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Laços

Cecília ajeitava os óculos para que pudesse enxergar melhor e procurar, no


meio daquela bagunça em cima da mesa, a fita verde-esmeralda que ela tinha
visto poucos minutos antes e que não poderia de forma alguma começar sem
ela.
― Ah... aí está você! ― disse puxando o rolo todo embaraçado de sob uma
enxurrada de papéis coloridos, de vários formatos e tamanhos.
Foi nesse momento que uma daquelas sensações estranhas de dejá-vu,
tomou conta de seus pensamentos, não lhe trazendo uma percepção
reveladora do futuro, mais sim remetendo a sua memória para tempos que
tinham se ido a praticamente oitenta e sete anos atrás. Como se pudesse
recordar claramente do instante de seu nascimento, contemplava os olhos
alegres da mãe e ouvia novamente o sorriso envergonhado do pai, logo depois
enxergava as cortinas cor de cereja que esvoaçavam nas três janelas da sala
da casa que morou até os sete anos de idade. Era tudo tão palpável que foi
quase impossível evitar que algumas lágrimas lhe chegassem aos olhos.
Sentou-se na cadeira para dar continuidade ao trabalho, ajeitando no alto da
cabeça um dos cachos encaracolados totalmente cobertos de branco, mais
teve que se levantar novamente para ascender o grande abajur salpicado de
bolas laranja, que prima Cintia tinha lhe dado, há uns vinte anos antes numa
comemoração qualquer. Precisava de mais luz e ele se mostrara como solução
perfeita.
A sala tomada de móveis antigos, e as vidraças forradas de cortinas que
desciam até o chão, estava mergulhada na escuridão daquele final de tarde
que ameaçava se completar com a tormenta que se anunciava lá fora já há
algum tempo.
Tudo ficou bem melhor com a luz acesa sobre a mesa e se refletindo
levemente nos porta-retratos que cobriam o aparador de mogno comprado em
uma tarde qualquer na década retrasada.
― Creio que ficara melhor com o laminado branco... ― falava consigo mesma
colocando a caixa no centro do quadrado de papel, com certa dificuldade, pois
perdera os movimentos de três dedos da mão esquerda, num corte profundo
feito dois anos atrás enquanto cortava o peru do natal, tinha sido uma correria,

1
mais no final Lara soubera o que fazer já que era enfermeira formada e neta
amorosa já há vinte e cinco anos. O que lhe doía no coração mais do que nas
juntas dos dedos era que não podia mais manejar as agulhas que tanto
trabalho dera aprender com tia Hortência quando tinha apenas dez anos e
tempo pra desperdiçar sem nenhum tipo de remorso.
Olhava para as mãos enrugadas e quase que podia ver nelas outra vez os
novelos coloridos caindo e se desenrolando todos no chão fazendo com que
Miguelzinho, seu irmão mais novo tropeçasse e desabasse no chão armando
um berreiro só. Miguel... doce Miguel, já tinha partido há mais de quinze anos,
e deixado pra trás os filhos Anita, João e outro Miguel, que estavam sempre
por ali não mais como crianças, mais agora com as suas próprias crianças.
Isso levou Cecília a voltar mais uns cinqüenta anos antes quando Antônio
entrou por aquela porta correndo pra lhe amparar no minuto em que a sua
bolsa tinha rompido e Alexandre já insistia em nascer, correram pro hospital
encontrando pelo caminho Adélia, sua cunhada que também disparava junto de
Aloísio, seu irmão do meio, pra poder dar a luz a Fernando, que ainda nem
tinha completado oito meses de gestação e já queria vir ao mundo, algo que
lhe complicou a vida trinta e dois anos depois num acesso de falta de ar o
levando pra sempre numa calma noite de verão.
Cecília tinha gostado da coisa, porque depois de Alexandre vieram, Marcelo,
Tomás, Augusto, Rita, Margarida, Ana e Lúcia. Antônio se desdobrava pra dar
conta de todo mundo e Cecília se lembrou das tantas vezes que lhe remendou
as meias com aquelas mãos engelhadas e machucadas. A aliança estava ali
intacta mesmo que o dono da sua promessa já a tivesse deixado sete anos
antes num ataque do coração que não lhe permitiu nem mesmo uma última
olhada nos olhos de sua companheira.
Cecília limpou os olhos com o dedo, por debaixo dos óculos e apanhou a fita
adesiva para que pudesse selar todo o pacote.
― E agora... onde será que está a tesoura? ― Olhou debaixo da mesa com
certa dificuldade e percebeu uma fina camada de poeira espalhada por ali. ―
Preciso lembrar Regina amanhã de manhã de passar um pano molhado
debaixo dessa mesa, não sei como ainda se esquece dessas coisas... Voltou a
cabeça pra cima e viu a ponta da tesoura embaixo de uma pia de livros que
estavam por ali por preguiça de guardá-los na estante outra vez.

2
Viu-se no colégio, nos tempos de professora carregando pra sala de aula a
caixa com os trinta exemplares de alguma coletânea de Fernando Pessoa, que
não poderia deixar de fazer com que seus alunos lessem, principalmente
André, de gênio e leitura difíceis, características que o converteram num
excelente advogado criminal. Nunca o tinha esquecido por causa de sua mãe
Lurdes, e que também era a sua melhor amiga, e o pai Abílio, que sempre
traziam algo para as festas de fim de ano, e hoje por incrível que pareça
nenhum dos dois já se lembrava mais nem em que dia mês estavam.
Viu suas mãos metidas nas massas de bolo e pão e colocando fitas nos
cabelos das filhas e limpando as manchas de batom da bochecha dos filhos,
viu-se amarrando os cadarços de Tomás e muito tempo depois depositando
uma flor na sua despedida, causada por um acidente terrível de moto. O mais
trágico foi receber a notícia por telefone direto da delegacia, fornecida por
algum oficial sem nenhum tipo de tato. Viu-se agora penteando os cabelos de
Rebeca, sua irmã rebelde, e sorrindo para as outras duas gêmeas, Joana e
Amélia enquanto se molhavam no quintal com baldes de água pra espantar um
pouco do calor do final da primavera. Sentiu entre os dedos adormecidos a fina
seda do seu vestido de casamento e aspereza da barba por fazer, de Antônio,
quando lhe juntava o rosto nãos mãos todas as manhãs antes que ele saísse
pro trabalho. Viu os dedos se soltando do banco da bicicleta para que
Margarida pudesse andar sozinha e sentiu o peso nos braços de quando
segurou o neto, Rodrigo, num salto de alegria pelo presente generoso de
aniversário. Notou que ainda tinha no braço esquerdo uma cicatriz de quando
se queimou no fogão a lenha, ajudando Bernardo, o único irmão que sobrara
vivo, mesmo que adormecido numa cama, a amarrar as pamonhas que já se
abriam revelando os enormes nacos de queijo.
― Preciso de um suporte para que eu possa amarrar bem firme aqui em
cima... ― sussurrava vasculhando com os olhos os móveis tomados de vasos
de flores e enfeites trazidos de todas as partes e por todas as pessoas que se
poderia imaginar. Pegou um pequeno elefante feito de mármore, comprado por
Roberto em seus lapsos de consumo e o colocou sobre o embrulho prendendo
a fita, para que pudesse amarrá-la mais facilmente, só que num milésimo de
segundo o adereço espatifara-se no chão.

3
Cecília não se importou muito, aprendera a deixar coisas tolas de lado,
quando viu Júlio, seu cunhado e Antônio, se abraçarem aos prantos depois de
quatorze anos sem se falarem por causa de um jogo de futebol idiota que tinha
terminado mal e que no fim das contas ninguém já se lembrava mais por que
eles tinham brigado.
Continuou de maneira cuidadosa a fechar o pacote e a pensar que por mais
impossível que parecesse tudo tinha cabido ali dentro. Não podia ser diferente,
tinha feito isso todas as quatro vezes que mudaram de cidade, colocando todas
as coisas dentro de caixas e derramando pra fora todas as lágrimas que podia
por ter que deixar pra trás conquistas que não se podia levar em simples caixas
de papelão.
Cecília sorriu ao contemplar o presente tão hermeticamente fechado, mais
que de alguma forma poderia ser aberto no momento desejado. Ajeitou os
óculos, sentiu o cheiro da chuva que sempre trazia alguma lembrança do
passado que na verdade não tinha passado há tanto assim, pelo menos não
dentro dela. Pedaços de papel se espalhavam pela mesa e outras coisas se
perdiam pelo tempo, pois já não podia mais se recordar delas, desvaneceram-
se como sonhos.
Era natural.
Sentiu orgulho pelo que fez e vergonha por arrependimentos que não se
descartavam no lixo como os restos de plástico que ainda estavam sobre a
mesa.
Vendo na sua frente tudo misturado daquela forma, notou que separados não
significavam muita coisa mais que juntos se tornavam diferentes e iguais ao
mesmo tempo, transformando-se num lindo pacote que era simplesmente
preso por imensos, e queria acreditar, indissolúveis laços.

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