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SUMÁRIO
1. Introdução 2. Actividade administrativa e contratação pública 3. Impugnação
administrativa 4. Impugnação administrativa na contratação pública 4.1. Princípios
subjacentes 4.2. Tramitação 5. Conclusão 6. Referências bibliográficas
Abstract: This work deals with the administrative impugnment in public procurement, with
a concrete framework in the legal regimes of Portugal and São Tomé and Príncipe,
addressing, for purposes of contextualization, public procurement in the administrative
activity of the State and the general regime of administrative impugnment.
1. Introdução
ROUSSEAU1 destaca que “cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder
sob a suprema direção da vontade geral; e recebemos, coletivamente, cada membro como
parte indivisível do todo” e a “pessoa pública, assim formada pela união de todas as demais,
tomava outrora o nome de Cidade, e hoje o de República ou de corpo político, o qual é
chamado por seus membros de Estado”.
No caso de São Tomé e Príncipe (artigo 10.º, CSTP) e de Portugal (artigo 9.º, CRP), a tal
pessoa pública chamou a si determinadas tarefas ou objectivos fundamentais para cuja
concretização ALEXY2 indica o caminho do “direito a uma acção positiva do Estado”,
atingindo “prestações em dinheiro e outros bens”.
Sobre a matéria em causa MIRANDA3 defende que o “fim, tarefa ou incumbência que
correspondente a certa necessidade colectiva ou certa zona da vida social e não tem
apenas a ver com o Estado enquanto poder, tem também que ver com o Estado enquanto
comunidade”, levando a acções dos órgãos públicos ou entidades da sociedade civil.
Limitada, 1997, p. 8 e 9
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AMARAL , neste mesmo sentido, descortina que a existência de colectividades humanas
leva ao surgimento de necessidades colectivas e de serviços públicos para satisfazê-las
em nome e no interesse da colectividade, o que para nós, implica realizar a AA que se
justificar e nos estritos termos da legalidade.
Mesmo tratando de relações contratuais para a satisfação do interesse público, estas não
podem justificar que quem actua em nome do Estado agrida, arbitrariamente, a esfera dos
direitos fundamentais dos cidadãos nem recorra a procedimentos que, em ultima ratio,
lesem a sociedade com o dispêndio de recursos públicos que não chega a provocar o
correspectivo retorno em bens e serviços para todos.
É sob estas premissas que neste trabalho trataremos de discorrer sobre as IAs enquanto
meios de defesa dos direitos e garantias dos particulares em face da AA, particularizando
a sua utilização na CP à luz dos regimes legais de STP e de Portugal.
Nesta senda, estaremos a reflectir sobre (1) a CP na AA do Estado, com destaque para os
traços característicos, as etapas, os princípios reitores e as entidades que dirigem que
participam neste tipo de contratação, (2) os termos gerais, a natureza e as virtudes da IA e
(3) a manifestação deste tipo de impugnação na CP, com destaque para a sua tramitação
e os princípios da CP que a ela subjazem.
4 AMARAL, Diogo Freitas do, CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO, VOLUME I, 2.ª edição, Coimbra:
Livraria Almedina, 1999, p. 31 e 33
5 CORREIA, José Manuel Sérvulo, CONTRATOS PÚBLICOS, p. 4, disponível em
http://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2014/12/Correia-Jose-Servulo-Modulo-de-Contratos-
Publicos.pdf, acesso em 24/06/2020
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ou jurisdicional e, em sentido positivo como actuação orientada para a prossecução do
interesse público e de protecção dos direitos fundamentais.
É, pois, na AA, seja ela realizada por pessoas colectivas públicas ou privadas, que surge a
necessidade da CP nas suas duas vertentes11 que podem ser os fornecimentos e os
serviços.
6 ANDRADE, José Carlos Vieira de, LIÇÕES DE DIREITO ADMINISTRATIVO, 5.ª edição, Coimbra:
Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017, p. 135 e 138
7 OLIVEIRA, Fernanda Paula, ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA, slide 10, disponível em
https://www.fd.uc.pt/~fpaula/pdf/apoio_aulas/da/5_Org_%20Administrativ4.pdf, acesso em 08/08/2020
8 Idem, slides 6 e 7
9 ANDRADE, José Carlos Vieira de, op. cit., p 54; MELLO, Celso Antônio Bandeira de, CURSO DE DIREITO
ADMINISTRATIVO, 32.ª edição, São Paulo: Malheiros, 2015, p. 438 e 439; MEIRELLES, Hely Lopes,
DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO, 42.ª edição, São Paulo: Malheiros, 2016, p. 191 e 193
10 ANDRADE, José Carlos Vieira de, op. cit., p. 54 e 55; MELLO, Celso António Bandeira de, op. cit., p. 439;
Parece ser consensual que as linhas distintivas da CP em sentido lato12 não estão,
unicamente, na intervenção de entes públicos dotados de supremacia nem muito menos na
finalidade de satisfazer necessidades colectivas; são muito mais profundas e residem na
“contratação administrativa (formação do contrato) e [no] regime substantivo da relação
contratual (execução do contrato)”13.
Por essa razão, a AP15 está investida de poderes para fixar as chamadas cláusulas
exorbitantes sobre os procedimentos adjudicatórios e “o conteúdo e o cumprimento”16 dos
contratos (fiscalização, imposição de sanções e rescisão unilateral), desequilibrando a
relação em nome do interesse público.
Do ponto de vista do direito privado este desequilíbrio da posição dos sujeitos não pode
ocorrer por consubstanciar discriminação de uma das partes em favor da outra, o que
mesmo na CP é corrigido com “garantias a favor do contratado, já que de outra forma,
nenhum empresário razoável aceitaria”17.
12 Dizemos sentido lato porque parece-nos haver um sentido restrito ou técnico da CP que abarca a formação e a
celebração do contrato, sem abranger a execução (cfr. MANUAL DE PROCEDIMENTOS DA
CONTRATAÇÃO PÚBLICA DE BENS E SERVIÇOS, Sérvulo & Associados | Sociedade de Advogados, RL,
sem outros dados de edição, p. 8).
13 ANDRADE, José Carlos Vieira de, op. cit., p. 254
14 MEIRELLES, Hely Lopes, op. cit., p. 240
15 Na CP, em Portugal a AP assume a designação de entidade adjudicante e de contraente público, conforme se
GENERAL, tomo XIII, CONTRATOS DEL SECTOR PÚBLICO, 2.ª edição, Madrid: Boletim Oficial do
Estado, 2018, p. 13
17 Idem
Importa salientar, com as palavras de MELLO18, que a contratada goza de “integral proteção
quanto às aspirações econômicas”, sendo esta uma garantia “absolutamente intangível e
[que] poder algum do contratante público, enquanto tal, pode reduzir-lhe a expressão, feri-
la de algum modo, macular sua fisionomia ou enodoá-la com jaça, por pequena que seja”,
pois “a desigualdade dantes encarecida equilibra-se com o resguardo do objetivo de lucro
buscado pelo contratante privado”.
Na formação do contrato, a AP pode, no caso de Portugal (n.º 1, art. 16.º, CCP), adoptar
como procedimento (a) o ajuste directo, (b) a consulta prévia, (c) o concurso público, (d) o
concurso limitado por prévia qualificação, (e) o procedimento de negociação, (f) o diálogo
concorrencial e (g) a parceria para a inovação.
24 Idem, p. 263
25 OLIVEIRA, Rodrigo Esteves de, OS PRINCÍCIOS GERAIS DA CONTRATAÇÃO PÚBLICA in
ESTUDOS DA CONTRATAÇÃO PÚBLICA I, CEDIPRE, Coimbra Editora (sem outros dados de edição), p.
55, disponível em https://www.vda.pt/xms/files/v1/Publicacoes/Rodrigo_Esteves_Oliveira_-
_Os_Principios_Gerais_da_Contratacao_Publica_-_Estudos_de_Contratacao_Publica-I_-_Cedipre-2008.pdf,
acesso em 23/08/2020
26 ANDRADE, José Carlos Vieira de, op. cit., p. 261,
27 União Africana, MANUAL DE CONTRATAÇÃO PÚBLICA, 2016, p. 15, 16, 22, 46, 47
28 OLIVEIRA, Rodrigo Esteves de, op. cit., p. 51
29 Idem, p. 52 a 54
30 Idem, p. 56
Em suma, os princípios da CP estão positivados na respectiva ordem jurídica (n.º 1, art. 1.º,
CCP; art. 4.º, RLCP) e os acima referenciados, não excluem outros como a
proporcionalidade, a legalidade, o interesse público, tutela jurisdicional, imparcialidade,
entre outros consagrados pelo direito administrativo geral e pelo direito constitucional.
3. Impugnação administrativa
Junto dos tribunais, a impugnação é judicial e se for intentada perante a própria AP, esta
será administrativa. Ao contrário da primeira que, por força da separação de funções, não
pode entrar no mérito ou na conveniência do acto ou omissão, “as impugnações
administrativas desempenham um papel potencialmente relevante na fiscalização da
legalidade e também da oportunidade administrativa”32, permitindo aos particulares “fazer
o autor reflectir sobre a decisão tomada ou [chamando], para uma eventual revisão do acto,
um órgão superior, supostamente mais habilitado ou de vistas mais largas”33.
Do lado da AP, não é demais repetir que “as impugnações administrativas […] constituem
um benefício […], na medida em que lhe conferem uma segunda oportunidade para,
querendo, apreciar a situação, […] evitando que tenham de ser os Tribunais […] a repor a
legalidade violada”34, o que nutre os cidadãos de confiança na AP que, igualmente, ganha
em reputação e credibilidade.
31 Idem, p. 57
32 ANDRADE, José Carlos Vieira de, op. cit., p. 243
33 Idem
34 CALDEIRA, Marco, "Impugnações Administrativas e Contencioso Pré-Contratual Urgente - Um Olhar Sobre
É ponto assente que em Portugal a IA tem natureza facultativa, salvo se outra for a
determinação da lei (n.º 2, art. 185.º, CPAPT), já que, neste caso, o contencioso
administrativo tem como pano de fundo a lesividade do acto ou omissão (n.º 4, art. 268.º,
CRP) e não, propriamente, a sua definitividade vertical, daí que o objecto da lide pode ser
discutido nos tribunais administrativos na pendência da IA (n.º 5, art. 59.º, CPTA).
35 Idem, p. 48
36 Idem
37 OLIVEIRA, Fernanda Paula, IMPUGANAÇÕES ADMINISTRATIVAS (DE ACTOS), slides 2 e 3, disponível
Porém, apesar de todos estes prováveis desígnios, não se pode deixar de criticar uma
opção que (1) reitera subtilezas de actos normativos desfasados dos tempos actuais e
inacessíveis para a maioria dos cidadãos e até mesmo operadores do direito, perigando
contra o direito à informação jurídica e, (2) sugere alguma inconstitucionalidade por colocar
obstáculos formais ao exercício do direito fundamental à indemnização por actos lesivos,
incluindo, os do Estado, seus órgãos ou seus funcionários (art. 61.º, CSTP), direito este que
teria de ser arbitrado junto do tribunal administrativo por estar excluído da jurisdição cível
(art. 501, CC).
Vislumbra-se com este regime, salvo melhor opinião, o princípio processual da preclusão
que significa a perda do direito de agir em face do decurso do tempo para este efeito, ou
seja, pensamos que se parte do pressuposto segundo o qual quem tiver participado na
licitação e abstido das faculdades impugnatórias ali concedidas, só poderia estar a litigar
de má-fé impugnando a execução do contrato.
Para um país como STP marcado pelas suas singulares pequenez e promiscuidade, o facto
de não haver IA na fase de execução do contrato é um claro convite ao arbítrio, ao abuso
de poder e ao nepotismo na gestão de dinheiros públicos, porque através de adendas até
25% do valor inicial do contrato ou em valor superior mediante autorização do Ministro das
Finanças (n.º 2 e 3, art. 110.º, RLCP) pode haver uma total alteração contratual fora dos
termos previstos nos documentos de licitação, em prejuízo de outros concorrentes e do
próprio interesse público.
A opção do legislador santomense por um Órgão de Recurso teria, a nosso ver, o intuito de
simplificar o procedimento e harmonizar os termos decisórios da IA na CP que por via dos
recursos especiais (tutelares ou hierárquicos impróprios) poderiam contar uma diversidade
de pronunciamentos de cada órgão que detivesse a tutela ou supervisão sobre a entidade
adjudicante ou órgão contratante, criando contradições e até mesmo insegurança jurídica.
Porém, é notório que o Órgão de Recurso não existe nem funciona nos termos legais e,
mesmo se existisse e funcionasse, abriria um conflito de competências porque no universo
das entidades autónomas da nossa AP os membros do Governo com poderes de tutela ou
de supervisão nunca se declarariam incompetentes para conhecer de qualquer
requerimento que lhes fosse submetido no âmbito da CP, tanto por entenderem que devem
prevenir infracções e evitar a responsabilização financeira, como por entenderem que seria
sua competência natural e geral decidir sobre tudo o que acontece no seu ministério ou
secretaria de estado.
Por fim, importa frisar que sendo facultativas as IAs na CP em Portugal (art. 268.º, CCP),
estas suspendem o prazo para o contencioso administrativo (n.º 4, art. 59.º, CPTA), o que
não se pode dizer de STP onde são necessárias e, na linha de CALDEIRA40, concluímos
que só há início do prazo de 90 dias para o recurso aos meios jurisdicionais (art. 685.º,
RAU) depois da notificação da decisão do Órgão de Recurso41 ou do decurso dos 10 dias
úteis para a decisão deste (n.º 2, art. 172.º, RLCP).
Por isso, pretende-se que quando a concorrência seja falseada na formação do contrato ou
na execução com modificações inusitadas, haja espaço para que concorrentes que foram
preteridos ou que tenham os seus interesses vulnerados, possam reagir no sentido de se
repor a concorrência em busca da melhor solução para a colectividade.
4.2. Tramitação
É de todo normal conceber que na estrutura dos operadores económicos que participam na
CP existam profissionais para velar por estes dois requisitos da IA, sendo de rejeitar,
liminarmente, as IAs que não os cumprirem, o que já não se pode dizer dos cidadãos em
geral que, muitas vezes, por desconhecimento e ligeireza desculpável não cumprem o
requisito da forma, pelo que, na nossa opinião, para estes casos, deve prevalecer o
conteúdo do requerimento.
Depois destas considerações, resta pontualizar que a tramitação das IAs na CP é urgente
e constitui um regime especial porque os prazos estão muito abaixo dos 15 dias para a
reclamação (n.º 4, art. 191.º, CPAPT; art. 156, CPASTP), 30 para recurso hierárquico
necessário e o prazo da impugnação contenciosa no caso do recurso hierárquico facultativo
(n.º 2, art. 193.º, CPAPT; art. 162.º, CPASTP) no procedimento impugnatório do regime
geral.
Em STP, o concorrente desconforme conta com o prazo de 3 dias úteis para submeter o
requerimento impugnatório (art. 166.º, 172.º e 179.º, RLCP), podendo ademais, fazê-lo,
verbalmente nos actos públicos em que participar, mediante registo na respectiva acta (n.º
2, art. 160.º, RLCP), sendo que a reclamação e o recurso hierárquico são decididos em 5
dias úteis e o recurso decidido em 10 dias úteis.
5. Conclusão
Como todos os particulares, os contratantes privados têm o direito à IA para fazer valer os
seus interesses em nome do princípio da concorrência, um direito que, em nome do
princípio do interesse público, é extensível a terceiros “alheios” à contratação.
As IAs têm vantagens para a AP que pode reapreciar a oportunidade da decisão e para o
particular que intervém num processo simples e sem custos nem tecnicismos dos
processos judiciais.
6. Referências bibliográficas
LEGISLAÇÃO
Portugal
Constituição da República Portuguesa
Código dos Contratos Públicos
Código do Procedimento Administrativo
Código de Processo nos Tribunais Administrativos
STP
Constituição Política
Código Civil
Código do Procedimento Administrativo
Lei de Bases do Sistema Judiciário
Reforma Administrativa Ultramarina
Regulamento de Licitações e Contratações Públicas
Espanha
Lei dos Contratos do Sector Público