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APRESENTAÇÃO MOSTRA DE CINEMA INFANTIL

Boa tarde a todas/os,xs! É um prazer estar aqui com a Roselete e o Anderson! Eu agradeço o
convite da Luiza para participar desse evento tão potente!

Eu sou Mayana, sou maranhense, moro em São Paulo há 6 anos, mas no momento, diante da
possibilidade de trabalhar em casa, estou em São Luís, cidade onde nasci. Sou doutoranda em
Antropologia Social na Universidade de Campinas e tenho uma trajetória transitando entre a
Universidade e o campo dos movimentos sociais. Atualmente sou assessora de projetos do
Fundo Brasil de Direitos Humanos.

Eu queria começar a minha fala trazendo uma intelectual e escritora nigeriana que alcançou
muita projeção nos últimos anos com uma escrita que reflete as nuances do que vamos falar
hoje aqui: a descolonização. Essa autora é a Chimamanda Ngozi.

Algum tempo atrás, Chimamanda fez um Ted Talks, uma série de conferências em que
especialistas em determinado assunto são convidadas a compartilhar o seu conhecimento
naquela área. Chimamanda fez um Ted Talks intitulado “Os perigos de uma história única”.
Quando eu assisti esse vídeo, me identifiquei bastante.

Chimamanda é uma africana, nigeriana, uma mulher negra de pele escura. No vídeo, ela
começa dizendo que quando era criança lia muitos livros de contos britânicos e americanos. Os
personagens destes livros eram sempre brancos, de olhos azuis, costumavam falar do clima,
quando fazia um clima bom, quando o sol aparecia, porque eram personagens que moravam
num clima frio, na neve, e comiam maçãs. Só que no contexto em que Chimamanda vivia, na
Nigéria, as crianças não eram brancas e de olhos azuis; não viviam na neve; não comiam
maças, e sim mangas. Relembrando esses episódios de sua infância, ela percebeu como nós
somos facilmente marcados quando crianças. Quando criança, Chimamanda achava que os
únicos livros de literatura estrangeiros, com histórias com as quais ela não se identificava.

Isso aconteceu até o momento em que ela começou a conhecer as histórias africanas, e
descobriu que meninas negras, de cabelo crespo e pele escura como ela também podiam
existir na literatura. Apesar de amar aqueles livros britânicos e americanos, a consequência
inesperada de lê-los era não se ver representada e pensar que pessoas como ela não podiam
existir na literatura. O conhecimento da literatura africana a salvou de uma história única.

Chimamanda segue no vídeo falando de outros momentos em que ela se viu nesta armadilha.
Adulta, foi estudar nos Estados Unidos, e a perspectiva de uma história única apareceram
novamente quando sua colega de quarto, uma mulher americana dos Estados Unidos, ficou
chocada com o fato de que Chimamanda sabia falar inglês tão bem (desconhecendo que o
inglês é uma das línguas oficiais da Nigéria).

Chimamanda percebeu que a sua colega de quarto sentiu pena dela antes mesmo de conhecê-
la e entendeu que a moça também tinha uma história única sobre a África. Uma visão em que
não haveria possibilidade de africanos serem iguais às pessoas dos Estados Unidos. Uma visão
que coloca a África como um continente de pobreza, um lugar “exótico”, onde as pessoas
morrem de fome e de AIDS.
Então, trazendo um pouco da reflexão que a Chimamanda provoca para o nosso debate de
hoje, o que significa DESCOLONIZAR? Eu entendo que descolonizar é escapar dos perigos de
uma história única, do qual Chimamanda busca chamar atenção.

E essa história única é uma história que se impôs a partir do processo de colonização europeia
da América, da África e da Ásia.

Nós já sabemos que a colonização foi um processo histórico violento. E não foi violento apenas
pelo genocídio dos povos indígenas e escravização de africanos promovidos pelos
colonizadores europeus, mas também pelo que Ramón Grosfoguel, um dos teóricos latino-
americanos do decolonial, denomina como “epistemicídio”. O genocídio de indígenas e de
africanos sequestrados e transportados à forca de África para as América representou não
apenas a morte do corpo físico, da matéria, mas a destruição de epistemologias (processos de
produção de conhecimento que toda sociedade possui), espiritualidades, dos saberes que
estes povos carregavam consigo.

Os africanos sobreviventes da escravização e do genocídio ainda eram proibidos de pensar, de


praticar suas visões de mundo, suas cosmogonias. Os indígenas também viveram o
apagamento de si através da cristianização forçada.

A marca dessa história permanece viva nos dias de hoje, porque aquilo que conhecemos, os
livros que lemos, os autores que usamos como referências em nossas pesquisas, os diretores,
cineastas nos quais nos inspiramos, aquilo que ensinamos para nossas crianças estão
diretamente ligados a esse processo de apagamento e invisibilidade que populações indígenas
e descendentes de africanos têm vivido. Por isso, preciso que nos questionemos sobre que
conhecimento é este que chega até nós? Quem é reconhecido como produtor de cultura, de
saber? Quem está no centro do conhecimento? Quem está fora, nas margens?

É importante que essas perguntas sejam feitas porque aquilo que conhecemos não é neutro.
Conhecimento e poder estão profundamente relacionados entre si. Chimamanda lembra como
uma história única é criada: mostre um povo como uma “coisa” e somente aquela “coisa”,
repita essa história infinitamente, e é isto que aquele povo será.

Assim, o movimento de descolonização traz à tona que existe toda uma produção teórica, há
cosmogonias, espiritualidades que foram invisibilizadas a favor do conhecimento europeu
ocidental, que a partir da colonização, do genocídio e epistemicídio de indígenas e africanos se
estabeleceu como único, universal, objetivo.

A filósofa Grada Kilomba, mulher negra, radicada na Alemanha, mas cuja família veio das ilhas
africanas São Tomé e Príncipe, enfatiza no seu livro “Memórias da Plantação” como o privilégio
de fala tem sido negado às pessoas negras, e eu incluo aqui as populações indígenas também.
Grada fala a partir de suas vivências no espaço acadêmico da Universidade de Berlim,
Alemanha, e reforça como a academia não é um espaço neutro, apenas de conhecimento e
sabedoria, e sim um espaço branco, de violência. Acredito que podemos estender essa
reflexão para outros campos de produção de saberes, como é o caso do cinema e do
audiovisual. São locais em que pessoas negras e indígenas têm sido construídas como o Outro,
têm ocupado espaços de subordinação, e raramente são colocados no lugar de Sujeito,
pensando-se aqui que Sujeito é aquele que age, aquele que enuncia, que produz; e o Outro, é
aquele que está na posição de objeto, inerte, passivo. Portanto, fica a pergunta: como as
mídias audiovisuais podem deixar de ser espaços de violência para populações negras e
indígenas?
Outra questão que Grada Kilomba diz é que “não é que nós negros e indígenas não tenhamos
falado, o fato é que nossas vozes, graças a um sistema racista, têm sido sistematicamente
desqualificadas, considerada conhecimento inválido”.

É importante enfatizar que negros e indígenas sempre produziram saberes, então precisamos
nos perguntar por quais razões estes conhecimentos não chegam até nós através da educação,
do cinema, entre outros.

Assim, descolonizar é desestabilizar estas premissas, possibilitar a emergência de perspectivas


plurais de vida e de mundo. Ouvir a voz (o que é diferente de dar a voz) de quem esteve
historicamente do outro lado da margem.

A minha graduação é em História Licenciatura, e durante o período em que eu estava na


Universidade Federal do Maranhão eu não me recordo de ter estudado a produção de
intelectuais negros ou indígenas do meu estado, do Brasil e do mundo. Não porque não
houvesse intelectuais negros, mas porque o currículo do meu curso marginalizava estes
teóricos em favor de franceses, ingleses, americanos dos Estados Unidos.

Uma das frases que mais me marcou durante o meu período de mestrado foi ouvir de um
professor que nós não tínhamos porque estudar sociologia latino-americana, já que toda a
sociologia tinha sido produzida na Europa. Aquela frase me deixou chocada!

Mesmo maranhense, só há pouco tempo atrás eu conheci a obra de Maria Firmina do Reis,
mulher negra maranhense e a primeira romancista brasileira com o livro “Úrsula”.

Apenas quando entrei no Mestrado em Ciências Sociais eu tive contato com os feminismos
negros, um conjunto de produções e análises teóricas sobre a sociedade brasileira produzidas
por mulheres negras como Lélia González, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, e também dos
Estados Unidos, como Angela Davis, bell Hooks, Audre Lorde, entre outras. E ainda mais
recentemente eu tenho conhecido as ricas visões de etnias indígenas a partir de intelectuais
como Ailton Krenak, Davi Kopenawa, entre outros.

As consequências de ter demorado tanto tempo para ter acesso ao conhecimento produzidos
pelos meus é que assim como Chimamanda, quando criança eu achava que não havia lugar
para mim no mundo. Eu não me sentia bonita, e durante anos tentei me aproximar de padrões
de beleza que não eram os meus. E como poderia ser de outro jeito, se quase não havia
representações positivas sobre a minha raça?

Muitas vezes, o processo de fortalecer a própria autoestima para crianças negras e indígenas é
extremamente solitário. Não precisa ser assim. E acredito que o cinema é fundamental para a
descolonização de nossos olhares, a descolonização de nossas mentes.

Em 2019, o documentário “Hair Love” ganhou o Oscar de melhor curta de animação. O filme
trata de uma forma muita afetuosa a relação de uma menina negra e de seu pai com os
cabelos crespos da filha. A mensagem do filme é: com “afeto”, com “amor”, esse cabelo
crespo explode em beleza. Falo por experiência própria!

No discurso de agradecimento, a produtora do filme, Karen Rupert, disse: “Foi um trabalho


feito com muito amor. Porque acreditamos que a representatividade importa. Principalmente
nas animações, que geralmente são nosso primeiro contato com o mundo dos filmes”.
Assim, quando o cinema escolhe não contar estas histórias, as histórias daqueles que tem sido
subrepresentados, está escolhendo a reprodução da violência, do apagamento e da
invisibilidade.

Mas como diz Chimamanda, “quando rejeitamos uma história única, reconquistamos uma
espécie de paraíso”.

Obrigada.

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