminham juntas as abordagens vitalistas
do passado que sequer remetem-se ao passado remoto. Mas também é correto
afirmar que as abordagens vitalistas têm longa tradição, principalmente quando
deslocamos o olhar para as práticas de cura dos países do Oriente, somadas às
medicinas homeopática e antroposófica do Ocidente, entre outras, podemos cons
tatar uma vitalidade da abordagem vitalista na prática médica.
Insistindo nos pressupostos: a medicina popular no Brasil está situada desde
então em um campo simbólico, que a coloca em um passado remoto. Podemos
pensar de modo metafórico tal situação associando-a a uma moeda, que possui duas
faces, que se nos apresentam necessária para sua concretude, para sua concreta
circulação na sociedade: as medicinas populares e as medicinas oficiais acadêmicas
compreendem esses dois lados da mesma moeda, que circulam enquanto práticas
médicas e de saúde em um mercado de bens simbólicos e perfazem o valor
comunicativo e contratual entre os membros da sociedade. A interlocução ocorre
em função do que está dado na própria moeda em circulação: práticas de cura.
Nessa economia simbólica sugere-se também a circulação de outra moeda
paralela, como aquelas que circulam somente entre o banco central e os bancos
privados de um país. Ou seja, em associação, tal moeda circularia somente no campo
da ciência, entre cientistas nestas duas faces: numa a abordagem mecanicista
(representada pelo avanço da biologia, da bioquímica e da farmacologia); noutra
Prefácio 19
a abordagem vitalista (representada pelo conhecimento das forças vitais atuantes
no corpo humano); ambas concorrendo para a hegemonia das pesquisas médicas e
seus produtos no mercado do campo da saúde.
Esses aspectos do campo simbólico da saúde interessam à sociologia e
antropologia da saúde que realizamos na faculdade de medicina. Percebemos que,
no movimento de circulação dessas moedas (metafóricas), havendo tendência
em anulação de uma das faces em detrimento da outra, nesse embate e tensão
(aparente) a medicina em geral perde seu poder de legitimidade. Resta o momento
ético que indica resoluções por dilemas. Isso não quer dizer que há incoerências e
inconsistências nas teorias médicas em pleno progresso científico. Ao contrário,
nessas condições dadas, há essa economia simbólica que joga com uma estrutura
simbólica: pouca circulação de outras práticas cura, muita concentração de
capital intelectual para a pesquisa médica e restrita distribuição de poder médico,
resultando na medicalização da sociedade.
Decorre dessa situação biopolítica um desequilíbrio da gestão e controle quando
se tem um grande sistema para administrar, como é o caso do Sistema Único de
Saúde (SUS) no Brasil. A criação, em 2013, de uma estratégia política comprova essa
assertiva: o lançamento da política nacional de humanização.
Vislumbro no trabalho de Maria Thereza e Aristides Camargo um conjunto de
bens simbólicos circulantes para somar a questão da humanização no campo da saúde.
...
Nesse contexto, toda obra de Maria Thereza coloca à vista uma interlocução
necessária que desmistifica, em meio aos avanços biotecnológicos da biomedicina,
a medicina popular no campo científico da medicina. Neste livro, Maria Thereza e
Aristides Camargo trazem um novo cenário e desafio: há uma forma de interlocução
20 Prefácio
com as ciências humanas que permite melhor diálogo entre a sociologia da
religião e as neurociências, levantando possibilidades de frutíferas relações
epistemológicas, que podem e devem ser atualizadas por fontes de pesquisa e
estudos interdisciplinares.
A proposta interdisciplinar está assim bem situada no argumento do livro: o
sentir-se doente e o sentir-se curado por parte do religioso romeiro, que segue em
romaria para a cidade de Juazeiro do Norte a fim de render graças a Padre Cícero
pela cura alcançada, coloca-se como um protótipo da pesquisa em medicina popular.
Maria Thereza e Aristides Camargo apresentam a figura do romeiro como principal
interlocutor do campo simbólico da saúde, cujo bem simbólico, a cura milagrosa, é
explicada no campo da saúde pelo aspecto psicossocial da saúde e doença.
No laboratório do Geopark Araripe (região protegida pela Unesco), onde ocorrem
as romarias de milhões de pessoas anualmente rumando para a cura religiosa, o
cenário é próprio para o olhar sociológico: aparecem com maior precisão deta
lhes da espiritualidade e da religiosidade entre os andarilhos, objeto preciso para o
estudo interdisciplinar de uma outra medicina popular.
Quem sabe ali circule um bem simbólico híbrido: o “médico popular”?
Importa, no entanto, registrar o empreendimento científico dos autores, que
partem de elementos historiográficos, buscando em fonte primária dos arquivos
locais o resgate histórico do habitus (no conceito de Pierre Bourdieu) do campo
da saúde local, com a finalidade de dar entendimento ao leitor do significado das
romarias e dos romeiros que receberam curas milagrosas. Mas, também, coloca à
prova toda experiência adquirida por Maria Thereza ao longo de sua vida acadêmica
nos estudos e pesquisa etnológicas in loco sobre Etnofarmacobotânica na região: o
uso de plantas medicinais complementa a aventura antropológica. Dois caminhos
epistemológicos se apresentam: ou 1) compreendemos o papel crítico que exerce
a medicina popular como área concentrada de conhecimento no campo científico
Prefácio 21
da medicina – que de fato ainda é pouco explorada no contexto das faculdades de
medicina – e/ou 2) compreendemos que os autores oferecem uma alternativa ao
campo simbólico da saúde, para além da força objetiva dos produtos industrializados
e suas biotecnologias, as plantas medicinais encerram valor simbólico, creditado a
favor da política nacional de humanização.
No projeto do livro fica esclarecida a origem da religiosidade regional, cujos
valores do passado católico dos jesuítas se mantêm arraigados à vida religiosa do
sertanejo romeiro. São outras revelações próprias do habitus local, localizadas
no campo religioso interligado ao campo da saúde, permeado pelo consumo de
bens simbólicos produzidos no campo religioso, mas, em homologia, consignado
ao campo da saúde: as crenças religiosas voltadas para as questões de saúde são
elementos de medicina popular desde o Brasil colonial.
Para além do destaque da pesquisa em Etnofarmacobotânica, Maria Thereza e
Aristides mostram como as atividades farmacológicas das plantas medicinais atuam
de modo ritualístico no processo de cura social nas romarias, uma característica
forte da medicina popular. O destaque está na explicação vitalista da emoção que o
romeiro carrega na romaria: o romeiro se sente curado pela emoção, um sentimento
que atribui valor sagrado ao mundo de sua vida e interage enquanto atividade tera
pêutica no corpo doente. A peregrinação evidencia uma eficácia terapêutica e isso
aponta indícios para a pesquisa interdisciplinar: há uma fisiologia das emoções em
jogo, que sugere às neurociências o valor real da crença religiosa, como elemento
primordial para a investigação empírica do processo saúde-doença.
O vitalismo da medicina popular está dado na própria cultura produzida em
Juazeiro do Norte. Circulam nosologias das doenças populares apropriadas pela
cultura popular, que, por sua vez, remete-se ao sagrado das reminiscências
jesuíticas, aos sacramentos, à devoção à Virgem Maria, a Jesus e aos santos, aos
altares de igrejas, às capelas e aos oratórios, aos padres consagrados (Padre
22 Prefácio
José de Anchieta, Padre Ibiapina, Padre Cícero, no trabalho junto às populações
extremamente carentes do sertão cearense). O apelo para curar é um estado de
transcendência do “agente desencadeador da emoção que domina o suplicante
por cura”, transformando-se nas mãos dos pesquisadores em objeto de estudo
sobre o sagrado e a fé compartilhada com a população, com a vida do romeiro que
se sente doente, mas também se sente curado fisiologicamente, psiquicamente,
organicamente, pessoalmente e corporalmente.
O livro é de grande valor para os profissionais de saúde que atuam no SUS.
Principalmente tendo em vista as unidades básicas da maioria das cidades abaixo
de 50 mil habitantes, que perfazem hoje 95% dos municípios brasileiros. Interessa o
livro para os estudiosos das medicinas vitalistas, porque se desvelam características
essenciais da medicina popular no Brasil. Mas também interessa aos estudiosos das
medicinas mecanicistas, caso se queira comparar e associar criticamente a ética no
contexto da hegemonia biocientífica. Interessa ao estudioso da cultura e medicina
popular do Brasil, dos países latino-americanos e dos países de língua portuguesa;
mas também aos leitores dos países africanos, onde reside a memória da dominação
europeia sobre a escravidão. Também, interessa àqueles que queiram atualizar-se
com os aspectos culturais e medicinais de nossa brasilidade, muito embora possam
estes estar circunscritos a uma região, servindo como mostra para as variadas
regiões do Brasil continental diante da diversidade e complexidade cultural,
também para o uso de plantas medicinais locais, bem como do consumo crítico
aos bens simbólicos de saúde. Aos gestores da saúde interessam os pormenores
do processo de resgate da identidade e cultura local, dado que os esforços para
levantamento de documentação e conhecimento local das práticas de cura valoriza
o conhecimento regional dentro de uma política de humanização. Ainda, interessa
a todos e ao profissional da saúde, que pode aqui obter elementos para serem
aplicados na construção interdisciplinar do processo saúde-doença.
Prefácio 23
Por fim, interessa à cultura médica da região, que pode incluir em sua clínica
saberes organizados por Maria Thereza e Aristides Camargo que jamais vão se perder.
Este livro pode ser considerado um bem simbólico humanizador a serviço do
bem-estar humano no Brasil!
24 Prefácio
CARTA A MARIA THEREZA
A mãe e todas as coisas é a Tétrada (o Um, o Dois, o Três e o Quatro, 1, 2, 3, 4, cuja soma
final é Dez, a Década Sagrada) e dela provêm todas as coisas que são e as que poderão ser
(SANTOS, 2000: 191).
28 Introdução
Conforme DUARTE et al. (2007: 107), a Escola Pitagórica afirmava que o número não 1 Sobre Hipócrates,
ver: JOLY, R.
era apenas o elemento formador dos objetos físicos e reais, mas estava presente,
Hippocrates of Cos
também, na formação dos seres vivos e do próprio homem, como os fenômenos DSB, v. 6: 418-431; M
atmosféricos, os corpos celestes e os movimentos que existiam e ganhavam forma TINS, Lilian AlChue
Pereira; SILVA, Paul
devido aos números.
osé Carvalho da; MU
Conforme DIAS (2007: 13), surge Empédocles (492-432 a.C.), destacando a ARELLI, Sandra Reg
Introdução 29
A natureza. - o sangue, quente e úmido
- a fleugma ou fleuma, fria e úmida
- a bílis, quente e seca
- a bílis negra, fria e seca
- o ar, quente e úmido
A partir dessas qualidades, segundo o predomínio natural de um desses humores na
constituição dos indivíduos, teríamos os diferentes tipos fisiológicos: o sanguíneo,
o fleumático, o colérico ou bilioso ou o melancólico.
Os humores eram entendidos como os líquidos secretados no organismo
humano, os quais, segundo as teorias hipocráticas, determinavam a saúde, ou seja,
o equilíbrio dos quatro humores, ou a doença, um desequilíbrio deles, tanto por
excesso como por falta, tendo “como causa principal as alterações devidas aos ali-
mentos, os quais, ao serem assimilados pelo organismo, davam origem aos quatro
humores”, incluindo entre os alimentos, segundo Hipócrates, o ar e a água, como
está em DIAS (2007: 14):
O papel da terapêutica seria ajudar a physis2 a seguir os seus mecanismos normais, aju-
dando a expulsar o humor em excesso ou contrariando as suas qualidades. Deu grande
importância à dieta, aos exercícios corporais e utilizou as ventosas e mesmo a sangria,
embora não lhes atribuísse a importância que vieram posteriormente a ter. Os medica-
mentos eram encarados como um recurso secundário.
30 Introdução
Quanto aos medicamentos, estes compreendiam diuréticos, purgantes,
sudoríferos, eméticos e soníferos.
Porém, como diz PASCALE (1971: 5),
Hipócrates foi quem fez baixar a medicina do céu à terra e, desde então, à mercê de um
labor incessante no terreno da observação e da experimentação, granjeou ela foros de
ciência positiva através da esteira luminosa dos seus progressos e das suas conquistas.
Introdução 31
cadas principalmente em arquivos das igrejas na área acima mencionada, com
destaque para o Arquivo da Diocese do Crato, dirigido pelo Padre Francisco
Roserlândio de Sousa. Paralelamente, encetamos pesquisas em obras de autores
que dedicaram suas atenções aos assuntos de nosso interesse, os quais vão cita-
dos no final. Tivemos, ainda, oportunidade de consultar teses e dissertações das
Universidades do Nordeste e demais estados, das quais pudemos extrair subsídios
esclarecedores sobre a religiosidade na região pesquisada, em sua história desde o
tempo em que o sertão nordestino começou a ser colonizado sob as ordenações do
Clero e da Corte Portuguesa.
O assunto proposto no presente livro compreende uma abordagem sobre
a religiosidade que caracteriza a região pesquisada, procurando destacar
reminiscências jesuíticas, sobretudo nas práticas devocionais arraigadas na vida
religiosa do sertanejo e do homem da cidade, ressaltando, ainda, a vivência romeira
inserida nesse contexto.
Consideramos que a maneira de entender o catolicismo naquela região sul
do Ceará, circunscrita no Geopark Araripe, e no restante do estado foi tomando
feições próprias segundo foi avançando na história. Hoje, transparecem nas práti-
cas devocionais dessa religiosidade popular, herança dos tempos que precederam
período anticlerical pombalino culminado com a expulsão dos jesuítas em 1759 pelo
Marquês de Pombal, determinando leis contrárias à autoridade do Papa, práticas
devocionais adaptadas aos costumes locais, a exemplo da presença das penitentes
em suas indumentárias próprias. Quem determinava tudo era o Imperador, além de
ter sido retirado o caráter religioso das Ordens e Congregações, como diz MARIZ
(1942: 272), em sua biografia sobre o Padre Ibiapina, aquele a quem se pode dever
muito das maneiras de encarar a vida religiosa no sertão cearense de hoje, distante
das determinações da cúpula da Igreja Católica, tal como se observa nesse cato
licismo popular ali difundido. Pe. Ibiapina, no final do século XIX, em seu trabalho
32 Introdução
missionário, “criou uma vida religiosa a partir do sertão, com características ser-
tanejas, voltada às necessidades do povo, visto a caridade falar mais alto”, como diz
OLIVEIRA (2007: 59-74). Acrescenta esse autor que Pe. Ibiapina tinha o Nordeste
“como seu espaço, onde a fome, a violência, as famílias desestruturadas pelos pais
assassinados, a falta de água, de educação e de justiça, compunham um quadro
homogêneo”.
Todavia, devemos recordar que a evolução das crenças religiosas voltadas a
questões de saúde se faz presente no que chamamos de medicina popular devido
a seus vínculos com diferentes sistemas de crença, lembrando-nos do que diz Frei
Luís Carlos Susin, professor de teologia na PUC/RS, o qual, tratando da religiosi-
dade popular, faz referência às palavras do Papa Bento XVI:
Prossegue Frei Susin argumentando que cura, neste caso, tem uma raiz religiosa
desde o início das expressões humanas:
O rito de cura, passado da enfermidade para o estado saudável, é uma experiência reli-
giosa. Por isso que a gente sempre agradece de uma forma a Deus e tem ação de graças
para fazer. Por isso, a mão que cura é sempre uma mão guiada por Deus. Tão claro, que a
cura, a religião e a medicina estão sempre dando voltas juntas.
Dentro da religiosidade popular, qual é o papel das benzedeiras e curandeiros?
[...] diante de uma medicina moderna, que é uma medicina muito objetivada na ciência,
desde o diagnóstico e nos exames com aparelhos, ao invés de tocar o doente com a mão,
Introdução 33
ao invés de aproximar o rosto e de olhar nos olhos, fica delegando pros aparelhos. E
depois, no tratamento delega tudo para a química, para comprimidos e para tratamentos
impessoais. O que nós temos nesta experiência de curandeirismo é que são pessoas que
se relacionam com pessoas. São pessoas que, geralmente, também têm experiências de
cura e se tornam curadoras de outras pessoas num relacionamento que envolve, às vezes,
até emoção, afetividade, o toque físico e, portanto, vale aquele provérbio que diz: mais
do que o chá, é a mão que estende o chá. O rito de cura, passado da enfermidade para
o estado saudável é uma experiência religiosa. Por isso que a gente sempre agradece de
uma forma a Deus e tem ação de graças para fazer. Por isso, a mão que cura é sempre uma
mão guiada por Deus. Tão claro, que a cura, a religião e a medicina estão sempre dando
voltas juntas.
Quando a gente se relaciona com uma fonte de saúde, a gente se torna saudável.
E o curandeiro é isso, uma promessa de fonte de saúde. De novo, acho que precisa
discernimento, porque no processo e no ritual existem elementos simbólicos. Usa-se
alguma coisa simbólica e se usa algum objeto simbólico. Esses gestos podem ser
evangelizados. Podem ser, portanto, melhorados, se não se fizer isso com imposição e
violência.
34 Introdução
muçulmanos, foi influenciar a medicina teológica seiscentista, já apoiada por um
catolicismo forte e punitivo vivenciado em Portugal do século dos descobrimentos.
Essa é a principal matriz influenciadora da medicina popular no Brasil. Pautada
numa medicina monástica praticada nos conventos, onde os doentes eram atendi-
dos e os tratados médicos escritos, uma medicina que se fez chegar ao Brasil por
intermédio do colono português. A este, acrescentamos as pregações das missões
religiosas que aportaram em terras brasílicas. Dentre estas, destacamos o trabalho
de catequese jesuítico, ao disseminarem os preceitos religiosos e neles as ideias
sobre a doença como castigo divino e a morte a vontade de Deus (HERSON, 1996).
Redimir-se, perante a Igreja, dos pecados que levavam os indivíduos a adoecer era
costume corrente, visando à recuperação da saúde ou salvação da alma para a vida
eterna. Diz Eugênio dos SANTOS (1992: 3): “O recurso aos intercessores celestes ou
terrestres deve ser entendido como uma demonstração de impotência do homem
para, por si, só fazer frente às adversidades do corpo ou do espírito”. Eram situações
propícias para a introdução de ideias voltadas às curas pela intercessão de Jesus,
Virgem Maria e santos junto a Deus. O próprio Padre Anchieta propiciou tais inter-
cessões, como documentado em 1672 por VASCONCELOS (1943), seu biógrafo, cujos
exemplos mencionaremos no desenvolver deste livro.
A espiritualidade e a religiosidade já foram assuntos por nós tratados em
CAMARGO (2005-6: 396), quando destacamos o laço de parentesco entre esses
conceitos. A religiosidade, permitindo ao homem disciplinar suas ideias sobre seus
pensamentos voltados ao sagrado, seguindo regras e doutrinas, aquelas que vão
dar sustentação aos sistemas de crença que congregam adeptos para, unidos pelos
mesmos anseios e princípios, desempenharem um papel social além da partici-
pação restrita, no ambiente religioso.
BENSON (2015), do Instituto Mente e Corpo da Universidade de Harvard, nos
Estados Unidos, está convencido de que as crenças têm repercussões físicas e
Introdução 35
Revisão da noção desempenham papel importante na prevenção e tratamento de enfermidades,
eficácia simbólica
assunto que desdobramos na Parte 6 deste livro. PUTTINI (2004), da Faculdade de
Lévi-Strauss,
siderando-a Medicina da UNESP de Botucatu, SP, busca, por intermédio de instituição hospi-
contexto da talar administrada por religiosos do espiritismo, compreender o uso simultâneo
ofarmacobotânica.
de terapias médicas e religiosas no atendimento aos doentes portadores de defi-
impósio
ernacional da ciências múltiplas. Procura o autor, ainda, analisar as relações entre os diferentes
ociação Brasileira agentes religiosos: espíritas e aqueles de formação médica, nas diferentes ativi-
História da
dades hospitalares, buscando nos autores consagrados, tais como Allan Kardec,
gião - ABHR.
versidade de Bezerra de Menezes e André Luiz e mais médicos espíritas, as bases nas quais se
Paulo, 19-31 out.
sustentam tais relações. Em sua segunda obra (2012), propõe pensar criticamente o
3; As plantas e o
rado considerando
campo da saúde, a partir das práticas de curas não médicas inseridas no campo do
papel na eficácia conhecimento da Saúde Coletiva. Cita como exemplo certas instituições de saúde,
terapias mágico-
tais como hospitais psiquiátricos administrados por religiosos do espiritismo e sob
giosas. Conferência
abertura do qual legitimidade tais hospitais se inserem no contexto do Sistema Único de Saúde
minário Folhas (SUS). Por fim, explana sobre a hipótese do espaço terapêutico híbrido colocado
radas – Kosi ewe
sob o problema epistemológico da espiritualidade no campo da Saúde Coletiva.
i orisà. Museu do
mem do Nordeste, Buscamos, todavia, desenvolver uma interpretação interdisciplinar do
ife, 17-18 jul. 2014. sentir-se doente e do sentir-se curado da parte do romeiro que, em Juazeiro do
Norte, rende graças por cura alcançada. Assunto o qual vimos apresentando em
reuniões científicas desde 20133, a princípio com destaque à Etnofarmacobotânica,
destacando as atividades farmacológicas que as plantas medicinais encerram,
como está em CAMARGO (2014), visto seu envolvimento com os procedimentos
ritualísticos de cura na medicina popular, podendo levar o doente a se sentir curado.
O sentir-se curado externado em espaços públicos, no caminhar penitente do
romeiro, rendendo graças a Padre Cícero, podemos explicá-lo não só por meio dos
desdobramentos da Etnofarmacobotânica como, também, a partir da Fisiologia
amparada na Neurologia, tendo como parâmetro a emoção em seus componentes
36 Introdução
físico, psicológico e social. Estes interagem com o transcendental componente de 4 As curas mágico-
religiosas na
valor sacral – a crença –, presente no conjunto de fatores capazes de desenvolver
medicina popular. X
alterações somáticas, propiciando ao doente sentir-se curado, tal como explicitado Simpósio Nacional d
na Parte 7 do presente livro. Neste tocante, importante a observação de ASLAN Associação Brasileir
de História da Relig
(2018: 46) sobre o impulso religioso, atribuindo-o a reações eletroquímicas com-
– ABHR. Universida
plexas do cérebro, não anulando, porém, a legitimidade da crença religiosa. Federal de Juiz de
Sentir-se curado é uma satisfação sempre renovada em novos apelos toda vez Fora, 15-17 abr. 2015
Contribuição da
que necessários, levando o sertanejo daquelas paragens a estar repetidas vezes
Etnofarmacobotâni
em Juazeiro do Norte, onde crê estar Padre Cícero sempre de mãos estendidas para na interpretação
das curas mágico-
socorrê-lo. Importante realçar que as mãos estendidas daquele padre santo acolhem
religiosas na medic
todos aqueles que nele creem, sejam quais forem suas condições sociais e econômicas. popular. XXIV
Adiantamos que já vimos levando também a discussão essa nova abordagem Simpósio de Plantas
Medicinais do Brasi
sobre as curas ditas mágico-religiosas em reuniões científicas, como ao lado espe-
Belo Horizonte, 201
cificada em nota4, essas nossas posições sobre tais curas. A exposição sucintamente
apresentada acima, abordando espiritualidade/religiosidade no campo da saúde,
abre caminho para uma discussão envolvendo o romeiro de Juazeiro do Norte ren-
dendo graças a Padre Cícero por cura alcançada.
Para uma análise daquilo que se pode chamar de cura mágico-religiosa por ocor-
rer em contexto religioso da medicina popular, consideremos primeiramente que
os termos magia e mágico já foram assuntos de sociólogos e antropólogos. Estes
procuraram trazer a público as interpretações que supunham cabíveis, as quais
foram discutidas por outros estudiosos, todos eles empenhados em esclarecer seus
significados, visto fazerem parte de culturas que se perdem no tempo.
FRAZER (1982), em O ramo de ouro, na edição abreviada do original de 1922, pre
faciada por Darcy Ribeiro, ao discorrer sobre o que chama de magia, qualifica-a de
simpática, ao desdobrá-la em magia homeopática, enquanto lei da similaridade, e em
magia por contágio, enquanto lei do contato, assim como coloca a magia, a religião e
Introdução 37
a ciência numa sequência evolutiva, ideia que veio a ser partilhada por autores que
o seguiram, a exemplo de DURKHEIM (2008: 67-79) na primeira década do século
XX, em Formas elementares da vida religiosa. Este autor, em sua abordagem sobre
a magia, analisando-a paralelamente à religião, admite a complexidade no domínio
desses dois conceitos ao colocá-los lado a lado. MAUSS (1974: 40), em seguida, ao
tratar da magia vem a associá-la às duas leis da simpatia de Frazer, mencionado
acima, ao admitir que “a simpatia é a característica suficiente e necessária da
magia; todos os ritos mágicos são simpáticos e todos ritos simpáticos são mágicos”.
Porém nem FRAZER nem MAUSS definem a magia propriamente dita, concluindo
este último (1974: 42) que “[...] ninguém nos deu, até o presente, a noção clara,
completa e satisfatória da magia, que é indispensável”, admitindo que “encontrar
os termos de uma definição perfeita [...] só poderá surgir como conclusão de
um trabalho sobre as relações da magia e da religião”. MAUSS, na obra citada, dá
muita importância à definição, admitindo ser o ponto de partida para qualquer
investigação, importante como forma de limitar o campo de observação de tudo que
cerca o fato em estudo. É como preparar o caminho para a explicação, entendendo
que explicar é “estabelecer, entre os fatos ligados ao objeto da pesquisa, uns aos
outros fatos que os condicionam”, segundo OLIVEIRA (1979). A magia e mais particu
larmente as curas mágico-religiosas foram tratadas por LÉVI-STRAUSS (1970, 1975)
em Antropologia estrutural e em O pensamento selvagem, respectivamente, assunto
por nós desdobrado em trabalhos levados a discussão em encontros da Sociedade
Brasileira da História da Ciência, os quais serão mencionados no decorrer deste
livro. Lembramos ainda que o autor acima mencionado preocupou-se, também,
com a Etnobotânica, admitindo a correlação entre a cultura adquirida a partir do
conhecimento dos elementos da natureza e o entorno dos espaços ocupados pelo
homem, como está em O uso das plantas silvestres da América do Sul tropical (1987).
Todavia, para abordarmos questões que envolvem as curas em seu perfil
38 Introdução
mágico-religioso, fixamos nossas atenções no caminhar penitencial do romeiro,
envolvido em todo um referencial de fé, como se estivesse emprestando seu corpo
para, numa linguagem muda, expressar sua gratidão a Padre Cícero, tal como se
presencia em Juazeiro do Norte, assunto por nós abordado na Parte 5. Ainda, sobre
o conhecimento das modalidades de utilização do corpo, citamos MAUSS (1974),
em Sociologia e Antropologia, já referida acima. Dedica esse autor uma parte da
obra a esse conhecimento, admitindo que o desenvolvimento dos meios mecânicos
à disposição do homem vem tendendo a desviá-lo do exercício e da aplicação
dos meios corporais, salvo no domínio do esporte. Este o assunto salientado por
LÉVI-STRAUSS na introdução dessa obra de MAUSS (1974, v. 2: 4). Esse antropólogo
refere-se às técnicas corporais adquiridas (1974, v. 2: 217), “um ato tradicional
eficaz”, admitindo não diferir no ato mágico, religioso, simbólico, entendendo-os
como atos distintos, não confundindo um com o outro, como ele próprio sugere na
Parte 5 deste livro (1974, v. 1: 48).
A fim de encetarmos uma discussão sobre o sentir-se curado da parte do romeiro,
baseamo-nos não só na materialidade da Farmacobotânica a partir das atividades
farmacológicas que as plantas encerram como, também, na Fisiologia da emoção. A
ideia de emoção do ponto de vista fisiológico, aqui aventada, encontrou respaldo na
Neurologia, proposta por MARINO JR. (2005: 44-50), da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo, em sua obra A religião do Cérebro, assunto o qual des-
dobramos na última parte deste livro.
A resignação diante dos infortúnios da vida terrena norteando a vida de carên-
cias do homem do sertão tem amparo na crença nos poderes de Padre Cícero no
aliviar de suas dores físicas e espirituais. Como diz MARINO JR. (2005: 46-8), “a dor
origina tensão muscular e reflexos que são sentidos como desagradáveis, além de
alterações da respiração e da pressão arterial, etc. e as nuanças de uma experiên-
cia emocional podem causar inúmeras reações perceptíveis e de difícil estudo
Introdução 39
científico ou fisiológico”. São os sintomas que levam aqueles que os percebem a
se sentirem doentes. ARNOLD (1984) demonstrou a possibilidade de a expressão
emocional ser classificada em base fisiológica, notadamente quando de sua inten-
sidade. Nesse sentido, apontamos o exemplo de nosso romeiro sertanejo quando
de sua súplica por cura, o qual, num esforço inaudito, imbui-se da certeza de que,
ao se fazer merecedor, Padre Cícero o atenderá devolvendo-lhe a saúde almejada.
Ou, em outra situação, o alto grau da emoção quando, agraciado com a cura dese-
jada, imbuído de um enorme sentimento de gratidão e da convicção de que, quando
merecedor, Padre Cícero, com certeza, não deixará de socorrer. A emoção foi
preocupação de cientistas sociais, a exemplo de DURKHEIM (2008: 282-3) e MAUSS
(1979). Essa é a posição a qual vimos assumindo, cujo tema é desenvolvido na última
parte deste livro.
Ao tratarmos de curas na medicina popular, na Parte 4, obviamente admitimos
estarem por detrás delas as doenças e seus portadores, os doentes, conceitos que
aqui retomamos ao procurarmos tratar de seus significados. Embora não nos caiba
entrar nos pormenores a respeito do que a biomedicina entende por tais con-
ceitos, buscamos, porém, aproximarmo-nos dos significados na medicina popular
e como nós pesquisadores interpretamos tais significados, já que os significantes
se confundem com a linguagem biomédica: doença e doente. Porém sabemos que
no Brasil, dada sua extensão territorial, os termos “doente” e “doença” têm seus
significados que podem variar de um contexto cultural para outro, percebidos nas
próprias designações de doenças e nos quadros sintomatológicos que as caracte
rizam, lembrando:
- espinhela-caída – síndrome decorrente da deformidade do apêndice xifoide;
- mal-de-sete-dias – tétano no cordão umbilical do recém-nascido;
- doença-seca – síndrome carencial;
- vento-virado – proveniente de jogar criança para o alto;
40 Introdução
- isipa – erisipela;
- mal-de-secar – tuberculose;
- cobreiro – herpes.
Estas “doenças”, entre outras mais, as quais hoje causam risos, já foram alvo de
atenções de escolas médicas, inclusive na elaboração de teses, como nos conta
SANTOS FILHO (1947) em sua monumental História da medicina no Brasil (Do século
XVI ao XIX). Muito enriqueceria a medicina hegemônica se se voltasse atenção a
essas “patologias”, buscando elaborar uma correlação nosológica a fim de equi-
pará-las às interpretações médico-científicas. Quem sabe não seria outra a visão
daqueles empenhados em Saúde Coletiva na elaboração das políticas públicas de
saúde? São as doenças citadas, cujas etiologias reúnem ideias objetivas amparadas
num subjetivismo aí embutido, apoiado no imaginário individual ou coletivo, vari-
ando estes de um contexto sociocultural a outro.
O antropólogo francês LAPLANTINE (1998), em Aprender etnopsiquiatria,
busca analisar as representações simbólicas no imaginário do homem brasileiro
em seus conflitos, tanto individuais como coletivos, procurando compreender as
soluções buscadas na própria cultura em suas formas comportamentais e siste-
mas de crença. Nesse sentido, busca analisar os significados conceituais de doença
e cura, ou seja, os recursos terapêuticos no contexto ritualizado da religiosidade
popular católica do Nordeste brasileiro. Este o assunto que retomaremos na Parte
4, abordando, ainda, como esse antropólogo interpreta o processo de aculturação
no Brasil. Ainda, em LAPLANTINE (2004: 5, 160), em Antropologia da doença, numa
abordagem sobre a eficácia simbólica de determinadas curas nas práticas médicas
populares, as compara a efeito placebo, atribuídas à eficácia simbólica, acompa
nhando LÉVI-STRAUSS, assunto também amplamente discutido na Parte 5.
A vivência romeira em Juazeiro do Norte, orientada por um catolicismo popular
dominante na região, tem, certamente, sua raiz de origem nas pregações de missões
Introdução 41
católicas que andaram por aquela região cearense. Entretanto, entendendo a
importância das ordens religiosas católicas, as quais atuaram por aquelas paragens
em tempos coloniais, na doutrinação aos povos nativos, nos detemos, neste livro,
na contribuição jesuítica. Justificamos nossa postura, visto termos percebido traços
marcantes da doutrinação inaciana como parte da proposta educacional implantada
entre os nativos e colonos portugueses naquele alvorecer do Brasil. Nesse sentido,
buscamos na Parte 2 desenvolver considerações sobre os fundamentos básicos
da proposta educacional da Companhia de Jesus quando da criação dos colégios,
assim como teriam sido suas estratégias educativas junto aos indígenas, a partir
dos autores consultados e da leitura das cartas trocadas entre aqueles religiosos.
Na Parte 3, tratamos das reminiscências jesuíticas na religiosidade do sertanejo,
destacando as práticas devocionais, a exemplo do culto a Bom Jesus – só a Ele se
deve crer, amar e servir (LEITE, 1954, Tomo III: 469). Lembrando, ainda, que aquele
foi o período em que a Igreja e o Estado em Portugal caminhavam juntos. Bem mais
tarde, entre 1872 e 1875, durante o pontificado de Pio IX (1846-1878), os bispos,
empreenderam a romanização do catolicismo, adaptando-o à posição tradicional
de Roma, tornando a devoção ao Sagrado Coração de Jesus uma das manifestações
mais importantes do catolicismo romanizado. Tal fato veio a conflitar com a devoção
popular ao Bom Jesus, com a condução do culto por leigos, segundo AZZI (1990:
111-3). Tais leigos, certamente, teriam sido os herdeiros daqueles jovens os quais,
formados pelos primeiros jesuítas nos primeiros anos de catequese, os auxiliavam
nos trabalhos religiosos.
Quanto à devoção ao Sagrado Coração de Jesus, esta tem sua história na Europa,
particularmente em Portugal, iniciada bem antes do processo de romanização
ocorrida no século XIX, como referido acima, assunto que detalharemos na Parte 3.
O processo de romanização buscava maior controle sobre os leigos e suas asso-
ciações, contudo, como diz TEIXEIRA (2012: 23),
42 Introdução
[...] não há como negar o impacto da romanização sobre a forma tradicional da vida reli-
giosa, mas as concepções basilares do catolicismo popular tradicional, como o culto aos
santos e a crença nos milagres, permanecem vivas. E, além disso, há uma incorporação
original por parte do povo de traços da romanização, o que evidencia “o aspecto dinâmico
e criativo do catolicismo popular que se refaz continuamente”, citando STEIL (1996: 249,
nota 16).
TEIXEIRA (2012) cita, ainda, OLIVEIRA (1988: 121): “o processo de romanização foi
forte bastante para combater o catolicismo popular, mas não o suficiente para
implantar a forma romana na grande massa dos católicos”.
Quanto a assuntos que tocam às questões polêmicas referentes à atuação dos
inacianos em seu trabalho de catequese, confrontada com a atitude despótica pom-
balina, culminando com a expulsão daqueles padres, desenvolvemos uma discussão
com base nos escritos de autores que se dedicaram a esse assunto.
Voltando aos propósitos do desenvolvimento de texto sobre as reminiscências
jesuíticas, tratamos da administração dos sacramentos, a exemplo do batismo, o
qual, tinha especial importância para os jesuítas por tratar-se da entrada do indí-
gena na cristandade. Era tão importante que, para a salvação da alma e garantia da
vida eterna, o batismo era primordial.
Lembremos, ainda, a devoção à Virgem Maria, Jesus e aos santos, estes em suas
representações estatuárias, as quais chegavam nas caravelas para suprir altares de
igrejas, capelas ou oratórios (DANTAS, 2000). Teria sido Padre José de Anchieta e
seus companheiros espalhados pela costa brasileira responsáveis pela difusão da
devoção a Nossa Senhora, pois teria sido ele quem escreveu nas areias da praia os
versos dedicados a ela: De beata Virgine Dei Matre Maria, e o culto a ela propa-
gou-se Brasil afora, como atestam as inúmeras igrejas e capelas sob sua invocação:
Nossa Senhora da Graça, Nossa Senhora da Ajuda na Bahia, Boa Morte, entre muitas
Introdução 43
outras, lembrando, todavia, a devoção das Nove Velas, a qual consistia em acendê-
las no Altar de Nossa Senhora para que os bandeirantes, os desbravadores do
sertão voltassem ilesos, como diz DIEGUES JÚNIOR (1968: 18). Somada à devoção a
Nossa Senhora, estava a devoção aos santos, entre eles os mártires, sobre os quais
tratamos amplamente, citando a posição da Igreja Católica a partir do que dizem
eméritos autores.
Destacado o elevado grau de cultura de que, sabidamente, eram possuidores
os jesuítas, citamos o legado deixado pelo Padre José de Anchieta, registrado em
extensa carta enviada de São Vicente, em 31 de maio de 1560, ao Padre Diogo Laínes,
em Roma. Descreve com pormenores a fauna e a flora da Mata Atlântica, cum-
prindo o prometido ao destinatário daquela carta. É extraordinária sua erudição no
tocante ao conhecimento que tinha das Ciências Naturais, a ponto de impressionar
o famoso botânico francês Auguste de Saint-Hilaire quando de sua vinda ao Brasil
em 1816, visto ter tomado conhecimento de tal carta, assunto que abordaremos na
Parte 2 deste livro. Tal fato levou aquele botânico a dedicar a Anchieta uma planta
medicinal, à qual deu o nome de Anchietea salutares ST. Hil. – Violaceae, vulgar-
mente conhecida por cipó-suma,
Outro jesuíta que não podemos nos furtar em mencionar foi o Padre José
Rodrigues de Melo, erudito latinista e membro da Companhia de Jesus, cuja vinda
ao Brasil presume-se ter ocorrido em 1739. Na Bahia inicia sua obra em latim na arte
da versificação, sobre as riquezas rurais do Brasil, concluída no exílio da Santa Sé,
para onde seguiu após a decisão tomada pelo Marquês de Pombal com a expulsão
dos jesuítas (MELO; AMARAL, 1997). Na obra mencionada, tratou do cultivo da man-
dioca e seus usos, da criação do gado, da cultura do tabaco e do fabrico do açúcar.
“Obra endereçada sem dúvida à Europa culta de seu tempo”, como está na intro-
dução de Temas rurais do Brasil, em edição bilíngue, dos latinistas SOZIM e ZAN
(1997). Todavia, a referida obra teria sido, segundo seus tradutores, uma recriação
44 Introdução
de Cultura e opulência do Brasil (1711), de ANTONIL, ao tratar da criação de gado.
Mas, numa análise comparativa das duas obras por nós encetadas, percebemos na
de ANTONIL o seguinte destaque:
[...] as fazendas e os currais do gado se situam aonde há largueza de campos e água sem-
pre manante de rios e lagoas, por isso os currais da parte da Bahia estão postos na borda
do rio São Francisco, na do rio das Velhas [...]
Enquanto ANTONIL descreve como eram as boiadas em áreas banhadas por cau-
dalosos rios, MELO (1997: 137), muitos anos depois, sobre a criação do gado no Brasil,
aborda o tema sob outro prisma. Bem diferente do autor anterior, imprimindo
inteligentemente em versos latinos e extremamente detalhado os cuidados que
deveriam ter os candidatos à criação de gado. Face aos riscos que correriam levan-
do-os ao fracasso na atividade pastoril, exatamente se a área escolhida estivesse
distante de rios, explanando detalhadamente como proceder na escolha da área
ideal para a criação de gado, assunto também desenvolvido nesta parte do livro.
Sobre a religiosidade no sertão caririense, desenvolvemos na Parte 4 ampla dis-
cussão envolvendo Padre Ibiapina e Padre Cícero, seu sucessor no trabalho junto às
populações extremamente carentes do sertão cearense. Acrescentamos, ainda, as
questões religiosas envolvendo ambos junto à cúpula do clero na sua interferência
junto a esses dois abnegados padres, conforme documentado em cartas por eles
trocadas, principalmente com autoridades da Igreja.
A devoção à Vigem Maria, Jesus e aos santos é outra particularidade da religio-
sidade da região pesquisada, particularmente das imagens que os representavam,
lembrando os oratórios de viagem esculpidos em madeira que se veem à venda no
centro de artesanato Mestre Noza, em Juazeiro do Norte, onde lá estão os próprios
artesãos esculpindo-os. Peças esmeradamente trabalhadas, retratando em rostos
Introdução 45
coloridos Jesus e a Virgem Maria, lembrando pinturas medievais, de uma singeleza
ímpar. O apelo aos santos para a obtenção de curas, próprio da medicina popular
em nosso país, certamente advém do catolicismo português. No século XVIII, eram
80 santos, conforme referido em um catálogo com os males do corpo e do espírito,
indicando o santo para cada caso (SANTOS, 1992), assunto aqui tratado.
O apelo a Padre Cícero por curas e o sentir-se curado documentado nos ex-votos
levados ao Horto de Padre Cícero pelos romeiros de Juazeiro do Norte são aqui
amplamente discutidos.
Percebemos no romeiro de Juazeiro do Norte, principalmente naquele que, em
sua individualidade e espontaneidade criadora, soluciona a maneira como peniten-
ciar seu corpo. Atitude distinta daquelas ligadas a grupos de beatos, por exemplo,
os quais, em atitudes e indumentárias próprias, comparecem às romarias. São
práticas que se assemelham, em sua maneira de ser e de se apresentar, aos tempos
anteriores a Padre Cícero. Foi quando, a partir da segunda metade do século XIX,
Padre Ibiapina – José Antônio Pereira Ibiapina (1806-1883) – missionava junto aos
sertanejos das caatingas, sofridos pelas sucessivas secas e epidemias várias, propi-
ciando o êxodo para as cidades. Tal fato intensificou-se quando da propagação pelo
sertão afora do milagre da transformação em sangue da hóstia dada em comunhão
pelo Padre Cícero à beata Maria de Araújo, em Juazeiro do Norte, levando romeiros
àquela cidade, não só para constatarem pessoalmente o milagre, como ali se fixa
rem, onde poderiam orar e trabalhar, visto admitirem se tratar da Nova Jerusalém.
O sentir-se curado da parte do romeiro foco de nossas atenções é colocado em
discussão na última parte deste livro. Porém importante se diga: uma interpretação
das curas em sua dimensão objetiva, quando a subjetividade vem a pesar sensivel-
mente, nas questões que envolvem a religiosidade imanente no espírito daquele
romeiro, vem a exigir um esforço singular, pela preponderância do transcendente
agente desencadeador da emoção que domina o suplicante por cura – o compo-
46 Introdução
nente sacral –, a crença, a fé que norteia a vida do romeiro. ASLAN (2018: 46), sobre a
ciência cognitiva da religião, admite que esta começar “com uma premissa simples: a
religião é antes de tudo, e principalmente, um fenômeno neurológico”. Esse, todavia,
é assunto que desdobraremos na última parte deste livro.
Em vista de tratarmos de fato social no campo da saúde, indubitavelmente
vimo-nos diante da necessidade de uma abordagem interdisciplinar, pois estamos
diante de fatos relacionados às Ciências Sociais e Ciências Naturais. Diante de tal
circunstância, passamos a admitir a importância da complementariedade das meto
dologias dessas distintas áreas científicas na compreensão e explicação dos fatos
relacionados ao sentir-se doente e sentir-se curado, da parte do romeiro de Juazeiro
do Norte.
WEBER (1864-1920), o sociólogo que desenvolveu o método compreensivo nas
Ciências Sociais, admitindo para as Ciências Naturais o método explicativo, deter-
minava, segundo FREUND (1978: 76),
[...] que toda relação inteligível pela compreensão deve ao mesmo tempo se deixar expli-
car causalmente, isto é, os métodos explicativos e compreensivos são, de certo modo,
complementares e não totalmente autônomos. Eles buscam uma combinação entre a
compreensão e a explicação, falando em explicação compreensiva ou compreensível, a
qual significaria a explicação causal de uma atividade com a concomitante apreensão do
sentido visado subjetivamente.
Introdução 47
Disponível em:
tps://biblioteca.
e.gov.br/
1
ualizacao/dtbs/ O CEARÁ NOS PRIMEIROS TEMPOS DE
ra/missaovelha.
>.
COLONIZAÇÃO
sso em: 22 jun.
9.
A região interiorana do Brasil, lá pela segunda metade dos quinhentos, era quali
ficada como Terra non descoperta, segundo uma carta geográfica de Giacomo
Gastaldi, em BANDEIRA (2000: 127), segundo ARRAES (2004: 52). Dúvidas acerca da
parte desconhecida daquele pedaço do Brasil seriam parcialmente desmistificadas
a partir de notícias trazidas por sertanistas e aventureiros, que para lá rumaram em
busca do Eldorado ou de índios para escravização nas zonas litorâneas. Algumas
dessas investidas ocorreram em 1551, em atenção às ordens de D. João III.
Segundo STUDART FILHO (s/d: 19),
nos tempos da conquista foram várias as estradas abertas no Ceará, admitindo que a mais
antiga alongava-se pela orla litorânea apresilhando desde 1611, o fortim de S. Sebastião aos
mais civilizados centros do nordeste brasileiro foi o conduto por onde penetraram nas
invias glebas nordestinas os pioneiros da truculenta civilização ocidental. Percorrendo
ora a praia rasa pela estreita faixa arenosa que as vagas humedeciam a cada instante, ora
Podemos deduzir que, a partir dessa invasão das terras ao sul do Ceará, a população
nativa viesse a ser terrivelmente sacrificada, conforme diz POMPEU SOBRINHO
(1929: 229):
[...] Em 1739, temos a inusitada situação dos índios Jenipapos pedirem ao governador de
Pernambuco, missionários que os aldeassem e assistissem. Este acontecimento ilustra
bem como os índios estavam em situação de desvantagem e acuados diante do acele-
rado avanço territorial dos colonos e conquistadores sobre suas aldeias. De fato, a única
forma de continuar vivo e existindo seria pedir a proteção e tutela dos sacerdotes católi-
Com base nos autores acima, um intercruzamento de raças ocorreu entre o euro-
peu, os indígenas e os “escassos escravos africanos”, passando aqueles indivíduos
a habitar o que, outrora, fora o habitat do tapuia Kariri, ali introduzindo um novo
modo de viver.
Assim, apropriando-se dos territórios indígenas, foi o colonizador dominando e
escravizando aquela gente do povo Kariri e renomeando os lugares que serviam de
a catequese disseminava as primeiras letras através da difusão dos valores a ferro e fogo
os fundamentos da moral e da ética cristãs que impulsionariam o desenvolvimento do
comércio e do modelo de sociedade a ser estabelecido no universo do Sertão. Quando
deslocamos a perspectiva da visão geral para nossa área de interesse, percebemos
que além da Missão de São José dos Cariris Novos, agora Missão Velha, fundaram-se
quase simultaneamente dois núcleos de povoamento, à sombra do zelo apostólico dos
Capuchinhos do Hospício de Olinda. Um foi a Missão do Miranda, onde agora está situada
a cidade de Crato, e o outro, ao sopé do lado pernambucano da serra do Araripe, Exu,
que, mais tarde, se transferiu para outro local. O aldeamento vizinho à cachoeira, no rio
Salgado, o primeiro do Vale difundia a doutrina cristã encarregada de dar sentido ao novo
modo de vida social.
[...] A Coroa via com bons olhos essa simbiose entre “reses” e “almas”, visto que seriam ele-
mentos indispensáveis para seus planos geopolíticos de avanço territorial para o Oeste,
ideais, os quais seriam alcançados através da oficialização de determinados núcleos
urbanos já existentes, ou melhor, a Metrópole lusa deveria reconhecer oficialmente cer-
tas povoações, em um primeiro instante, e criar freguesias, e depois, se fosse do seu
interesse, elevar certas aglomerações ao foro de vila.
Não era somente o acesso garantido então à desejada e necessária assistência religiosa
que se obtinha, mas também o reconhecimento da comunidade de fato e de direito
perante a Igreja oficial, portanto perante o próprio Estado. Não era apenas o acesso ao
Segundo PRIMERIO (1942: 191), “[...] foi graças ao gado que os sertões das capitanias
que compuseram o Nordeste colonial fizeram parte dos planos da monarquia por-
tuguesa”. Acrescenta esse autor que, no porto da Vila de Aracati, o frei capuchinho
Anibal de Gênova,
em sua missão ambulante de 1762, notou o comércio de carne e couro daquele núcleo
urbano, testemunhando que era lugar de muito comércio, citando, ainda, que [...] o porto
de Aracati interagiu com outros centros da colônia (Recife, Salvador e Rio de Janeiro e
da América). A cidade de Buenos Aires, por exemplo, esteve subsidiada de produtos da
pecuária nordestina.
Ainda em LEITE (1954, Tomo I: 5): “Estão presentes, como se vê, o serviço de Deus, o
serviço e o proveito geral, o enobrecimento e serviço particular do Brasil. A ‘fé’ em
primeiro lugar; o ‘império’ em segundo. Mas, ambos”.
A segunda missão em 1550 tinha à frente Alonso Brás, a terceira missão, em
1553, de que era Superior o Padre Luís da Grã, era constituída de três padres e dois
irmãos. Segundo LEITE (1954, Tomo III: 59), todas três foram notáveis e constituem
os alicerces da Companhia de Jesus no Brasil.
Posteriormente, só em 1559 foi enviado um grupo de religiosos, cuja seleção
não foi austera quanto à saúde e qualidades pessoais dos missionários. Constava de
dois Padres e cinco irmãos, sob a direção do Padre João de Melo, que perseverou
e faleceu no Brasil. O outro Padre padecia de gota coral e não tardou a voltar à
Europa. Dos irmãos, tirante dois, todos os mais saíram da Companhia. A estas,
outras missões se seguiram em 1563 e 1566.
Ainda em LEITE (1954, Tomo III: 61):
Para a criação da nascente instituição, enviou Loyola a Paris “padres de rara valia:
Jerônimo Nadal, professor de hebreu, Padre Canísio, de retórica, André Frusius,
de grego, Isidoro Bellino, de lógica, João Batista Passerini, Anibal Du Coudret e
He penna que a que foi dos jesuítas se tenha perdido e vá cada vez mais se arruinando,
por ser uma das magníficas pessas daquele gênero, bem como a caza da livraria, cujos
livros bons e muitos tem sido furtados e outros vendidos por quem os furtara por vilíssi-
mos preços a Boticarios e Tendeiros para embrulhar adubos e unguentos, podendo ter-se
com modica despesa conservado, ainda que fora para nelles se consultar muitas couzas,
para que aqui não aparecem livros; outros porem consta terem sahido para armar estan-
tes de particulares, sem que hoje exista nada mais.
Por aquele tempo, todos os bens móveis e imóveis dos jesuítas foram confiscados e,
com relação às bibliotecas, ocorreu “um completo desmantelamento e desapareci-
mento dos acervos construídos ao longo de 200 anos” (SILVA, 2008: 32). Conforme
esse autor, Serafim Leite apresentou pistas do que teria ocorrido: “as particulares
parecem ter sido os destinos finais dos acervos. Acrescente-se ainda que muitos,
abandonados durante largo período em condições inadequadas, foram parcial ou
totalmente destruídos pela ação de insetos e fungos, ou objeto de roubo” (LEITE,
2004, Tomo IV: 113). Segundo o mesmo autor na obra citada, os livros dos Colégios
de Santo Alexandre e da Vigia foram doados a um Colégio de Nobres, o qual nunca
chegou a funcionar.
memória jesuítica fixou a imagem de Santo Ignácio de Loyola como o homem da ação.
Apresenta-se ainda outro traço que considera essencial: Loyola foi também um homem
da escrita. Embora isso reduza sua rica personalidade, é difícil não ser levado em consider-
ação para quem entre 1524-1556 escreveu seis mil oitocentas e quinze cartas.
Sobre o ato de escrever cartas diz, ainda, o autor acima: “[...] No que diz respeito
às ‘letras missivas’, determinaram-se obrigações em dois sentidos: entre súditos e
superiores e entre casas e províncias. No primeiro sentido, o padre geral e os pro-
vinciais deveriam saber e ‘entender las nuevas e informaciones que de unas y otras
partes vienen’ (Carta n. 673). Para garantir que as cartas fossem realmente enviadas,
os superiores deveriam escrever para os provinciais cada semana e estes respon-
deriam e escreveriam também ao padre geral a cada mês”.
Vários estudiosos se manifestaram sobre a circulação das cartas jesuítas, tal
como está em CAVALCANTE (2012: 138):
Trata da memória e ação educativa dos Jesuítas Proscritos pela República de Portugal,
relacionando-a com a produção de impressos resultantes do trabalho dos seus intelectu-
ais e historiadores. Parte do episódio da expulsão da Companhia de Jesus pela República
LEITE (1954, Tomo I: 55) comenta sobre as primeiras cartas de Nóbrega, datadas de
1549. Depois de lidas em Portugal, seguiam para Roma e em seguida eram distribuí-
das pelas Casas e Colégios europeus e, daí, “até os confins do mundo oriental, que
os navios portugueses acabavam de por em contato direto com Lisboa e o Ocidente”.
Ainda, como está em LEITE (1954, Tomo I: 570),
[...] as cartas quando chegavam a Lisboa até 1566 eram abertas pelo Provincial de Portugal,
menos as destinadas ao Geral; [...] e antes de as mandar para Roma era preciso copiá-las:
as de notícias, para as repartir pelas casas, e as de negócios, para tratar com os minis-
tros régios do que tocava a cada missão, e pela cópia saber sempre os termos exactos
dos requerimentos. Naturalmente as cartas não podiam ser reexpedidas para Roma tão
depressa. A 9 de Janeiro de 1567 o P. Francisco de Borja lamenta-se ao P. Leão Henriques
No Brasil, em seus primeiros tempos até a chegada dos jesuítas, a área médica com-
preendia elementos de pouca credibilidade, a ponto de o frei Caetano Brandão,
bispo do Pará, dizer: “é melhor tratar-se a gente com um tapuia do sertão, que
observa com mais desembaraço instinto, do que com um médico de Lisboa”,
segundo MACHADO (1978), em Vida e morte do bandeirante.
A história médica das santas missões está por fazer-se. A medicina foi apanágio das rudes
lídes e nobres canseiras dos sacerdotes das ordens religiosas, em todos os quadrantes
do mundo por onde penetrou o verbo divino, rasgando à alma do íncola o caminho da
cristandade.
Anchieta, o Galeno jesuítico do Brasil, que melhor nome lhe dão não assenta, ingressa,
definitivamente, no rol dos paladinos cristãos da medicina do novo-mundo. [...] onde o
missionário de Loyola plantou o marco da civilização nascente, a medicina surgiu com
ele, irmanada a todas as formas ou solidário com todos os sacrifícios daquele idealismo.
[...] o amparo das aflições temporais realizava na ação médica do sacerdote uma con-
tinuidade à sagrada inspiração e aos compromissos implícitos do assistente das almas
perdidas no cáos do paganismo tapuio. [...] Anchieta foi médico, cirurgião, parteiro,
higienista, legista, terapeuta, ginecólogo, psiquiatra, nosologista e observador, enfer-
meiro, padioleiro, coveiro, não houve ramo da medicina que não atraísse a divina intuição
do Padre Anchieta.
[...] Quando se desenganava da medicina da terra, qual o caso das “postemas nos peitos”
do padre Luiz da Grã e das “agudas febres” do Padre Gregório Serrão, apelava para a
do céo, pois superabunda a celestial, com a qual se curam as enfermidades ainda que
perigosas.
Ajunta-se a isso que, contraindo o matrimonio com os mesmos parentes e primos, se torna
dificílimo, se porventura queremos admiti-los ao batismo achar mulher que, por causa do
parentesco de sangue, possa ser tomada por esposa. O que não pequeno embaraço nos
traz; porquanto não podemos admitir a receber o batismo a que se conserva manceba.
Por isso, parece grandemente necessário que o direito positivo se afrouxe nestas par-
agens. A não ser o parentesco de irmão com irmão possa em todos os graus contrair
[...] era comum nos índios e Anchieta, entre o pecado de o admitir e a necessidade do
batismo, pedir tolerância da Igreja Católica. Excetua o casamento entre irmãos e gene
raliza a profilaxia dos consórcios homoêmicos. É bem verdade que não o fez, no caso, em
nome da medicina. Mas, na obra médica de Anchieta é difícil dizer-se quando a religião
secunda a ciência ou quando a medicina secunda a religião.
[...] esta parte do Brasil, que se chama S. Vicente, dista Equinocial para o Sul, vinte e três
graus e meio, medidos de Nordeste a Sudoeste. [...] Em nenhum tempo do ano param
as chuvas, e, de quatro, de três em três graus e meio ou até de dois em dois dias, se
alterna a chuva com o sol. Contudo se fecha o céu e não chove, de forma que, não pela
força do calor que nunca é excessivo, mas por falta d’água, secam os campos que não
dão os costumados frutos; e algumas vezes chove demais e apodrecem as raízes de que
nos alimentamos. Os trovões ribombam com tal estampido que causam muito medo mas
[...] Também há aqui onças, que são de duas variedades: uma cor de veado mais pequenas
e mais cruéis; outras malhadas e pintadas de diversas cores, que são as mais frequentes
em toda parte, e estas ao menos os machos, são maiores que os maiores carneiros,
porque as fêmeas, em tudo semelhantes aos gatos e servem para comer, como por vezes
experimentamos. Em geral são medrosas e acometem pelas costas, mas tem tanta força
que com um golpe das unhas ou dentada dilaceram o que tomam.
Estando a descansar uma noite à beira dum rio em pequenas cabanas alguns cristãos,
numa delas debaixo da cama ou, antes, debaixo da rede na calada da noite e por uma
perna, talvez um pouco de fora, o agarrou e levou, não podendo a gente que aí se achava,
[...] Quanto a ervas e árvores, não quis deixar de referir que estas raízes que usamos na
alimentação e se chamam mandioca, são venenosas e nocivas por natureza, a não ser que
pela indústria humana se prepararem para comer. Se se comem cruas, assadas ou cozi-
das, matam os homens, mas podem-nas comer impunemente os porcos e os bois, exceto
o suco que delas sai; que se o comem logo incham e morrem. Há outras raízes de nome
yrticopê semelhante a rábano, de agradável sabor, bastante apropriadas para acalmar a
[...] estas raízes que usamos na alimentação se chamam mandioca, são venenosas e noci-
vas por natureza, a não ser que pela indústria humana se prepararem para comer. Se se
comem cruas, assadas ou cozidas, matam os homens, mas podem-nas comer impune-
mente os porcos e os bois, exceto o suco que delas sai; que se o comem, logo incham e
morrem (VIOTTI, 1984: 44).
[...] Das árvores, parece digna (embora haja outras que destilam líquidos semelhantes
à resina, úteis para remédios), uma que dá um suco suavíssimo, que querem seja bál-
samo. Escorre a princípio como óleo por orifícios abertos pelo caruncho ou também por
incisões feitas por facas e machados, e depois coalha e parece tomar a forma de bálsamo.
Exala cheiro não demasiado, mas suavíssimo, e é muitíssimo próprio para curar feridas,
de maneira que em pouco tempo nem sinal fica da cicatriz (como dizem estar compro-
vado pela experiência) (VIOTTI, 1984: 45).
Sem dúvida deve-se à obra do jesuíta MELO (1997: 19) De rusticis Brasiliae rebus
(Temas rurais do Brasil) o conhecimento que se possa ter hoje dos usos e costumes
[...] não só essenciais à vida como também de extrema importância para a economia rural
da então Colônia e que o poeta queria propagar no seio da comunidade europeia. Para
tanto, não poderia valer-se de outra língua que não fosse a latina universal e acessível
a todo homem culto, tornava-se instrumento mais adequado aos propósitos do ilustre
autor, e ao conteúdo didático da matéria.
Em versos latinos, a obra do jesuíta MELO, publicada pela primeira vez em 1780, trata
de assuntos que, segundo os latinistas tradutores da obra – SOZIM e MONTEIRO –,
teriam sido uma recriação de Cultura e opulência do Brasil, de ANTONIL (pseudônimo
de João Antônio Andreoni), publicada em 1711, sobre O Açúcar, O tabaco, o Ouro e as
Minas e por fim Pastos e o Gado, sem entrarem em maiores detalhes sobre tal recriação.
Para uma análise comparativa entre as duas obras – de ANTONIL e de MELO –,
consultamos Cultura e opulência do Brasil, de ANTONIL, e Estudo bibliográfico, por
TAUNAY, sobre a Cultura e opulência do Brasil de ANTONIL, o qual foi enviado por
Taunay a Capistrano de Abreu em 15 de junho de 1922.
Enquanto ANTONIL descreve como eram as boiadas em áreas banhadas por cau-
dalosos rios, MELO (1997: 137), sobre a criação do gado no Brasil, aborda o tema da
criação de gado sob outro prisma. Em uma abordagem bem diferente, vai ele impri-
mindo inteligentemente, e de maneira extremamente detalhada, os cuidados que
deveriam ter os candidatos à criação de gado, em face dos riscos que correriam e
levariam ao fracasso na atividade pastoril, caso a área escolhida estivesse distante
de rios ou lagoas, tal como se lê abaixo.
[...] Eis que a vasta terra, à medida que se estende largamente, revela campos que,
carentes de proprietários, obtém para si, não comprados, quem quer que primeiro os
busque. Mas, tu, quem quer que sejas, que te comprazes na criação de gado e desejas
aplicar trabalho e cuidado ao rebanho (para que não te arrependas mais tarde do erro,
se acaso deparares com campos inapropriados), aprende o que prejudique ou o ajude e
convenha aos teus projetos, considerando contigo no teu íntimo, muitas coisas antes que
Todavia, não fica bem clara a região por ele descrita no poema, supondo tenha
sido o Rio de Janeiro. Sabe-se, todavia, que esse jesuíta nascera em Portugal, na
cidade do Porto, em 1723, e que sua vinda ao Brasil ocorreu em 1739 quando foi
registrado no Noviciado de Juquitiba, na Bahia, na corporação religiosa de Santo
Inácio de Loyola. No ano de 1756, a data de sua profissão solene ocorreu no Colégio
de Paranaguá e depois teria ido para Santos, SP, e, posteriormente, para o Rio de
Janeiro. Lá se dedicou aos estudos de filosofia e partiu por ordem do Marquês de
Pombal, junto com seus companheiros, para Lisboa em 24 de fevereiro de 1760 e
de lá para os Estados Pontifícios, vindo a falecer em Roma em 4 de agosto de 1789.
Teria sido no exílio que, como dizem os tradutores de Temas rurais do Brasil,
[...] o ilustre humanista, mercê do seu domínio da língua de Virgílio e da arte da versificação,
pode dedicar-se com vagar ao cultivo da poesia, amplo conteúdo didático-informativo
acerca das riquezas rurais do Brasil colonial, endereçado sem dúvida à Europa culta do
seu tempo (MELO, 1997: 16).
[...] a partir do reinado de dom João V, quando então se intensificaram os esforços para
inserir Portugal no contexto da Europa culta, esses homens ilustrados eram requisitados
para pronunciar-se sobre os mais diversos assuntos. Urgia um conjunto de mudanças
profundas que fossem capazes de livrar os portugueses do obscurantismo.
As águas
[...] Observa-se por acaso um rio abundante atravessa os campos, o qual proporcione
bebida aos rebanhos e alimento às ervas. [...] Nascendo o sol, revisita, madrugador, os
campos e, se em algum lugar exalar uma névoa tênue, aí terás início indubitável de uma
fonte oculta. [...] Evitará, no entanto, as águas estagnadas onde coaxa a rã; pois que os
pântanos entorpecidos viciam os ares e produzem-no denso limo animais infestos ao
rebanho e derramam nos prados circunvizinhos as chuvas recebidas, provocam doenças
e deterioramos pastos.
[...] Descrevo fatos conhecidos e a cada passo manifestados aos olhos: comprovam-nos
os próprios homens, os próprios rebanhos, os próprios covis das feras e testemunha-os
toda a terra brasileira por mais vista que seja.
Começarei a cantar a raiz concedida aos povos do Brasil por dádiva dos deuses, da qual a
terra mãe fornece aos seus filhos o sustento; e, compadecido dos agricultores desprepa-
rados, direi primeiro que cultivo seja conveniente à planta a ser obtida, depois direi para
quais usos há de crescer a raiz; e trarei comigo do monte Aônio às matas e aos covis sel-
vagens (MELO: 1997: 73).
[...] Outrora os povos do Brasil, nem habituados a dar sementes aos campos, nem a exer-
citar a terra cultivando-a vagavam por bosques inóspitos o alimento que o apresentasse
espontaneamente, e viviam de frutos de gordas presas: não era então conhecido o uso
do pão, e todo o culto de Ceres jazia sem honra, até que, com ajuda e conselho de Tomé,
foi descoberta – a mandiva, arbusto digno de ser lembrado antes que as demais plantas,
cuja raiz alimenta os homens e substitui o trigo, já que a terra (em outras coisas fecunda)
o trigo negou (MELO, 1997: 75).
[...] a defesa da ação jesuítica, na obra dos cronistas mais recentes, assume, também, a
forma de ataque a Pombal, o poderoso ministro de D. José I, que tomou a iniciativa de
expulsar a Companhia de Jesus dos domínios de Portugal. Mas, sob esse aspecto, os cro-
nistas inacianos não são casos isolados. O combate travado entre os jesuítas e o maior
expoente do despotismo esclarecido, em Portugal, estabeleceu, para a posteridade, um
laço indissolúvel entre os rivais. A alusão a um deles suscita o outro.8
os jesuítas tinham método próprio de ensino e um rol de livros, em suas bibliotecas nos
colégios e residências, muitos dos quais serviam de textos didáticos. E faziam inter-
venções artísticas na arquitetura, na pintura, na escultura e na música, como parte
do processo cultural que marcava a sua presença no Brasil, desde 1553 uma Província
da Companhia de Jesus, nomeada por Inácio de Loyola e confiada ao padre Manoel da
Nóbrega a sua administração.
[...] A Visitação do Santo Ofício, ainda no século XVI, ordenou formalmente o código de
crenças e de valores, como carta jurídica a vigorar no Brasil, enquanto o processo colo-
nizador seguia seu rumo, com a ocupação das terras, através de sesmarias. Tal fato dava
[...] Quanto à conversão do gentio, que hé ho principal a que viemos, sinto que há mester
Pode-se admitir que “os erros e escândalos” acima referidos já teriam se dado no
ano anterior à carta acima, preocupação do Pe. Manuel da Nóbrega, conforme
constatamos em carta do Padre António Pires aos Padres e Irmãos de Coimbra,
enviada de Pernambuco em 2 de agosto de 1551 (LEITE, 1954, Tomo I: 252), fazendo
referência a uma ordem emitida por Nóbrega:
[...] Muchos de los gentiles piden el agua del batismo mas el P. Nobrega há ordenado
que primeiro se les hagan los catecismos e exorcismos hasta tanto que conozcamos en
ellos firmeza, y que de todo coraçón crean en Christo, y también que primero emienden
sus malos costumbres. Son tales os baptizados que perseveran, que es mucho para dar
gracias al Señor, porque aunque desonrados y vituperados de los suyos, no dexan de per-
severar en nuestra obediência y crecer en buenos costumbres [...].
Todavia, recusavam o sacramento aos indignos que os não podiam receber, “[...] mas
[...] Outro índio, venido de tierras mui longe já mui enfermo, tratava el Padre de lo
convertir y hazer Christiano para que, pues estava tan propínquo a la muerte moriendo
en Christo regenerado, fuese a gozar de la vida eterna; pero aunque el en esto mucho
trabajava, no podia acabar nada con el, dado que le parecia al índio mui bien todas las
razones, que le dava el Padre, sino que quando le dizia si queria ir ver a Dios, respondia
que aún no, por la ventura con miedo que el baptismo le causasse la muerte, cosa que
los hechizeros o el diablo le tiene metido en la cabesa, desde el principio que los de la
Companhia conversan com ellos. No desistia el Padre de le ablar de Dios las vezes que
por a par dél passava, asta que un dia prepassando por el le dixo: “Pues aún no qieres
se Christiano? Respondióle él, já mudado en outro hombre: Baptisa-me, que conosco
que no tiengo de durar mucho” Respondióle él: “Para que te tengo de baptizar?” Dixo
el enfermo: “Para yr al cielo”. Respondióle el Padre: “Como? No poderás ir al cielo si no
fueres baptisado”? “No van allá sino los que fueren chrisitanos [...]”.
Sobre o que disse acima Padre Antonio Blasquez ao doente, lembramos HERSON
(1996), comentando que naquele longínquo século dos descobrimentos, na cate-
quese, o batismo era imposto como único meio de salvação da alma, garantindo
a vida eterna, ideias que se baseavam no princípio de que a doença era castigo de
Deus e a morte, vontade de Deus.
Na Missão de Ibiapaba, no Ceará, já avançados os anos de catequese, segundo
XAVIER (2010), citando VAINFAS (1995: 12), “[...] os inacianos tiveram que lidar com a
oposição que os índios faziam ao batismo, admitindo que esse sacramento matava,
[Fotos 1, 2 e 3]
Aos doze dias do mez de fevereiro de 1748, nesta Capella de Santo Antonio de Minas
Novas desta freguesia e paroquia [ilegível] Vila de Crijenia [ilegível] Sorquine morador
nesta freguesia; [ilegível] de Perpetuo dos Santos Óleos ao não haver foram padrinhos
Padre Jose Gomes e Josepha Maria. Eu escrivão Correia da Silva escrevi nesta fregue-
sia de Nossa Senhora dos Cariris-Novos na casa [ilegível] e por verdade por mim Padre
Gonçallo Celho de Lemos.
José Maria Feitosa
Clero dos Cariris Novos
Missão Velha tem tido os seguintes vigários: “1º Gonçalo Coelho de Lemos [...], missioná-
[...] em fins do Século XVII o Vale do Cariri era povoado pelos índios Cariri oriundos do
planalto da Borborema, refugiados da guerra da repressão movida contra a coligação
de tribos indígenas nordestinas. Em defesa e pacificação dos indígenas, missionários
de várias ordens religiosas para lá se dirigiram. Os jesuítas agrupados em aldeias “ou
missões” criaram a de São José no sítio Cacheira a qual seria a célula-mãe do Município
de Missão Velha. Ai se estabeleceu em 1707 o baiano João Correia Arnaud, descendente
de Caramuru, com vários membros da família e escravos, dando início à colonização da
região.
História
A história do Geossítio Cachoeira de Missão Velha relaciona-se ao contexto da
[...] em fins do Século XVII o Vale do Cariri era povoado pelos índios Cariri oriundos do
planalto da Borborema, refugiados da guerra da repressão movida contra a coligação
de tribos indígenas nordestinas. Em defesa e pacificação dos indígenas, missionários
de várias ordens religiosas para lá se dirigiram. Os jesuítas agrupados em aldeias “ou
missões” criaram a de São José no sítio Cacheira a qual seria a célula-mãe do Município
de Missão Velha. Ai se estabeleceu em 1707 o baiano João Correia Arnaud, descendente
de Caramuru, com vários membros da família e escravos, dando início à colonização da
região.11
Ainda, segundo fonte acima à página 116 referida em nota de rodapé 14, em 28 de janeiro
de 1748, sob a invocação de Nossa Senhora da Luz, foi criado desmembrado do curato de
Icó, na região dos Cariris Novos, o “curato amovível” das “Minas dos Cariris Novos”. Por
provisão do bispo de Olinda, de 3 de maio de 1760, foi autorizada a ereção da Matriz de
São José, no sítio da antiga capela do aldeamento indígena, passando o curato a denomi-
nar-se desde então, São José da Missão Velha do Cariri”.
[...] No vale do Cariry, foi depois de vencidos os índios ‘cariry’ de comprovada audácia
e gênio guerreiro, palmilhada pelos baianos que, levando vantagem nos prélios de con-
quista rechaçaram os índios por insuficiência numérica destes, vindo depois estabelecer
na região fértil do Cariry o centro de avantajada população. [...] A tradição, li algures, é a
“alma da raça” nos seus liames históricos. A crer n’ella os missionários de Assis fundando a
“missão”, obra evangelizadora, deram ao local o nome de “Missão Velha” para distingui-lo
dos outros pontos de civilização christã chamados depois “Missão-nova” e “Missão do
Miranda” ou Crato. [...]
A missão teve como primeiro vigário Gonçalo Coelho de Lemos, como consta
do mesmo documento (1921, nº 20: 402), que teria registrado o suposto primeiro
batismo em Missão Velha, ocorrido em 1748.
3.3 PENITÊNCIAS
o debate sobre a penitência prolongar-se-ia muito além de Latrão IV, mas a deliberação
do sistema penitencial estabelecido pelo Concílio não será discutido e a prática da peni-
tência permanecerá substancialmente inalterada até nossos dias. [...]
As práticas de penitência para remissão dos pecados tais como aquelas represen-
tadas pelo açoite, castigando o corpo pelas faltas cometidas, eram adotadas pelos
jesuítas e vêm sendo recorrentes na história da religiosidade popular em terras
cariri ao sul do Ceará. Tais práticas são narradas em cartas por eles trocadas, desde
o início de seus trabalhos de catequese, tais como as abaixo transcritas.
Começamos por trecho da carta enviada de Pernambuco pelo Pe. Manuel da
Nóbrega, em 13 de setembro de 1551, aos Padres e Irmãos de Coimbra, em Portugal
(LEITE, 1954, Tomo I: 289).
[...] Eu prego domingos e festas duas vezes a toda a gente da Villa, que hé muita, e às
sextas-feiras tem prática com disciplina com que se muyto aproveitão todos. Vão se con-
fessando e juntamente fazendo penitência; as em brancos como nos Indios há grande
fervor e devoção.
Em outra carta de Pe. Manuel da Nóbrega, dessa vez enviada da Bahia em fins de
julho de 1552, ao Pe. Simão Rodrigues, em Lisboa (LEITE, 1954, Tomo I: 371), assim
está:
[...] não coincidentemente, ano de seca na região – saiam pelas ruas chorando e preconi-
zando o fim do mundo pelas ruas do Crato: Aquela denominação indicava - companhias
[...] na frente, uma grande cruz cingida com uma toalha branca, uma matraca a soar,
o padre de veste alva e estola preta, a entoar em voz cavernosa e soturna o Paenitet e,
após a multidão dos fiéis, uns com grandes pedras sobre a cabeça, outros com barricas
ou pesados madeiros, descalços, todos a percutirem o peito a clamar misericórdia ou, a
verter o sangue, a mercê dos azorragues; as casas de portas e janelas fechadas, ninguém
ousando olhar os penitentes porque então sobrecarregaria a consciência com os peca-
dos deles; ao chegar ao templo, mal alumiado, ao clarão dúbio de poucas velas, muitos
se atiravam ao chão para que a multidão lhes passasse por cima, outros permaneciam
imóveis de braços abertos, e a cada canto gemidos e o tilintar das disciplinas a cortarem
as carnes sem piedade.
Diz MARIZ (1942: 70) que em meados dos séc. XIX Padre Ibiapina atraiu devotos para
si. Aqueles que o seguiam, entregando sua alma a ele,
vestiam-se com um camisão azul, descalços e sem chapéu, com uma cruz e os ben-
tos pendurados, de andar mole e compassado, olhos fixos em alucinação melancólica,
andando pelas vilas, ao mesmo tempo em que exerciam trabalhos nas casas de caridade
[...] tirada pela da Madre de Deos em Lisboa [...] “acompanhada das imagens do Menino
Jesu no presépio, & S. Joseph de igual perfeyção”. Informa ainda como no lugar de Belém
eram estas imagens veneradas e frequentadas dos fiéis, e “no tempo do Natal com festa
de tres dias muy solemnes, acodindo a ella a gente em suas necessidades, recebendo
muytas solenidades, a sua glorificação com todo o género de poesias.” Gusmão salienta
a importância das numerosas congregações e confrarias que em seu nome se criaram.
[Fotos 4 e 5]
[...] E como era devoto de Nossa Senhora da Concepção, determinou em aquele dia
baptizar os inocentes e fazer aquelas almas limpas à honrra da pureza de Nossa Senhora;
escreveu-me que me pedia que pregasse em seu dia as grandezas desta Senhora, e que
dixesse que soubessem negociar com Nosso Senhor por meio dela, que não podia aver
outro milhor negocear, e outras palavras, o que eu fiz o melhor que soube, porque ha
amava e reverenciava muito por suas virtudes. [...] Aqui aconteceram casos muy notáveis
que eu não poderei dizer todos, mas somente me contentarei com alguns poucos. Huma
criança esteve morta, chorada de seu pay e mãy, e, estando pera espirar, foi batizada do
Esse ocorrido com a recuperação da criança a partir de seu batismo, vamos encon-
trar em Vida do venerável Padre Anchieta, escrita por seu biógrafo VASCONCELOS
(1943, v. 2: 247), publicada pela primeira vez Lisboa no ano de 1672, no Índice das cousas
mais notáveis desta história. Na mesma obra, relata-se sobre os milagres de Anchieta:
para a grande veneração destas imagens de Nossa Senhora muito contribuiu a fama de
milagrosas (ainda que a prudência de Gusmão o leve a afirmar: “se bem não he meu intento
avaliallas por milagres”), e em particular do quadro da Senhora, “levado aos enfermos, &
principalmente às mulheres de parto, que os experimentão felices, & não poucas vezes
em occasião de muyto perigo”, e do prodigioso azeite de N. Senhora, “muyto procurado
para todo o genero de males”, ou ainda as virtudes da Senhora “com os endemoninhados,
que acodem à sua Igreja”.
FREITAS (2011: 70), em sua tese de doutorado sobre os escritos do Pe. Alexandre de
Gusmão, citado acima, diz:
Recordemos que Padre Ibiapina, em OTTEN (1990: 270), segundo seus manuscritos,
orientava suas beatas a “não apenas em rezar os rosários, ouvir muitas missas no
dia, fazer muita oração [...]”.
Segundo PANICO (2009: 46), citando SÁ BARRETO (2002), 1872 foi o ano em que
[...] um aglomerado de casas de taipa, onde havia uma capela dedicada a Nossa Senhora
das Dores – dona do lugar, erigida pelo primeiro capelão do local Pe. Pedro Ribeiro de
Carvalho”. Ali Padre Cícero inicia seu trabalho de evangelização, incentivando a prática de
participação dos sacramentos, a penitência e orações do rosário de Nossa Senhora, época
em que Padre Ibiapina permanecia em seu prestígio.
[...] em vista da capelinha se tonar pequena, Padre Cícero, através de mutirão construiu a
Igreja Nossa Senhora das Dores. Em 1888 Padre Cícero funda o Apostolado da Oração con-
vidando o povo à prática nas primeiras sextas-feiras do mês com comunhão reparadora
e adoração do Santíssimo Sacramento. Por esse período o povoado já vivia em ansiedade
ameaçada pela seca e penúria. Durante uma vigília atravessando a madrugada, Pe. Cícero
durante a comunhão ao dar a hóstia a Maria de Araujo, esta “entumeceu, sangrando” –
estava aberto o cenário de inquietações – inaugurou-se o fenômeno das Romarias.
Conforme explica LEITE (1954: 667), a recepção foi dividida em partes, como está
em nota de rodapé (3): “um discurso no porto, um diálogo na igreja e, afinal, a dança
dos meninos índios que se realizaria no pátio fronteiro a ela”.
A peça teatral de Padre Anchieta Visitação a Santa Isabel teria sido a última das
inúmeras escritas por ele, em castelhano, conforme está em LEITE (1954: 509-511).
“Tema: Um romeiro saúda Santa Isabel, no dia da Visitação. Pede-lhe explicações
sobre o significado da festa. Ao retirar-se, Nossa Senhora aparece, chama-o e o
abençoa. Quatro companheiros do romeiro a homenageiam e retiram-se cantando”.
Assim, em versos vai se desenvolvendo a peça:
Por todas as casas se ouve o nome de Jesus e seu dia é 1º de Janeiro e os índios aprendem
que só a Ele se deve crer, amar e servir. “Se venho de fora, vem-me os meninos sair à
dianteira, dizendo: Louvado seja Jesu Cristo”, como comenta em carta Padre Rui Pereira
aos padres e irmãos de Portugal em 15 de setembro de 1560 (LEITE, 1554, Tomo III: 285).
Ainda, como está em carta de Manuel da Nóbrega a Tomé de Sousa, antigo governa-
dor do Brasil, enviada da Bahia em 5 de julho de 1559: “[...] e o gentio vay conhecendo
que só a Jesu Christo se deve crer, amar e servir”.
Há, ainda, as aldeias a que se dava o nome Bom Jesus, como está em carta do
Padre António Rodrigues aos padres e Irmãos da Bahia, da aldeia, em agosto de 1561
(LEITE, 1954, Tomo III: 387).
Sabrán, Reverendos em Cristo Padres, que Principales de xxx léguas a la redonda desta
nuestra población del Buen Jesus, se an ajuntado aqui, los quales están con tanta humildad
que es para loar al Señor. Está muito próspera pera esta nuestra poblazón, con gente tan
honrada y hidalga. Será yuntas 15 poblaciones en una, a que posimos nombre Buen Jesus.
[...] Alguns dias depois da festa de S. António na Aldeia do mesmo nome (13 de junho de
1561), Luís da Grã e António Rodrigues seguiram para o sítio da futura Aldeia do Bom Jesus
[...] escolhido o sítio, Rodrigues tratou de juntar os índios das redondezas, ajuntamento
ou povoamento que se concluiu em Agosto (carta de Leonardo do Vale de 26 de junho
O meninozinho querido
Nosso pai, Nosso Senhor
O meninozinho Jesus
Desceu à nossa morada.
Por amar a nossa alma,
Veio do céu
o meninozinho querido,
nosso pai, nosso senhor,
Ele nos perdoa, de boa mente,
por nos amar.
Estando no ventre de Maria,
ele se uniu a nos.
Vinde, veneremos
o meninozinho querido
nosso pai, nosso senhor. [...]
A espiritualidade de sacrifício dirigida a Deus e ao Bom Jesus resulta uma vida sacrifi-
cando aos pobres. O Bom Jesus leva Pe. Ibiapina aos miseráveis. Durante o terrível período
de seca 1877 vivido pelo sofrido povo cearense, escreve Padre Ibiapina, “[...] Mas viva o
bom Jesus, que nos sacrificamos resignados, porque foi do seu agrado que assim nos aca-
bássemos no meio de um quadro doloroso.”
[...] Das muitas convulsões por que passou Portugal na 1ª metade do século XIX a devoção
do Coração de Jesus diluiu-se num panorama religioso deficiente e em vertiginoso pro-
cesso de transformação. Por sua vez, em Vals (França), o Pe. Gautrelet funda o Apostolado
da Oração. Essa Associação disseminadora da devoção ao Coração de Jesus inicia a sua
atividade em Portugal em 1864, obra destacada dos padres jesuítas (SILVA, 1996-7, 176).
[...] levantado pela vontade indomável do Padre Manuel José Martins Capela (1842-1925)
que conseguiu congregar fiéis, conterrâneos e demais entusiastas das crenças tradi-
Diante desse pequeno trecho extraído do enorme diário do Padre Manuel José
Martins Capela, constatamos que, tanto em Portugal como no Brasil, a devoção ao
Bom Jesus permanece viva na memória coletiva desses dois países irmãos, como
reminiscência jesuítica.
[...] não há como negar o impacto da romanização sobre a forma tradicional da vida reli-
giosa, mas as concepções basilares do catolicismo popular tradicional, como o culto aos
santos e a crença nos milagres, permanecem vivas. E, além disso, há uma incorporação
original por parte do povo de traços da romanização, o que evidencia “o aspecto dinâmico
e criativo do catolicismo popular que se refaz continuamente”, citando STEIL (1996: 249).
Para OLIVEIRA (1988: 121), “o processo de romanização foi forte bastante para com-
bater o catolicismo popular, mas não o suficiente para implantar a forma romana na
grande massa dos católicos”.
A enorme igreja que se constrói no Horto de Juazeiro do Norte, 105 anos após
a falecimento de dona Joaquina, mãe de Padre Cícero, leva o mesmo nome por ela
desejado na carta supracitada, de 27 de julho de 1919, ou seja Igreja (ou Santuário) do
Senhor Bom Jesus do Horto.
Todavia Padre Cícero permanece enaltecendo a devoção ao Sagrado Coração de
Jesus, a quem apelava na certeza da ajuda, principalmente quando do flagelo das
secas e do desespero reinante por aquelas plagas. Disse ele em carta que escreve ao
bispo de Fortaleza em 30/11/1878: “[...] O Sagrado Coração de Jesus ajuda nossa fé
que só um milagre pode salvar este povo [...] Só o Coração de Jesus nos pode salvar e
suprir tanto abandono [...]”, conforme registram GUIMARÃES e DUMOULIN (2015: 175).
Segundo DIAS (2007: 23), esse foi o capítulo da história do cristianismo surgido
em face da necessidade de ele se afirmar, logo após a cristianização do Império
Romano (391 d.C.), “quando a Igreja teve que lidar com o crescimento massivo do
O autor acima, em outro momento, comenta que “a exortação ao martírio, estava pre-
sente nos famosos exercícios espirituais de Loyola, o guia para meditação e código de
conduta a ser adotado por cada integrante da Companhia de Jesus, significando a con-
quista interna da integridade necessária para exercer a vida jesuítica. No sétimo desses
exercícios, “Da paixão de Cristo Nosso Senhor”, após, relatar a paixão de Cristo, Loyola
evoca seus seguidores:
[...] foram valorosos imitadores seus, quantos foram os Santos que houve na igreja, assim
confessores, como mártires. Consideremos suas proezas e façanhas nesta espiritual
milícia,
[...] devemos animar-nos, e resolver-nos à sua imitação, para que assim como eles triun-
faram, triunfemos nós.
Segundo o autor acima,
[...] na ocasião da canonização de Inácio de Loyola e Francisco Xavier em 1622, fizeram-se
grandes festas em Lisboa, ocasião em que os martírios de jesuítas mortos no mar ao redor
O forro mostra 21 retratos de jesuítas, dispondo em seu centro os três santos já canoni-
zados da Companhia naquele momento: Inácio de Loyola, Francisco Xavier e Francisco
de Borja. Ao lado de Inácio de Loyola, e compondo com Xavier e Borja uma cruz, retratos
de outros dois beatificados: Stanislao Kostka e Luis Gonzaga. Nenhuma dessas figu-
ras foi martirizada, os mártires encontram-se dispostos nas partes menos centrais da
composição.
Como diz o autor acima, “assim como os demais ciclos de martírios dedicados aos
jesuítas, o ciclo de Salvador da Bahia, tinha como função: exortar os jesuítas ao
martírio, celebrar e relacionar entre si, as diferentes partes do corpo místico da
Companhia, ensinar aos padres os exemplos de fé de seus colegas mortos”.
Embora não exatamente na área do Geopark Araripe, porém em área limítrofe, nos
foi possível obter dados sobre a presença jesuítica nessa região sul do Ceará no
texto Achegas à história de Aurora – CE, de CALIXTO JUNIOR (2011), publicado no
Blog de Lavras.13
Segundo o autor acima, Aurora, cidade limítrofe com a área abrangida pelo
Geopark Araripe, originou-se do antigo Arraial da Venda, segundo consta do livro
de notas de 1812-1813 (folhas 114-116).
Do histórico apresentado por CALIXTO JUNIOR (2011), como consta do blog
acima exposto, nos foi possível constatar a presença de jesuítas nas regiões que
circundam a cidade do Crato, visto que o Padre Antônio Leite de Oliveira descendia
de outro padre, o jesuíta Alexandre Leite de Oliveira.
Todavia, já se sabe, conforme nos informa o autor acima, que Alexandre Leite de
Oliveira era proprietário no Crato dos engenhos Rosário e Cabreiro, casado com
Tereza de Jesus Maria José, os quais foram os pais pelo lado materno de outro cura,
[...] egresso da Ordem dos Jesuítas, português, natural de Lisboa, paróquia de São
Raimundo, nasceu em 1745 e faleceu em 1827, conforme se verifica a página 141 do livro
Povoamento do Cariri de Antonio Gomes de ARAÚJO, edição de 1973. Dele descende em
linha direta meu avô Augusto Leite de Oliveira, nascido em Lavras da Mangabeira-CE em
Conforme a autora acima, o Horto tornou-se lugar consagrado pelo povo, tendo
servido de palco para reprodução de cenas sagradas, como fez Pe. Cícero em maio
de 1896, mandando cercá-lo com mato espinhoso e onde mandou plantar um pé de
angico, a fim de impedir o contato de qualquer pessoa com a árvore, simbolizando
nela onde Nosso Senhor teria sido amarrado.
Pe. Ibiapina foi ordenado em 1853 com 47 anos, cursou a Faculdade de Direito do
Recife e, ainda jovem, tornou-se juiz de direito e deputado estadual aos 28 anos,
chegando a ser considerado um dos melhores juristas de sua época. Em 1850, muda
de vida a partir de “uma visão da eternidade” e se isola, passando a estudar, ler
[...] do século XIX, universo habitado por irmandades de penitentes, beatos e devotos,
benzedeiras e carpideiras, com suas promessas e rezas, missões e mutirões – aparente-
mente distantes das mudanças que se processavam nos grandes centros, parecendo não
se contaminar pelas doutrinas romanizadas.
[Foto 6]
[Foto 7]
Conforme SILVA JUNIOR (2016: 46), o periódico ainda trazia em suas páginas preo-
cupações com o civismo, a denúncia aos desmandos políticos das ideias imorais, a
A Voz da Religião no Cariri procurava mostrar as vantagens sociais e morais dos traba-
lhos missionários, como ressalta o autor acima: as missões chefiadas pelo missionário
em diversos local cearenses: Milagres, Crato, Jardim, São Pedro, Barbalha, Goianinha,
Porteiras, Brejo; todas as regiões situadas ao sul da capitania foram acompanhadas pelas
páginas do jornal religioso, apresentando as localidades no antes e depois das missões;
descrevendo suas melhorias materiais e espirituais após os trabalhos missionários. [...]
foi noticiado pelo jornal visita a freguesia de Barbalha, povoação pertencente à comarca
do Crato. Ainda que florescente no comércio, na indústria agrícola e com bons prédios, a
reportagem mostrava no lado moral um total desequilíbrio, apresentando uma sociedade
contaminada com os vícios mundanos: A visita de padre Ibiapina, segundo noticiado nas
páginas do periódico, deu início a uma nova era.
Como está em MAGALHÃES e MACIEL (2015: 54), Pe. Ibiapina, sensível à situação
de miséria de uma massa faminta, doente e desassistida, buscava seguir seus prin-
cípios cristãos baseado na crença em Deus e na caridade. Para isso, tomando suas
próprias decisões de interesse filantrópico, muitas vezes o missionário viveu em
conflito com o poder eclesiástico local, na Paraíba, com D. Moises (Cajazeira-PB), e
no Ceará com o 1º Bispo, Dom Luiz Antônio dos Santos.
Abaixo, carta de Padre Ibiapina em resposta a uma missiva de Dom Luiz, seguida
da transcrição original, um documento autêntico quanto à realidade vivida pelo
Pe. Ibiapina diante da cúpula eclesial cearense, que nos foi passado pelo Padre
Francisco Roserlândio de Sousa, Diretor do DHDPG – Cúria Diocesana do Crato,
[Foto 8]
Conforme NOBRE (2011: 11), Padre Ibiapina reservava dias para as práticas da penitência,
convidando o público para expiar seus pecados em público praticando a autoflagelação
com disciplinas, citando o caso dos Serenos, grupo de penitentes que em 1845 – não coin-
cidentemente, ano de seca na região – saiam pelas ruas chorando e preconizando o fim
do mundo pelas ruas do Crato: Aquela denominação indicava – companhias de penitentes
que à noite, nas encruzilhadas ermas, em torno das cruzes misteriosas, se agrupavam
adoidadamente, numa agitação macabra de flagelantes, impondo-se o cilício dos espin-
hos, das urtigas e outros duros tratos de penitência. Ora, aqueles agitados saíram certo
dia, repentinamente, da matriz do Crato, dispersos, em desalinho – mulheres em pran-
tos, homens apreensivos, crianças trementes – em procura dos flagícios [sic] duramente
impostos. Dentro da igreja, missionários recém-vindos haviam profetizado o próximo fim
O botânico CISNEIROS (1964), em 1859, ao passar por Crato, no Ceará, como consta
de seus manuscritos publicados pela Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, em
1964, observou o comportamento religioso de indivíduos se autoflagelando, os cha-
mados “penitentes”, usando nessa prática lâminas de ferro que eram fundidas numa
espécie de chicote.
Diz MARIZ (1942: 70) que Ibiapina atraiu devotos para si, os quais o seguiam,
entregando sua alma a ele. Eram os “beatos vestindo-se com um camisão azul,
descalços e sem chapéu, com uma cruz e os bentos pendurados, de andar mole
e compassado, olhos fixos em alucinação melancólica, andando pelas vilas”. Eram
eles os leigos, homens e mulheres que exerciam trabalhos nas casas de caridade
fundadas por Ibiapina espalhadas por várias cidades do sertão cearense. Teria sido
ele que, também instituiu a “ordem dos penitentes e a autoflagelação em nome de
Deus, a exemplo da que ainda existe na cidade de Barbalha CE, no sítio Cabaceiras.
[...] “Ibiapina se tornara, mesmo, um viajor assenhoreado dos roteiros, dos meios de
transporte e dos costumes”, como diz MARIZ (1942: 146) na biografia desse padre mis-
sioneiro. Entretanto, são de se imaginar os sacrifícios de corpo e alma que lhe custavam
as repetidas missões nos semidesertos das 5 províncias nordestinas, levando alento aos
desvalidos e indefesos.
Com o tempo, foi se conferindo a Padre Ibiapina o caráter de santo e, assim, muitos
casos de curas milagrosas foram sendo atribuídos a ele. O primeiro milagre teria
Te corto cobro
Cabeça e rabo e corpo todo.
Lembrando Pe. Ibiapina recomendando banho nas águas da nascente do rio Caldas,
citamos a primeira referência à cura de cobreiro operada pelo Padre Anchieta,
O culto da Virgem e dos santos era associado à capacidade curativa da sua intermedia-
ção com Deus e mesmo às propriedades medicinais de fontes e nascentes consideradas
santas. A primeira reação das autoridades protestantes consistiu em tentar acabar com
as peregrinações e muitos desses locais, fechando templos e fonte e vedando os aces-
sos. Mas, cedo essas medidas foram substituídas por preocupações que se limitavam aos
aspectos doutrinários da sua utilização, enfatizando a intervenção divina direta através
das águas e mesmo as suas propriedades médicas.
Hoje são 12 de dezembro de 1877. Não temos água para beber, senão de duas léguas; para
lavar roupas, de três léguas. Os gêneros, em preço superior às forças da Caridade, para
sustentar o pessoal de quase duzentas pessoas, sendo mais de noventa órfãs e a metade,
de menos de 7 anos, muitas doentes, que demandam tratamento singular. Acabou-se o
milho, o feijão, o arroz, restando pouca farinha para remediar. Não temos cavalo, e pouco
é o dinheiro.
Os retirantes todos os dias nos pedem pão e seu número sobe às vezes a mais de cin-
quenta; também pedem roupa, por estarem nus [...] (CARVALHO, 2008).
Abaixo, ainda, relato do botânico CISNEIROS (1964), quando no século XIX andou
pelo Ceará e, ao passar por Crato, diz:
O Crato é país úmido [...] logo que começam as chuvas a umidade atmosférica aumenta
muito; é doentio. Moléstias de olhos são endêmicas e de todas as formas; rara é a pessoa
que não sofra ou tem sofrido dos olhos. Há casas onde há 2 ou 3 pessoas cegas. Dizem que
hoje está ainda assim muito melhor do que foi em outro tempo!
Parece que desmazelo, e a porcaria concorrem muito para isso. Não há, e andando juntos
sem nenhum resguardo, lavando-se nas mesmas bacias, etc., tudo concorre a transmitir
a moléstia. Dizem também que um certo tempo aparece uma grande quantidade de mos-
quitinhos que assentam nos olhos; esses podem transmitir a moléstia. Enfim a falta de
médicos hábeis concorre também para agravar esse mal.
As opilações são comuns. As hepatites, as moléstias orgânicas de coração. A tísica não é
rara; as hemoptises; o reumatismo. Mas, o que também faz grandes estragos, é o tumor
boubático e sifilítico. A devassidão é grande, vemos aqui meninos afetados de gonorreias,
e de bubões, tratando-se sem cerimônia na sua família.
Sobre as doenças dos olhos mencionadas pelo botânico CISNEIROS (1964), recorda-
mos que no século XVII, exatamente em 1648, PISO (1948), vindo ao Brasil na missão
Com fome insaciável, o cólera arrebatou ao todo 11 mil almas pela capital e sertões do
Ceará. [...] Havia relatos de doentes sepultados vivos em valas comuns depois de abando-
nados pela família e mandados antes da hora para o cemitério, por medo de um possível
contágio. Com a falta de coveiros [...] o serviço de enterramento era feito por condenados
pela justiça, em troca de goles de cachaça e de perdão de suas penas. [...] Outros se fla-
gelavam açoitando as próprias costas com chicotes de couro cru, na ponta amarradas a
“disciplinas”, lâminas de ferro afiadas e dentadas.
O semanário O Araripe, de Crato, cidade do Cariri, região sul cearense, foi o primeiro
jornal do interior do Ceará. Seu proprietário e também redator era o historiador e
jornalista João Brígido dos Santos, que, juntamente com um grupo de comerciantes
e profissionais liberais ligados ao Partido Liberal, fez circular esse semanário entre
os anos de 1855 e 1864.
Durante os mais de nove anos de existência, o jornal acima referido, como atesta
ALVES (2010: 8), “[...] apresentou em seus artigos a necessidade de civilizar a região
carirense, apresentando entre seus projetos de civilização a criação da ‚Província
dos Cariris Novos’, cuja capital seria o Crato, por ser esta a cidade mais desenvolvida
do Cariri”.
Por essa época o cólera percorria o território do Brasil, deixando um rastro de morte por
onde passava. O medo de que o surto atingisse aquela cidade fez com que, desde 1855, O
Araripe passasse a publicar, de forma enfática, uma série de textos sobre o tema. Assim,
o jornal divulgou o percurso da peste pelas províncias brasileiras, reivindicou ou criticou
a ação das autoridades públicas, expôs conselhos médicos para combater os sintomas
característicos da doença, ensinou remédios caseiros e orações consideradas poderosas
para debelar a moléstia, entre outros textos.
Em uma matéria do mês de agosto de 1862, O Araripe, numa edição que saiu após
uma longa parada por conta da epidemia, atingindo os editores do jornal durante
os meses de maio, junho e julho daquele ano, quando da chegada fatídica da cólera
à cidade do Crato, está:
[...] quanto é temerosa a solidão que reina em torno de nós! O monstro cruel devorou
centenas de amigos [...] E quantos não terão ainda de sucumbir em luta contra o monstro
impenetrável e capcioso?. Agora a nosso Reverendo Parocho corre o dever de chamar o
povo a oração, para pedirmos a Deus não nos fulmine com esse terrível flagello. O que
não alcançarmos por meio da oração, nunca obteremos, com medidas preventivas: só
a infinita bondade de Deus nos pode preservar desses males de que somos dignos; por
Embora, não pertencendo à área demarcada para nossa pesquisa, ou seja, o Geopark
Araripe, não nos furtamos de transcrever o que conta CISNEIROS (1964: 341), o já
citado botânico que andou pelo sertão cearense, sobre uma localidade por onde
passou na Serra do Baturité:
[...] Tem este lugar condições para ser saudável; mas, não é assim; as famílias se queixam
de ter sempre doentes em casa. Agora, reinava ali a febre-amarela a que davam o nome de
icterícia e já havia feito algumas vítimas. [...] eu penso que grande parte tem, na insalubri-
dade do lugar, o desleixo e o desasseio dos habitantes e a má alimentação da gente pobre.
Hoje os tempos são outros. A preocupação das Universidades do Ceará nas inves-
tigações científicas envolvendo doenças, não só em seu caráter endêmico como
em suas formas epidêmicas, foi sensivelmente destacada no 51º Congresso da
Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, realizado em Fortaleza em 2015, em que
se sobressaíram pesquisas em torno de doenças como tuberculose, leishmaniose,
esquistossomose, sarampo, assim como a dengue, bastante representada entre os
trabalhos expostos.
Importante realçar que as epidemias no tempo de Ibiapina não ocorriam
somente pelo sertão cearense. Era todo o Brasil invadido pelas doenças, que iam se
alastrando de forma epidêmica por todos os rincões do país.
Santos, SP, cidade portuária foi alvo de uma catastrófica epidemia de peste
bubônica em 1899, como está em exaustiva pesquisa de LEMOS (1954: 1), Notícias
sobre a peste bubônica em Santos – 1899.
Como diz LEMOS, peste bubônica é moléstia conhecida desde muitos séculos,
antes mesmo da era cristã. Tão antiga quanto a própria história, suas passagens
Lembremos que, em tempos que já se vão longe, Roma já havia sido assolada pela
peste no ano 91 a.C., quando Esculápio, em forma de serpente, desembarca na ilha
Tiberina.
O Deus Esculápio chegou hoje, pela manhã, a Roma, subindo o Tibre em barco. Sabe-se
que, após a epidemia de peste que no ano passado, dizimou o povo romano, foi enviada
uma embaixada extraordinária a Epidauro, para procurar aquele que os gregos chamam
de Asclepíades. O Deus assumiu a forma de uma serpente, que os gregos nos cederam a
[7] Resultados do
encontro.
[8] Carta de Padre
Ibiapina.
9] Jurema – Exicata
Mimosa Tenuiflora.
[10] Ex-votos no
Museu Padre Cícero
antes da reforma –
Juazeiro do Norte, CE.
[11] Ex-votos no
Museu Padre Cícero
depois da reforma –
Juazeiro do Norte, CE.
5 16 Patativa do Assaré.
Cordéis. Fortaleza:
EUPC, 2003.
JUAZEIRO DO NORTE
CHÃO SAGRADO
Juazeiro, Juazeiro,
Tua vida e tua história
Para o teu povo romeiro
Merece um padrão glória.
De alegria tu palpitas,
ao receber de visitas
de longe, de muito além.
Grande glória tu viveste!
Do nosso caro Nordeste
Tu és a Jeruzalem.16
Bastante oportuno prosseguirmos nesta parte do livro nos fixando no último verso
da poesia de Patativa do Assaré: Juazeiro [...] tu és a Jerusalém – poeta que marcou
presença entre outros que se celebrizaram poetizando o viver de seus conterrâneos
e seu chão natal. Esse verso nos remete às peregrinações do período feudal, como
está em LE GOFF e SCHMITT (1917, v. 2: 11-13), ao tratarem de Jerusalém, quando,
sob domínio muçulmano da Península Ibérica e todo o norte da África:
[...] ganha corpo a ideia de que as graças espirituais concedidas por Deus aos fiéis em
qualquer parte podiam ser encontradas com maior facilidade em certos locais repletos
de espiritualidade, particularmente nos lugares sagrados da Terra Santa. A voga das per-
egrinações aumenta então, nascida dessa aspiração espiritual [...]
Ainda segundo os autores acima (LE GOFF e SCHMITT, 1917, v. 2: 18), a partir do
século XI procurava-se no Sepulcro a remissão dos pecados, lembrando-se, toda-
via, de que, vivendo naquele período histórico o anseio da reconquista,
[...] para incitar os espanhóis a tomar parte com mais ardor na reconquista, Alexandre II,
depois Gregório VII e Urbano II acrescentaram promessas espirituais. Este último papa
propôs aos príncipes catalães que: se desejassem ir a Jerusalém purgar os pecados, que
dedicassem seus esforços na luta contra os mouros, comutando o voto de peregrinação
pela defesa e fortalecimento de Terragona, especificando que, ao fazê-lo receberiam os
mesmos privilégios e o mesmo perdão dos pecados, como se tivessem ido a Jerusalém.
[...] no séc. IX, Leão IV e João VIII tinham feito apelo aos guerreiros francos, contra os
piratas sarracenos que ameaçavam Roma prometendo-lhes, em nome de São Pedro, a
[...] a Historia del Emperador Carlomagno y de los Pares de Francia, y de la cruda batalla que
hubo Oliveiros com Fierabras, Rey de Alexandria, hijo del grande Almirante Balan, a partir
da tradução de uma obra francesa anterior. [...]
procurando um rei para pelejar. Sabendo que corria pela Europa a fama de Carlos Magno
e seus doze pares, como valentes guerreiros, com insultos e menosprezo propõe ao
imperador um desafio para pôr a prova quem era o mais forte, pois julgava capaz de, sozi-
nho, ir contra um exército francês.
[...] no Império de Carlos Magno, uma das célebres Capitulares, a denominada De Villis,
se ocupava dos problemas agrícolas e regulamentava o plantio de plantas medicinais.
Dentre as plantas das quais Carlos Magno se ocupou e apregoou as virtudes, estava a
Sempervivum tectorum L. da família Crassulaceae, uma planta que chamou sua atenção,
não só pelas suas propriedades medicinais, como também pelo seu poder de evitar raios,
quando plantadas sobre as coberturas das casas.
[...] Tem largo uso popular no tratamento de furúnculos. Por via oral, o sumo é usado
puro nos casos de inflamações ovarianas e uterinas ou misturado com malvarisco ou
Tintura de matricária
Tintura de genciana
Tintura de jaborandi
Tintura de carnaúba
Tintura de casca de laranja
Caramelo
Água destilada
Mas, ao analisarmos aquelas narrativas europeias recriadas no Brasil, tal como estão
nos folhetos de cordel e particularmente no poema de Leandro Gomes de Barros,
nos parece uma adaptação das narrativas do livro de Carlos Magno e os doze Pares
de França, que circulou pelo Brasil desde antanho.
Nas edições de 1909, 1913, e 1920, segundo a Literatura popular em verso –
Antologia Tomo II: 152, 197, 250), lê-se:
Segundo informantes, teria sido sob os juazeiros que Padre Cícero descansou
quando foi do Crato para a cidade de Juazeiro, ainda pequeno povoado. Uma das
características dessa árvore é o fato de não perder as folhas no período de seca,
mostrando-se sempre frondosa.
A tradição popular guarda estórias em torno da árvore, a exemplo do exemplar
já bastante alterado, com seu tronco contorcido pelos anos, que vemos na Praça
Padre Cícero, como nos conta CARVALHO (1999: 21).
O autor acima comenta que o juazeiro foi plantado nos anos de 1940, na primeira
grande reforma da Praça Coronel Alexandrino, depois Praça Padre Cícero.
O juazeiro veio por conta de uma remodelação da praça, na qual ganhou can-
teiros no modelo francês e piso de pedra cariri. Depois de plantado o juazeiro
observaram que a árvore não tinha espinhos, o que deve ter contribuído para refor-
çar o seu caráter mítico.
Juazeiro do Norte situa-se em uma região de caatinga sob o jugo das intempéries
Tenho empregado todos os meios para salvar o mundo. Meu sangue, entretanto, vai
ficando inútil para a maior parte, porque os homens não querem saber a verdade. Tentei
agora um supremo esforço de minha misericórdia: a devoção universal que traz o nome
de meu coração. E se o mundo desdenhar este novo apelo de meu amor, eu destruirei o
mundo.
Voltando para Cícero, indaga:
Você, Cícero está vendo aquela gente lá fora? Tome conta deste pobre povo e fique aqui
cuidando de sua salvação (CASIMIRO, 2012: 10).
Padre Ibiapina serviu de modelo para a prática pastoral de Padre Cícero, recrutando
homens e mulheres das camadas mais pobres, a fim de fundar a ordem religiosa dos
beatos e beatas à margem da igreja oficial, vestindo-as com o hábito característico: uma
túnica escura, comprida até os pés, saindo pedindo esmola para ajudar os necessitados,
pregando o Evangelho e cuidando da celebração de novenas e terços.
Padre Cícero Romão Batista, tendo sucedido ao Padre Ibiapina, imprimiu em seu
trabalho pastoral características próprias, porém abrindo espaço para a continui-
dade das tradições de práticas religiosas desenvolvidas pelos beatos e penitentes,
sendo que os primeiros foram figuras que deixaram marcas indeléveis na religio-
Em dezembro de 1893, o antigo Juazeiro foi colocado sob interdito parcial, visto que
Com esse veredito por ordem do bispo Dom Joaquim mandou-se esvaziar Joazeiro como
centro de peregrinações: todos os escritos, fotos e medalhas vinculadas ao “milagre”
deveriam ser queimados, suspensos os poderes de defenderem o “milagre”, privação dos
sacramentos para os fiéis que fossem a favor do Pe. Cícero. As massas ignoraram aquelas
ordens e mantiveram as procissões. Em abril de 1896, D. Joaquim proibiu Padre Cícero de
celebrar missa, “última prerrogativa que lhe cabia”.
[...] as romarias de Juazeiro são fenômenos complexos, com um leque expressivo de con-
figurações e de sentidos, com sujeitos e agentes de diferentes tipos que a realizam e a
constroem enquanto tal. Romeiros, clero, moradores de Juazeiro, políticos e comercian-
tes. São muitos aqueles que são partes constitutivas e constituintes desse fenômeno. E
mesmo se focarmos apenas nos romeiros, podemos constatar que esse é um grupo com-
plexo e diversificado quando observado de dentro.
o corpo possui uma linguagem não verbal, expressa por meio da devoção popular, qual
o entendimento popular da devoção na linguagem verbal comum? A linguagem comum
entende por devoção “o ato de dedicar-se ou consagrar-se a alguém ou à divindade [...].
Um sentimento religioso, o culto, prática religiosa, enfim, uma dedicação íntima, uma
afeição, afeto, a um objeto especial de veneração.”
O autor acima, sobre o sacrifício, diz “o que se impõe ao romeiro”, e cita SANTA
ANNA (1991), “advertindo sobre a importância de se fazer uma distinção entre o
sacrifício imposto e o sacrifício que corresponde a uma disposição de amor”, e repe-
tindo o que diz FERRARO (1993) confirma que “o primeiro é vitimário e o segundo
é martirial”. O primeiro preserva a iniquidade do sistema e o segundo tem uma
dimensão redentora.
PEREIRA (2003: 73), citado acima, coloca em destaque o sacrifício martirial
enquanto dimensão de sacrifício.
O sacrifício como o privar o corpo de algo em detrimento de um bem maior. Isso, tendo
em vista que o sacrifício pertence ao âmbito do sagrado. Sacrifica-se para uma divindade,
ou seja, o sacrifício tem a função mediadora entre aquele que se sacrifica e a divindade
à qual o sacrifício é oferecido. Seja uma oferenda ou um ato de penitência, ou mesmo a
imolação de uma vítima (ritual comum dos povos antigos e que ainda hoje permanece
vivo em algumas culturas), o sacrifício como um donativo, um bem simbólico oferecido
à divindade.
[...] um sacrifício voluntário que chega a ser prazeroso, tendo em vista suas motivações.
Essas formas “sacrificiais” de manifestação de fé, dentro ou fora dos espaços sagrados,
fazem parte do que classificaremos como “devoção sacrificial” que tem estreita relação,
ou relação direta com o corpo do devoto. O corpo recebe e responde aos apelos apli-
cados pelos rituais da devoção, desenvolvendo uma comunicação entre o imanente e o
transcendente.
Os ritos sacrificiais envolvendo o corpo estão no caminhar romeiro por longos tra-
Não podemos, pois, pensar em um corpo puramente orgânico. O corpo, da mesma forma
que qualquer outro objeto, somente adquire existência para o ser humano quando faz
parte de um conjunto de representações e, desta forma, constitui-se ele mesmo uma
representação simbólica, citando MENDEZ e MENDES (1994). Assim, para o homem
não existe um organismo biológico, e sim um corpo simbólico, socialmente construído.
Portanto, torna-se impossível apartar um corpo biológico dessa representação, pois fora
dela não existe corpo algum. [...] Por pertencer a esse sistema de representações simbó-
licas, o corpo fala. De fato, ele pode ser visto como um signo através do qual se veiculam
determinadas mensagens.
A peregrinação aqui não tem nada a ver com a peregrinação de Aparecida do Norte.
Se a gente quer imitar a organização de Aparecida, mata a originalidade do romeiro de
Juazeiro. Mata uma experiência de umas dezenas de anos onde o romeiro foi o prota-
gonista da sua romaria. [...] Não é o bispo nem o padre nem o papa que mandam. Pelo
contrário.21
Por fim, com base na fisiologia da emoção em seus componentes físico, psicológico,
social e religioso, buscamos entender, explicar e dar sentido ao caminhar peniten-
cial do romeiro em direção ao Horto de Padre Cícero em Juazeiro do Norte. Aquele
A eficácia simbólica vem de encontro à observação que fez SPIES (2004: 16) ao
comentar Tristes Trópicos, obra daquele insigne antropólogo:
[...] Em alguns séculos, um outro viajante lamentará, neste local, tão descorçoado como
eu, o desaparecimento daquilo que eu poderia ter visto e que me passou despercebido.
Vítima de uma dupla fraqueza fere-me tudo o que eu vejo e sem cessar eu me censuro
por não ver o bastante.
Eis que, certamente, LÉVI-STRAUSS não nos recriminaria se soubesse que estamos
revendo os conceitos que emitiu a partir de uma visão antropológica ao tratar de
curas mágico-religiosas, na primeira metade do século XX, pois ele, como captamos
do texto de SPIES, em seu íntimo já admitia que o antropólogo é determinado pelo
decurso do tempo. “Um olhar que é possível hoje não foi possível ontem e estará
irrecuperavelmente perdido amanhã. O que nós vemos hoje tem que ter escapado
àqueles que vieram antes de nós.”
Certamente, aquele antropólogo abriu os caminhos hoje trilhados por aqueles
que vieram depois. Mas, em seu tempo, já brilhava uma luz no horizonte das con-
quistas científicas voltadas à fisiologia da emoção e dos avanços no conhecimento
da farmacobotânica. Esses os caminhos agora por nós trilhados buscando justificar
que as curas no campo das crenças religiosas também podem ser analisadas pelo
viés da materialidade da farmacobotânica e da neurofisiologia. É nessa nossa posi-
A caatinga da qual tratamos neste livro, entendida como caatinga arbórea densa,
está localizada no Geopark Araripe, ao sul do Ceará, na porção cearense da Bacia
Sedimentar do Araripe. Sua origem remete, diretamente, aos eventos tectônicos
associados com a abertura do oceano Atlântico sul – separação das placas con-
tinentais da América do Sul e da África, antigo continente Gondwana (PONTE e
PONTE FILHO, 1996). Essa região engloba geossítios que guardam íntimas relações
entre os elementos da geodiversidade e as comunidades humanas nos processos
de sua ocupação. Tais relações estão nos elementos disponíveis de sobrevivência e
elementos culturais, os formadores da identidade das populações, em suas áreas de
ocupação (VILAS BOAS, 2012).
As áreas de caatinga o sertanejo tão bem conhece. É essa a caatinga que garante
a ele nunca perecer, caso venha a depender somente da mãe natureza. Esta, sem-
Não se pode imaginar contraste mais violento do que o existente entre as duas regiões.
De um lado, a terra escura, pegajosa, úmida, cravada de sulcos ou embebida de água, com
árvores frutíferas, mangueiras, laranjeiras, canaviais, rios limosos. De outro lado, um caos
de pedras cinzentas cravadas em desordem no chão de argila seca, rachado pelo sol, e
vastas extensões de areia ardente. [...] A própria religião modifica-se quando passa de
uma zona para outra. À beira-mar, eis o grande apelo místico das igrejas cintilantes de
ouro, das cabeças dos querubins alados, ou das cariátides voluptuosamente retorcidas
sob o altar dos santos. No sertão, a religião é tão trágica, tão machucada de espinhos,
tão torturada de sol quanto a paisagem; religião de cólera divina, num solo em que a seca
encena imagens do Juízo Final.
Oportuno, aqui, traçarmos linhas sobre o que dizem sobre a caatinga os botânicos
que em tempos passados voltaram suas atenções a esse bioma tão brasileiro.
Segundo PRADO (2003), em Ecologia e conservação da Caatinga, teria sido Carl
Friedrich Philipp von Martius que em 1840 criou, como referência, um mapa pro-
pondo uma divisão regional para o Brasil a partir de cinco grandes biomas: Cerrado,
Caatinga, Mata Atlântica, Selva Amazônica e Pampa.
Em 1836 George Gardner (1912-1849), de Glasgow, na Escócia, em Um botânico inglês
A pequena distância notam-se alguns destes bosques baixos e decíduos chamados caa-
tingas, mas mesmos estes estavam despidos de folhas e, até onde alcançava a vista, nada
havia que merecesse o nome de árvore. Prosseguindo viagem atingem a Villa de Lavra de
Mangabeira. Árvore mais abundante que encontrei era chamada pelos habitantes Aroeira,
é uma espécie de Schinus, talvez S. aroeira St. Hil. [...] outras árvores eram principal-
mente grandes Acacias, Mimosas, Bignonias de tamanho considerável, cobertas de flores
amarelas e roseas, assim ia enumerando as árvores pelos caminhos. “A Vila de Lavra de
Mangabeira está situada nas margens do rio Salgado e consta de umas oitenta a cem
casas, todas pequenas, e muitas caindo em ruinas.” [...] “Na vizinhança encontra-se ouro,
num terreno aluvial de cor escura [...] Encontrei ali, crescendo em grande quantidade
nas margens arenosas do rio, uma especie de Grangea que é um poderoso amargo, usado
pelos naturaes, em infusão, usado em casos de dispepsias em substituição à camomila,
como qual, realmente, parece muito, tendo mesmo nome de macela.” Pelo trajeto até
chegar na Villa do Crato, foi descrevendo as árvores: “Bignonias ou jacarandás, cactos e
bromélias, Anacardium occidentale, Occimum, Geoffroya superba” (GARDNER, 1912: 157).
[...] chamam catingas, ou também sertões – mas: sertão é o país coberto de capim, onde
Em 20 de novembro de 1859 chega a Lavras, onde “o rio Salgado a divide bem pelo
meio. A porção a leste do rio é mais de criação; e a de oeste, é mais agrícola”. Em 14
de dezembro sobe a serra do Araripe (p. 298), segundo os Manuscritos.
[...] Na subida da serra: Murici (do Rio), Vismia, Camará (Lantana). [...] “No alto da serra,
que é plano, coberto duma vegetação rasteira folhada (tabuleiro) semeado de grandes
árvores de Visgueiro, e outras, é o ar bastante fresco; e daí se goza de belos lanços de
vista, sobre os Cairiris”.
O Crato é uma pequena cidade à qual convinha o título de vila: antiga povoação começada
com o aldeamento dos índios Cariris (?), e estabelecimento de Missões. O lugar de onde
se fundou a primeira Missão é onde hoje há muitas fábricas de tijolos para a edifica-
ção da cidade. Chamou-se esse lugar – Missão Velha – porém, a Missão se passou para
mais alto, e se assentou no lugar em que está a Matriz atual; e se chamou Missão Nova.
Necessariamente se dava o nome de Missão a uma igreja toda rodeada de palhoças dos
índios. No lugar em que está a matriz houve primeiro, digo, antes uma capela tosca de
tijolo que se arruinou; e conta o Sr. Secupira que, não sei em que ano, era no tempo de
sua vó e tias, em a primeira oitava do Espírito Santo, depois da missa, mas estando muita
gente ainda na Igreja, esta desaba com grande estrondo e matara algumas pessoas.
A cidade está assentada em um terreno baixo, mas em meia laranja rasa, de modo que dá
escoamento para todos os lados. Passa por um lado o rio, que nasce no Grangeiro, das
Como é sabido, esta antiga província do Brasil pertence, em toda sua extensão, a região
geobotânica, que Martius designou pelo nome de Hamadryadas, caracterizada por mattos
de arvores de pequeno tamanho, de folhas caducas, apelidadas “Caatingas” pelos brasilei-
ros. Esta região estende-se, segundo Martius, (veja sua Tabua geografica Brasiliae, dada
como suplemento da Flora brasiliensis), por todo o nordeste do Brasil, compreendendo o
valle superior do Rio São Francisco, que pertence ainda ao Estado de Minas Gerais, uma
grande parte do Estado da Bahia, as antigas Provincias, hoje Estados de Pernambuco,
Alagoas, Parayba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauhy, a parte septentrional de Goiaz
e meridional do Maranhão. É excusado dizer que esta grande superfície não é ocupada
exclusivamente pelas Caatingas; estas alternam-se, conforme as descrições dos natura-
listas viajantes, principalmente Martius e Gardner, com Carracos e Tabuleiros ou Campos
cobertos de arvoredos e vegetação quase desértica.
[...] as folhas caem em julho entre julho e setembro e ressurgem 6-15 dias após as primei-
ras chuvas; então o gado come os renovos e depois, durante a época seca seguinte, ingere
as folhas dessecadas caídas sobre o solo, as quais, em virtude do clima adequado, sofrem
uma como fenação natural. A espécie mais importante, aqui, é a catingueira (Caesalpinia
pyramidalis Tul.), conforme se revela; outras são: pau-branco (Auxema oncocalyx (Fr. AL.)
Taub., Boraginaceae, jurema (Mimosa tenuiflora Benth. Fabaceae).
Pois bem, tal processo, podemos admitir remontar ao tempo do início da coloniza-
ção dessa região cearense, lá pela metade do século XVII e início do XVIII, na época,
área pertencente ao Pernambuco.
Porém, procurando não penetrar em questões que envolvem a preservação do
que resta do bioma Caatinga, ainda não totalmente desertificado, situamos nossas
atenções no homem daquele sertão, em região caririense, ao sul do Ceará, e seu
[...] uma verdadeira caçada aos nativos é empreendida. Sob o pretexto de cometerem atos
de pilhagem e homicídios, eram atacados com tanto furor pelos predadores de índios que
nem mesmo as crianças eram poupadas, mortas cruelmente.
[...] As expedições com 100, 200 até 400 homens, eram equipadas pela própria metrópole
portuguesa que mandava distribuir entre os colonos, recursos, armas de fogo, munição
como pólvora, cavalos, canoas e até grandes barcos para navegarem pelos rios. Como
recompensas por terem “limpado o terreno do gentio selvagem”, recebiam, grandes
extensões de terras doadas em sesmarias, tanto pelo governo português, como pelas
Ainda em PIRES (1990), “em decorrência daquele quadro que se expunha no Nordeste
brasileiro, foi incentivado o bandeirismo de contrato, por parte do Governo Geral,
entendendo este a extrema importância de utilizar a experiência destes sertanistas
para combater os conflitos com os povos indígenas, incentivado pelas “particulari-
dades dos Paulistas, durante o fim do século XVII e primeira metade do XVIII”.
Por aquele período, segundo SIQUEIRA (2007: 125), a Lei das Sesmarias se fir-
mou com a condição de posse, na obrigatoriedade de cultivo, no aproveitamento
das terras doadas. “Na medida em que os sesmeiros se aprofundavam pelo interior
adentro na conquista e consolidação do espaço agropastoril, recrudescia a violência
contra povos indígenas, especialmente pela resistência que esses ofereciam contra
a prepotência de um colonizador, o qual consideravam ‘bárbaros’ quem se opusesse
aos seus instintos e, portanto, inimigos declarados de uma guerra tida como justa”.
Prosseguindo com o autor acima: “Características históricas de natureza polí-
tica e cultural reforçam o mandonismo local, na vida política brasileira, em especial
no semiárido nordestino, uma cultura que reproduz hegemonicamente, o sistema
de poder baseado no domínio territorial e familiar, em decorrência da reiteração
de sua história colonial”.
Alinhamos ao quadro acima descrito da ocupação da região sul do Ceará como
teria sido o início, ali, da degradação daquele solo, em pleno semiárido, que guar-
dando o precioso bioma Caatinga. Sobre quais teriam sido as causas que deram
início à degradação daquele ambiente cearense, vale lermos FERRI (1974: 20):
Colocado numa área qualquer o gado corta as gramíneas necessárias à sua alimenta-
ção. De outro lado, caminhando com o peso considerável do seu corpo, repetidas vezes
sua biblioteca, pois sabemos que ele preparava remédios a fim de socorrer os mais cavaleiro da Ordem
de Christo, Official
necessitados e distantes de qualquer espécie de ajuda. Logo abaixo reproduzimos da Ordem da Rosa do
carta recebida por Padre Cícero de um fornecedor de substâncias químicas medi- Brazil; 1890.
cinais para preparo de remédios. Paralelamente, surgiu uma obra em três volumes,
não menos importante que as de CHERNOVIZ, em que se dá ênfase às plantas indí-
genas, ao lado de componentes de origem animal e mineral. Tratava-se dos três
volumes do Diccionario de medicina domestica e popular, de LANDGGARD (1873).
A ilustração para o autor era fundamental no reconhecimento da identificação
botânica das plantas nativas e introduzidas, visto muitas vezes levarem o mesmo
nome vulgar. Era uma medicina que empregava, além das plantas, produtos de
origem animal e mineral. Há de se considerar, ainda, os formulários adotados nas
primeiras escolas médicas no Brasil, a exemplo do Noveau Formulaire Magistral, de
BOUCHARDAT (1881), já tratando de alcoolaturas, tinturas, extratos, entre outras
formas farmacêuticas à base de produtos de origem vegetal, animal e mineral na
formulação dos remédios e suas indicações farmacêuticas, em que os profissionais
da medicina também se orientavam para suas prescrições médicas.
Hoje, os chás e as alcoolaturas são de domínio da medicina popular. Nas mãos dos
doutores na arte de curar, recordam-nos as garrafadas difundidas por todo o Brasil,
à base de cachaça ou vinho branco, herança da medicina jesuítica, remontando às
velhas triagas de origem grega e romana, como tratado por nós pormenorizada-
A grande extensão territorial e as condições climáticas muito diversas fazem com que
a flora brasileira possua inúmeras espécies vegetais, muitas consideradas importantes
matérias-primas, outras já incorporadas ao hábito alimentar dos brasileiros e algumas
pouco conhecidas e potencialmente benéficas. Também se reconhece que a dieta cons-
tituída de nutrientes essenciais e acrescida de substâncias nutracêuticas, como parte
de um estilo de vida saudável, tem um papel preponderante na prevenção e/ou cura de
enfermidades crônicas não transmissíveis como as doenças cardiovasculares, o diabetes
mellitus e diferentes tipos de câncer, citando SÁ (2008).
6.3.1 Flavonoides
Os flavonóides são compostos largamente distribuídos no reino vegetal e presentes
em frutas, folhas, sementes e em outras partes da planta na forma de glicosídios ou
agliconas (ANGELO et al., 2007).
Segundo SALATINO (2014), flavonoides são substâncias fenólicas presentes
em plantas, responsáveis pelas cores em frutos e flores, desempenhando várias
atividades farmacológicas: antioxidante, antimicrobiana, antialérgico, antiviral,
anti-inflamatória etc.
As cores são propiciadas por:
a) Antocianinas, flavonoides que dão cor a diversas partes das plantas, principalmente em
flores e frutos. Vão do vermelho ao azul e aos tons intermediários (roxo, lilás, púrpura).
Umbuzeiro Juazeiro
sinonímia vulgar umbu (do tupiguarani: nome científico Zizyphus joazeiro Mart.
y-mb-u = árvore que dá de beber),
família Rhamnaceae
imbu; cajá, umbu-cajá, umbu-cajazeira,
ocorrência Bioma Caatinga (Embrapa).
mirobalona
família Anacardiaceae
família Apocynaceae
família Fabaceae
para enrolar cigarros, sendo que por vezes os índios reforçam seu poder inebriante, 1999: 67). Mais
informações, ver LIMA
aspirando o pó do paricá (Anadenanthera peregrina Benth.ll Fabaceae). Segundo (1946: 152).
SCHULTES, HOFMANN e TÄTSCH (2001: 35), em Plants of the gods, “[...] the seeds of
Anadeanthera peregrina contain mostly N.N. Dimethyltryptamine (DMT)”.
Na medicina popular da região por nós percorrida há o predomínio do uso das
cascas da jurema como cicatrizante e em bochechos quando há lesões na boca.
Vem de anos uma incessante busca por novas tecnologias voltadas ao conheci-
mento e reconhecimento dos valores terapêuticos embutidos em diferentes partes
dos vegetais, os constituintes químicos de interesse das Ciências Farmacêuticas.
Foi a partir do séc. XVIII que se iniciaram as buscas pela identificação dos agen-
tes responsáveis pela ação medicinal presentes em diferentes partes dos vegetais,
admitindo a existência de princípios ativos, sobre os quais já tratamos, os agen-
tes empregados no tratamento de doenças. Tais princípios ativos podem estar em
uma ou mais partes das plantas, desempenhando múltiplas atividades terapêuticas,
muitas delas presentes em uma mesma planta, como já dissemos e agora repetimos:
anti-inflamatório, anti-infecciosa, antisséptica, antioxidante, antipirética, cicatri-
zante, antinociceptiva.
Recordamos aqueles que, sem uma identificação própria, movidos pelas circunstân-
cias, praticaram a nobre arte de curar: os cangaceiros, lembrando-nos de Virgulino
Ferreira da Silva, o célebre Lampião, e seu bando, figuras que, um dia, fizeram his-
tória, sobre a qual estudiosos se debruçam para esmiuçar seus feitos.
Aquele ambiente é onde nos detemos a fim de buscar conhecer como se cura-
vam, como eram as terapias à base de plantas medicinais que a caatinga lhes
Já recebi quatro ferimentos graves. Dentre eles, um na cabeça, do qual, por milagre escapei.
Possuímos, porém, no grupo, pessoas habilitadas para tratar dos ferimentos, de modo que
sempre somos convenientemente tratados. Por isso, como o senhor vê, estou forte e perfei-
tamente sadio, sofrendo, raramente, ligeiros ataques de reumatismo (MACEDO, 2012: 232).
Lampião se valia de orações em suas horas de aflição, tal como a reproduzida abaixo:
Minha pedra cristalina que no mar foste achada entre o cálix e a hóstia consagrada, tremo
a terra mas não treme nosso Senhor Jesus Christo no altar assim ter os coraçãos de meus
inimigos quando olharem para mim eu ti benzo em cruz i não tu a mim entre o sol e a lua
e as Estrelas e as três pessoas da Santíssima trindade [...].
Offiricimento: salvo fui salvou sou o salvo serei com a chave do sacrário e me fecho 1 PN
3AM i 3 Gloria a patrei ofereço a 5 Chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo (MACEDO, 2012).
Lampião, Corisco, Maria Bonita, Dadá, Jararaca, quando invocados por outros sujei-
tos do bando, tinham quase sempre uma receita, um diagnóstico, um clister para
resolver as situações, conforme narrado por OLIVEIRA (1982), em Lampião, cangaço
e Nordeste:
“Corpos que rasgam, corpos que curam, corpos que matam e dão a vida”, como ana-
lisou a socióloga QUEIROZ (1991) em GOUVEIA JÚNIOR (2001: 4).
A capacidade de remediar situações do protagonista do ato de curar era extraor-
dinária, pois sabia da ação bactericida do mofo, como narra VAINSENCHER (s/d),
possivelmente prática usual na região, visto que o uso do mofo, bolor ou fungo
é generalizado na medicina popular, variando o substrato vegetal no qual se
desenvolve.
Diz OLIVEIRA (2011), em Artes de curar e modos de viver na geografia do cangaço:
Pensar as práticas de cura no cangaço é uma maneira de viabilizar aberturas para outros
campos de estudo desse evento que marcou o Nordeste, percorrendo ricos aconteci-
mentos que podem ser construídos e multiplicados pela pesquisa e pela escrita. Dessa
forma, pensar a relação entre cangaço e práticas de cura constitui um mergulho nos
saberes populares e em outros modos de existir, resistir e inventar a vida. Trata-se de
analisar a cultura como uma forma de representar o lugar de cada um no mundo, sua
relação com as crenças e valores. Nesse ambiente de ausência do saber médico-cientí-
fico, possuir conhecimento médico-popular torna-se um instrumento de diferenciação,
um corpus de saber que estabelece hierarquias, para pensar a existência.
Dadá foi companheira de Corisco, um cangaceiro com seu bando que se juntou a
Lampião. Dadá, narrando uma fuga pela caatinga levando Corisco ferido a bala no
braço, conta como cuidou de seu ferimento com fratura exposta e agravamento
do processo purulento culminando, em determinado momento, com desmaio. Essa
valente mulher deu-lhe uma dose de cachaça de quixabeira misturada com arnica,
permitindo a Corisco voltar a si, segundo conta. Enquanto prosseguiam na fuga, ia
6.5.2 Fumo
“Fumo”, “tabaco” (Nicotiana tabacum L. Solanaceae) ou, como se diz, “fumo de
corda”, vendido em feiras pelo interior do Nordeste, era de uso nas terapias adota-
das pelo grupo de Lampião, diretamente no local de ferimentos a bala. As primeiras
notícias que se teve do “fumo” em Portugal contam que era cultivado pela Farmácia
Real, em Lisboa. Tal fato faz-nos recordar que no século XVI o fumo já era tido como
medicinal. Conforme narra SOUSA (1974), no século XVI “curavam com seu sumo os
vermes que se criavam nas feridas de vacas e éguas”. Em Lisboa, Jean Nicot, embai-
xador da França, atribuiu ao “petum”, nome que dera ao fumo, a cura de uma úlcera
renitente que tinha na perna.
O fumo ou tabaco contém o alcaloide nicotina, de ação no Sistema Nervoso
Central (SNC), com propriedades vasoconstritora e anti-inflamatória.
Tal como foi para o cangaceiro de ontem como para o sertanejo de hoje, a caatinga
acinzentada ou verdejante estará sempre ali, pronta para oferecer os remédios de
que se necessita bem onde padre Cícero espalha suas benesses e a quem Lampião
devotava verdadeira veneração. Território respeitado pelo rei do cangaço poupado
O telégrafo era uma invenção da Revolução Francesa, ainda no século XVIII, mas foi o
americano Samuel Findlely Breese Morse que transformou um sistema baseado em sinais
visuais – pontos e traços – em um pulso de comunicação com base em código simples,
O papel sujo, gasto do tempo, ainda conserva, bem nítido, os traços fortes de seu lápis,
na corrigenda do tema – O cangaço no Cariri –, para o aperfeiçoamento da frase, para a
pureza da linguagem, para a formação do estilo, da qual se encarregou seu antigo mestre, o
Reverendo Esmeraldo do Colégio São José da cidade do Crato (OLIVEIRA, 1920: 12).
Conforme o autor, foi na região do Crato e Juazeiro que colheu o material sobre
o livro Beatos e cangaceiros. Na introdução está: “Causas gerais do banditismo no
Nordeste: Analfabetismo – Ausência de justiça – Falta de trabalho e exiguidade de
salário – Politicagem”.
O autor dá destaque em seu texto à falta de justiça, dizendo:
[...] um indivíduo, por uma razão qualquer, assassina outro. A família do morto, debalde
espera da justiça o castigo do homicida. [...] um membro dela vinga-se mantando ou o
próprio assassino ou a um seu parente. Foi o que sucedeu com Antônio Silvino. Mataram-
lhe o pai, quando ele era ainda menino. Quando Silvino cresceu, vingou-se, matando-o a
ele, o criminoso e a mais 4 irmãos seus. Depois correu o sertão durante 20 anos, espa-
lhando o terror, desfiando os governos, roubando, saqueando o comércio.
O mesmo ocorreu com Lampião, movido pela vingança por terem, também, matado
seu pai, José Ferreira. Disse ele em uma entrevista em março de 1926, ao médico
Otacílio Macedo, em Juazeiro do Norte: “resolvi fazer justiça pelas minha conta
própria, vingando a morte de meu pai”.
OLIVEIRA (1920), referido acima, em Beatos e Cangaceiros, dedica um capítulo
aos beatos no Juazeiro de Padre Cícero que um dia foram cangaceiros, época em
[...] é um sujeito celibatário, que faz votos de castidade (real ou aparentemente), que
não tem profissão, porque deixou de trabalhar e que vive da caridade dos bons e das
explorações aos crentes. Passa o dia a rezar nas igrejas, a visitar os enfermos, a enterrar os
mortos, a ensinar preceitos aos crédulos, tudo de acordo com os preceitos do catolicismo.
Veste-se como frade, boina preta, uma cruz nas costas, um cordão de São Francisco na
cintura, vários rosários, bentinhos de São Bento, saquinhos de breves religiosas e orações
poderosas, tudo pendurado no pescoço. São geralmente vagabundos, hipócritas, deliran-
tes religiosos ou bandidos (OLIVEIRA, 1920: 39).
A constância das condições observadas no organismo humano pode ser designada como
equilíbrio, a que denominou homeostase, termo associado à noção de auto regulação, em
outras palavras compreendendo o processo de regulação que mantém o organismo em
equilíbrio, ou seja, saudável (CANNON, 1932: 12-3).
Nesse sentido, julgamos importante citar aqui o autor DI STASI (1996), em Plantas
medicinais: arte e ciência – Um guia de estudo interdisciplinar, que destaca que, para
os estudos de plantas em suas propriedades medicinais, as quais, certamente, estão
envolvidas com as práticas médicas populares, a adoção de critérios metodológicos
de outras áreas do conhecimento “para o alcance de melhores resultados nas pes-
quisas” se faz necessária.
[...] uma emoção é antes uma reação aguda que envolve pronunciadas alterações somáticas
experimentadas como uma situação mais ou menos agitada. A sensação e o comporta-
mento que a expressam, bem como a resposta fisiológica interna à situação-estímulo,
constituem um todo intimamente relacionado, que é a emoção propriamente dita, em
seus componentes fisiológicos, psicológicos e sociais [...].
[...] LAING mostrou-me como padrões psicológicos podem se manifestar sob a forma de
sintomas físicos. Explicou-me como alguém que vive contendo suas emoções também
tende a reter a respiração, e acaba desenvolvendo uma condição asmática.
[...] Da natureza da doença mental a nossa conversa passou para o processo terapêutico.
LAING fez questão absoluta de frisar que a melhor atitude terapêutica em geral consis-
tia em propiciar um ambiente favorável onde as experiências do paciente pudessem se
desenrolar. [...] em vez de hospitais psiquiátricos, insistiu, “precisamos é de cerimônias
de iniciação onde as pessoas sejam guiadas em seu espaço interior por outras que já
tenham estado lá e voltado”.
Continua CAPRA:
A observação de LAING sobre a jornada de cura pelo espaço interior lembrou-me a con-
versa bastante parecida que eu tivera com Stan Grof; fiquei vivamente interessado em
ouvir sua opinião sobre a similaridade entre as viagens dos esquizofrênicos e as dos mís-
ticos. Os místicos e os esquizofrênicos estão no mesmo oceano, disse solenemente, mas
os místicos nadam, ao passo que os esquizofrênicos se afogam.
É certo e notório que, sejam quais forem os caminhos buscados pelas veredas da
vida visando a alcançar curas, a emoção se faz presente.
A emoção foi preocupação de DURKHEIM (2008: 282-3), pai da Sociologia fran-
cesa de meados do século XIX o qual, ao analisar o totemismo, faz menção a uma
força anônima e impessoal despertada na sociedade de indivíduos suscitando sen-
timentos coletivos, cuja ação ele chama de força, a qual se “vinculam as palavras,
gestos e movimentos inspirando sentimentos vários, os quais ajudam no desen-
volvimento de ideias religiosas”. Admite, ainda, a religião como produto de delírio,
ao atribuir “à exaltação na qual se encontram os homens quando em consequên-
cia de efervescência coletiva a certeza de serem transportados para um mundo
inteiramente diferente daquele que têm sob os olhos”. Delírio esse entendido por
DURKHEIM como “qualquer estado no qual o espírito aumenta os dados da intui-
ção sensível projetando seus sentimentos e suas impressões nas coisas, admitindo
não existir representação coletiva que não seja delirante”, como diz ele, suscitando
violenta emoção.
Segundo ANTUNES FILHO (2009), citando DURKHEIM (2001: 431-2, 494),
MAUSS (1979), também entre final do séc. XIX e meados dos anos 1920, todavia,
enquanto antropólogo vem a admitir
[...] a emoção religiosa como meio de extravasar a vivência social – frustrações, medos,
angústias – um elemento que causa coesão e unidade em um dado grupo religioso pelas
sensações de prazer, conforto, alegria, vitória e esperança atribuídos a Deus e que,
mesmo recebendo a influência da sociedade, o indivíduo possui certa autonomia, se
diferenciando do pensamento de Durkheim que privilegia o coletivo em detrimento do
individual.
Os impulsos religiosos são tratados por ASLAN (2018: 46)29, doutor em estudos teo-
lógicos e sociologia das religiões, em sua obra Deus – Uma história humana, na qual
assim se expressa:
A ciência cognitiva da religião começa com uma premissa simples: a religião é antes de
tudo, e principalmente, um fenômeno neurológico. O impulso religioso, em outras pala-
vras, é em última instância uma função de reações eletroquímicas complexas do cérebro.
Claro, esse fato por si só não é uma observação convincente e decerto não diminui e nem
deslegitima o impulso religioso. Todo impulso – todo impulso sem exceção – é gerado por
O autor acima cita MURRAY (2009: 168-78), admitindo-o como um dos principais
pensadores da área, o qual assim se expressa: “O fato de termos crenças que bro-
tam de ferramentas mentais escolhidas pela seleção natural é, por si só, totalmente
irrelevante para a justificativa das crenças que delas derivam”. Acrescenta, ainda,
ASLAN (2018: 47): “No entanto, se é verdade que a religião é um fenômeno neu-
rológico, talvez possamos procurar as origens do impulso religioso no lugar em que
realmente reside: no cérebro”.
No III Simpósio de Saúde Quântica e Qualidade de Vida em São Paulo – SP, em 2013,
a espiritualidade foi praticamente tema central. Sobre Neurociência e a integração
corpo-mente-alma-espírito, MARINO JR., neurologista várias vezes mencionado no
decorrer deste livro, apresentou as noções que constituem as bases da neurologia
e da neurofisiologia. Considerando o sistema límbico sede das emoções e dos
fenômenos chamados paranormais, focaliza “a unidade que esse sistema hoje nos
dá do ponto de vista científico, sobre a integração corpo-mente-alma-espírito,
inclusive com explicações hoje fornecidas pela moderna física quântica”. Todavia,
não adentraremos nesse assunto, deixando que os doutos nessa área o façam,
trazendo a lume respostas às questões discutidas naquele evento.
As colocações acima se apresentam com o intuito de destacar as dúvidas que
advêm quanto aos reais conceitos de doença e cura, embora intimamente relaciona-
dos tanto à medicina hegemônica como à medicina popular, esta, todavia, pautada
nos princípios religiosos de sistemas de crença. Não cabe a nós, obviamente, uma
avaliação das verdades enunciadas pela medicina hegemônica, mas uma interpre-
tação das curas na medicina popular, nesse caso, tendo como referência o romeiro
E perguntamos: por que não curado, visto o possível desaparecimento dos sintomas
que o levaram a se sentir doente, já que uma forte emoção pode desencadear alte-
rações somáticas, como diz acima MARINO JR.?
Devemos recordar, ainda, que CANNON (1927) já admitia que o equilíbrio quí-
mico do corpo podia ser controlado pelo Sistema Nervoso Autônomo, que regula o
meio interno do corpo, dando destaque para a fisiologia da emoção. Esse o senti-
mento tal como deve ocorrer com aquele que apela ao santo de sua devoção a fim
de alcançar uma determinada cura, a exemplo do romeiro de Juazeiro do Norte
quando o colocamos como um referencial para tratarmos de tais curas.
Para que possamos encetar uma discussão sobre o sentir-se curado, baseamo-nos
[Foto 10]
[Foto 11]
Todavia, lembramos que romarias a lugares santos ocorrem desde eras que se per-
dem no tempo, assim como exposições de ex-votos testemunhando infindáveis
números de curas em templos espalhados por todos os rincões deste mundo. São
curas criando novos alentos àqueles que, agraciados, recobram os ânimos que ani-
mam as vidas ainda por viver.
cartas avulsas
registro de batismo
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semanário
jornais
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cartas
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COLEÇÃO CADERNOS DE FOLCLORE
volumes anteriores
1º volume – 1986
Azeite de Mamona – Toninho Macedo e Angela Savastano
2º volume – 1988
Carro de Boi – Zuleika de Paula
3º volume – 1988
Laraoiê, Exu – Hélio Moreira da Silva
4º volume – 1989
Fumos e Fumeiros do Brasil – Marcel Jules Thieblo
5º volume – 1990
Jogos, Brinquedos e Brincadeiras – J. Gerardo M. Guimarães
6º volume – 1992
Maria Peregrina – Benedito José Batista de Melo
280
7º volume – 1994
Saci – José Carlos Rossato
8º volume – 1995
Cobras e Crendices – Maria do Rosário de Souza Tavares de Lima
9º volume – 1997
Chico Triste I – Coletânea de Textos de Francisco Pereira da Silva
281
18º volume – 2008
O Milho e a Mandioca nas cozinhas brasileiras, segundo contam suas histórias – Maria
Thereza Lemos de Arruda Camargo
282
realização autora
Prefeitura Municipal de São José dos Campos Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo
Fundação Cultural Cassiano Ricardo
pesquisa de fontes primárias
Museu do Folclore de São José dos Campos
Aristides de Arruda Camargo Neto
Centro de Estudos da Cultura Popular
revisão de texto
idealização
João Campos
Angela Savastano
fotografias
gestão do projeto
Aristides de Arruda Camargo Neto
Francine Maia
Mário de Arruda Camargo
colaboração
projeto gráfico
Avelino Israel
Mariana Santana
apoio
ilustrações
UNESCO
Mariana Santana
Araripe - Geoparque Mundial da UNESCO
C179me
CDD:398 CDU:398(813.1)
Av. Olivo Gomes, 100, Parque da Cidade, Santana - São José dos Campos - SP
(12) 3924-7318
www.museudofolclore.org
fontes Lora e Averia
tiragem 500