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7 Salvador 2006
PSICANÁLISE E LITERATURA
RESUMO
O texto faz uma revisão do trágico, da tragédia e sua história desde a Grécia. Em seguida trata
da vinculação da tragédia com a psicanálise e desta com a literatura, abordando ainda o
problema da decisão que conduz o herói ao trágico, e um paralelo entre Joyce e Wilde
A relação entre o trágico e a tragédia não pode ser tomada pela simples categorização
gramatical, já que a relação semântica entre os dois conceitos é bem mais complexa do que
parece na busca de uma resposta superficial.
O trágico, expressão mais comum no nosso vernáculo, refere-se ao que traz a morte, a
desventura, o calamitoso ou sinistro. Em seu sentido literário significa esplêndido, grandioso,
não inteligível, e é geralmente negativo. O seu uso coloquial moderno, quase vulgar, está em
oposição ao conceito desenvolvido entre filósofos e intelectuais dos dois últimos séculos, que o
vinculam à tragédia, um gênero que compreende um conjunto de textos específicos, um
entendimento coloquial e outro filosófico. Na verdade o trágico descreve certos tipos de
experiências ou de traços básicos da existência humana. "O termo não é estético mas
antropológico ou metafísico: ele não define um gênero literário mas a essência da condição
humana, em sua estrutura imutável ou como se manifesta em circunstâncias excepcionais,
catastróficas" MOST (2001).
A tragédia deve ser entendida como o gênero dramático específico de literatura que
floresceu especialmente na Grécia, sobretudo em Atenas, influenciando profundamente a
Roma antiga, a Renascença por toda a Europa até a Alemanha na virada do século XIX.
Comumente são peças nas quais os personagens ilustres ou heróicos mostram uma ação
elevada ou nobre que suscita terror e piedade, culminando por algum acontecimento funesto.
Entre os dois termos propostos, ocorre a inquietante pergunta de MOST, "Qual é a
relação precisa entre aquela dimensão da existência humana que se manifesta em eventos
trágicos e os textos literários que chamamos de tragédias? Parece ser uma ilusão pensar que
todas as tragédias sejam trágicas, ou seja, que há uma crítica que poderá reconhecê-las ou não
trágicas, segundo algum critério de "tragicidade". Aqui nos aproximamos de uma questão
complexa sobre a universalidade do conceito de trágico e se ele abarcaria o conteúdo de todas
as tragédias, ou sendo a tragédia uma criação literária, estaria sujeita à habilidade do seu autor.
O crítico literário, o filósofo, o antropólogo, ou mesmo o leitor seriam a última instância a
captar o trágico em uma tragédia. Esta consideração nos leva à aproximação dos conceitos e de
que a tragédia, para assim ser entendida, deverá conter o trágico.
Não se pode pensar ou escrever sobre o tema sem decisiva incursão no que foi a
tragédia na Grécia antiga. Há uma estreita relação entre sua produção e a vinculação do
homem grego às histórias plenas de ensinamentos e reflexões. Por exemplo, a Odisséia não é
apenas um repositório de informações históricas, das conquistas e formação da civilização
grega, mas sobretudo, do sentimento de conquista, dos direitos dos povos, da família, da ética
e da justiça. Para a psicanálise a tragédia de Tróia, as lutas de Odisseu e seus companheiros, de
sua família e finalmente o sangue derramado dos pretendentes são tão vívidos, buscados e
apreciados, não por força histórica ou mobilização social, mas por serem a ponta de uma
cadeia significante que em sua origem toca o real da condição humana. Às dificuldades
naturais do estudo da tragédia pela filosofia e pela crítica de arte, podemos acrescentar uma
visão psicanalítica que teria duas questões: a primeira seria a compreensão do âmago do
enredo trágico que tece a ação e destruição funesta e irremediável para o homem; a segunda,
o fascínio que arrebata e prende o espectador ou leitor em um gozo intenso. Há uma ligação
inconsciente do homem com o trágico e a tragédia. Parece-nos que o sucesso da tragédia
decorre da possibilidade de ser uma via que conduz este homem ao trágico íntimo e subjetivo,
embora compartilhável com o próximo ou até com toda a humanidade.
Além da vinculação inconsciente é preciso pensar que a tragédia, como gênero, não foi
concebida e estruturada independentemente de todas as suas instâncias particulares. O gênero
deu voz a uma sabedoria trágica ou noção do lugar do homem no universo. MOST (2001)
assinala que "não é acidental que o termo trágico é libertado de sua ligação com uma forma
literária e generalizada para se aplicar à condição humana no exato momento da história, na
virada do século XIX, quando o gênero da tragédia deixa de ser um modo literário dominante.
Hoje, nossos teatros quase não produzem novas tragédias, mas nossas estradas as produzem
todo fim de semana. A palavra trágico pretende definir o estado do homem no seu caráter
permanente e imutável.
Três filósofos ocupam especiais posições nos debates e reflexões a respeito da tragédia.
Na Grécia, Platão-Aristóteles e nos meados do século XIX Nietsche.
Aristóteles fez com que a tragédia parecesse menos aleatória ou não necessariamente
ateniense, sendo inevitável e humana. Por ser inerente à própria natureza, seria inventada
mais cedo ou mais tarde, ou como vimos em Freud, por estar dentro do homem, apenas
aguardava um sopro genial para que pudesse ser expressa. Para o povo grego, e mesmo para a
polis, a tragédia tinha uma importância política e ideológica muito superior a qualquer gênero
ou manifestação artística, por falar de algo tão íntimo.
Em 1871 Friedrich Nietzsche publicou seu primeiro livro intitulado "O Nascimento da
Tragédia", no qual faz uma análise da cultura grega e da relação entre a arte e o conhecimento,
exaltando a música de Richard Wagner por sua influência sobre o espírito alemão. Ele pergunta
se os gregos tinham necessidade da tragédia e da arte. A indagação do por que se aproxima de
uma questão fundamental: o valor de existir. O pessimismo contido nas tragédias seria um sinal
de declínio, decadência ou imperfeição, da fadiga ou enfraquecimento do homem. Trata-se de
uma virada polêmica na compreensão da tragédia a partir de um dualismo entre Apolo e
Dionísio. É uma abordagem fundamental, mas que nos desviaria do objetivo do presente
trabalho.
Lacan faz importante estudo sobre a tragédia a partir também de uma obra de
Sófocles, que segundo ele seria um autor distinto dos demais. Para Lacan, Antígona é um ponto
de virada no estudo da ética, que merece uma releitura interpretativa na qual explica o sentido
da exploração desta tragédia: "a imagem de Antígona, latente, fundamental faz parte da moral
de vocês, quer queiram ou não".
Que prazer é esse ao qual se retorna depois de uma crise que se desenvolve numa
outra dimensão, e que num dado momento o ameaça? Lacan lembra que a topologia define o
prazer como sendo a lei do que se desenrola aquém do aparelho, onde o temível centro de
aspirações do desejo nos atrai, permitindo-nos convergir melhor do que se fez até aqui, com a
intuição aristotélica.
O mote da ambigüidade está no fato da psicanálise tentar avançar sobre uma zona
obscura que o artista preserva e prefere esquecer. Mas, elas usam uma à outra. Quem da
literatura melhor se utilizou da psicanálise foi Joyce, porque soube "perceber na psicanálise a
possibilidade de uma construção formal" PIGLIA 2004. Ele leu em Freud uma técnica narrativa
e um uso da linguagem. Não tentou se ajudar como tantos romancistas pelo refinamento de
instrumentos de caracterização psicológica. Ao contrário, percebeu que na construção de uma
narrativa o sistema de relações que definem a trama não deve obedecer a uma lógica linear;
dados e cenas remotas ressoam na superfície do relato e se enlaçam secretamente. Sempre
ouviu com cuidado as vozes femininas, sem temer a sedução do canto das sereias. Quando
escrevia Finnegans Wake, ouvia especialmente sua filha Lúcia que terminou psicótica,
morrendo internada em uma clínica da Suíça. Fazendo uma apresentação dos textos de Lúcia a
Jung revelou: "Aqui estão os textos que ela escreve, e o que ela escreve é o mesmo que eu
escrevo". Joyce obteve uma resposta sábia de Jung: "Mas onde você nada ela se afoga". Piglia
chama atenção que esta é a melhor definição que se conhece da distinção entre o artista e
outra coisa, que não vou chamar de outro modo que não esse. A literatura deve à psicanálise a
obra de Joyce.
VINCULAÇÃO À DECISÃO
Existem duas regências para decidir-se: a primeira, decidir-se entre, comumente está
comprometida com o pragmatismo e a segunda, decidir-se por faz menção a uma escolha
existencial. GARCIA(1987) sugere um paralelo entre as posições de Sartre e Heidegger. Para
Sartre, quanto à existência, o sujeito escolhe sempre o que virá a ser, daí a necessidade da
escolha autêntica. Para Heidegger, a existência efetua decisão sozinha, está suspensa ao nada,
não se prende a uma autenticidade ou inautenticidade e o que importa é decidir. Entre os dois
autores entendemos que a decisão não é absoluta. A primeira noção situa melhor o sujeito
como agente, chamando atenção para uma desejabilidade a ser satisfeita.
Lacan no seminário da Ética nos fala do ceder ao desejo, após trabalhar a tragédia de
Antígona, mostrando que temos dentro de nós mesmos uma imagem de Antígona. Daí a recusa
ao texto de Sófocles. A lei que ordena um dever imprescindível só pode vir do Outro. Antígona
decide não ceder às falsas decisões humanas, que fingem ser razão de Estado ou ditadas pelos
deuses. Esta força surpreendente só pode vir deste lugar do Outro. Mas a ética vem do querer
e de um conhecimento, daí serem possíveis várias éticas sobre um mesmo saber. Segundo
Castoriadis "toda a Ética é da ordem de um projeto, de um querer, muito mais do que de um
conhecimento". Ela exprime desejos, necessidades, representações conscientes e
inconscientes, aquilo que os antropólogos consideram como cultura e que Castoriadis chamou
de imaginário social.
Como exemplo tomaremos um autor e uma obra, fugindo um pouco dos gregos. O
autor é Oscar Wilde, nascido em Dublin, como Joyce, 22 anos antes. Era filho de um médico
famoso e uma poetisa que lutara pela emancipação da Irlanda. Sua vida e sua obra se casam
em paralelos e identificações essenciais, que nos levam a pensar sobre suas decisões de vida e
dos rumos da obra. A marca do seu desejo é expressa pela transgressão à lei e à subjetivação
da ética, dois ingredientes comuns na elaboração da tragédia, mas também componentes da
estrutura perversa. É um autor que tornou a sua vida trágica, como tornou trágica a vida de
alguns de seus personagens, principalmente Dorian Gray.
Sua mãe escolheu ter uma filha e nasceu Oscar. Em protesto contra a natureza que
desrespeitou sua escolha, vestiu seu filho com roupas de menina até a idade escolar. De sua
propalada juventude feliz se torna poeta em um grupo de jovens de singular beleza, frente aos
prazeres da chamada década amarela. Assim se transforma em um dos dandis que encantavam
a sociedade londrina na época. Ele próprio se define: "herdei dos meus pais um nome da mais
alta distinção na literatura e nas artes". Na verdade, teve todas as portas abertas que
facilitaram sua vertiginosa carreira de escritor. Logo se tornou uma celebridade na Inglaterra,
nos Estados Unidos, onde por especial convite exibiu-se em Nova Iorque, Boston, Chicago e
outros centros, pronunciando palestras muito concorridas. Por seus exageros e maneirismos,
transforma-se em personagem de uma ópera-bufa de Gilbert e Sullivan. BRITO(1964). No
apogeu de sua carreira tem a "glória que o mundo acalenta e, ao mesmo tempo, secretamente,
teme e até a odeia". Wilde pode encarnar um ideal, mas a transgressão que encerra é também
uma ameaça contra a qual é preciso reagir.
No auge de sua carreira foi insultado pelo Marquês de Queensberry que o acusava de
homossexualismo e sedutor do seu filho, Lord Alfred Douglas. Ao sabor da época, tivemos um
grande escândalo e um processo em que o escritor foi condenado a dois anos de prisão com
trabalhos forçados, sob os rigores do silêncio. Abandonado pelos amigos, teve seus bens
penhorados, além do falecimento de sua amada mãe e da separação requerida por sua mulher.
Foi também cassado do direito de paternidade dos dois filhos que renegaram seu nome. Da
prisão consegue escrever sua última obra em prosa, uma carta acusatória a Douglas, que deu o
nome de De Profundis, mas que um dos tradutores para o português preferiu nomear A
Tragédia de Minha Vida.
BIBLIOGRAFIA
ARISTÓTELES. - A Arte Poética, Grandes Pensadores, Abril Cultural, São Paulo, 1972 [ Links ]
FREUD, S. (1897) - Rascunho N - Anexo à carta 64, vol. 1 Editora Imago, Rio [ Links ]
GARCIA, C. (1988) - Por uma questão de ética decidir-se, Falo Revista do Campo Lacaniano,
Editora Fator, ano 1 número 1, Salvador, 1988 [ Links ]
LACAN, Jacques - A Essência da Tragédia in: Seminário livro 7, A Ética da Psicanálise, Jorge
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MOST, Glenn (2001) - Da tragédia ao trágico - In: Filosofia e Literatura: o trágico, Jorge Zahar
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PIGLIA, Ricardo - Os Sujeitos Trágicos (literaura e psicanálise) in: Formas Breves, Companhia das
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SÓFOCLES, - Édipo Rei, A Trilogia Tebana, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1991 [ Links ]
SÓFOCLES, - Édipo em Antígona A Trilogia Tebana, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1991 [
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UNAMUNO, M. (1913) é uma referência contida no seu livro "Del Sentimento Trágico de la Vida
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WILDE, Oscar - A Tragédia de Minha Vida, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1964 [ Links
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WILDE, Oscar - De Profundis e Outros Escritos do Cárcere, LePM Pocket, Porto Alegre, 1998
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* Psicanalista. Membro fundador do Círculo Psicanalítico da Bahia.