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A (in)compatibilidade entre liberdade e determinismo

André Barata

1. A dúvida sobre a liberdade humana

Entre os problemas que exemplificam melhor o tipo de reflexão a que a filosofia se dedica,
há um que sobressai entre os demais: possui realmente o ser humano liberdade? Esta questão
atravessa a história do pensamento filosófico ocidental, sendo insistentemente retomada, desde o
pensamento grego até aos nossos dias, como uma questão crucial para a compreensão do que é o
humano e de quais são as suas possibilidades de existência.
No entanto, quase nunca se enfrentou este problema de uma forma directa, em que se
começasse por perguntar pelo que seja a liberdade humana. Em vez desta, a pergunta que mais
acompanhou a história do problema foi a que expressava uma dúvida sobre se existe tal liberdade,
dúvida que pressupõe a crença pré-filosófica, e até certo ponto espontânea, na sua existência.
É, pois, sob a forma de um cepticismo sobre a existência de liberdade dos humanos que
chega a ser problematizada e interrogada uma pré-compreensão do que possa, ou não, ser esse
particular traço do ser humano.
As razões para o cepticismo sobre a liberdade dos humanos têm partido de uma suspeita, tão
antiga quanto a crença no livre-arbítrio, de que a vida humana é comandada por algum tipo de
determinismo. Já entre os gregos, a vontade dos humanos, até mesmo a dos deuses, nada podia
contra os fios de destino que as Μοῖραι teciam, assim determinando a vida e a morte de cada

1
pessoa. Fatalista ou não, esta representação ilustra, desde muito cedo, uma forma de cepticismo
sobre a ideia de uma genuína liberdade da vontade dos humanos.
Actualmente, já não é a ideia de umas tecedeiras do destino que pauta a discussão sobre a
existência de livre-arbítrio. Especialmente a partir da modernidade, com o progresso das ciências
naturais, a interpelação céptica ao livre-arbítrio renova-se com o determinismo causal, ou seja, a
concepção dos fenómenos segundo a qual às mesmas causas não poderão corresponder efeitos
diferentes, ou ainda, que um sistema de leis determinista, a partir das mesmas condições iniciais, só
dispõe de uma evolução possível. Esta é a restrição determinista que relança o debate sobre o livre-
arbítrio na contemporaneidade.
Não quer isto dizer que a discussão em torno do chamado determinismo teológico seja
resolvida pela discussão sobre o determinismo causal. Os problemas que um e outro tratam são
diferentes, com respostas possíveis igualmente diferentes. Significa, simplesmente, que, hoje, a
ciência e o seu modo de compreensão do mundo têm uma importância muito maior do que no
passado, já não nos dispensando de nela confrontarmos a compreensão que fazemos do humano.
Neste capítulo, abordaremos apenas o determinismo causal, pelo que doravante todas as
referências ao determinismo visarão apenas o determinismo causal.

2. Os posicionamentos possíveis

Quando se debate a compatibilidade do livre-arbítrio com o determinismo (causal), há duas


tomadas de posição gerais sobre o problema. Uma delas diz que não há realmente problema nenhum
entre determinismo e existência de livre-arbítrio, ao passo que a outra defende que não é possível
ambos, o determinismo causal e o livre-arbítrio, serem verdadeiros. É habitual designarem-se estas
duas tomadas de posição gerais de compatibilismo e de incompatibilismo respectivamente. Além
disso, dentro de cada uma destas posições gerais, há especificações importantes a fazer. É que,
contrariamente a uma exposição abreviada das posições mais conhecidas, é de todo o interesse
começar por apresentar o quadro de todas as possibilidades em causa, de modo a proporcionar uma
melhor compreensão do problema.
Assim, dentro do incompatibilismo, há dois posicionamentos mais evidentes:
− Determinismo radical – posição incompatibilista que sustenta ainda que o determinismo
é verdadeiro e que, por isso, o livre-arbítrio só pode ser falso.
− Libertarismo – posição incompatibilista que sustenta ainda que o livre-arbítrio é
verdadeiro e que, por isso, o determinismo só pode ser falso.

2
Há, todavia, além destes, um terceiro posicionamento possível que deve, por respeito à
clareza da exposição, ser identificado. Trata-se daquela posição que, permanecendo
incompatibilista, não toma partido sobre qual dos dois, ou o determinismo ou o livre-arbítrio, é
verdadeiro. A esta posição propomos chamar Incompatibilismo simples ou ainda Agnosticismo
quanto ao determinismo.
Já no caso do compatibilismo, há uma posição frequentemente subscrita que é a do
Determinismo moderado e que pode ser definida como a posição compatibilista que sustenta que
livre-arbítrio e determinismo são ambos verdadeiros. Mas o determinismo moderado não esgota
todas as possibilidades de compatibilismo do livre-arbítrio com o determinismo. Há uma segunda
forma de compatibilismo muitas vezes ignorada, mas conceptualmente evidente. Trata-se da
posição compatibilista que não toma posição sobre os valores de verdade do determinismo e do
livre-arbítrio, nem sequer estabelece nenhuma relação entre os valores de verdade de ambos.
Propomos designar esta compatibilismo de Agnosticismo radical pois com ele é na verdade
afirmada a irrelevância da discussão do compatibilismo.

O PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DO LIVRE-ARBÍTRIO COM O DETERMINISMO

POSICIONAMENTOS POSICIONAMENTOS DESCRIÇÃO DA POSIÇÃO


GERAIS POSSÍVEIS

Determinismo radical O livre-arbítrio é falso e o determinismo é


verdadeiro

Libertarismo O determinismo é falso e o livre-arbítrio é


Incompatibilismo
verdadeiro

Agnosticismo quanto ao Determinismo e livre-arbítrio não podem ter


determinismo o mesmo valor de verdade

Determinismo moderado Determinismo e livre-arbítrio são ambos


Compatibilismo verdadeiros

Agnosticismo radical Discussão irrelevante

Apesar da preeminência do problema da compatibilidade, ou não, entre livre-arbítrio e


determinismo, importa notar que é possível desenvolver um quadro de opções em tudo idêntico ao
que acabamos de traçar, mas agora em vista das possibilidades de compatibilidade, ou não, entre o
livre-arbítrio e o indeterminismo.

3
O PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DO LIVRE-ARBÍTRIO COM O INDETERMINISMO

POSICIONAMENTOS POSICIONAMENTOS DESCRIÇÃO DA POSIÇÃO


GERAIS POSSÍVEIS

Indeterminismo radical O livre-arbítrio é falso e o indeterminismo é


verdadeiro

Libertarismo de segundo tipo O indeterminismo é falso e o livre-arbítrio é


Incompatibilismo
verdadeiro

Agnosticismo quanto ao Indeterminismo e livre-arbítrio não podem


indeterminismo ter o mesmo valor de verdade

Indeterminismo moderado Indeterminismo e livre-arbítrio são ambos


Compatibilismo verdadeiros

Agnosticismo radical Discussão irrelevante

Esta pluralidade de posicionamento permite perceber que toda a problemática sobre a


existência ou inexistência de livre-arbítrio depende, fundamentalmente, de uma indagação sobre o
que se entende por livre-arbítrio. Por outras palavras, no essencial, está em jogo uma interrogação
não tanto, ou não apenas, sobre se o livre-arbítrio existe, mas sobre a concepção de livre-arbítrio
que temos em mente, a ideia portanto do que ele seja ou possa ser. Na verdade, fazendo uma análise
sumária aos nove posicionamentos que propusemos, se abstrairmos aqueles que ou tomam partido
pela inexistência de livre-arbítrio (Determinismo e indeterminismo radicais) ou não tomam partido
de todo (os três agnosticismos apontados), restam precisamente dois entendimentos gerais sobre o
que seja o livre-arbítrio nas suas relações com o determinismo e o indeterminismo.

− Concepção indeterminista do livre-arbítrio, que alia o indeterminismo moderado ao


libertarismo.
− Concepção determinista do livre-arbítrio, que alia o determinismo moderado ao libertarismo
de segundo tipo.

Ao salientarmos estas duas concepções de livre-arbítrio não está em causa defender que
sejam as únicas, ou que a discussão entre elas seja a única questão em aberto no duplo debate do
compatibilismo. Queremos antes dizer que este debate está contaminado por um outro que tem que
ver com maneiras diferentes de conceber o livre-arbítrio. Reconhecendo esta duas concepções,
4
torna-se imperioso distingui-las de maneira tão clara quanto possível para que, finalmente, possam
ser debatidas. Com efeito, prévio ao problema da compatibilidade, ou não, do livre-arbítrio com o
determinismo e com o indeterminismo, há um problema sério de incompatibilidade entre duas
concepções de livre-arbítrio entre si contraditórias.

3. O compatibilismo clássico

De acordo com uma expressão linguística corrente, é habitual entender-se que uma pessoa
age de livre vontade quando decide fazer alguma coisa, não sucedendo que seja impedida de o
fazer, agindo assim de acordo com as suas preferências. No entanto, logo nesta simples ideia um
“agir de livre vontade” sobrepõem-se dois planos de liberdade que é forçoso destrinçar: por um
lado, uma liberdade de acção, que pode, de muitas formas, ser negada a um agente, por exemplo se
for aprisionado numa cela; por outro lado, uma liberdade de vontade (ou livre-arbítrio) e que não é
suprimível simplesmente por se pôr uma pessoa a ferros. Mas se são facilmente concebíveis
circunstâncias em que à liberdade da vontade não é feita corresponder uma liberdade de acção (é
essa precisamente a circunstância infeliz do prisioneiro), também o inverso é verdadeiro, ou seja,
circunstâncias em que à liberdade de acção não corresponde um genuíno livre-arbítrio. Por
exemplo, situações de hipnotismo ou sonambulismo, em que uma pessoa age sem conhecimento da
sua vontade, mas também situações em que uma dada vontade domina o sujeito, sem que este a
consiga controlar, como sucede com distúrbios psicopatológicos como o da cleptomania.
Apesar de muito simples e geral, esta distinção entre liberdade de acção e liberdade de
vontade não tem sido pacífica para todos os filósofos. Por exemplo, para John Locke a ideia de uma
vontade livre resume um contra-senso ou absurdo «tal como perguntar se o sono é rápido ou a
virtude é quadrada»1 . Para este filósofo, não está tanto em causa uma concepção determinista do
livre-arbítrio, instância que recusa como absurda, quanto uma concepção determinista do arbítrio,
de acordo com a qual «(...) um homem não tem liberdade para querer, ou para não querer, o que
dentro do seu poder seja posto à sua consideração»2 . Assim, a formação da vontade é pensada
como um processo inteiramente determinista, ficando a ideia de uma liberdade do sujeito confinada
ao sentido de uma liberdade de acção, ou seja, a uma liberdade de movimentos para se poder fazer o
que a vontade quer.
Thomas Hobbes resumira muito bem esta concepção determinista da liberdade ao afirmar,

1 Locke, 1690, Ensaio sobre o Entendimento Humano. Lisboa: FCG, 1999: XXI, 14.
2 Locke, Op. Cit.,:XXI, 24.
5
no seu Leviatã, que a “liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição (entendendo
por oposição os impedimentos externos do movimento)”. 3
David Hume reitera a mesma ênfase na liberdade de acção e não numa free will, na sua
Investigação sobre o entendimento humano, onde por liberdade afirma querer significar «um poder
de agir ou não agir, segundo as determinações da vontade».4 E adiante explica a definição
exemplificando: «Se optamos por ficar quietos, podemos fazê-lo, se decidimos mover-nos,
igualmente o podemos. Ora, esta liberdade hipotética pertence, todos o admitem, a quem quer que
não esteja prisioneiro ou na cadeia.»5
Portanto, tanto em John Locke, como em Thomas Hobbes e David Hume, e mau grado
diferenças a que não atenderemos aqui, encontramos o mesmo esquema geral de uma concepção
determinista da liberdade, que “empurra” a liberdade para o plano da acção, num sentido próximo
de uma liberdade de movimentos, proclamando, em contrapartida, para a formação da vontade que
precede a acção, um entendimento determinista que exclui qualquer ideia de liberdade. Em síntese,
o compatibilismo clássico resolve, no essencial, o problema do livre-arbítrio retirando todo o
significado à ideia de uma liberdade da vontade.

4. O voluntário e o livremente voluntário

A linha argumentativa dos compatibilistas clássicos confronta-se, porém, com um extravio


demasiado súbito da noção de liberdade da vontade. Recorrendo uma vez mais à experiência
quotidiana, não fará sentido distinguir entre os actos voluntários uma subespécie de actos
voluntários livres e, assim, preservar a distinção entre dois usos significativos da palavra
“liberdade”, um relativo à acção e outro relativo à vontade? Curiosamente, é um argumento de John
Locke, no seu Ensaio sobre o Entendimento Humano, que ajuda a fazer a distinção.

«Suponhamos que um homem é levado para uma sala – enquanto dorme profundamente –
onde está uma pessoa que ele deseja ver e com quem deseja falar, ficando aí fechado.
Acorda e fica feliz por se encontrar com tão desejada companhia, e prefere aí permanecer a
ir embora. Eu pergunto: esta permanência não será voluntária? Acho que ninguém duvidará
disso: e, contudo, estando fechado, é evidente que não é livre para não ficar, pois não pode
sair.»6

3 Hobbes, 1651, Leviatã. Lisboa: IN-CM, 2002, XXI, §1.


4 Hume, 1748, Investigação sobre o Entendimento Humano. Lisboa: Edições 70, 1989, secção VIII.
5 Ibidem.
6 Locke, Op. Cit., XXI, 10.
6
Este argumento, por vezes mencionado como o “argumento do quarto trancado”, permite
fazer duas notas importantes. Por um lado, a supressão da liberdade de agir (no caso, a liberdade de
sair do quarto) não implica uma supressão da vontade se formar desta ou daquela maneira (ou seja,
a vontade de ficar ou de sair do quarto). Note-se, aqui, que Locke opõe livre a voluntário como nós
oporíamos agir livremente a querer livremente. Mas, por outro lado, Locke não reconhece que
aquilo que persiste depois de suprimida a liberdade de agir é ainda uma liberdade da vontade, de
querer uma coisa ou outra. A isto chama apenas voluntário em contraste com o involuntário.
Poderíamos nesta fase perguntar se não nos estaremos a deter numa discussão de palavras. Para
Hobbes, por exemplo, as expressões “agente livre” e ”agente voluntário” queriam dizer o mesmo7.
Não cobrirá a diferença entre o voluntário e o involuntário o que queremos realmente dizer quando
distinguimos entre uma vontade livre e uma não livre?
A resposta tem de ser negativa e é relativamente fácil mostrar por que razão assim tem de
ser, recorrendo a exemplos. De uma forma ou de outra, todas as nossas vontades, mesmo as livres,
são induzidas, seja por outra pessoas que connosco interagem, e nos persuadem a querer certas
coisas em vez de outras, seja por condições do meio ambiente em que nos inserimos e que
naturalmente estimulam ou inibem vontades. Mas algumas formas desta indução volitiva “impõem”
vontades para lá da capacidade de controlo dos sujeitos. Por exemplo, se um dispositivo de alta
tecnologia acoplado às partes relevantes do cérebro de um sujeito manipulasse a sua capacidade
volitiva, de tal modo que nessa pessoa surgissem vontades sobre as quais não disporia de controlo
nenhum. Ou, então, se a capacidade volitiva do sujeito se encontrasse de alguma maneira limitada
por distúrbios psicopatológicos como a cleptomania ou outras manifestações de distúrbios
compulsivos. Em ambos os exemplos, há “voluntário”, ainda que esse “voluntário” não possa ser
tomado como livre pelo facto de o sujeito da vontade não dispor da capacidade de lhe dizer não.
Nesse sentido, pode considerar-se uma tal vontade imposta.
Estes exemplos de acções voluntárias, ainda que não livres, partilham o mesmo carácter de
necessidade e constrangimento que John Locke atribuía a certas acções involuntárias que
contrariam a vontade do agente:

«Se um homem bate em si próprio ou num amigo, com um movimento convulsivo do


braço, que não está no seu poder parar ou suspender através da volição ou ordem da mente,
ninguém pensará que tem liberdade, e todos terão piedade dele, uma vez que actua por
necessidade e constrangimento.»8

7 Hobbes, 1654. Of liberty and necessity. London: Hobbes Society, 1938: §28.
8 Locke, Op. Cit., XXI, 9.
7
Tem-se, portanto, alcançada uma caracterização mínima da vontade livre (depois de
distinguida da acção livre) nos termos de uma vontade cuja formação permaneceu sob o controlo do
seu sujeito. Em termos idênticos aos que Locke empregou a propósito do comportamento
involuntário, a liberdade de vontade que um sujeito pode perder equivale ao seu poder “de parar ou
suspender” uma vontade por efeito de outras vontades suas, que lhe fizessem oposição. Neste
sentido, a compulsão ou o constrangimento volitivo é uma violência sobre a convivialidade das
vontades num sujeito, normalmente capaz de as pesar e contrapesar no processo de formação da
vontade. Uma vontade não livre é uma vontade que se impôs sem se envolver nesse processo de
formação de vontade e, por isso mesmo, exclui todas as outras vontades do sujeito. O resultado é
uma vontade que se impõe ao sujeito contra as vontades do próprio sujeito.
Admitindo-se esta caracterização do livre-arbítrio como o poder de parar ou suspender uma
vontade no jogo com outras vontades, mantendo-se todas as vontades sob um controlo recíproco
tutelado pelo próprio sujeito, então fica também evidenciada uma razão por que a liberdade da
vontade é condição necessária para a responsabilidade: não faz sentido responsabilizar uma pessoa
por aquilo que ela não poderia ter evitado.

5. Argumentos pelo incompatibilismo

Se este refinamento de distinções, entre o livremente voluntário e o compulsivamente


voluntário, devolve pertinência à ideia de uma liberdade da vontade, para lá da incontroversa
liberdade de acção, a verdade é que também leva a discussão para o núcleo duro da concepção
indeterminista do livre-arbítrio. De acordo com esta concepção, a liberdade da vontade implica uma
descontinuidade com o princípio do determinismo causal, pois, se subordinada a este, não se vê
como uma vontade pudesse ter seguido outro curso além do que seguiu, e pudesse, assim, ter sido
evitada. Ora, o ponto de vista desta concepção indeterminista é que o compatibilismo não
proporciona os meios necessários para o que promete. A possibilidade de uma vontade ser livre,
mesmo no sentido, desejado pelo compatibilismo, de um controlo da vontade por parte do sujeito,
depende, segundo esta objecção, da possibilidade do sujeito, nas mesmas condições, tendo feito de
uma maneira, ter podido fazer de outra maneira. Por outras palavras, um genuíno livre-arbítrio
exigiria que, caso nos fosse possível viajar no tempo e repetir exactamente uma mesma
circunstância passada, a vontade formada pudesse ter sido outra. Ora, isso é o que o determinismo
não permite.
Além desta primeira objecção, usualmente conhecida como argumento clássico, uma
segunda razão que move a concepção indeterminista do livre-arbítrio prende-se com a presunção de
8
que uma pessoa só possa ser tida por responsável pelos seus actos se for a sua fonte última. O
problema com esta presunção reside no facto de o determinismo causal não ser compatível com
qualquer coisa como uma “causa não causada”. Este argumento atinge de forma muito concreta
aquelas perspectivas que tendem a desculpar todas as condutas humanas porque, afinal, nenhuma
delas tem realmente origem nas próprias pessoas, devendo essa origem ser procurada no contexto
social, nas forças do inconsciente, na educação adquirida, no património genético, etc. Quer isto
dizer que a possibilidade de uma responsabilização concreta das pessoas pelos seus próprios actos
depende forçosamente da nossa capacidade em deter esta regressão causal e fixar uma fonte da
acção. Este é o argumento da fonte.
Um terceiro argumento incompatibilista, designado argumento da consequência, sustenta
que, admitindo-se o determinismo, então devemos estar preparados para raciocinar da seguinte
maneira: o passado e as leis causais que regem os acontecimentos do mundo não foram nossa
escolha, o futuro que vier a acontecer é, em razão do determinismo, uma consequência necessária
desse passado e leis causais que não escolhemos; portanto, não temos qualquer poder sobre os
factos do futuro.
Todos estes três argumentos visam concluir a incompatibilidade entre determinismo e livre-
arbítrio, podendo, por isso, ser empregues a favor não só do libertarismo, mas igualmente do
determinismo radical, dependendo a escolha de uma destas posições de alguma evidência
suplementar sobre se o livre-arbítrio ou o determinismo são verdadeiros. Em todo o caso, ambas as
posições partilham um mesmo entendimento indeterminista do livre-arbítrio.

6. Possibilidades alternativas

Esta concepção indeterminista do livre-arbítrio defronta-se, porém, com uma séria objecção,
pela primeira vez formulada por David Hume, de acordo com a qual há uma incompatibilidade
insuperável entre a representação que habitualmente fazemos do livre-arbítrio e a assunção do
indeterminismo. Fosse este verdadeiro, e nos permitíssemos assim considerar que às mesmas
circunstâncias, repetindo-se exactamente, poderiam corresponder vontades diferentes, e estaríamos
na verdade a assumir que as nossas vontades poderiam ser uma ou outra arbitrariamente, sem que
nenhum motivo assim o determinasse. Um tal resultado tornaria absolutamente arbitrária e
irracional a formação das nossas vontades, contradizendo, na opinião de David Hume, um aspecto
universalmente aceite sobre o que seja o livre-arbítrio:

«Parece, portanto, não só que a conjunção de motivos e acções voluntárias é tão regular e
9
uniforme como a que existe entre a causa e o efeito em qualquer parte da natureza, mas
também que esta conjunção regular foi universalmente conhecida na humanidade e nunca
constituiu objecto de disputa, quer na filosofia ou na vida comum.»9

A alternativa a um impasse pode passar por uma sofisticação do compatibilismo de maneira


a responder aos três argumentos incompatibilistas acima expostos. Em primeiro lugar, e face ao
argumento clássico, a introdução de uma ligeira modificação na expectativa sobre o que seja uma
vontade livre assegura a compatibilização com o determinismo. Em vez de se afirmar que a
liberdade da vontade implica que o sujeito, tendo agido de dada maneira, poderia, exactamente nas
mesmas circunstâncias, ter agido de maneira diferente, afirmação que conduz à objecção de David
Hume, afirmar-se-á que a mesma pessoa poderia ter agido de maneira diferente sim, mas apenas
caso o tivesse querido. Esta pequena modificação no enunciado, exigindo uma alteração nas
condições iniciais que resultam em vontades diferentes, assegura tanto uma plena compatibilidade
com o determinismo, como ainda uma resposta ao problema da incompatibilidade com o
indeterminismo.
G.E. Moore nos seus Principia Ethica enuncia de forma muito clara como desta precisão se
segue a neutralização do argumento incompatibilista clássico.

«Existem muitas razões para pensarmos que, quando se diz que poderíamos ter feito algo
que não fizemos, queremos muitas vezes dizer apenas que deveríamos tê-lo feito, se
tivéssemos querido. Se assim é, será então verdade que, nesse sentido, realmente podíamos
ter feito o que não fizemos, facto que não contradiz o princípio de que tudo tem uma
causa.»10

7. Compatibilismo hierárquico

Entre os compatibilistas contemporâneos tornou-se particularmente influente Harry


Frankfurt, autor que desenvolveu uma concepção determinista de livre-arbítrio assente na ideia de
uma hierarquização de volições, de primeira ordem e de ordem superiores. É num artigo de 1971,
intitulado “Freedom of the will and the concept of a person”11, que Frankfurt apresenta o seu
compatibilismo hierárquico. A ideia central defendida aqui é a de que existe um desdobramento da
formação da vontade em pelo menos dois níveis. Há, por um lado, desejos de primeira ordem,
simples desejos de fazer coisas, e que formam naturalmente vontades. Mas, por outro lado, há
também desejos de segunda ordem, desejos de se desejar fazer certas coisas, como quando dizemos

9 Hume, Op. Cit., secção VIII.


10 Moore, 1912. Principia Ethica. Lisboa: FCG, 1999: p. 379.
11 Journal of Philosophy, 68 (January 1971), 5-20. Republicado em Pereboom, Derk, 2009. Free Will. Indianapolis:
Hackett, pp. 196-212.
10
“desejava ser menos guloso ou preguiçoso”, etc. Neste plano de segunda ordem, Frankfurt
particulariza uma subclasse de desejos a que chama volições de segunda ordem, desejos de
vontades, como quando dizermos “quem me dera que a minha vontade fosse outra”. Para Frankfurt,
só um sujeito com estas volições de segunda ordem é uma pessoa.12 E sustenta, além disso, que um
sujeito com essa capacidade dispõe de uma vontade livre. Para o mostrar, Frankfurt argumenta por
analogia: Tal como se entende a liberdade de acção como a liberdade de se fazer o que se quer
fazer, pode-se propor um entendimento análogo da liberdade da vontade como a liberdade de
querer o que se quer querer, ou seja, como a liberdade de um sujeito escolher a sua própria
vontade.13
A elegância da analogia proposta por Frankfurt não dispensa uma consideração atenta do seu
verdadeiro alcance sob um pressuposto determinista. Com efeito, num mundo inteiramente
determinista, em que sentido um pessoa dispõe do poder de ter querido uma vontade diferente da
que quis? Assiste-se aqui a uma repetição do problema das possibilidades alternativas e da solução
que David Hume e G.E. Moore formularam. Se para a liberdade de acção se afirmava que um
sujeito, tendo agido de acordo com a sua vontade, poderia ter agido de maneira diferente caso
tivesse tido outra vontade, agora, para a liberdade de vontade, afirmar-se-á que um sujeito, tendo
tido uma dada vontade, poderia ter tido outra vontade caso tivesse querido ter outra vontade.
Significa isto que, no caso de uma hipotética repetição exacta das circunstâncias, a acção
não poderia ter sido outra, como não poderiam ter sido outra vontade e outro desejo dessa vontade a
determinar a acção. Se imaginássemos, novamente, uma viagem no tempo que nos permitisse
regressar ao passado, constataríamos a repetição exacta da história, ou de várias histórias, a das
acções do sujeito, a das suas vontades e a dos seus desejos de vontades.
Que benefício traz então a teoria de Frankfurt ao compatibilismo? Dá-lhe maior capacidade
de responder à insatisfação incompatibilista ao conseguir identificar, no processo volitivo,
elementos para um entendimento concreto do que seja uma vontade livre. Frankfurt esclarece que as
pessoas podem ter preferências acerca das suas vontades. E esclarece ainda que serem tais desejos e
volições de segunda ordem tão deterministas quanto os de primeira ordem não os elimina nem
elimina o seu significado. As volições de segunda ordem têm poder causal sobre as volições de
primeira ordem e é nesse sentido (de pleno acordo com o determinismo) que o sujeito de uma
vontade tem o poder de conduzir a sua vontade. Os desejos filtrados por vários níveis volitivos
constituem um procedimento de reconhecimento da vontade, em que o sujeito a reconhece com a
sua vontade e, ao mesmo tempo, se reconhece a si próprio como fonte da sua vontade, e por ela
responsável.

12 Cf. Frankfurt, Op. Cit..: 202.


13 Frankfurt, Op. Cit.: 206.
11
Pode objectar-se que este é um entendimento demasiado pobre de livre-arbítrio, e que seria
preciso, para que fosse aceitável como descrição de uma genuína liberdade da vontade, que
Frankfurt explicasse, sob uma pressuposição determinista, como pode uma pessoa, quando escolhe
fazer algo, fazer essa escolha a partir de uma efectiva possibilidade de não a fazer. Sobretudo da
parte de um libertista, e a partir desta objecção, a crítica que se poderia apontar ao compatibilismo
hierárquico seria a de que, afinal, o que mostra, ao contrário do que seria sua pretensão, é como o
tema de uma liberdade da vontade se deixa explicar nos termos de uma experiência ilusória.
Admitindo-se a objecção, ter-se-ia que o entendimento de livre-arbítrio do compatibilismo de
Frankfurt disfarçaria um determinismo radical.

8. Questões de representação

Diante do tipo de críticas que denunciam um entendimento ilusório da liberdade da vontade,


resta ao compatibilista duas alternativas: ou rejeitar fundadamente o entendimento de livre-arbítrio
incompatibilista, designadamente devolvendo-lhe a acusação de ilusão; ou procurar encontrar uma
formulação para o seu entendimento de livre-arbítrio que acomode satisfatoriamente os requisitos
que a concepção de livre-arbítrio de um incompatibilista toma por necessários. As duas alternativas
podem conjugar-se para responder a diferentes argumentos incompatibilistas. Em todo o caso,
ambas já só se encontram a discutir divergências de entendimento sobre o que seja ou possa ser o
livre-arbítrio. Na verdade, discutem-se representações de livre-arbítrio.
Em que podem as duas representações encontrar um acordo? Se para um libertista for
satisfatório um entendimento do livre-arbítrio que seja capaz de explicar como, sob um pressuposto
determinista, uma pessoa, no mesmo estado psicológico, pode determinar-se a agir de uma maneira
ou de outra, então importará esclarecer que um compatibilista está em condições de fornecer pelo
menos o esquema geral de uma tal explicação. Com efeito, da simples admissão, perfeitamente
compatível com o determinismo, de que um estado psicológico possa ser realizado por estados
físicos diferentes segue-se a possibilidade de a esses estados físicos se seguirem sequências causais
diferentes, apesar de psicologicamente se tratar do mesmo estado. Deve a isto ser acrescentado que
há hoje forte evidência no campo das neurociências de que os processos cerebrais dispõem de uma
elevada sensibilidade às condições iniciais, com imperceptíveis diferenças iniciais a resultarem
causalmente em efeitos muito diferentes, o que faz com que a possibilidade de um mesmo estado
psicológico originar diferentes sequências causais seja algo muito provável.
Por outro lado, se procurarmos ir ao encontro da experiência quotidiana que as pessoas
fazem da formação da sua vontade, é bastante razoável esperar que a experiência que cada pessoa
12
tem de si como vontade livre se baseie na experiência efectiva de repetição de circunstâncias
similares que, no entanto, conduziram à formação de vontades diferentes. Quer isto dizer que o
conhecimento mais próprio e directo que dispomos das nossas próprias vontades serem livres é uma
experiência baseada na comparação com vivências passadas e não uma projecção imaginária de um
curso alternativo de acontecimentos, por princípio vedado à experiência das pessoas, pelo menos até
se descobrir como viajar no tempo.

9. Consequência e Fatalismo

Por que razão não se satisfaz, então, o libertista com uma versão sofisticada do
compatibilismo? Dos três argumentos incompatibilistas atrás indicados, quer o “clássico” quer o
“da fonte" encontram uma resposta conciliatória da parte do compatibilismo, que procura obter um
entendimento do livre-arbítrio capaz de acomodar, na sua formulação determinista, tanto o requisito
de que uma vontade livre disponha de possibilidades alternativas, como o requisito de que o sujeito
seja fonte última das suas acções livres. Mas já o mesmo não é possível com o argumento da
consequência. Eis o enunciado de uma versão do argumento:

I. As pessoas não têm poder nem sobre os factos do passado remoto, nem sobre as leis da
natureza.
II. Os factos do futuro são exclusivamente determinados pelas leis da natureza e pelos factos do
passado.
III. Logo, as pessoas não têm poder sobre os factos do futuro.

Ora, para o compatibilismo, a conclusão deste argumento não é aceitável – do determinismo


só se seguiria não dispormos de nenhum poder sobre os factos do futuro se não fizéssemos nós
mesmo parte dos factos do mundo. Não estando nós subtraídos da história do mundo, para um
qualquer determinista, moderado ou radical, não temos mais poder do que o poder de causar
acontecimentos, mas também não temos menos poder do que isso. O que está mal então com o
argumento da consequência? Um possível ponto de crítica estará num uso ambíguo da expressão
“ter poder”. Se na premissa I as pessoas não têm poder sobre os factos do passado no sentido em
que não podem estar numa relação causalmente apropriada com factos que as precederam, já na
conclusão III as pessoas até têm esse poder, pois podem estar na relação causal apropriada com
factos futuros, simplesmente não dispõem do poder de determinar causalmente um futuro diferente
daquele que de facto determinam. Ora, interpretada assim, a conclusão não diz nada que um
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compatibilista não pudesse subscrever. O problema com o argumento está, pois, na presunção de
que a impotência assinalada na conclusão é da mesma natureza da que se tem na premissa I.
As razões que levam o compatibilismo a excluir o argumento da consequência são do
mesmo tipo de as usadas para distinguir o determinismo do fatalismo. Com efeito, uma das
confusões mais frequentes, e também mais facilmente extirpáveis no debate sobre a liberdade da
vontade, reside na ideia de que a crença no determinismo implicaria a crença de que o que vier a
acontecer a um agente acontecerá forçosamente, independentemente da sua vontade. Ora, uma tal
implicação não tem nenhuma sustentação. O determinismo apenas afirma que a vontade humana é
causalmente determinada, não afirma, nem pressupõe, que a vontade humana é incapaz de
determinar causalmente acontecimentos.
Um último equívoco prende-se com o significado que damos às palavras. É habitual
designar-se como fatalismo aquele tipo de opinião de acordo com a qual o que tiver de acontecer
acabará por acontecer, faça-se o que se fizer. Ora, em bom rigor esta descrição corresponde à
descrição de uma fatalidade, sendo que não basta o reconhecimento de fatalidades para que
tenhamos fatalismo – por exemplo, para qualquer ser humano vivo, a morte é uma fatalidade
incontornável, mas nem por isso tem de ser encarada com fatalismo. O que implica então o
fatalismo? Implica uma certa expectativa de que todos, ou quase todos, os acontecimentos do
mundo sejam fatalidades. Aliás, em termos psicologizantes, é habitual chamar-se fatalista àquela
pessoa que, em contraste com as outras pessoas, espera defrontar-se constantemente com
fatalidades.
Por isso, faz sentido que o fatalista desvalorize a acção, tão poucos são os resultados que
dela pode esperar. É neste ponto que a conclusão fatalista coincide com a conclusão de impotência
do argumento da consequência. Mas a verdade é que nem tudo o que acontece no mundo é, no
sentido apropriado, uma fatalidade. E é nesse mesmo sentido que, sob o mais estrito determinismo,
nem todo o futuro é uma questão encerrada.

Leituras complementares:

FISCHER, John M., 1994. The Metaphysics of Free Will. Malden, MA: Blackwell.

FISCHER, John M. & KANE, Robert & PEREBOOM, Derk & VARGAS, Manuel, 2007. Four
Views on Free Will. Malden, MA: Blackwell.

HARRIS, James A., 2005. Of Liberty and Necessity. The Free Will Debate in Eighteenth-Century
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British Philosophy. Oxford: Clarendon Press.

KANE, Robert (Edt.), 2005. The Oxford Handbook of Free Will. Oxford: Oxford University Press.

LIBET, Benjamin & FREEMAN, Anthony & SUTHERLAND, Keith (Edts.), 1999. The Volitional
Brain. Towards a Neuroscience of Free Will. Exeter UK: Imprint Academic.

PEREBOOM, Derk, 2001. Living without Free Will. Cambridge: Cambridge University Press.

PEREBOOM, Derk (Edt.), 2009. Free Will. Indianapolis: Hackett.

WATSON, Gary (Edt.), 2003. Free Will. Oxford: Oxford University Press.

WHITE, Morton, 1993. The Question of Free Will. Princeton, NJ: Princeton University Press.

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