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André Barata
Entre os problemas que exemplificam melhor o tipo de reflexão a que a filosofia se dedica,
há um que sobressai entre os demais: possui realmente o ser humano liberdade? Esta questão
atravessa a história do pensamento filosófico ocidental, sendo insistentemente retomada, desde o
pensamento grego até aos nossos dias, como uma questão crucial para a compreensão do que é o
humano e de quais são as suas possibilidades de existência.
No entanto, quase nunca se enfrentou este problema de uma forma directa, em que se
começasse por perguntar pelo que seja a liberdade humana. Em vez desta, a pergunta que mais
acompanhou a história do problema foi a que expressava uma dúvida sobre se existe tal liberdade,
dúvida que pressupõe a crença pré-filosófica, e até certo ponto espontânea, na sua existência.
É, pois, sob a forma de um cepticismo sobre a existência de liberdade dos humanos que
chega a ser problematizada e interrogada uma pré-compreensão do que possa, ou não, ser esse
particular traço do ser humano.
As razões para o cepticismo sobre a liberdade dos humanos têm partido de uma suspeita, tão
antiga quanto a crença no livre-arbítrio, de que a vida humana é comandada por algum tipo de
determinismo. Já entre os gregos, a vontade dos humanos, até mesmo a dos deuses, nada podia
contra os fios de destino que as Μοῖραι teciam, assim determinando a vida e a morte de cada
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pessoa. Fatalista ou não, esta representação ilustra, desde muito cedo, uma forma de cepticismo
sobre a ideia de uma genuína liberdade da vontade dos humanos.
Actualmente, já não é a ideia de umas tecedeiras do destino que pauta a discussão sobre a
existência de livre-arbítrio. Especialmente a partir da modernidade, com o progresso das ciências
naturais, a interpelação céptica ao livre-arbítrio renova-se com o determinismo causal, ou seja, a
concepção dos fenómenos segundo a qual às mesmas causas não poderão corresponder efeitos
diferentes, ou ainda, que um sistema de leis determinista, a partir das mesmas condições iniciais, só
dispõe de uma evolução possível. Esta é a restrição determinista que relança o debate sobre o livre-
arbítrio na contemporaneidade.
Não quer isto dizer que a discussão em torno do chamado determinismo teológico seja
resolvida pela discussão sobre o determinismo causal. Os problemas que um e outro tratam são
diferentes, com respostas possíveis igualmente diferentes. Significa, simplesmente, que, hoje, a
ciência e o seu modo de compreensão do mundo têm uma importância muito maior do que no
passado, já não nos dispensando de nela confrontarmos a compreensão que fazemos do humano.
Neste capítulo, abordaremos apenas o determinismo causal, pelo que doravante todas as
referências ao determinismo visarão apenas o determinismo causal.
2. Os posicionamentos possíveis
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Há, todavia, além destes, um terceiro posicionamento possível que deve, por respeito à
clareza da exposição, ser identificado. Trata-se daquela posição que, permanecendo
incompatibilista, não toma partido sobre qual dos dois, ou o determinismo ou o livre-arbítrio, é
verdadeiro. A esta posição propomos chamar Incompatibilismo simples ou ainda Agnosticismo
quanto ao determinismo.
Já no caso do compatibilismo, há uma posição frequentemente subscrita que é a do
Determinismo moderado e que pode ser definida como a posição compatibilista que sustenta que
livre-arbítrio e determinismo são ambos verdadeiros. Mas o determinismo moderado não esgota
todas as possibilidades de compatibilismo do livre-arbítrio com o determinismo. Há uma segunda
forma de compatibilismo muitas vezes ignorada, mas conceptualmente evidente. Trata-se da
posição compatibilista que não toma posição sobre os valores de verdade do determinismo e do
livre-arbítrio, nem sequer estabelece nenhuma relação entre os valores de verdade de ambos.
Propomos designar esta compatibilismo de Agnosticismo radical pois com ele é na verdade
afirmada a irrelevância da discussão do compatibilismo.
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O PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DO LIVRE-ARBÍTRIO COM O INDETERMINISMO
Ao salientarmos estas duas concepções de livre-arbítrio não está em causa defender que
sejam as únicas, ou que a discussão entre elas seja a única questão em aberto no duplo debate do
compatibilismo. Queremos antes dizer que este debate está contaminado por um outro que tem que
ver com maneiras diferentes de conceber o livre-arbítrio. Reconhecendo esta duas concepções,
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torna-se imperioso distingui-las de maneira tão clara quanto possível para que, finalmente, possam
ser debatidas. Com efeito, prévio ao problema da compatibilidade, ou não, do livre-arbítrio com o
determinismo e com o indeterminismo, há um problema sério de incompatibilidade entre duas
concepções de livre-arbítrio entre si contraditórias.
3. O compatibilismo clássico
De acordo com uma expressão linguística corrente, é habitual entender-se que uma pessoa
age de livre vontade quando decide fazer alguma coisa, não sucedendo que seja impedida de o
fazer, agindo assim de acordo com as suas preferências. No entanto, logo nesta simples ideia um
“agir de livre vontade” sobrepõem-se dois planos de liberdade que é forçoso destrinçar: por um
lado, uma liberdade de acção, que pode, de muitas formas, ser negada a um agente, por exemplo se
for aprisionado numa cela; por outro lado, uma liberdade de vontade (ou livre-arbítrio) e que não é
suprimível simplesmente por se pôr uma pessoa a ferros. Mas se são facilmente concebíveis
circunstâncias em que à liberdade da vontade não é feita corresponder uma liberdade de acção (é
essa precisamente a circunstância infeliz do prisioneiro), também o inverso é verdadeiro, ou seja,
circunstâncias em que à liberdade de acção não corresponde um genuíno livre-arbítrio. Por
exemplo, situações de hipnotismo ou sonambulismo, em que uma pessoa age sem conhecimento da
sua vontade, mas também situações em que uma dada vontade domina o sujeito, sem que este a
consiga controlar, como sucede com distúrbios psicopatológicos como o da cleptomania.
Apesar de muito simples e geral, esta distinção entre liberdade de acção e liberdade de
vontade não tem sido pacífica para todos os filósofos. Por exemplo, para John Locke a ideia de uma
vontade livre resume um contra-senso ou absurdo «tal como perguntar se o sono é rápido ou a
virtude é quadrada»1 . Para este filósofo, não está tanto em causa uma concepção determinista do
livre-arbítrio, instância que recusa como absurda, quanto uma concepção determinista do arbítrio,
de acordo com a qual «(...) um homem não tem liberdade para querer, ou para não querer, o que
dentro do seu poder seja posto à sua consideração»2 . Assim, a formação da vontade é pensada
como um processo inteiramente determinista, ficando a ideia de uma liberdade do sujeito confinada
ao sentido de uma liberdade de acção, ou seja, a uma liberdade de movimentos para se poder fazer o
que a vontade quer.
Thomas Hobbes resumira muito bem esta concepção determinista da liberdade ao afirmar,
1 Locke, 1690, Ensaio sobre o Entendimento Humano. Lisboa: FCG, 1999: XXI, 14.
2 Locke, Op. Cit.,:XXI, 24.
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no seu Leviatã, que a “liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição (entendendo
por oposição os impedimentos externos do movimento)”. 3
David Hume reitera a mesma ênfase na liberdade de acção e não numa free will, na sua
Investigação sobre o entendimento humano, onde por liberdade afirma querer significar «um poder
de agir ou não agir, segundo as determinações da vontade».4 E adiante explica a definição
exemplificando: «Se optamos por ficar quietos, podemos fazê-lo, se decidimos mover-nos,
igualmente o podemos. Ora, esta liberdade hipotética pertence, todos o admitem, a quem quer que
não esteja prisioneiro ou na cadeia.»5
Portanto, tanto em John Locke, como em Thomas Hobbes e David Hume, e mau grado
diferenças a que não atenderemos aqui, encontramos o mesmo esquema geral de uma concepção
determinista da liberdade, que “empurra” a liberdade para o plano da acção, num sentido próximo
de uma liberdade de movimentos, proclamando, em contrapartida, para a formação da vontade que
precede a acção, um entendimento determinista que exclui qualquer ideia de liberdade. Em síntese,
o compatibilismo clássico resolve, no essencial, o problema do livre-arbítrio retirando todo o
significado à ideia de uma liberdade da vontade.
«Suponhamos que um homem é levado para uma sala – enquanto dorme profundamente –
onde está uma pessoa que ele deseja ver e com quem deseja falar, ficando aí fechado.
Acorda e fica feliz por se encontrar com tão desejada companhia, e prefere aí permanecer a
ir embora. Eu pergunto: esta permanência não será voluntária? Acho que ninguém duvidará
disso: e, contudo, estando fechado, é evidente que não é livre para não ficar, pois não pode
sair.»6
7 Hobbes, 1654. Of liberty and necessity. London: Hobbes Society, 1938: §28.
8 Locke, Op. Cit., XXI, 9.
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Tem-se, portanto, alcançada uma caracterização mínima da vontade livre (depois de
distinguida da acção livre) nos termos de uma vontade cuja formação permaneceu sob o controlo do
seu sujeito. Em termos idênticos aos que Locke empregou a propósito do comportamento
involuntário, a liberdade de vontade que um sujeito pode perder equivale ao seu poder “de parar ou
suspender” uma vontade por efeito de outras vontades suas, que lhe fizessem oposição. Neste
sentido, a compulsão ou o constrangimento volitivo é uma violência sobre a convivialidade das
vontades num sujeito, normalmente capaz de as pesar e contrapesar no processo de formação da
vontade. Uma vontade não livre é uma vontade que se impôs sem se envolver nesse processo de
formação de vontade e, por isso mesmo, exclui todas as outras vontades do sujeito. O resultado é
uma vontade que se impõe ao sujeito contra as vontades do próprio sujeito.
Admitindo-se esta caracterização do livre-arbítrio como o poder de parar ou suspender uma
vontade no jogo com outras vontades, mantendo-se todas as vontades sob um controlo recíproco
tutelado pelo próprio sujeito, então fica também evidenciada uma razão por que a liberdade da
vontade é condição necessária para a responsabilidade: não faz sentido responsabilizar uma pessoa
por aquilo que ela não poderia ter evitado.
6. Possibilidades alternativas
Esta concepção indeterminista do livre-arbítrio defronta-se, porém, com uma séria objecção,
pela primeira vez formulada por David Hume, de acordo com a qual há uma incompatibilidade
insuperável entre a representação que habitualmente fazemos do livre-arbítrio e a assunção do
indeterminismo. Fosse este verdadeiro, e nos permitíssemos assim considerar que às mesmas
circunstâncias, repetindo-se exactamente, poderiam corresponder vontades diferentes, e estaríamos
na verdade a assumir que as nossas vontades poderiam ser uma ou outra arbitrariamente, sem que
nenhum motivo assim o determinasse. Um tal resultado tornaria absolutamente arbitrária e
irracional a formação das nossas vontades, contradizendo, na opinião de David Hume, um aspecto
universalmente aceite sobre o que seja o livre-arbítrio:
«Parece, portanto, não só que a conjunção de motivos e acções voluntárias é tão regular e
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uniforme como a que existe entre a causa e o efeito em qualquer parte da natureza, mas
também que esta conjunção regular foi universalmente conhecida na humanidade e nunca
constituiu objecto de disputa, quer na filosofia ou na vida comum.»9
«Existem muitas razões para pensarmos que, quando se diz que poderíamos ter feito algo
que não fizemos, queremos muitas vezes dizer apenas que deveríamos tê-lo feito, se
tivéssemos querido. Se assim é, será então verdade que, nesse sentido, realmente podíamos
ter feito o que não fizemos, facto que não contradiz o princípio de que tudo tem uma
causa.»10
7. Compatibilismo hierárquico
8. Questões de representação
9. Consequência e Fatalismo
Por que razão não se satisfaz, então, o libertista com uma versão sofisticada do
compatibilismo? Dos três argumentos incompatibilistas atrás indicados, quer o “clássico” quer o
“da fonte" encontram uma resposta conciliatória da parte do compatibilismo, que procura obter um
entendimento do livre-arbítrio capaz de acomodar, na sua formulação determinista, tanto o requisito
de que uma vontade livre disponha de possibilidades alternativas, como o requisito de que o sujeito
seja fonte última das suas acções livres. Mas já o mesmo não é possível com o argumento da
consequência. Eis o enunciado de uma versão do argumento:
I. As pessoas não têm poder nem sobre os factos do passado remoto, nem sobre as leis da
natureza.
II. Os factos do futuro são exclusivamente determinados pelas leis da natureza e pelos factos do
passado.
III. Logo, as pessoas não têm poder sobre os factos do futuro.
Leituras complementares:
FISCHER, John M., 1994. The Metaphysics of Free Will. Malden, MA: Blackwell.
FISCHER, John M. & KANE, Robert & PEREBOOM, Derk & VARGAS, Manuel, 2007. Four
Views on Free Will. Malden, MA: Blackwell.
HARRIS, James A., 2005. Of Liberty and Necessity. The Free Will Debate in Eighteenth-Century
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British Philosophy. Oxford: Clarendon Press.
KANE, Robert (Edt.), 2005. The Oxford Handbook of Free Will. Oxford: Oxford University Press.
LIBET, Benjamin & FREEMAN, Anthony & SUTHERLAND, Keith (Edts.), 1999. The Volitional
Brain. Towards a Neuroscience of Free Will. Exeter UK: Imprint Academic.
PEREBOOM, Derk, 2001. Living without Free Will. Cambridge: Cambridge University Press.
WATSON, Gary (Edt.), 2003. Free Will. Oxford: Oxford University Press.
WHITE, Morton, 1993. The Question of Free Will. Princeton, NJ: Princeton University Press.
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