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Cogito v.

7 Salvador 2006

PSICANÁLISE E LITERATURA

O trágico e a tragédia, vinculação e escolha

Carlos Pinto Corrêa *

Círculo Psicanalítico da Bahia

RESUMO

O texto faz uma revisão do trágico, da tragédia e sua história desde a Grécia. Em seguida trata
da vinculação da tragédia com a psicanálise e desta com a literatura, abordando ainda o
problema da decisão que conduz o herói ao trágico, e um paralelo entre Joyce e Wilde

Palavras-chave: Psicanálise, Literatura, Tragédia, Decisão

A relação entre o trágico e a tragédia não pode ser tomada pela simples categorização
gramatical, já que a relação semântica entre os dois conceitos é bem mais complexa do que
parece na busca de uma resposta superficial.

O trágico, expressão mais comum no nosso vernáculo, refere-se ao que traz a morte, a
desventura, o calamitoso ou sinistro. Em seu sentido literário significa esplêndido, grandioso,
não inteligível, e é geralmente negativo. O seu uso coloquial moderno, quase vulgar, está em
oposição ao conceito desenvolvido entre filósofos e intelectuais dos dois últimos séculos, que o
vinculam à tragédia, um gênero que compreende um conjunto de textos específicos, um
entendimento coloquial e outro filosófico. Na verdade o trágico descreve certos tipos de
experiências ou de traços básicos da existência humana. "O termo não é estético mas
antropológico ou metafísico: ele não define um gênero literário mas a essência da condição
humana, em sua estrutura imutável ou como se manifesta em circunstâncias excepcionais,
catastróficas" MOST (2001).

A tragédia deve ser entendida como o gênero dramático específico de literatura que
floresceu especialmente na Grécia, sobretudo em Atenas, influenciando profundamente a
Roma antiga, a Renascença por toda a Europa até a Alemanha na virada do século XIX.
Comumente são peças nas quais os personagens ilustres ou heróicos mostram uma ação
elevada ou nobre que suscita terror e piedade, culminando por algum acontecimento funesto.
Entre os dois termos propostos, ocorre a inquietante pergunta de MOST, "Qual é a
relação precisa entre aquela dimensão da existência humana que se manifesta em eventos
trágicos e os textos literários que chamamos de tragédias? Parece ser uma ilusão pensar que
todas as tragédias sejam trágicas, ou seja, que há uma crítica que poderá reconhecê-las ou não
trágicas, segundo algum critério de "tragicidade". Aqui nos aproximamos de uma questão
complexa sobre a universalidade do conceito de trágico e se ele abarcaria o conteúdo de todas
as tragédias, ou sendo a tragédia uma criação literária, estaria sujeita à habilidade do seu autor.
O crítico literário, o filósofo, o antropólogo, ou mesmo o leitor seriam a última instância a
captar o trágico em uma tragédia. Esta consideração nos leva à aproximação dos conceitos e de
que a tragédia, para assim ser entendida, deverá conter o trágico.

VINCULAÇÃO COM O TEMPO

Não se pode pensar ou escrever sobre o tema sem decisiva incursão no que foi a
tragédia na Grécia antiga. Há uma estreita relação entre sua produção e a vinculação do
homem grego às histórias plenas de ensinamentos e reflexões. Por exemplo, a Odisséia não é
apenas um repositório de informações históricas, das conquistas e formação da civilização
grega, mas sobretudo, do sentimento de conquista, dos direitos dos povos, da família, da ética
e da justiça. Para a psicanálise a tragédia de Tróia, as lutas de Odisseu e seus companheiros, de
sua família e finalmente o sangue derramado dos pretendentes são tão vívidos, buscados e
apreciados, não por força histórica ou mobilização social, mas por serem a ponta de uma
cadeia significante que em sua origem toca o real da condição humana. Às dificuldades
naturais do estudo da tragédia pela filosofia e pela crítica de arte, podemos acrescentar uma
visão psicanalítica que teria duas questões: a primeira seria a compreensão do âmago do
enredo trágico que tece a ação e destruição funesta e irremediável para o homem; a segunda,
o fascínio que arrebata e prende o espectador ou leitor em um gozo intenso. Há uma ligação
inconsciente do homem com o trágico e a tragédia. Parece-nos que o sucesso da tragédia
decorre da possibilidade de ser uma via que conduz este homem ao trágico íntimo e subjetivo,
embora compartilhável com o próximo ou até com toda a humanidade.

Além da vinculação inconsciente é preciso pensar que a tragédia, como gênero, não foi
concebida e estruturada independentemente de todas as suas instâncias particulares. O gênero
deu voz a uma sabedoria trágica ou noção do lugar do homem no universo. MOST (2001)
assinala que "não é acidental que o termo trágico é libertado de sua ligação com uma forma
literária e generalizada para se aplicar à condição humana no exato momento da história, na
virada do século XIX, quando o gênero da tragédia deixa de ser um modo literário dominante.
Hoje, nossos teatros quase não produzem novas tragédias, mas nossas estradas as produzem
todo fim de semana. A palavra trágico pretende definir o estado do homem no seu caráter
permanente e imutável.

A invenção do texto trágico atende a este imutável, ou diríamos ao trágico do


inconsciente, mas sua oportunidade decorre do sentido dado ao mundo ou a vida. Quando
Deus deixou de garantir o sentido pela teologia positiva ou cientificismo, surgiu a oportunidade
irresistível para a volta ou reinvenção da tragédia.

Historicamente a tragédia pode ser pensada em quatro tempos. O primeiro, tempo de


Sófocles e o século V aC, o segundo no Século XIX, o terceiro no Século XX, e finalmente o
quarto tempo, a permissividade pós-moderna. Sófocles é por muitas razões considerado o
verdadeiro fundador do gênero tragédia. Ele surge na convergência da cultura grega, da
convivência do mundo mítico com a realidade e da sujeição do homem às forças vitais
controladas por personagens deste mundo mítico. A mitologia nos ensina que o mundo grego,
de certa forma se origina de tragédias. Mas a grande arte de Sófocles está em sua concepção
dos heróis. As relações familiares são os lugares privilegiados da tragédia, devido ao paradoxo
entre a objetividade da relação biológica e a angústia circulante entre seus membros e que
governam as escolhas e preferências. É importante que as saídas estejam bloqueadas pelas
circunstâncias descritas e as soluções do paradoxo negadas. "A tragédia só pode existir se o
herói trágico não tiver a possibilidade de desculpar-se pelo seu erro (ou pelo seu diferenciado
com as demandas da ordem objetiva), mediante alegação de que seu erro não correspondeu a
suas intenções". GUMBRECHT((2001). Sófocles situa o herói entre o determinismo que o leva
ao ato (não tem outra saída), que uma vez consumado não permite retificação ou perdão.
Assim, o herói grego não incorpora um sentido ético ou valor positivo, do mesmo modo que
não pode ser um salvador. Há ainda a presença da morte que silencia e aponta para a
impotência de se alterar a compreensão do ato.

O segundo tempo é precedido do final do século XVIII, repleto de vítimas heróicas. É o


século de Shakespeare, Corneille, Racine, Lope de Veja e Calderón de la Barca. Com o início do
século XIX o iluminismo vai apontar para uma nova ordem objetiva. Em vez da concretização de
uma ordem divina, a objetividade passou a ser qualquer coisa sentida como resistência à
realização de belos projetos e desejos. Acontece um quase domínio de Marx sobre o
intelectual e a condenação do idealizado.

O século XX é marcado pelas discussões de filósofos, literatos e intelectuais em torno


das palavras "tragédia" e "trágico". Estabelece um renovado respeito e valorização do acervo
clássico capaz de abastecer a audiência sem a necessidade de se criar novas obras.
UNAMUNO(1913) passa da tragédia literária para a tragédia do homem ser mortal e as ações
trágicas sem êxito começam a ser tomadas como significante da impotência do homem frente
ao sistema social ou político. A Semana Trágica em Barcelona no ano de 1909 trata exatamente
desta impossibilidade. Um sentido inovador da palavra tragédia "foi produzido por episódios
prematuros de interferência entre os então estabelecidos pelos sistemas legais e as novas
reivindicações feitas pelo diagnóstico e tratamento psiquiátricos/psicanalíticos" GUMBRECHT.

A classificação de trágicas para as ações criminais ou sua interpretação como patologia


social, possibilitou a questionável concessão do status de vítima trágica ao delinqüente e
criminoso. É interessante como advogados usurparam o conceito de inconsciente freudiano,
transformando-o em álibi que atingiu o máximo da vulgarização na vida cotidiana, quando
alguém acusado de um ato culposo ou delituoso responde: - só se for inconsciente. Lacan foi
incisivo ao nos mostrar que o sujeito é responsável por aquilo que seu inconsciente produz.
Acreditamos que o principal corte interpretativo da tragédia promovido pela
psicanálise, vem da abordagem de Freud e do modo como foi capaz de metaforizar a partir da
mitologia grega. Assim quando toma Sófocles para exemplificar as dificuldades da relação
triangular estabelecida na infância, nos coloca como predestinados a repetir a façanha de
Édipo e, o que é igualmente importante, nos mostra que somos filhos da tragédia. Podemos
então afirmar que nada mais natural ao homem do que tragédia, pois ela é na verdade nossa
base estruturante. Mas no campo do sujeito há também uma tragédia humana desestruturante
que é a psicose.

A tragédia que passou para o campo social e da interpretação criminal,


conseqüentemente em espaço público, volta na modernidade a sua força como acontecimento
privado. Pode-se dizer que na modernidade a situação trágica se converte em problema prático
que precisa ser resolvido. Da tragédia que sugeria a reflexão internalizada, passamos ao
espetáculo. É o incômodo de situações que precisam ser resolvidas. Como no cinema, a
comoção mostrada em Titanic é vivida pela platéia até o término marcado pelo The End. Fica
longe a noção de uma verdadeira tragédia. É como nos filmes de guerra que assistimos apenas
como história ficcional. A cultura do espetáculo é uma das formas alienantes do homem
moderno que tenta esgotar suas vivências pelo domínio do olhar. A vida como um espetáculo
diário olhado nas divergências do oriente médio, no balanço diário das mortes do Iraque, a
violência urbana à qual nos acostumamos, ou os jovens que se imolam nos acidentes
automobilísticos, como se tudo fizesse parte de um escrito trágico, mas hoje, vulgar.

DOIS PENSADORES FUNDAMENTAIS E MAIS UM

Três filósofos ocupam especiais posições nos debates e reflexões a respeito da tragédia.
Na Grécia, Platão-Aristóteles e nos meados do século XIX Nietsche.

Platão é o ponto de partida para as discussões posteriores que se pretende realizar.


Considerava a tragédia como uma convulsão emocional que o aterrorizava, talvez por imaginar
que todas as pessoas eram afetadas pela poesia de modo tão profundo quanto ele. A tragédia
seria uma espécie natural de poesia formalmente definida que expressa a capacidade básica e
inata dos homens.

Aristóteles fez com que a tragédia parecesse menos aleatória ou não necessariamente
ateniense, sendo inevitável e humana. Por ser inerente à própria natureza, seria inventada
mais cedo ou mais tarde, ou como vimos em Freud, por estar dentro do homem, apenas
aguardava um sopro genial para que pudesse ser expressa. Para o povo grego, e mesmo para a
polis, a tragédia tinha uma importância política e ideológica muito superior a qualquer gênero
ou manifestação artística, por falar de algo tão íntimo.

Platão acreditava que a polis constituía a possibilidade de felicidade e excelência


humana. A tragédia trazia ao palco dificuldades de homens que cometeram erros que seriam
perfeitamente evitáveis se as pessoas tivessem um treino filosófico apropriado. Para ele é a
hamartemata. A tragédia é causada pelo erro do homem ao se afastar da verdade.
Aristóteles, ao contrário de Platão, minimiza a teatralidade, aceita a condição teatral
como intrínseca e, portanto neutra, deixando de considerá-la perigosamente sedutora. Na sua
História da Tragédia, trata das dimensões formais nos contextos das polis, não sugerindo nada
que se refira a função institucional da tragédia. Aristóteles mostra a evolução da tragédia
afastando-se do culto para tomá-la como peça literária. Descontextualizada institucionalmente,
é entendida como texto disponível, em vez de encenação, ou seja, não se trata de um ritual. Ele
faz ainda a observação do gênero e uma análise teleológica, deixando a estrutura imanente.

Em 1871 Friedrich Nietzsche publicou seu primeiro livro intitulado "O Nascimento da
Tragédia", no qual faz uma análise da cultura grega e da relação entre a arte e o conhecimento,
exaltando a música de Richard Wagner por sua influência sobre o espírito alemão. Ele pergunta
se os gregos tinham necessidade da tragédia e da arte. A indagação do por que se aproxima de
uma questão fundamental: o valor de existir. O pessimismo contido nas tragédias seria um sinal
de declínio, decadência ou imperfeição, da fadiga ou enfraquecimento do homem. Trata-se de
uma virada polêmica na compreensão da tragédia a partir de um dualismo entre Apolo e
Dionísio. É uma abordagem fundamental, mas que nos desviaria do objetivo do presente
trabalho.

VINCULAÇÃO DA TRAGÉDIA COM A PSICANÁLISE

Se em sua origem o sucesso do gênero da tragédia parecia chamar o homem para o


trágico do seu próprio interior, com o advento da psicanálise este vínculo se torna
inquestionável. Freud depois de tomar o Édipo Rei como metáfora da relação primária da
criança, volta inúmeras vezes aos textos trágicos, dos gregos e Shakespeare, para referir ao
nosso trágico. Para ele, a tragédia está presente no primeiro plano de nossa experiência.

Lacan faz importante estudo sobre a tragédia a partir também de uma obra de
Sófocles, que segundo ele seria um autor distinto dos demais. Para Lacan, Antígona é um ponto
de virada no estudo da ética, que merece uma releitura interpretativa na qual explica o sentido
da exploração desta tragédia: "a imagem de Antígona, latente, fundamental faz parte da moral
de vocês, quer queiram ou não".

A chave para compreensão psicanalítica da tragédia desde Édipo é a catarse, descarga


em ato ou motora, palavra vinculada a ab-reação, no trabalho inaugural de FREUD (1897) "a
ação pode ser descarregada nas palavras que a articulam". Mas foi Aristóteles no sexto capítulo
da Poética quem articulou o fundamento causal, lembrando que a tragédia efetua pela piedade
e pelo temor a catarse das paixões. O sentido de purificação e purgação leva Lacan à questão
da Teoria Aristotélica de Jacob Bernays, cunhado de Freud, texto da maior profundidade e que
poderia ter sido melhor aproveitado pelo pai da psicanálise. Hoje estamos em paz com o termo
e podemos entender o efeito da obra trágica sobre a platéia ou o leitor.

O texto da tragédia possui comumente dois discursos em conflito e a ação vai se


confinando para uma saída única possível, às vezes inesperada, aniquiladora ou de morte, que
suspende a história e imobiliza a ação. Um silêncio em que o sujeito volta a si. Terminada a
apresentação teatral da tragédia cada qual volta ao seu próprio trágico. Aristóteles não espera
um efeito ético nem prático, mas o efeito de entusiasmo: palmas. Nós psicanalistas pensamos
no efeito apaziguador de se descobrir fora do palco. O apaziguamento nos sugere o prazer, ou
re-equilíbrio pulsional como pretendia Freud no Rascunho.

Que prazer é esse ao qual se retorna depois de uma crise que se desenvolve numa
outra dimensão, e que num dado momento o ameaça? Lacan lembra que a topologia define o
prazer como sendo a lei do que se desenrola aquém do aparelho, onde o temível centro de
aspirações do desejo nos atrai, permitindo-nos convergir melhor do que se fez até aqui, com a
intuição aristotélica.

Entre o Trabalho de Bernays e a revisão de Antígona, Lacan aproxima-se de uma


definição da tragédia que teria por meta a catarse, a purgação da pathemata, das paixões, do
temor e da piedade. Esta aproximação se dá pela articulação do lugar do desejo na economia
da Coisa freudiana.

Na busca do verdadeiro sentido, do verdadeiro mistério e do verdadeiro alcance da


tragédia, ao lado das paixões, encontramos o temor e a piedade que podem nos purgar por
intermédio de imagens. Há uma imagem central que possui um poder dissipador em relação a
todas as outras. Como na segunda morte imaginada pelos heróis de Sade, a morte invocada
como sendo o ponto onde o próprio ciclo das transformações naturais se aniquila. Podemos
dizer que neste ponto o ente cede lugar ao ser (dasein) de Heidegger. As metáforas do ente
desvanecem frente ao encontro do ser. É quando o sujeito passa do enredo a si mesmo.
Literariamente, "somos o que somos, mas também somos outros, mais cruéis e mais atentos
aos sinais do destino" PIGLIA (2004). Vamos à tragédia porque temos desejos extraordinários e
alguma aspiração a herói.

VINCULAÇÀO DA PSICANÁLISE COM A LITERATURA

Estendendo um pouco mais a relação descrita com a psicanálise, passemos aos


conflitos e tensões com a literatura. Há uma oposição marcada por críticas mútuas e a
desconfiança com que a psicanálise era olhada pelos homens de letras. Manuel Puig disse que
o inconsciente tem a estrutura de um folhetim. Ele escreveu suas ficções interessado nas
telenovelas e nos escritos da cultura de massa, para captar a dramaticidade implícita na vida e
que a psicanálise coloca como o centro da construção da subjetividade.

O mote da ambigüidade está no fato da psicanálise tentar avançar sobre uma zona
obscura que o artista preserva e prefere esquecer. Mas, elas usam uma à outra. Quem da
literatura melhor se utilizou da psicanálise foi Joyce, porque soube "perceber na psicanálise a
possibilidade de uma construção formal" PIGLIA 2004. Ele leu em Freud uma técnica narrativa
e um uso da linguagem. Não tentou se ajudar como tantos romancistas pelo refinamento de
instrumentos de caracterização psicológica. Ao contrário, percebeu que na construção de uma
narrativa o sistema de relações que definem a trama não deve obedecer a uma lógica linear;
dados e cenas remotas ressoam na superfície do relato e se enlaçam secretamente. Sempre
ouviu com cuidado as vozes femininas, sem temer a sedução do canto das sereias. Quando
escrevia Finnegans Wake, ouvia especialmente sua filha Lúcia que terminou psicótica,
morrendo internada em uma clínica da Suíça. Fazendo uma apresentação dos textos de Lúcia a
Jung revelou: "Aqui estão os textos que ela escreve, e o que ela escreve é o mesmo que eu
escrevo". Joyce obteve uma resposta sábia de Jung: "Mas onde você nada ela se afoga". Piglia
chama atenção que esta é a melhor definição que se conhece da distinção entre o artista e
outra coisa, que não vou chamar de outro modo que não esse. A literatura deve à psicanálise a
obra de Joyce.

VINCULAÇÃO À DECISÃO

Este texto, em vários momentos esbarra em opções de saídas ou oportunidades


possíveis. O exercício da produção literária, como o próprio exercício de viver está
constantemente oferecendo caminhos conflitantes ou ambivalentes com chances únicas de
escolha. São elas que levam à tragédia, ao heróico e à morte. Édipo teve suas chances de
escolha e até entre a arte e a psicose, como no balanço de uma vida que se encerra e se
resume em uma ponderação das escolhas que levam ao erro ou ao acerto. Sem a prevalência
de um destino, a escolha nos sugere a submissão ao desejo.

Existem duas regências para decidir-se: a primeira, decidir-se entre, comumente está
comprometida com o pragmatismo e a segunda, decidir-se por faz menção a uma escolha
existencial. GARCIA(1987) sugere um paralelo entre as posições de Sartre e Heidegger. Para
Sartre, quanto à existência, o sujeito escolhe sempre o que virá a ser, daí a necessidade da
escolha autêntica. Para Heidegger, a existência efetua decisão sozinha, está suspensa ao nada,
não se prende a uma autenticidade ou inautenticidade e o que importa é decidir. Entre os dois
autores entendemos que a decisão não é absoluta. A primeira noção situa melhor o sujeito
como agente, chamando atenção para uma desejabilidade a ser satisfeita.

Lacan no seminário da Ética nos fala do ceder ao desejo, após trabalhar a tragédia de
Antígona, mostrando que temos dentro de nós mesmos uma imagem de Antígona. Daí a recusa
ao texto de Sófocles. A lei que ordena um dever imprescindível só pode vir do Outro. Antígona
decide não ceder às falsas decisões humanas, que fingem ser razão de Estado ou ditadas pelos
deuses. Esta força surpreendente só pode vir deste lugar do Outro. Mas a ética vem do querer
e de um conhecimento, daí serem possíveis várias éticas sobre um mesmo saber. Segundo
Castoriadis "toda a Ética é da ordem de um projeto, de um querer, muito mais do que de um
conhecimento". Ela exprime desejos, necessidades, representações conscientes e
inconscientes, aquilo que os antropólogos consideram como cultura e que Castoriadis chamou
de imaginário social.

Da articulação da tragédia e da obra literária, chegamos à questão da lei e da ética que


estabelece os parâmetros de um caminho possível ou aceitável. A composição literária está
comumente marcada por encruzilhadas e conflitos, cujas soluções ou decisões marcam o
desejo do autor, envolvendo de modo especial o leitor que se realiza ou se violenta.

Como exemplo tomaremos um autor e uma obra, fugindo um pouco dos gregos. O
autor é Oscar Wilde, nascido em Dublin, como Joyce, 22 anos antes. Era filho de um médico
famoso e uma poetisa que lutara pela emancipação da Irlanda. Sua vida e sua obra se casam
em paralelos e identificações essenciais, que nos levam a pensar sobre suas decisões de vida e
dos rumos da obra. A marca do seu desejo é expressa pela transgressão à lei e à subjetivação
da ética, dois ingredientes comuns na elaboração da tragédia, mas também componentes da
estrutura perversa. É um autor que tornou a sua vida trágica, como tornou trágica a vida de
alguns de seus personagens, principalmente Dorian Gray.

Sua mãe escolheu ter uma filha e nasceu Oscar. Em protesto contra a natureza que
desrespeitou sua escolha, vestiu seu filho com roupas de menina até a idade escolar. De sua
propalada juventude feliz se torna poeta em um grupo de jovens de singular beleza, frente aos
prazeres da chamada década amarela. Assim se transforma em um dos dandis que encantavam
a sociedade londrina na época. Ele próprio se define: "herdei dos meus pais um nome da mais
alta distinção na literatura e nas artes". Na verdade, teve todas as portas abertas que
facilitaram sua vertiginosa carreira de escritor. Logo se tornou uma celebridade na Inglaterra,
nos Estados Unidos, onde por especial convite exibiu-se em Nova Iorque, Boston, Chicago e
outros centros, pronunciando palestras muito concorridas. Por seus exageros e maneirismos,
transforma-se em personagem de uma ópera-bufa de Gilbert e Sullivan. BRITO(1964). No
apogeu de sua carreira tem a "glória que o mundo acalenta e, ao mesmo tempo, secretamente,
teme e até a odeia". Wilde pode encarnar um ideal, mas a transgressão que encerra é também
uma ameaça contra a qual é preciso reagir.

No auge de sua carreira foi insultado pelo Marquês de Queensberry que o acusava de
homossexualismo e sedutor do seu filho, Lord Alfred Douglas. Ao sabor da época, tivemos um
grande escândalo e um processo em que o escritor foi condenado a dois anos de prisão com
trabalhos forçados, sob os rigores do silêncio. Abandonado pelos amigos, teve seus bens
penhorados, além do falecimento de sua amada mãe e da separação requerida por sua mulher.
Foi também cassado do direito de paternidade dos dois filhos que renegaram seu nome. Da
prisão consegue escrever sua última obra em prosa, uma carta acusatória a Douglas, que deu o
nome de De Profundis, mas que um dos tradutores para o português preferiu nomear A
Tragédia de Minha Vida.

O personagem fundamental, herdeiro de todos os componentes trágicos de sua vida,


está em O Retrato de Dorian Gray que toma a terrível e definitiva decisão de vender sua alma
ao demônio em troca de uma vida de satisfação imediata dos desejos e a preservação de sua
beleza e juventude. É uma proposta de atendimento inteiramente ao princípio do prazer, mas
sem pagar por isto, um rompimento com a lei e o bem, como questão essencialmente
pragmática. A ética fica foracluída e será exercida pelo demônio, figura cujo efeito da tentação
está exatamente na transgressão. Em seus descaminhos, possui uma espécie de espelho
mágico, um retrato capaz de registrar em um rosto pintado todos os seus atos perversos. Um
dia, não suportando aquele testemunho ético de sua desmesura, tenta esfaquear a tela,
momento em que seu rosto assume as marcas do quadro e morre. A punição final capaz de
encerrar suas tragédias: vida e obra.

BIBLIOGRAFIA
ARISTÓTELES. - A Arte Poética, Grandes Pensadores, Abril Cultural, São Paulo, 1972 [ Links ]

BRITO, M. S. (1964)- Apresentação, Prefácio da edição brasileira Wilde, O - ATRagédia de Minha


Vida, Livraria Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1964 [ Links ]

CASTORIADIS, C. (1986) apud GARCIA, Célio, 1988 [ Links ]

FREUD, S. (1897) - Rascunho N - Anexo à carta 64, vol. 1 Editora Imago, Rio [ Links ]

GARCIA, C. (1988) - Por uma questão de ética decidir-se, Falo Revista do Campo Lacaniano,
Editora Fator, ano 1 número 1, Salvador, 1988 [ Links ]

GUMBRECHT, H. U. (2001) - Os lugares da tragédia - In Filosofia e Literatura: o trágico, Jorge


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LACAN, Jacques - A Essência da Tragédia in: Seminário livro 7, A Ética da Psicanálise, Jorge
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MOST, Glenn (2001) - Da tragédia ao trágico - In: Filosofia e Literatura: o trágico, Jorge Zahar
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PIGLIA, Ricardo - Os Sujeitos Trágicos (literaura e psicanálise) in: Formas Breves, Companhia das
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SÓFOCLES, - Édipo Rei, A Trilogia Tebana, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1991 [ Links ]

SÓFOCLES, - Édipo em Antígona A Trilogia Tebana, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1991 [
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UNAMUNO, M. (1913) é uma referência contida no seu livro "Del Sentimento Trágico de la Vida
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WILDE, Oscar - A Tragédia de Minha Vida, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1964 [ Links
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WILDE, Oscar - De Profundis e Outros Escritos do Cárcere, LePM Pocket, Porto Alegre, 1998
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* Psicanalista. Membro fundador do Círculo Psicanalítico da Bahia.

COMO CITAR ESTE ARTIGO:

CORREA, Carlos Pinto. O trágico e a tragédia, vinculação e escolha. Cogito, Salvador , v. 7, p.


41-47, 2006 . Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-94792006000100007&lng
=pt&nrm=iso>. acessos em 28 dez. 2021.

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