A Beleza Do Gesto Jean GALARD

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A Beleza do Gesto
Uma Estética das Condutas

JEAN GALARD

[illJJ UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Reitora Suely Vilela


Vice-re;tor Franco Maria Lajolo

led:: EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Diretor-presidente Plinio Martins Filho


Mal'Y Amazonas Leite de Barros
COMISSÃO EDITORIAL
Tradução
Presidente José Mindlin

Vice-presidente Car10s Alberto Barbosa Dantas Celso Faval'ello e Leon Kossovitch


Adolpho José Mel1i Revisão Técnica
Benjamin Abdala Júnior
Maria Arminda do Nascimento Arruela
Nélio Marco Vincenzo Bizzo
Ricardo Toledo Silva

Diretora Editor;al Silvana Biral


Editoras-assistentes Marilena Vizentin
Carla Fernanda Fontana led:
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Título do original francês:


Lu Beullté dll geste: Por llne esthétiqlle des condllites
Tradução para o português feita a partir da edição da Prcsses de
L' École Normale Supérieure, 1984.
Copyright © 1997 by Jean Galard

I" edição 1997


I" edição, I" reimprcssão 2008

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SI', Brasil)

Galard, Jean, 1937-


A Beleza do Gesto: Uma Estética das Condutas / Jean Galard; tradução
de Mary Amazonas Leite de Barros. - 1. ed., I. reimpr. - São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2008. - (Críticas Poéticas, 7)
Para Alena
ISBN 978-85-314-0420-7

I. Estética I. Título. I!. Série.

97-4843 CDD-305.567

Indíces para catúlogo sisten1útico:


I. Estética: Filosofia I 11.85

Direitos em língua portuguesa reservados ü

Edusp - Editora da Universidade de São Paulo

Av. Prof. Luciano Gualbcrto, Travessa.1, 374


6° andar - EeI. da Antiga Reitoria - Cidade Universitária
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www.edusp.com.br-e-mail: edusp@usp.br

Printed in Brazil 2008

Foi feito o depósito legal


SUMÁRIO

Prefácio à Edição Brasileira


11

Uma Arte, ao Pé da Letra


19

Poética da Conduta
23

Ética do Signo
39

A Economia dos Meios


49

A Ação Simbólica
59

Parêntesis
73

Estética Romântica
77
10

o Sentido do Insignificante
89

o Franqueamento do Gesto
103

Estéticas
119

PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA

Muitas línguas - embora nem todas - utili-


zam o mesmo termo para designar os movimentos
do corpo portadores de significação e algumas
ações que são qualificadas de "gestos" em sentido
figurado. É neste sentido que considero um gesto,
por exemplo, o ato generoso graças ao qual este
ensaio pode ser hoje editado no Brasil, gesto de
hospitalidade da Universidade de São Paulo, que
repete outro, do passado, do qual eu já me benefi-
ciara. A língua portuguesa e francesa jogam de
modo semelhante com essa ambivalência da pala-
vra "gesto" - o que constitui ao menos um ele-
mento favorável a esta tradução.
Até que ponto as conotações da palavra "gesto",
entendida no sentido figurado, são idênticas em fran-
cês e em português? Para percebê-Io, é preciso um
ouvido bem treinado. Esta nota não pretende respon-
der a tal questão. Apenas chama atenção para o fato
de que a palavra, em francês, tem um valor estéti-
12 13

co. Só O emprego do masculino subsiste atualmen- São inúmeros os fenômenos históricos, os pe-
te, mas ele parece ter conservado, no sentido figu- ríodos, as instituições, que, cuidadosamente ana-
rado, tudo o que havia de glorioso nos dois empre- lisados, permitiriam compreender melhor a sedu-
gos femininos, hoje em desuso, e que designavam, na ção, a gravidade e também os engodos da "beleza
Idade Média, seja a narrativa das façanhas de uma do gesto". Para citar alguns modelos metodológi-
personagem histórica, exaltadas pela lenda, sejam cos, pense-se no trabalho de Maurice Pinguet, La
as ações belas e memoráveis. Para ilustrar (por,apa- Mort volontaire au Japon (1984), que explora com
rentemente, não poder defini-Ia) a acepção dita "abs- documentos as significações do "bem morrer", ou
trata", os dicionários mencionam correntemente a no de Michel Foucault, que, em L'Usage des plai-
locução "fazer um belo gesto". sirs eLe Souci de sai (1984), deslinda e interroga,
A existência ou a ausência numa língua de no núcleo da cultura greco-~atina, aquilo a que
uma palavra que expresse o gesto no sentido figu- chama de "artes da existência". Pense-se também
rado tem, certamente, alguma significação antro- nos inúmeros objetos de pesquisa designados, de
pológica. O mesmo acontece com a associação pos- passagem, por Georges Duby, no que concerne ao
sível dessa palavra com a que designa a beleza e fenômeno da cavalaria; por Jacob Burckhardt ou
com o juízo de valor implicitamente aplicado a esse Philippe Aries, a respeito da sociedade da corte;
eventual par terminológico. Essas realidades lin- por Paul Bénichou em Morales du grand siecle
güísticas são, sem dúvida, interessantes sintomas (1948). Renato Janine Ribeiro efetua um vivo pa-
para um estudo das mentalidades. A atitude italia- norama da ética-estética das cortes européias dos
na em relação ao bel gesto é, antes, laudativa, en- séculos XVII e XVIII em A Etiqueta no Antigo Regi-
quanto a atitude alemã em relação ao schõne Geste me: do Sangue à Doce Vida (1983).
tende ao irônico. O gosto pelo belo gesto pressupõe Pode-se - e deve-se - acrescentar a esses gran-
uma preocupação com as formas (e com os códigos, des exemplos (o cavaleiro, o sábio, o homem da cor-
até para desobedecê-Ios) que se encontra mais nos te, o herói corneliano), com os quais se fica em ex-
franceses do que nos brasileiros, pois, segundo celente companhia, alguns casos mais comprome-
consta, estes são mais suscetíveis a condutas "in- tedores: o dos "dândis" e dos "decadentes", o de um
formais". d'Annunzio, o de um Marinetti, que são igualmente
Mas este ensaio não tem como objetivo, de for- instrutivos ou mais cruelmente esclarecedores.
ma alguma, analisar o espírito de um povo, nem se Mas, quando este pequeno livro procurava fa-
colocar sob a égide de uma sociologia comparativa, zer surgir seu objeto (e não analisar um objeto
nem contribuir para uma história das mentalida- "dado"), o desejo de saber se a conduta da vida
des. Ele não tem a intenção de fazer o saber posi- poderia ser, um dia, inteiramente estetizada, im-
tivo avançar, por pouco que seja. Sequer teve o cui- punha-se quase obsessivamente. Estava fora de
dado de definir um corpus. Caberia aqui um arre- cogitação encarar um estudo aprofundado, dedica-
pendimento? do a uma ou a outra dessas figuras: o ganho pare-
14
15

cia demasiado incerto; o desvio, por demais longo. Diderot: "Não se tem pelos seres imaginários a de-
O passado só era interessante como reservatório
ferência que se deve a seres reais". Por isso, apli-
de "fatos e gestos" em que se pudesse escolher con- cam-se as invenções da arte às representações da
forme a ocasião. É assim, parece, que a educação realidade: "Não se deve fazer poesia na vida. Os
moral tratava outrora o conhecimento do passado: heróis, os amantes romanescos, os grandes patrio-
ela descontextualizava os fatos históricos a fim de
tas, os magistrados inflexíveis, os apóstolos da re-
torná-Ios exemplares. Este ensaio, refratário à in- ligião, os filósofos a qualquer custo, todos esses
vestigação historiadora, procurou agenciar algu- raros e divinos insensatos fazem poesia na vida,
mas noções a partir das quais uma conduta bela daí a sua infelicidade" (Salon, de 1767). "Eles são
seria dorauante concebível.
excelentes para ser pintados", acrescenta Diderot.
Projeto novo, capaz de ter sentido atualmente?
Fornecem após sua morte os temas de grandes qua-
Ou projeto "utópico", isto é, do qual nunca se en- dros. Mas, enquanto vivem, causam não só a sua
contrará realização satisfatória em lugar algum? própria infelicidade, como também a de outrem.
Programa radicalmente impossível, ou atualmen- Não cabe aqui retomar novamente o problema,
te impraticável devido à civilização em que esta- vasto, de saber se a arte pode ou não modelar a
mos, que é tecnicista e inteiramente votada ao vida, se ela deve ou não fazê-Io. Porém, uma vez
princípio de utilidade? Em seu Hagakure nyumon que esta é exatamente a questão que subtende este
(Introdução ao Hagakurê, 1968; traduzido para o ensaio, que nos seja permitido acrescentar ainda
francês sob o título Le Japon moderne et l'éthique uma ou duas observações, em tom interrogativo:
samourai", 1985), Mishima imputava a causa de talvez elas possam revelar uma incorrigível inge-
seu desespero à época em que vivia: "A atmosfera nuidade; talvez possam, pelo contrário, mostrar
de compromisso deste tempo deve-se ao fato de
que aquele que se esforça por viver e morrer na
beleza se destina a uma morte que terá toda a
,
1[;
como uma estética das condutas não é ainda uma
questão fechada.
Quando Diderot escreve que não se deve fazer
aparência da ignomínia, ao passo que aquele que poesia na vida e que as grandes ações só convêm
só aspira a uma vida e a uma morte que são, na aos quadros, quando afirma em outra parte (em
realidade, repugnantes passa dias felizes". Não Paradoxe sur le comédien) que o teatro aumenta o
seria, antes, de modo totalmente intemporal que a que ele representa e que a arte imita um mundo
conduta da vida (assim como a da morte) e a von- ideal onde tudo é "grande, raro, maravilhoso e su-
tade de beleza se excluiriam mutuamente?
blime", observa que nossa vida, por contraste, é
A arte, geradora de beleza (não apenas de de- "pequena, pobre, mesquinha e miserável". Resig-
leite, mas de beleza trágica, sublime, surpreenden- nar-se-á com essa comprovação? Será preciso até
te), tem, sobre a vida corrente, a vantagem de re- consentir em vê-Ia piorar sob o efeito de uma arte
correr à ficção. Tudo, então, lhe é permitido. Ela adversa, que difunde por toda parte doravante a
vive sob o regime da impunidade. Como afirma imagem de um outro "mundo ideal", convidando a
16 17

uma vida sempre mais uniforme e vulgar? De ilustrada de propósitos retóricos que as noções de
qualquer modo, a questão da estética da vida se "Arte" e de "Vida" tornaram-se cada vez mais ne-
propõe. Se não explicitamente, para definir as con- bulosas. Pior do que inúteis: atravancadoras. En-
dições de uma conduta bela, será implicitamente, tretanto, a questão ética, por seu lado, continua a
na súbita tomada de consciência de que um gesto se colocar, embora seja abandonada pela teoria.
foi ignóbil ou de que um destino foi desperdiçado. Como conduzir a vida? Pergunta de todos os ins-
Após os triunfos, no século XVIII, da doutrina 'tantes, que requer, ao longo de nossos dias, prin-
do "belo ideal", a "arte" e a "vida", durante dois cípios diferentes daqueles açambarcados pelo dis-
séculos, não deixaram de se situar, uma em rela- curso moral (tolerância, respeito pelos direitos do
ção à outra, numa complexa relação de rivalidade, homem). Talvez ela requeira, de fato, outra coisa
como dois termos que, ao mesmo tempo, se apro- além de "princípios". Será que não se pode imagi-
ximam necessariamente e se excluem fatalmente. nar, em vez das leis que se supõem governando a
"Empregar seu gênio na vida e não na obra": esta vida moral, uma arte do "pertinente", produzindo
é a ambição, proveniente do romantismo, que se para cada situação singular o gesto que convém?
formula mais ou menos expressamente durante o Kant, em Crítica do Juízo (§ 5) estabelece a distin-
século XIXe que se repete cada vez mais obstina- ção: "mostrar gosto em sua conduta (ou no julga-
damente no decorrer do século XX. Uma grande mento da de outros) é algo totalmente diverso do
parte da arte deste século parece mobilizada pela que exteriorizar seu modo de pensamento moral".
intenção de apagar as fronteiras entre a obra e Este é precisamente o ponto sobre o qual é interes-
seus entornos, entre a cena e o espectador, entre sante interrogar-se. Não está o exercício do gosto
a religião da arte e o mundo comum. A vasta des- f na origem de nossas condutas mais inventivas?
cendência de Marcel Duchamp se esgota hoje na Ii Não será a repugnância o fator mais poderoso de
compulsiva experimentação do que é "próprio da recusa das condutas degradantes? É preciso enten-
~
arte". Na perplexidade em que estamos agora der por "gosto" coisa diferente da expressão de
quanto à questão de saber o que a arte tem de es- uma intuição obstinada: é exatamente o que acon-
pecífico ou distinto, duas hipóteses extremas aco- tece esteticamente, uma vez que se admite que o
dem: terá a arte concluído o trabalho de apagar gosto se cultiva. Nas páginas que se seguem, cogi-
suas fronteiras a ponto de ter-se abolido totalmen- tar-se-á a eventualidade de uma ética renovada,
te? Ou terá ela cumprido a ambição de estender que procuraria, para nossos juízos e escolhas,
seus limites a ponto de ter conquistado (pelo me- constituir, refinar, cultivar um gosto esclarecido.
nos a título simplesmente de "zonas de influência")
todos os domínios da vida?
A questão da disseminação da arte, de sua "di-
fusão" (de seu triunfo difuso), de seu ultrapassa-
mento, produziu uma literatura tão ricamente
UMA ARTE, AO PÉ DA LETRA

A arte mais necessária, aquela para a qual


cada instante oferece matéria e oportunidade, é
entretanto de todas a mais rudimentar, a mais
desprovida de princípios conscientes, de categorias
estilísticas, de referências notórias: a arte do com-
portamento.
Saber encontrar, no momento oportuno, o gesto
adequado; atribuir valor tanto à maneira quanto ao
objetivo; não se contentar com o respeito aos usos
nem com as facilidades da sem-cerimônia; saber,
com gestos mínimos, abrir o curso banal da existên-
cia à estranheza: alguns modos felizes de comporta-
mento requerem uma compreensão que parece de-
correr da mesma ordem estética que a do sentimen-
to, inspirado, no pólo oposto, pela trivialidade de
um malogro, pela deselegância de um procedimen-
to, pela afetação de um modo de ser; mas estão lon-
ge de constituir objeto de reflexões há tanto tempo
familiares quanto as que se aplicam habitualmente
20 21

às artes instituídas. Enquanto as análises cinema- irmã da moça desmanchar-se em soluços convul-
tográficas, as concepções arquitetõnicas, as teorias sivos, não podia impedir-se de observar, apesar
literárias florescem no luxo especulativo, a aprecia- da aflição, as falhas de emissão vocal observáveis
ção das condutas e das atitudes permanece subme- naqueles soluços e pensava, vagamente, nos exer-
tida à indigente jurisdição da intuição. cícios apropriados para lhes dar mais corpo"!.
Todos os nossos atos são constantemente sus- Villiers de l'Isle-Adam se empenha em persuadir-
cetíveis de se converter em gestos, de simbolizar nos de que a dor ou a alegria não são menos in-
um modo de ser, um jeito de tratar os outros. É im- tensamente sentidas quando sua expressão é con-
possível, até na solidão ou na inação, impedir que tida do que quando ela se manifesta em ruídos
a conduta tenha sentido (que signifique, por exem- confusos. Nos seres que gostariam de se prescre-
plo, o isolamento, o recolhimento, por vezes a de- ver impulsos mais espontâneos, paixões mais
missão, a deserção), portanto, que seja, como uma francas, mais sinceras, ele evidencia, pelo contrá-
postura, expressiva. Esse conjunto de atitudes (de rio, uma fraqueza afetiva, conjecturando que lan-
posturas ou imposturas), que adotamos inevitavel- çam clamores para justificar-se de antemão pela
mente a todo instante, não requereria uma verda- inércia na qual sentem que vão logo recair. A agi-
deira arte, que o avalie, o trabalhe, o recomponha? tação emocional reivindica mentirosamente o
Talvez a noção de arte sugira uma intenção por natural: reproduz "sinceridades correntes", "pan-
demais aplicada, concertada, para parecer compa- tomimas convencionais".
tível com a espontaneidade e a improvisação que Se é verdade que toda reação é socialmente mo-
se supõem prevalentes na condução da vida. Mas delada, que nossos gestos, inclusive os mais ele-
não será em nome de uma exigência estética que mentares, são educados, a arte que se dedicasse a
notamos justamente essa inconveniência (essa in- eles não contradiria o "natural", substituiria uma
compatibilidade) e que ficamos constrangidos, por arte anterior, uma estética implícita, pouco cons-
exemplo, quando vemos alguém compondo sua ciente, que regula o porte e a atitude, a continên-
imagem ou calculando seus efeitos? Decorreriam cia e as conveniências, que subtende a exigência da
as atitudes afetadas de uma aplicação intempes- contenção, quando não do comedimento. Uma arte
tiva da arte à vida? Não indicariam elas, antes, deliberada, associada às condutas, não teria como
pelo contrário, que nisso nos ativemos aos proce- objetivo opor seus eventuais refinamentos aos ex-
dimentos de uma arte simplificada? Os escrúpulos travasamentos dos instintos; ela experimentaria
da atividade artística levam-na a desfazer as po- gestos inusitados, que a estética herdada exclui.
ses, os maneirismos, as construções mais estuda- É preciso entender aqui o "gesto" na maior
das. A espontaneidade é uma das ambições da extensão do termo: não só no sentido próprio (os
arte; o natural, uma categoria estética.
Villiers de l'Isle-Adam evoca "um cantor que, 1. Villiers de l'Isle~Adam, "Sentimentalisme", Contes cruelfj, Paris, Garnier-
junto ao leito de morte de sua noiva, e ouvindo a Flammarion, 1980, p. 180.
22

movimentos do corpo, os usos corporais), mas tam-


bém na acepção figurada. Permanecer resoluta-
mente exposto a um perigo, enfrentar um adversá-
rio mais forte, lançar-se em nome da honra numa
aventura sem esperança, é "agir pela beleza do
gesto" - como se um sistema estético, de princí-
pios constantemente ativos, mas informulados, nos
incitasse a acreditar que a beleza nunca pode apa-
recer tão bem como nas poses de desafio, nas rea-
ções suicidas, no brilho e na gratuidade. Referên- POÉTICA DA CONDUTA
cias tácitas determinam igualmente o juízo dirigi-
do ao gesto global que é todo o desenrolar de uma
vida: elas detêm os critérios segundo os quais uma
vida é "bem-sucedida" ou "malograda", fixam o
modelo das carreiras "exemplares", cristálizando,
ao mesmo tempo, o fracasso incontável das exis-
tências frustradas. Que a apreensão estética da existência seja,
Tratar a conduta como uma arte. Postular afinal, coisa comum, é o que atestam, por exemplo,
que ela pode, como o teatro ou a música, despren- o uso corrente das noções de "rotina", "monoto-
"I
der-se dos ideais estreitos, das estéticas corren- nia", "cinza", o enfado que se tem por levar uma
,I
I'
tes. As tentativas deste ensaio entendem o inte- vida chinfrim, pobremente cotidiana, condenada à
(.!
resse estético segundo diversas definições concor- chatice, ou ainda a extensão metafórica que às
rentes, para explorar a cada vez a eventualidade vezes se dá à oposição da "prosa" à "poesia".
de sua aplicação ao conjunto do comportamento. A categoria do "poético" reivindica, desde o ro-
Essas hipóteses desejam propor-se, como outras mantismo, um campo de aplicação que excede a es-
abordagens, como sendo uma série de esboços fera das palavras, inclui, para Chateaubriand, al-
(como sendo uma seqüência de gestos). Longe de gumas práticas antigas (as festas, as peregrina-
atribuir a si mesma um campo de experiência ções), estende-se, com George Sand, ao modo de
pré-constituído, um domínio de observação, a in- vida campestre em seu conjunto. Sartre, um século
vestigação procede aqui de um desejo cujo obje- depois, interpreta a maneira de ser africana, cele-
to não é comprovado, mas induzido; apoiando-se brada por Senghor sob o nome de Negritude, como
num esquema analógico, ela infere a possibilida- a expressão de uma poesia de agricultores, oposta
de de provocar, no próprio curso da vida, a con- a uma prosa de engenheiros! . Por mais distante
sistência formal ou a intensidade emocional, pró-
prias da experiência artística. 1. J.~P.8artre, "Orphée noir", Situations IIl, Paris, Gallimard, 1949, p. 265.
24 25

que esteja dos temas românticos, Valéry destaca e os prosadores segundo suas preferências, saben-
um fato de linguagem ("Dizemos de uma paisagem do-se que gosto não se discute, é eliminar depres-
que é poética; dizemo-Io de uma circunstância da sa demais o objeto do debate. Pelo contrário, que
vida; dizemo-Io às vezes de uma pessoa") e retoma renovação de perspectiva não haveria, se as dife-
o postulado que este uso implica ("Sei que tem rentes maneiras de viver e agir pudessem compa-
poesia neste arranha-céu"2). Karel Teige, nos Ma- rar-se, criticar-se, comentar-se conforme uma ter-
nifestos do Poetismo, declara preferir as vibra- minologia tão elaborada quanto a das análises do
ções que a vida oferece aos cinco sentidos às flores discurso e, para começar, conforme a alternativa
destacadas da literatura: "poesia das tardes de do- da poesia e da prosa. Em vez de atingir uma
mingo, das excursões, dos cafés iluminados, do ál- tipologia naturalista dos caracteres, essa transpo-
cool embriagador, dos bulevares animados, das ca- sição das categorias literárias ofereceria a cada
minhadas nos balneários, e ainda poesia do silên- um a liberdade de decidir sobre o tom, o gênero, o
cio, da noite, da calma e da paz"3. registro nos quais ele escreveria sua vida. Um in-
De que modo objetos, lugares, condições de divíduo, e até um grupo, escolheria comportar-se
existência, seres, comportamentos podem pare- de maneira poética ou consentir com a prosa, em
cer carregados de poesia? Se aí só existe uma virtude das circunstâncias ou do estado de suas
série de idéias feitas, como e por quem foram convicções estéticas.
elas transmitidas? Suponhamos que a poesia, em vez de ser pri-
Jean Lacouture ressalta que Malraux se empe- meiramente uma coleção de objetos (verbais), seja
I
lil,I nhou em combates pelos chineses, vietnamitas, um processo cuja autonomia fosse suficiente para
,I espanhóis, enquanto se manteve à margem das que ele operasse de maneira semelhante nas cons-
tribunas da Frente Popular. Observa também que truções de palavras, nas disposições de objetos,
algo dessa atitude reaparece no terceiro-mundismo nas composições de gestos. Se a operação poética
da esquerda dos anos 60, que prefere apaixonar-se consiste em algum funcionamento dos signos (e
pelos palestinos ou vietnamitas a fazê-Io pelo pro- não no uso de alguns signos), torna-se concebível
letariado francês. Ele conclui: "Debate sem fim, e uma poética da conduta que não se deixe deter
talvez sem razão. Há os da infantaria e os da ca- pela evidente heterogeneidade das palavras e dos
valaria. Nômades e sedentários. Poetas e prosado- gestos na tarefa de determinar as propriedades
res"4. Repartir em variedades congeniais os poetas desse funcionamento.
Sem ambicionar exatidão (nem paralelismo
com a incerta essência da Poesia), sem outra ga-
2. Paul Valér:y' "Propos sur Ia poésie" e "Nécessité de Ia poésie", Variété, rantia que não seja o sucesso amplamente testa-
Paris, Gallimard, 1957, Pléiade, tomo I, pp. 1 362, 1 386.
do do esquema que J akobson construiu para clas-
3. Karel Teige, "Poétisme" (1924), Change (10):111,1972.
4. Jean Lacouture,André Malraux. Une Vie dans le siêcle, Paris, Seuil, 1973,
sificar as funções da linguagem, tome-se como
pp.184·185. ponto de partida a definição da função poética
---,.-

26 27

por ele proposta - mesmo que se tenha depois Do mesmo modo que a análise literária teve de
de explorar as deduções resultantes de uma de- combater o descrédito que era lançado sobre as
finição diferente. "formas" supostamente vazias quando prevalecia a
A função poética põe em evidência o lado ma- preocupação com um assim chamado "fundo", a
terial dos signos; ela enfatiza as particularidades análise das condutas deveria começar por reabili-
sensíveis da mensagem, que então se refere prin- tar o gesto, que é freqüentemente depreciado por
cipalmente a si mesma em vez de se dissolver, as- ser considerado exterior e secundário em relação
sim que utilizada em proveito da experiência à verdade das intenções. A intenção verdadeira
evocada ou da informação transmitida; ela organi- seria a que se concretiza em atos. A intenção seria
za as seqüências de signos de forma a manter o falsa, afetada, quando se contenta com gestos. O
caráter perceptível de sua construçã05. Quais os ato e o gesto, entretanto, não se distinguem segun-
processos que permitem obter essa visibilidade da do as intenções diferentes que os subtendem. Os
linguagem tornada "autotélica"? Em primeiro lu- movimentos de um operário aparecem ora como
gar, as "figuras", e talvez exclusivamente elas, se atos, ora como gestos, embora não se suponha que
esse termo for entendido com suficiente amplitu- a intenção que os dirige tenha mudado. São atos
de para designar tudo o que torna a linguagem enquanto não são descritos. São gestos desde que
percebida enquanto tal, e não apenas o que se despertem atenção. O gesto nada mais é que o ato
afasta de seu emprego mais freqüente6• considerado na totalidade de seu desenrolar, per-
O caráter perceptível de algumas seqüências cebido enq"llanto tal, observado, captado. O ato é o
de signos manifesta-se no âmbito da conduta, as- que resta de um gesto cujos momentos foram es-
sim como no da linguagem. Os "códigos do savoir- quecidos e do qual só se conhecem os resultados.
vivre" formavam outrora um rigoroso equivalente O gesto se revela, mesmo que sua intenção seja
dos tratados do bem falar ou do bem escrever. Sua prática, interessada. O ato se resume em seus efei-
existência bastaria para provar que a conduta é tos, ainda que quisesse se mostrar espetacular ou
suscetível da mesma aproximação retórica que a gratuito. Um se impõe com o caráter perceptível de
linguagem. Os gestos que eles codificavam consti- sua construção; o outro passa como uma prosa que
tuem a "visibilidade" da conduta, como as figuras transmitiu o que tinha a dizer. O gesto é a poesia
tornam possível a da linguagem. do ato.
A conduta se gestualiza por meio de figuras
que são parcialmente as mesmas inventariadas
pela teoria do discurso. A repetição poetiza os cos-
5. Roman Jakobson, "Lingllistique et poétique", Essais de linguistique tumes. A gradação caracteriza as carreiras bem-
générale, Paris, Minuit, 1963, p. 218.
sucedidas, como também a antítese, os. sucessos
6. Tzvetan Todorov, Poétique de Ia prose, Paris, 8ellil, 1971, p. 51;
Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage, Paris, Seuil, 1972, pp. inopinados ou as quedas magistrais. A elipse assi-
351-352. nala a liberdade de postura. A ironia mimetiza ati-
28 29

tudes e, ao mesmo tempo, ordena índices que con- Skira, cujo escritório ficava na casa ao lado: quan-
tradizem o sentido dessas mesmas atitudes. Os do concluía um cobre, em vez de pegar o telefone,
holocaustos, numa insurreição, constituem ora as fazia soar uma trombeta; Skira logo comparecias.
metáforas (quando devastam os edifícios oficiais), Teria esse gesto o mesmo charme caso se supuses-
ora as metonímias (quando destroem bens priva- se que ele ocorreu só uma vez? A reiteração desem-
dos) da simbólica revolucionária. Recusar um penha um papel estético decisivo. Mas é preciso
aperto de mão é uma litotes; (,)abraço é uma indagar se esse papel não lhe é conferido pelo
hipérbole.
modo verbal do imperfeito, se não resulta de um
É verdade que algumas figuras do comporta- artifício de expressão mais do que de uma virtude
mento permaneceriam despercebidas (não existi- poética que estaria ligada à própria realidade
riam enquanto figuras) se a linguagem não inter- repetitiva, em suma, se a poesia das repetições
viesse para ressaltá-Ias. Nenhuma conduta, talvez, não é inteiramente obra da linguagem.
poderia se dar por elíptica, sem uma enunciação Os recursos criativos do comportamento cor-
que destacasse que "se queimaram as etapas". Tão rem o risco de se revelarem por demais reduzidos,
determinante na ordem da poesia verbal, a repe- comparados com as possibilidades das artes de fic-
tição é um problema quando se trata dos gestos. ção e, mais especialmente, com os das artes de
Por um lado, ela é correntemente vivida como uma pura linguagem. Algumas condutas podem ser di-
necessidade infeliz: as tarefas comuns se repetem tas, mas não realizadas. Por exemplo, a imagina-
na monotonia. Todavia, ela aparece como um fator da por Coeteau: "o que eu pegaria numa casa to-
de poesia segundo a estética espontânea que rege, mada pelo fogo seria exatamente o fogo".A beleza
por exemplo, as narrações de anedotas, onde se do gesto deriva aqui da ambigüidade da palavra
utiliza comumente o imperfeito de reiteração. "Os "fogo", de seu simbolismo. Trata-se de um gesto
Surrealistas se reuniam todos os dias no Cyrano". fictício, inteiramente constituído de um jogo de
O passado se torna tanto mais mítico quanto mais palavras. A passagem ao ato não só seria inútil
habitual ele tiver sido. "Maillol freqüentemente (procura-se fogo tanto num incêndio quanto em
segurava o mijo quando voltava de Paris para qualquer outro lugar), como seria até impossível
Marly-Ie-Roy, para melhor regar as grandes está- (não se transporta o fogo em estado puro: o que se
tuas de seu jardim com esse elixir que tão bem retira do incêndio é este ou aquele objeto em cha-
patina os bronzes"7. Uma ocorrência que foi talvez mas). É, portanto, à linguagem que se deve atri-
única se enriquece quando relatada como um rito. buir, ainda aqui, o poder de poetização que se exer-
Brassai' conta que Picasso, na época em que mora~ cita em um aparente proveito da conduta.
va na Rue La Boétie, trabalhava para Albert

7. Brassal, Conversations avec Picasso, Paris, Gallimard, 1964, p. 251. 8. Id., p. 129.
30 31

Deve-se generalizar? Propõe-se a questão de É, portanto, verdadeiro, em certo sentido, que


saber se a conduta não é irremediavelmente pro- só há poesia nos poemas (como só há aventura nos·
saica em relação aos achados a que se prestam as romances, intriga nas narrativas, dramatização no
palavras. Pode-se ficar tentado a responder que os teatro) e que um gesto talvez deva o essencial de
gestos, enquanto tais, não são poéticos nem prosai- sua beleza ao talento com que é relatado. Entre-
cos, que o papel decisivo pertence à linguagem, tanto, desde que não se minimizem esses privilé-
que é por ela que a poesia acede ao comportamen- gios da literatura, podem-se reconhecer os proce-
to, sendo este esteticamente neutro enquanto a li- dimentos de que ela dispõe para tentar fazê-Ios
teratura dele não se encarrega. operar alhures de outro modo. Apreendidos num
Um dia, Alfred Jarry mostrou de maneira bru- grau suficiente de abstração, eles aparecem como
tal que um gesto aparentemente insensato adqui- operações estéticas, suscetíveis de se precisarem
re sentido de repente, no exato instante em que se diversamente segundo a substância da arte que os
pensa pronunciar a expressão verbal que mais li- emprega.
teralmente lhe corresponda. Tendo entrado num O mais notável desses procedimentos é o que
bar com seu aparato' habitual de armas de fogo, dá consiste em restabelecer o sentido de algumas for-
um tiro de revólver no copo de gelo, que se estilha- mas que os constrangimentos funcionais destina-
ça. Em meio ao pânico geral, volta-se para uma vam à insignificância. No texto artístico, como
senhora sentada perto e diz: "Muito bem, quebra- afirma Iuri Lotman, "produz-se uma semantização
do o gelo"', conversemos". A polissemia da palavra dos elementos extra-semânticos (sintáticos) da lín-
"gelo", como há pouco a da palavra "fogo" é essen- gua natural"9. A mesma operação que se encontra
cial na constituição de tal gesto. Portanto, este não . na prática cinematográfica da câmara lenta ou do
existiria se não tivesse sido dito. congelamento da imagem consistirá também, sob
Na frase de Cocteau, os dois sentidos de "fogo" outras modalidades, em romper o desenrolar da
estão ligados por uma relação simbólica, a combus- conduta, em reter a atenção em algum de seus
tão física significando, de maneira convencional, a momentos, para conferir-lhe um sentido que o en-
intensidade espiritual. Jarry, ao contrário, aproxi- cadeamento dos atos dissolveria.
ma dois sentidos de "gelo" que não têm relação. O Greimas assinalou a ambivalência de algumas
pseudogesto de Cocteau possui um efeito "poético" atividades corporais que, segundo a situação, têm
que se pode julgar relativamente fácil; ele é apenas estatutos semióticos opostos. Um movimento,
engenhoso, ao passo que o de Jarry é insólito e "sur- abaixar a cabeça, por exemplo, pode parecer um
realista". Mas ambos têm em COl;numo fato de ilus- enunciado gestual completo (saudar); pode, ao con-
trarem mais os poderes do verbo que os do gesto. trário, embora fisicamente idêntico, integrar-se

* Alfred Jarry dá um tiro de revólver num espelho. A língua francesa usa 9. Iuri Lotman, La Structure du texte artistique, Paris, Gallimard, 1973,
a mesma palavra "glace" para espelho e para gelo [N. da T.]. p.53.
32 33

numa sequencia (passar por uma porta baixa). serindo-o em sua conduta, porque esse movimen-
Tendo sido um enunciado, torna-se então um ele- to nela não se integra como na do camponês que
mento que tem, antes de mais, o estatuto do semeia um campo. Do mesmo modo, um simples
fonema, da unidade mínima que, reduzida a si espectador pode ressemantizar um elemento da
mesma, nada quer dizer. Movimento semelhante conduta de outrem e ver, por exemplo, um "gesto
pode, portanto, se dar, quer para um programa augusto"ll em que o semeador nem tem a sensação
inteiro, dotado de significado, quer para um de ser augusto, nem sequer a de fazer gestos.
subprograma, que Greimas compara à sílaba des- Isso dá conta de uma propriedade notável do
provida de significação. Neste caso, ele se limita a gesto, a saber, que ele permite dizer, em virtude da
assegurar a transitividade da seqüência. Naquele, riqueza semântica que pode ligar-se a qualquer
será dito intransitivo. Um movimento corporal, movimento do corpo, mas resguardando-se do que
que era suscetível de constituir por si só um pro- tenha sido dito, devido à absorção sempre possível
grama e, portanto, de se encontrar carregado de desse movimento num sintagma que o neutraliza.
sentido, se "dessemantiza" quando se incorpora A significação do gesto é sempre transmitida com
num sintagma mais amplolo. a possibilidade de sua denegação. Um movimento
Por uma decisão terminológica que não é a de é capaz de se apresentar como portador de um sen-
Greimas, mas que parece confluir com o uso da lín- tido autônomo facilmente legível e de desaparecer
gua, consideremos como sendo gestos apenas os imediatamente na inocência de uma prática insig-
movimentos do corpo que são intransitivos, que são nificante. Ele diz perfeitamente o que quer dizer,
programas inteiros. É preciso então admitir que os mas, de repente, cala-se, apaga-se, não é preciso
mesmos movimentos, quando se fundem num nele deter-se, ele nunca foi um gesto. As condutas
sintagma mais vasto, quando se dessemantizam, de sedução freqüentemente jogam com essa ambi-
perdem o estatuto de gesto. Como não existe, ao güidade: as proposições amorosas arriscam gestos
que parece, qualquer movimento que se encontre que sabem anular-se como tais se não obtêm a res-
sempre em posição semanticamente neutra, e tam- posta esperada (então um carinho não passa de
pouco existe algum que esteja definitivamente à um toque casual, que não se queria um gesto). É
margem do processo de dessemantização, deve-se que todos os movimentos, todas as posturas estão
esperar que, no conjunto dos usos corporais, a clas- em condições de se mostrar intransitivos, mas
se dos gestos seja móvel. Um ator pode constituir igualmente de se desembaraçar imediatamente de
como gesto o movimento do braço que toma de sua carga semântica incorporando-se numa se-
empréstimo ao semeador: ele o ressemantiza in- qüência, seja pela efetiva construção ulteríor des-

10. A. J. Greimas, "Conditions d'une sémiotique du Illondenaturel",


Langages (10): 14-15, 1968; retomado em Du Senso Essais sémiotiques, 11. Expressão bem conhecida na língua francesa. Victor Hugo: "L'ombre I
Paris, Senil, 1970, pp. 49-91, ver especialmente pp. 60, 65. Semble élargirjusqu'aux étoiles / Le geste auguste du semeur".
34 35

sa, seja por uma simples mudança de pontuação crever: "Nous lézards aimons les Muses"12'). Quan-
que faz aparecer um fragmento de seqüência onde to ao estreitamento das unidades, parece ser este
se poderia ter lido um enunciado completo. Alegar o objetivo dos procedimentos mobilizados com mais
as coerções de uma ocupação é o meio mais banal, constância pelo que se convencionou chamar de
por exemplo, de suprimir o sentido de uma parti- poesia. A repetição, multiplicando os enunciados
da, que lhe fora efetivamente conferido, mas que nos quais reaparece uma palavra, disjunge-a de
se prefere anular. Indo embora, signifiquei meu cada contexto, impede-a de fundir-se na seqüência
desacordo, minha inimizade ou minha indiferença; que ia confiscá-Ia. A aliteração cria unidades sig-
entretanto, essa partida deixa de ser um gesto, se nificantes interiores às próprias palavras. O esta-
a seqüência do programa me solicitar alhures. belecimento de correspondências inesperadas rea-
Para que a linguagem disponha de latitudes nima as metáforas primitivas que inúmeras pala-
semelhantes, seria preciso, por um lado, que uma vras contêm, mas que o uso havia extinguido, ou
palavra pudesse deixar de ser uma palavra, que então inventa etimologias fictícias, que deslocam
ela se transformasse eventualmente em sílaba des- os agregados costumeiros. Uma permanência for-
provida de significação, e que, por outro, uma sí- mal ressaltada pela rima ou por uma assonância
laba pudesse valer subitamente como uma pala- produz um salto de nível que faz erguer a palavra
vra. A primeira condição, na verdade, é preenchi- além do discurso linear. No extremo desse estrei-
da, pois é em relação à experiência lingüística que tamento, e como Leiris mostrou suntuosamente,
Greimas definiu o fenômeno de dessemantização vogais e consoantes reencontram seu sabor, seu
para assinalar sua presença na ordem gestual; a perfume, sua qualidade tátil, enquanto os caracte-
palavra ar anula-se como tal em par; que se anu- res alfabéticos libertam toda a simbólica de seu
la por sua vez em parte, que se anula ainda em grafismo. "A poesia se desvanece e o sabá se con-
repartirá. Mas e o processo recíproco? Que magia gela quando letras e palavras retomam o seu lugar
poderia por ventura fazer supor o par na parte ou na ordem e tornam-se letras mortas após terem
bruscamente fazer entrar ar em par?' sido energias cabalísticas de iluminação"13.
A poesia é a arte dessas metamorfoses. Cha- A semelhança se torna, portanto, exata entre
memos agora de função poética o poder que tem a a poesia - que J akobson define também como
linguagem de variar a extensão dos elementos car- uma linguagem na qual "a forma interior das pa-
regados de sentido. Como exemplo de acrescenta- lavras, em outros termos, a carga semântica de
mento, podemos pensar nos artifícios de Queneau,
provocando a absorção da matéria sonora de uma
palavra na de outra (volatilizando les Arts ao es- 12. Raymond Queneau, Si tu ['imagines, Paris, Gallimard, 1952, p. 115.
O texto joga com a homofonia de lézards (lagartos) eles arts (as artes)
[N. da T.].
o exemplo de Jean Galard esc ande lorl. IP01:t/. /porte/ e /rapportera/ 13. Michel Leiris, Biffures, Paris, Gallimard, 1948, ver o conjunto do capí-
[N. da T.]. tulo "Alphabet", pp. 38-71.
'~!I
36 37

seus constituintes, encontra sua pertinência"14 _ empenhado num esforço transitivo em favor de um
e um certo tipo de comportamento que seria pre- resultado, em relação ao qual ele representa um
ciso qualificar de gestual porque se caracteriza meio dessemantizado. A abstenção, ao contrário,
pela abundância dos movimento ressemantizados. propõe-se de chofre como um gesto; ela concretiza
Esse tipo de comportamento é, evidentemente, no instante o sentido que pretende atribuir à con-
muito diferente do hábito de gesticular. Do mesmo sulta enquanto tal. Ora, revela ao mesmo tempo
modo que a poesia verbal não é o simples acúmu- que a participação no voto é também ela um ges-
10 das unidades lingüísticas que a sensibilidade de to; ressalta que a aceitação do sufrágio já é signi-
uma época já sobrecarregou de sentido, a conduta ficativa de um assentimento dado ao sistema que
determinada pela função poética não consiste em organiza a expropriação das responsabilidades; ela
uma multiplicação dos gestos, entendendo-se com põe em evidência que "votar, seja em que chapa for,
isso os movimentos já codificados pelo sistema de é votar pelo voto e já aceitar as instituições"15 .
I comunicação em vigor. Trata-se, antes, de uma cri- Por fácil que seja criticar a ineficiência dos
I'
ação de gestos, isto é, da liberação de movimentos gestos demasiado puros, é preciso pelo menos re-
ainda não percebidos, devido ao deslocamento da conhecer que são eles que fazem sobressair, por
seqüência que os continha. Na situação mais favo- contraste, que as condutas mais pragmáticas são,
rável à atividade gestual, que é o teatro, a oportu- por sua vez, compostas por gestos esquecidos.
nidade dessa distinção é flagrante: a cabotinagem Jacques Vaché, dizem, nunca estendia a mão.
se contenta com retomar, tais quais, os gestos tes- Esse outro gesto de abstenção lança uma significa-
tados, enquanto a procura do ator visa a decompor ção renovada sobre o gesto contrário, salienta, brus-
o comportamento nas unidades significantes que camente, no outro, o estranho hábito do aperto de
são habitualmente imperceptíveis. mão mecânico e ressemantiza um movimento que
Aplicada à conduta, a função poética desman- comumente deixamos de reconhecer como gesto.
tela o encadeamento pragmático dos movimentos; A poesia, seja ela verbal ou gestual, reanima
ela contraria a absorção dos meios pelo fim, do os signos extintos, para que toda prosa se torne
imediato pela perspectiva; ressalta a maneira de assim mais viva.
agir, o método empregado, converte a escolha do
procedimento num verdadeiro objetivo.
Participar de uma votação ou abster-se dela.
Se é verdade que aí estão dois gestos, ambos entre-
tanto não se apresentam imediatamente como tais.
Votar é primeiro um ato, que parece inteiramente

14. Roman Jakobson, "Linguistique et Poétique", op. cito 15. Cf. Francis Jeansoll, Sartre dans sa uie, Paris, Senil, 1974, pp. 257-258.
ÉTICA DO SIGNO

I I'
I II

11

II

1,1i
,,<I

Onde há catástrofe, grande ou pequena, prin-


cipalmente pequena, sempre se encontram homens
providenciais para organizar os salvamentos, ca-
nalizar os transeuntes, afastar os curiosos, distri-
buir conselhos: personagens enfáticos que aprovei-
tam a oportunidade para gesticular.
Sempre, nos locais das catástrofes, sobretudo
das grandes, testemunhas apressadas se conven-
cem de que não têm nada a fazer ali, que aquilo
não lhes diz respeito, que estão sendo esperadas
em outro lugar, esquecendo imediatamente que
sua fuga também terá sido um gesto.
As catástrofes ocorrem em qualquer lugar.
Portanto, a todo momento realizamos um ou outro
destes gestos: ora o excesso de signo, o exagero, a
presteza exibicionista, a solicitude indiscreta; ora
o signo da defecção, da demissão, da indiferença.
O cuidado com a imagem que se dá de si mes-
mo é uma preocupação que embaraça, comprome-
40 41

tendo a credibilidade dessa imagem e que muitas pectos desse comportamento, ao conjunto dessa
vezes acaba por transmitir um sentido diferente do conduta. Ora, sua expressão elaborar-se-á apro-
que devia ser mostrado: em vez de ser a persona- ximando-se ao máximo (é o que acontece em
gem que se queria aparentar, revela-se o preten- Barthes) da experiência teatral, cinematográfica,
sioso que se é. Mas, se é imediata a denúncia da fotográfica, literária. Parece, portanto, que a con-
cabotinagem, da mania de se oferecer como espe- duta da vida pode regular-se por uma axiologia
táculo, não existe, inversamente, uma palavra que de origem estética.
designe a consciência insuficiente das significações O mais das vezes, quando a arte e a moral não
que se produzem "involuntariamente", por exem- são separadas nem inseridas em campos de expe-
plo, quando um silêncio é uma aprovação suben- riência heterogêneos, é da moral (por exemplo,
tendida do que dizem os outros, quando a simples política) que se esperam as normas que orientarão
I i,1
presença física marca uma solidariedade tácita a produção artística. Aqui, ao contrário, a prova
I!"
para com os circunstantes ou quando consentimos artística ou, mais precisamente, a escolha esteti-
com as atitudes mais vis a pretexto de que a inten- camente fundada entre os diversos estatutos do
ção significante pode ser suspensa. signo que podem ser utilizados pela arte fornece
Aprender a produzir signos exatos; saber me- seus princípios à moral.
dir os signos que sempre se emitem: pode-se con- Que toda a vida moral se defina como um bom
ceber uma ética que consistiria num bom uso dos uso dos signos é o que o estoicismo já pretendia.
I ,
I
signos e que aproveitaria a experiência adquirida Mas ocorre, hoje em dia, que a reflexão sobre o sig-
nesse sentido pela atividade artística. no tem seu terreno predileto na análise do espaço
Roland Barthes, por exemplo, várias vezes, literário, do fato pictórico ou cinematográfico, isto
levou suas análises semiológicas até o limiar de é, do que é preciso chamar o domínio artístico, en-
uma moral explícita. Em Essais critiques, ele es- quanto os procedimentos semióticos que ali se ex-
boça uma "moral da roupagem de teatro"l. Em perimentam não interessam à vida cotidiana em
Mythologies, ele declara que o exame dos proces- seu conjunto. O refinamento de nossas avaliações
sos empregados pelo cinema de reconstituição his- morais depende doravante, pois, dos sucessos da
tórica "pode nos introduzir numa moral do signo"2. investigação estética.
Se se reconhece que o comportamento cotidi- Tudo se dá, aliás, como se a moral estabeleci-
ano e a conduta inteira de uma vida são compostos da se regulasse por uma concepção do signo que
de elementos significantes, é preciso admitir que determinou uma certa literatura ou uma certa pin-
uma tal moral semiótica se aplicará a todos os as- tura em seu esforço, agora fora de moda, de repro-
dução da realidade. Não pertenceriam os valores
morais de franqueza, sinceridade, autenticidade a
1. Roland Barthes, Essais critiques, Paris, Seuil, 1964, pp. 53~62. um sistema que, esteticamente, exigiria a fidelida-
2. Roland Barthes, Mythologies, Paris, Seuil, 1957, p. 28. de da expressão, a verdade, a exata semelhança?

L
42
43

Há uma moral, como há uma estética, que privile- signos, mascarando-os enquanto tais, "naturalizan-
gia a função referenciaI. Importa saber com quem do-os", ou em utilizar conotadores que convêm ape-
e do que se trata; é preciso primeiramente satis-
nas a significações denotadas.
fazer à necessidade de elucidar o que é o outro, o O primeiro princípio de uma moral semiótica
que se pode esperar dele, o que ele possui verda- imporia, portanto, o reconhecimento do signo onde
deiramente. O hipócrita fornece signos que supos- ele está, ou seja, em toda parte. Ele recomendaria
tamente traduzem as qualidades que sua alma arrancar as condutas ditas funcionais de sua
contém; mas ele não fornecerá "a própria coisa". O pseudo-insignificância, para afirmá-Ias em seu
mal moral se encarna na figura do escroque, que valor simbólico.
I
não tem a propriedade real dos bens que sua ati- Existe em Barthes, paralelamente a essa exi-
,I
tude significa, e se desenvolve em todas as formas
gência, um dever de discrição concernente à inten-
de "representação fraudulenta" enumeradas por ção significante. A moral da roupagem de teatro
II11
Erving Goffman em La Mise en scene de Ia vie
I proscreve a hipertrofia da função histórica, a da
quotidienne3. Essa axiologia, moral ao mesmo tem- beleza formal, a da suntuosidade. De um modo
po que estética, pressupõe uma separação cortan- geral, a moral do signo recusa "o luxo das formas
,.11
te entre o que pertence à ordem dos signos e a significativas", a tentação "de tornar pesada a sig-
realidade verdadeira à qual eles remetem.
nificação de qualquer caução da natureza".
Pode-se imaginar uma generalização semiótica, Ver-se-á a intervenção simultânea desses dois
, ,I
,
totalmente estranha a essa concepção e que não princípios tomando-se livremente como referência
deixa mais nada fora da rede significante. Desapa- a oposição do estilo aristocrático ao estilo burguês,
rece a distinção que dispunha, de um lado, os ges- como a evoca Erving Goffman ao retomá-Ia, por
tos deliberados, as confissões de intenção, a comu- sua vez, de Adam 8mith4. O estilo burguês divide
nicação ratificada e, do outro, as condutas "insigni- a vida, por um lado, em atividades profissionais,
ficantes" e, ao mesmo tempo, as atividades "sérias"
em que se trata de produzir com brilho índices de
às quais as pessoas se entregariam sob o impacto competência, de prestígio ou riqueza, por outro
da coerção ou das obrigações, distinção que separa- lado, em atividades privadas em que reinam a
va também a cena social (o espetáculo dos signos) e parcimônia, o conchavo secreto, a mediocridade
os bastidores (o utilitário). Ora, com o desapareci- sem importância. O estilo aristocrático mobiliza
mento desse dualismo, é a possibilidade de muitas todas as atividades menores comumente abando-
astúcias ideológicas que desmorona, na medida em nadas ao insignificante para nele incorporar os
que o mito, segundo Barthes, consiste em empregar signos do caráter, do poder e da distinção. Uma
semelhante exigência de perfeição "espetacular"

3. Erving Goffman, La Mise en scene de Ia uie quotidienne, Paris, Minuit,


1973, vaI. I.
4. Id., p. 39.
44 45

(que possa ser exibida, como acontece com qual- significação exatamente como as poses públicas, as
quer signo) refere-se desta vez às circunstâncias atitudes expressamente destinadas à comunicação,
mais banais e a cada detalhe do comportamento as grandes cenas apresentadas sob as luzes da ri-
corrente. Esses dois estilos de vida se opõem, por- balta. Para essa moral, não há deslizes, nem ges-
tanto, primeiramente quanto à extensão que atri- tos semanticamente neutros, nem recurso possível
buem ao mundo dos signos. Opõem-se ao mesmo para a desculpa de se ter infringido o sentido de
tempo pelo grau de ênfase com que cada um os uma conduta "só desta vez". Tal consciência inexo-
dota. Um se extenua na sobrecarga, no inchaço, no rável, aliada à vontade de rigor precedentemente
pesadume: ele não concebe o ensino sem as postu- definida, põe em ação uma moral que merece em
:1
ras professorais, a medicina sem a redundância dobro a denominação de rigorismo, por mais que
das poses doutorais, a indústria sem o aparato dos se queira dissociar esse termo de qualquer idéia de
emblemas do dinamismo. O outro acena um fugi- austeridade. Por praticar muito precisamente esta
dio sinal para quem quiser compreender. ética, André Breton incorreu na censura de ter-se
Os termos "burguês" e "aristocrático" são, evi- imiscuído de maneira constante e intratável na
dentemente, inadequados para designar esses dois vida de seus companheiros, ainda que ninguém lhe
estilos hoje. Em relação ao repertório dos concei- negasse o direito à intransigência quando só se
tos que qualificam, por exemplo, os estilos pictóri- tratava da literatura dos outros ou da vida públi-
cos, aquele de que se dispuser para a apreciação ca do grupo surrealista.
I li! dos estilos de vida será marcado pela penúria, Haveria, portanto, por um lado, uma moral
como se não fosse admitida ali a existência de um fundada no papel representativo do signo. Ela re-
objeto de pensamento. prova a hipocrisia como uma aparência enganosa:
Conviria, porém, uma qualificação para resu- o comportamento manifesto do hipócrita exprime
mir os dois primeiros princípios de uma moral do disposições internas, uma benevolência por exem-
signo de acordo com as sugestões de Barthes. Ater- plo, uma simpatia, uma cortesia, que não estão
se à sobriedade do signo, à nitidez de seu valor contidas na realidade do caráter. O signo represen-
convencional, deixar-lhe a leveza de sua arbitrarie- tativo pode ser falso: a expressão nem sempre cor-
dade, é admitir uma exigência estética de rigor5• O responde à verdade que deve ser traduzida. Mes-
outro princípio, por sua vez, impõe o reconheci- mo quando o signo é verídico, a reprovação pode se
mento de que todo gesto, todo ato, por furtivo que manifestar, por exemplo, a propósito do servilismo
seja, toda atitude, mesmo "não-intencional", toda que exprime uma alma baixa: a baixeza, a covar-
conduta, mesmo "privada", todo arranjo secreto e dia, o egoísmo são referentes reprovados. Existem
toda preparação nos bastidores são portadores de aqui, portanto, ao mesmo tempo dois tipos de con-
denações possíveis: a que se refere à tradução in-
fiel da realidade interior, e a que se refere à tra-
5. Roland Barthes, Essais critiques, op. cit., p. 142. dução fiel de uma realidade inconfessável.
46 47

É possível uma outra moral, não mais funda- ta insincera, mas a que domina um sentido deci-
da nessa função de duplicação tradicionalmente dido de antemão, devidamente reconhecível, como
atribuída ao signo. Imaginemos que a conduta não "a competência profissional", "a jovialidade", "a
mais seja compreendida como a exteriorização de descontração". Pouco importa, a essa altura, que
uma natureza íntima, que não seja mais suposta os recursos expressivos sejam hauridos num reper-
como manifestação de um ser interior, que não seja tório tradicional ou que sejam renovados de forma
a chocar os hábitos. Tanto faz que se repita sua
mais um índice de um temperamento, mas que se
dê apenas por aquilo que ela é na pura exteriori- respeitabilidade ou que se reafirme sua margina-
dade: uma forma produtora de um sentido, uma lidade se a intenção assim exibida preexistir ao
configuração significante que é supérfluo referir a comportamento, que se reduz a um papel repre-
uma origem substancial. Permanece a possibilida- sentativo e se corrompe sob o efeito da preocupa-
de de uma avaliação. Independentemente do valor ção com a comunicação. Toda conduta é significan-
I
atribuído ao referente, independentemente tam- te e, talvez, "comunique" um sentido. Mas, quan-
I

bém da veracidade do significante, a crítica visa- do este é isolável, quando uma fórmula o resume,
II I

II
'1'
rá à própria forma do signo e, notadamente, suas pode-se considerar, de maneira análoga, que a con-
"hipertrofias" como diria Barthes. Por exemplo, o duta é falsa, ritualizada, dominada pela função de
,!~

comportamento servil é desprezível, não porque comunicação, semioticamente imoral.


Esta moral tem como condição o reconheci-
exprime uma alma de escravo ou porque represen-
ta falsamente uma disposição obsequiosa que es- mento da aptidão de outrem para compreender os
li!

taria ausente, mas porque ele superalimenta os signos. Sua virtude dominante é a inteligência -
signos da obsequiosidade. O servilismo é a redun- aquela que é preciso demonstrar para escolher os
dância da obsequiosidade. Do mesmo modo, o com- signos mais precisos, e aquela de que é preciso
portamento enfatuado é desprezível, não porque acreditar que o outro esteja provido. Sua genero-
exprime a vaidade ou porque representa falsamen- sidade é postular em todos a inteligência mais sen-
te uma importância que se empresta a si mesmo sível e preferir o risco de deixar perder um bom
e que não se possui, mas porque é a inflação dos número de signos demasiado discretos à insistên-
signos de segurança. A suficiência é uma seguran- cia, aos gestos ressaltados.
ça redundante.
O gesto "falso", por conseguinte, não é mais o
que remete mentirosamente a uma intenção que
deveria corresponder-Ihe e que falta. A intenção
pode efetivamente existir, e é justamente na me-
dida em que ela está ali, patente, demasiado pre-
sente, previamente fixada, que o gesto será perce-
bido como falso. A conduta afetada não é a condu-
,
lii
A ECONOMIA DOS MEIOS

i'lll:

Ili"
I '
,

II
I "
I
11

II
,I'

lil ,
,
A contenção e a discrição, a recusa da ênfase,
da hipertrofia dos signos, tal é a condição da qua-
"'I !,i

11'1
lidade do gesto, em culturas, aliás, em tudo opos-
'It!
;1111

,li
tas. Longe do universo mental do classicismo eu-
'1'"
I, ropeu, nos astecas, nessa sociedade da consumação
que Georges Bataille situou "moralmente em nos-
sos antípodas"l, a ética, contudo, prescrevia a me-
dida, a ponderação, ela reprovava os trasbordamen-
tos de atividade tanto quanto a inaçã02• "Ao cami-
nhar pelas ruas e estradas, ande com calma e tran-
qüilidade, não levante os pés alto demais, não cor-
ra ... Fale com calma, pausadamente, com uma voz
bem empostada, nem demasiado baixo, nem dema-
siado alto, não fale depressa demais, nem alto de-
mais, não urre como um impudente." A ética dos

1. Georges Bataille, La Part maudite, Paris, Minuit, col. Points, 1967, p. 88.
2. Christian Duverger, La Fleur Zétale, économie du sacri{ice azteque, Paris,
Seuil, 1979, pp. 59·68.
50 51

antigos mexicanos caracteriza-se pela desconfian- A gesticulação emocional representa a inversão


ça quanto aos movimentos passionais e pela repug- dessa relação. Afirmando que a sinceridade, para
nância da gesticulação. Ela obedece a um princípio ser justa, pressupõe que sejamos "sóbrios nos ges-
que Christian Duverger formula assim: "Em toda tos, escrupulosos nas palavras, reservados nos en-
ação, um resultado ótimo deve ajustar-se a uma tusiasmos, contidos nos desesperos", Villiers de
despesa energética mínima". Duverger considera l'Isle-Adam imagina uma passagem ao ato desse
que essa ética da parcimônia deriva de uma "preo- preceit03• Maximiliam de W, abandonado por sua
cupação draconiana com a economia generalizada" amante, que o considera desprovido de sensibilida-
que os astecas teriam herdado de seu período de de, volta para casa, senta-se à mesa de trabalho,
errância num ambiente hostil. Todavia, ele obser- lixa as unhas; escreve alguns versos sobre um vale
va, por outro lado, que ainda no século XIII "é o escocês cuja lembrança lhe vem por acaso, percorre
ardor guerreiro que os mexicanos valorizavam aci- algumas páginas de um livro novo; depois se levan-
I

I
ma de tudo", ao passo que, no século XV, eles zom- ta e, tendo fechado as cortinas, pega seu revólver,
bam "do quachic, o soldado valoroso, mas fogoso, mata-se depois de ter sorrido e dado de ombros.
,
11.·,
"
que se atirava à frente do combate sem refletir so- Esse efeito, de que os dândis fizeram seu ideal,
bre o perigo". Uma "conquista de cultura" operou- exerce um fascínio que se encontra em paragens
li
,
se entrementes; constituiu-se uma "moral econômi- bem distantes do dandismo: nos autores de ready-
ca" que os hábitos ancestrais, portanto, não expli- made, por exemplo. Pois, contentando-se com uma
11

cam inteiramente. Como compreender então essa mudança na orientação de um objeto, com um leve
li!:,
reprovação da gesticulação agitada? Duverger su- deslocamento, com uma transformação de nome,
gere brevemente uma razão para isso. "O gesto é Marcel Duchamp talvez satisfizesse sua "preguiça";
calibrado porque a sociedade asteca é uma socie- ele talvez perseguisse uma empresa de derrisão;
dade de signos [...] Para não interferir nessa rede mas, ao mesmo tempo, aplicava um projeto concer-
semiótica, o gesto utilitário deve, portanto, passar tado de conversão das energias Ínfimas4•
absolutamente despercebido, isto é, reduzir-se à Nessa chave da economia dos meios, o mutis-
eficácia." Da ética austera, submetida às condições mo do gesto terá um alto rendimento. A parcimô-
da sobrevivência, que reprova o desperdício, se nia de linguagem é sempre bela. O gesto silencio-
passou, em suma, a uma ética do rigor propriamen- so e medido, desencadeando por si só a transfor-
te semiótico. mação de sentido de uma situação, representará,
O mínimo de movimento para obter o máximo portanto, um caso notável do efeito estético, pelo
de conseqüência: a qualidade do gesto é função menos como ele é aqui encarado.
dessa relação de parcimônia. A impressão de ele-
3. Villiers de l'Isle-Adam, "Sentimentalisme", Contes cruels, Paris, Garnier~
gância, mas também a de inteligência ou de poder
Flammarion, 1980, p. 187.
provêm do contraste entre a agitação mais reduzi- 4. Gilbert Lascault, "Les Petites énergies et Ia puissance timide", Mareei
da e a amplitude do resultado alcançado. Duchamp, VAre (59): 3-7, 1974.
52 53

Brummel passa diante de destacamento ao de sentido, e separando-os, assim, de seu quadro ou


mesmo tempo que o príncipe de Gales, com quem de seu manejo habituais. Um gesto mínimo encon-
ele está estremecido, e finge acreditar que a sau- tra então prolongamentos rápidos numa simbólica
dação das tropas se dirige a ele5. Sem nenhuma previamente traçada. Ele pode atingir, ademais,
palavra, sem esforço, utilizando economicamente uma polivalência de sentido tão exatamente instan-
um dispositivo simbólico já montado, Brummel tânea que nenhuma tradução verbal dele pareça
torna soberbamente evidente que não se pode se- concebível; daí a impressão ainda maior de poupan-
quer imaginar que tanto aparato seja destinado a ça de energia, pois o pensamento tropeça ao enunci-
um simples príncipe. ar de pronto ou mesmo ao desatar exaustivamente
Do mesmo modo, o gesto discreto de Jules o sentido complexo que se pressente e que um sim-
Valles, evidenciando subitamente a verdade de um ples gesto pôde produzir com facilidade.
lugar: Milan Kundera, em La Vie est ailleurs, conta
que seu jovem herói quer chamar a atenção de um
Jules Valles trabalhava na Rotonde da Rue d'Hautefeuille. ilustre poeta, que tarda a responder à admiração
II
Num canto de mesa, o insurreto escrevia seus artigos incendiários
que lhe é dedicada. Perdendo a paciência, Jaromil
em meio de graves jornalistas do Monde e professores de Sorbonne
,

que bebiam copos de água com flor de laranjeira. Nada de licor; só


põe-se a pilhar as cabines telefônicas, reúne uma
se podia fumar na sobreloja. Terminado o artigo, Valles saía na coleção de fones, empacota-os e os envia ao poeta. O
lil
ponta dos pés fazendo o gesto de tomar água benta6. fone com o fio cortado foi anteriormente designado
111,

I1I
como "o tipo de objeto que, separado de seu quadro
Do café à igreja: se essa metáfora é bem-suce- habitual, produz uma impressão mágica e pode le-
dida, isso não se dá a despeito dos poucos recursos gitimamente ser qualificado de objeto surrealista".
que aí se empregam, mas em razão justamente Sua utilização, no episódio das relações com o ilus-
dessa contenção, em proporção direta da discrição tre poeta, transferirá ao gesto uma pluralidade de
que se adotará, por exemplo, ao se persignar. É sentidos possíveis (apelo suplicante ou, ao contráio,
preciso imaginar aqui algum gesto quase impercep- interrupção orgulhosa de uma vã espera) justifi-
tível, que quer e não quer ser surpreendido. cando a expressão pela qual Jaromil define sua re-
Ainda que os usos corporais sejam perfeita- messa: "um gesto carregado de poesia"7.
mente capazes de desenvolver, por si sós, uma sim- Esse emprego de objetos com simbolismo pré-
bólica infinitamente variada, podem também enri- constituído tem um efeito tão seguro que se pres-
quecer-se tomando como coadjuvante um objeto, ta a algumas facilidades de repetição, que são o
entre os que já estão mais fortemente carregados academismo do gesto, como o de queimar uma ban-
deira. Dá-se com um gesto o que se dá com um
5. Emilien Carassus, Le Mythe du dandy, Paris, A. Colin, 1971, p. 121.
6. Pierre Labracherie, La \fie quotidienne de la boheme littéraire au XIX" 7. Milan Kundera, La Vie est ailleurs, Paris, Gallimard, 1973, pp. 119, 191-
siecie, Paris, Haehette, 1967, pp. 3·7. 194.
54 55

furtada miserável onde vivia e onde um dia foi


quadro: não é necessário que se tenha encontrado
seu semlhante para que ele produza um sentimen- descoberto paralisado das duas pernas, Jarry, às
to de déjà vu. Kundera não deixa de ser irônico vésperas de sua morte, quando o médico Saltas lhe
acerca das impressões poéticas de Jaromil. pergunta o que lhe daria mais prazer, pede um pa-
lito de dentes.
Um "motivo", por seu sentido próprio, não ga-
rante a excelência da obra em que figura, assim Alusão ao "banquete da vida"? Ação de graças
como ele não basta, se banal, para corrompê-Ia. Ao pelas migalhas de um pseudofestim? Cinismo sé-
estereótipo que consiste em queimar uma bandei- rio? .. Ou ironia, de antemão, em relação aos co-
ra, é interessante comparar um outro gesto, utili- mentários, fatalmente canhestros, acumulados de
zando-se o mesmo emblema, também com intenção noções por demais amplas, de referências elásti-
de protesto, porém mais duramente ofensivo a des- cas, pretendendo captar a singularidade de um
peito de sua aparência mais pacífica: o de um ra- gesto que, afinal, de maneira não menos evidente
paz que foi detido, no fim dos anos 60, pela polí- e igualmente incerta, dispensava a metafísica e
cia, em Santiago do Chile, por ter lavado a bandei- nada queria "dizer"?
ra norte-americana na frente da embaixada dos O contraste entre a extrema simplicidade do
Estados Unidos. gesto e sua riqueza simbólica é suscetível de au-
i 11"

Um gesto, para atingir a plenitude de sentido mentar infinitamente, sem que seja necessário
de que uma verdadeira obra de arte é capaz, de imaginar uma complicação desmedida de seu sen-
modo nenhum precisa conter implicações infinitas. tido, contanto que o gesto se simplifique até a abs-
Pelo contrário, suponhamos que estas sejam pou- tenção. Pois a verdadeira ausência de movimento
co numerosas e límpidas para a intuição; imagine- se torna ela mesma, eventualmente, um gesto. O
mos que uma posição analítica se presuma capaz hábito de Jacques Vaché de nunca estender a mão
de traduzir logo em algumas palavras esses signos não deixava, certamente, de ter sentido, de manei-
ra até bastante brutal.
tão abertamente inteligíveis; pelo fracasso inespe-
rado da intenção discursiva se reconhecerá a jus- Há alguns anos, jornais relatavam na França
teza do gesto. minúsculos atos de sabotagem ou de fraude a que
Este gesto, por exemplo, o último, sem dúvida, se atribuíam um alcance "revolucionário" e que
de Alfred Jarry (André Breton dizia que, a partir queriam mover uma "verdadeira arte nova". Recei-
de Jarry, "a diferenciação tida por muito tempo tas simples permitiam viajar gratuitamente pela
como necessária entre a arte e a vida seria contes- SNCF (Société N ationale des Chemins de Fer
tada, para acabar aniquilada em seu princípio"B): Français) ou de metrô, paralisar a produção da
transportado para o hospital La Charité, da água- empresa em que se trabalha, provocando nela,
pela contrafação dos documentos, planejamentos
ou registros contábeis, inextricáveis incidentes. O
8. André Breton, Anthologie de l'humour noir, Paris, Ed. du Sagittaire, 1940,
pp. 168-169. intuito era quebrar os regulamentos, o sistema de
56 57

controle minucioso, a hierarquia permanente, e fenômenos do espírit09• A propósito de um exemplo


isso com gestos mínimos cuja simplicidade con- de duplo sentido citado por Freud (tendo sido um
trastava com a perturbação que criavam. Por que dos primeiros atos do reinado de Napoleão III o de
esses furtos, essas pequenas fraudes, essas vin- confiscar os bens da família de Orléans, fez-se a
ganças sorrateiras dão a impressão de que o ges- esse respeito um trocadilho: "É o primeiro vôo' da
to aqui é menos ainda que mínimo, miserável? águia"), ele se pergunta se a parcimônia no esforço
No mesmo momento, na Itália, praticava-se físico, que teria sido necessária para pronunciar
o que se chamou "a desobediência civil". Por duas palavras em vez de uma, não é amplamente
exemplo, tendo o preço da passagem de ônibus compensada pelo dispêndio de esforço mental ne-
aumentado (mas não os salários), o protesto con- cessário para que se ache uma palavra muito bem
siste, não em deixar de pagar, mas em adquirir apropriada aos dois sentidos visados. Ele acrescen-
a passagem pelo preço anterior. A recusa fica ta que a fragilidade desse conceito de parcimônia
11,1"

I
desse modo mais bem marcada, a desobediência não escapou ao próprio Freud, que, quando o apre-
mais nítida, a abstenção finalmente mais com- senta, confessa que algumas economias realizadas
pleta do que viajar de graça. pela técnica do espírito
A comparação desses dois tipos de conduta
evidencia que, para se apreender a qualidade do [...] lembram-nos talvez as das donas de casa que perdem
gesto segundo a perspectiva de uma economia dos tempo e dinheiro com transporte, na esperança de, num mercado
il
meios, convém precisar algo importante: não é a distante, pagar por seus legumes alguns centavos menos. Que eco-
t, quantidade objetiva de parcimônia que se deve le- nomias realizaria, portanto, o espírito com sua técnica? Ele pou-
pa a reunião de algumas palavras novas que, na maior parte do
var em conta, mas o efeito de simplicidade. A be- tempo, teriam sido facilmente encontradas; em compensação, o es-
leza do gesto, por definição, mostra-se; é de sua pírito deve se esforçar por procurar a palavra capaz de revestir os
essência manifestar-se e até, em certa medida, dois pensamentos; muitas vezes, até, é preciso procurar, primei-
dar-se como espetáculo. A fraude, sendo secreta, o ro, para um de seus pensamentos, uma expressão poucousual mas
suscetível de realizar sua fusão com o segundo. Não seria mais
desembaraço, que dissimula seus procedimentos,
simples, realmente mais econômico, exprimir os dois pensamen-
a sabotagem sub-reptícia situam-se, na realidade, tos tais comose apresentam, sob o risco de não encontrar para eles
no oposto desse efeito. expressão comum? Não estaria a parcimônia de palavras mais do
Freud utiliza essa noção de parcimônia em O que compensada por um suplemento de dispêndio intelectual?
Chiste e Suas Relações com o Inconsciente. Anali-
sando diversos procedimentos pelos quais as mes- Parece que essa discussão não teria objeto se
mas palavras tomam diversos sentidos, ele consi- ficasse entendido de chofre que o chiste chama a
dera que "uma tendência à compressão, ou melhor,
à parcimônia, domina todas essas técnicas". Ora,
9. Tzvetan Todorov, Théories du symbole, Paris, Seuil, 1977, pp. 311-315.
Tzvetan Todorov, por sua vez, acha que é preciso * Em francês {{voZ" significa ao mesmo tempo "vôo" e "furto", resumindo exa-
afastar a validade dessa noção na explicação dos tamente ao opinião pública sobre o gesto de N apoleão 111[N. da T.].
58

atenção de Freud por seu efeito estético (do contrá-


rio, como se efetuaria a seleção dos exemplos?) e
que esse efeito não se mede de modo algum por
uma parcimônia positivamente verificável, mas
antes, segundo a impressão de desafogo que provo-
ca. Ocorre que o máximo esforço é requerido para
dar à imagem a maior simplicidade: assim ocorre
na dança. A "economia" estética tem a particulari-
dade de começar nada economizando; puro dispên- A AÇÃO SIMBÓLICA
dio, dissipação das energias, o jogo consiste aqui
em dilapidar o esforço físico e mental para chegar
a um mínimo - contrastando esse mínimo com os
inesperados abalos de sentido que ele desencadeia.
O efeito estético, por definição, é pura aparência.
Se, por hipótese, ele for relacionado com a noção
de poupança, será preciso então imaginar uma es-
pécie de jogo com poupança, uma economia repre- Há, portanto, um "efeito" do gesto, que não se
reduz aos resultados que se esperam de um ato. O
sentada, uma poupança fingida, não sendo o obje-
tivo economizar realmente forças, mas produzir, de gesto se mostra. Ele tem sentido, ao marcar um
modo tão custoso quanto necessário, a forma mais tempo de pausa no encadeamento dos atos. Há, em
simples para evidenciá-Ia em sua relação com o qualquer gesto, algo suspenso que dá margem à
sentido mais pleno. repercussão simbólica, ao valor de exemplo.
A ação militante recorreu por vezes a um modo
de intervenção que procede por gestos. Foi o que
aconteceu freqüentemente, nos anos 60, em países
tão diversos quanto o Japão, o Uruguai ou os Paí-
ses Baixos. Os Estados Unidos, particularmente,
foram palco de numerosas manifestações desse
tipo, das quais Jerry Rubin, que foi um de seus
atores, fez uma relação em Do it1•
Quando os trens de G. 1.'s transportavam as
tropas com destinação à estação militar de Oak-

1. Jerry Rubin, Do it, Ed. Simon and Schuster, 1970; trad. fr., Paris, Seuil,
1971.
60 61

land, O Comitê Vietnã de Berkeley tentou opor-se efetiva. É verdade que J erry Rubin, mais tarde,
à sua passagem. Os trens continuaram seu cami- refugiou-se na espiritualidade absconsa e no
nho até o dia em que os militantes conseguiram psicologismo bioenergétic03• É verdade que Tom
bloquear um comboio. Sua imobilização não exce- Hayden fez uma campanha eleitoral no mesmo
de alguns minutos. Os militantes pacifistas logo se estilo de seus adversários dos anos 60 e que
dispersam, espalham-se pelas ruas de Berkeley Eldrige Cleaver arregimentou pessoas em favor do
como combatentes vitoriosos, proclamando haver exército american04• Mas os gestos outrora bem-
detido o transporte das tropas: "Detivemos de vez sucedidos conservam sua vida própria e seu valor
a máquina de guerra em seus trilhos"2. Duas com- de exemplo, apesar das abdicações que se segui-
preensões do acontecimento entram em choque. ram. Vale para o belo gesto o mesmo que para a
Para uma, esse gesto é totalmente irrisório; ele obra realizada: a ausência de efeito imediato ou os
não tem conseqüência quanto ao prosseguimento absurdos ulteriormente proferidos pelo autor não
11,1

I
da guerra. Para a segunda, ele prova subitamen- legitimam sua depreciação retrospectiva.
te que a máquina não é invencível. Naquela, uma Os atos dessa espécie convertem-se em gestos
I"
duração contínua contém momentos que agem uns porque parecem comportar em si mesmos sua jus-
I

I'"
sobre os outros, passo a passo, segundo uma cau- tificação. Bastante ricos de sentido para não serem
I salidade transitiva; nesta, o instante exemplar não indiferentes ou gratuitos, só têm por objetivo pro-
está inserido no encadeamento temporal, despoja- duzir o acontecimento que os resume. Não formam
se de qualquer eficiência sobre o futuro próximo e o meio de uma finalidade exterior, mas têm em
ergue-se intransitivamente como uma referência sua própria realização sua razão suficiente.
firme para um futuro indefinido. Todos os atos re- Seria bom demais que esses simples gestos ti-
feridos em Do it pressupõem que se admitiu a va- vessem rigorosamente os mesmos efeitos de uma
lidade dessa concepção do tempo, que substitui o longa paciência. As ações contadas em Do it visam
rendimento linear pela influência paralela. à repercussão espetacular imediata. É duvidoso
Por isso é difícil avaliar a eficácia de ações se- que tenham tido, em profundidade, a influência
melhantes: a própria noção de eficácia, a idéia de que Jerry Rubin, por outro lado, lhes atribui:·"Po-
medir os efeitos adquiridos, pertencem provavel- díamos mudar o curso da história num só dia.
mente a uma outra ordem de avaliação diferente Numa hora. Num segundo. Pela intervenção deci-
daquela que um gesto, enquanto tal, pode ressal- siva no momento decisivo". A euforia que Rubin
tar. Pela mesma razão, o destino do movimento manifesta com tanta constância não provém pro-
pacifista em seu conjunto não deve ser apreciado vavelmente apenas do contraste entre os meios
segundo a consideração de sua degenerescência que ele emprega e o resultado obtido, mas de uma

3. Les Temps modemes, (361-362): 202 e S5., 1976.


2. Id., pp. 32-36. 4. Id., pp. 75 e S5.; 87-88.
62 63

verdadeira suspensão do princípio de realidade. O qüilizar na tevê o povo americano e dizer que a
benefício revolucionário antecipado é pelo menos guerra continua".
incerto; o militantismo refletido teria boas razões A dicotomia que reserva ao "ato" os privilégios
para avaliá-Io como nulo. da eficácia e qualifica de simples "gesto" qualquer
Será, entretanto, irremediavelmente aberran- conduta presumida estéril domina há tanto tempo
te a simplificação, alegremente agressiva, que con- o pensamento espontâneo que os recursos próprios
siste em confundir o brilho do gesto e a ação efi- do gesto são dificilmente diferenciados. Contudo,
caz? Há, em Do it, um episódio no qual se realiza a celebração antecipada do fim da guerra e uma
a inteira substituição da realidade pelo desejo: o manifestação pacifista comum, ainda que se limi-
do anúncio, nas ruas de Nova Iorque, do fim da tem ambas a se oferecer como espetáculo, não se
guerra do Vietnã, vários anos antes que a paz se reduzem à mesma coisa. "Nossa celebração arran-
tenha tornado efetiva, numa barafunda tão convin- cava as pessoas de seus hábitos. As que eram fa-
cente que a polícia, acrescentando seu próprio tu- voráveis à guerra não sabiam como se defender
multo, parece ter-se juntado à festa. "Ninguém contra aquele ataque psicológico. Não a podiam
parecia lamentar o fim da guerra. É ainda mais ignorar como teriam ignorado cartazes que diziam:
'j"11

surpreendente que ninguém tenha tido a idéia de Abaixo a guerra." A natureza particular do gesto
perguntar quem ganhara"5. Quando a resignação, subversivo requer um princípio específico de apre-
a inércia do hábito, o bloqueio da imaginação con- ciação, levando em conta a novidade e a simplici-
li'
tribuem, por sua vez, para a perpetuação da rea- dade dos meios empregados, a desproporção entre
"I:

lidade histórica, como negar, em contrapartida, a iniciativa e suas repercussões, a desorientação e


111
qualquér poder à ficção em ato, à ruptura das ro- a anarquia resultante desse desequilíbrio, abrin-
tinas e ao próprio simulacro da esperança? A pro- do assim uma dimensão que não é redutível, nem
clamação do fim da guerra era irrealista como um todavia inteiramente heterogênea, àquela da ação
jogo, mas obrigava a realidade a se enunciar, por militante razoável.
seu turno, como uma má ficção. Quando projeta Embora o gesto possa ser exemplar sem visar
essa farsa muito séria, Jerry Rubin não se com- a efeitos tão ruidosamente espetaculares, ele é
praz apenas em imaginar a satisfação instantânea indissociável de uma intenção de parecer ou mos-
de um desejo inútil; tem em vista o efeito de cho- trar, por onde já se introduz, aiqda que discreta-
que que a interrupção de um sonho produz e a ati- mente, a idéia de espetáculo. É nesse ponto que
va repulsa que dela resulta quando o chamado da ele está mais sujeito à crítica. Talvez seja aqui,
verdade toma um aspecto brutalmente paradoxal: ao mesmo tempo, que evidencia seu pleno senti-
"Seria preciso que Nixon se mexesse para vir tran- do. O exagero que Jerry Rubin traz à espetacula-
rização da conduta é, a esse respeito, uma (ltil
ampliação da teatralidade elementar deteetável
5. Jerry Rubin, op. cit., pp. 138·140. em qualquer gesto.
li
II
64
i 65

Quando a Comissão das Atividades Antiameri- gem, como o herói, alguma vez "se encarnar": viva,
canas abre um inquérito sobre o Comitê Vietnã de mas inacessível, a irrealidade é sua naturezas.
Berkeley, Rubin, chamado a Washington para tes- Essa irrealidade, longe de diminuir a sedução ou
o assombro que exerce, é, antes, a sua condição. O
temunhar, prepara-se "como para uma esti"é~ na próprio Jerry Rubin, tão confiante contudo na pos-
Broadway" .. Sua chegada ao Congresso, com,? é
descrita em Do it, é uma verdadeira entrada em sibilidade de realizar o mito, bem observa a irre-
cenas. Envergando um traje de ópera com os bol- dutível distância que o separa de seus agentes oca-
sos atulhados de panfletos e brochuras, atravessa sionais: "O mito ultrapassa sempre o que o fundou.
o saguão frustrando divertidamente as objeções O mito do Che é muito mais poderoso que o indi-'
dos guardas que pretendem reprimi-Io. "Os proje- víduo Che Guevara"9.
tores e as câmaras ronronaram. Fazíamos nossa Ora, esse acesso do real ao estatuto do imagi-
entrada. Dei a volta na sala, sentindo meu públi- nário necessita de algumas mediações, que são a
I

co..." Um dos advogados é expulso da audiência e verdadeira fonte do mito. Este deriva menos de
preso. Seus colegas levantam-se, em protesto, de- um dado inicial, cujo conteúdo seria favorável a
sistem e saem da sala um a um. "Víamo-nos sem essa transfiguração, do que dos procedimentos que
advogados. Era realmente um golpe duro. Aqueles entram em ação na narrativa mitológica ou na
canalhas de advogados nos roubavam a cena." Ter imagem lendária. Isso explica que os detalhes que
a cena, no caso, é captar a atenção geral de modo pareciam os mais prosaicos alcancem um dia o
que a atitude que se apresenta adquira o alcance prestígio simbólico - e torna-se plausível a reco-
do que Rubin chama "mito". Alguns anos depois, mendação yippie de fazer de cada pequeno aconte-
"os yippies iam servir-se da Convenção Democra- cimento um elemento mítico1o. Esses procedimen-
ta e de suas pompas teatraIs para construir seus tos, por diversos que sejam, conforme se trate de
tablados e encenar o mito; íamos afanar o papel uma narrativa épica, de uma efígie, de uma repor-
principal dos democratas, a imprensa só se inte- tagem televisiva, reduzem-se, essencialmente, a
ressaria por nós, e o espectro yippie ia começar a abstrair fragmentos instantâneos, cuja irrealidade
assombrar a América"? . mágica resultará do seu simples destacamento de
Entre este ser imaginário que é o mito e o in- um conjunto contínuo.
divíduo ou o grupo que o simboliza, a relação é a "Todo jornalista é um dramaturgo: ele pega a
mesma que a existente entre a personagem e o vida e faz dela uma peça de teatro"11. É que ele
ator. Analisando essa relação de representação,
Louis Jouvet excluía a possibilidade de a persona-
8. Louis JOl1vet, Témoignages sur le théâtre, Paris, Flammarion, 1952, pp.
175,177.
6. Id., pp. 61.63.
9. Jerry Rubin. op. cit., p. 83.
7. Id., p. 83 (o movimento )'ippie forma uma síntese do esquerdismo e da 10. Id .• p. 128.
corrente hippie).
11. Id .• p. 106.
66
67

não pega toda a vida; o que retém dela se encon-


tra, por isso mesmo, liberto dos encadeamentos 1967 em Washington, Rubin imagina um "cenário"
pragmáticos e se torna disponível para os jogos em que, de provocação em proibição, deve desen-
do imaginário. A transformação mítica de um volver-se "o dramático enfrentamento da Liberda-
episódio qualquer exige, para toda encenação, de contra a Repressão". Devido ao número imen-
essa seleção isolante, que o relatório mais escru- so dos manifestantes, à estimulante intransigên-
cia governamental, à embriaguez de sentir que o
necessariamente. mundo inteiro tem os olhos fixados sobre si, o co-
puloso, como também o mais sumário, realiZa) mício se torna uma sublevação, sua eclosão será
O ato de alcance mítico implica, portanto, um/
fracionamento do tempo; a descontinuidade é sua invencível. "O governo é obrigado a transigir. E, no
condição. A propósito das grandes manifestações final, tomamos o Pentágono!"13. Uma liberdade de
relatadas por Rubin, um testemunho exterior a Do imaginação completa, exercendo-se relativamente
it revela que "os combates de rua paravam assim a uma conjuntura ideal, concebe a tomada do
que as equipes de televisão saíam para o almoço"12. Pentágono como um fim. O mais gigantesco edifí-
A partir dessa observação desmistificadora, pode- cio administrativo, a mais implacável máquina de
se contentar em concluir que o espetáculo assim guerra, apesar da proteção de tropas especializa-
dado só tinha o sentido de servir à ambição de apa- das, sucumbe ao cerco de manifestantes desarma-
recer dos participantes, o vedetismo dos protago- dos que conseguem invadi-lo. E essa proeza não
nistas, a vaidade de reter por um instante os olha- suscita, aparentemente, nenhuma conseqüência.
res de um público. Uma interpretação menos res- Apocalipse ou apoteose, é um resultado.
trita detectaria talvez em tal preocupação da "mí- O cúmulo do prosaísmo, isto é, da falta de sen-
dia" a necessidade de produzir, não só diante dos sibilidade ao mito, é atingido quando o espírito
outros, mas também para si, essa mutação da rea- conserva, em meio a uma situação excepcional, a
lidade evanescente em acontecimento, da continui- preocupação com as coerções cotidianas, como en-
dade cotidiana em lenda, que sua intervenção ga- tre essas Mães de Família que consentem em par-
rante automaticamente. Permanece o fato de que, ticipar da manifestação contra o Pentágono,
ao submeter-se a esse tipo de mediação, que é for- contanto que tenham tempo de voltar para casa
çosamente intermitente, a conduta se fragmenta: para o jantar14. O prosaísmo aqui não provém de
às grandes cenas, fechadas sobre si mesmas, suce- alguma indignidade afeita à preocupação de se ali-
de-se apenas a trivialidade dos entreatos. mentar. Não resulta, tampouco, da interrupção
Preparando com o Comitê Nacional de Mobili- deliberada de uma proeza que prometia infinitos
zação a manifestação antiguerra de outubro de prolongamentos. Reside, ao contrário, no apego às

12. Les Temps modernes, op. cit., p. 274. 13. Jerry Rubin, op. cit., p. 68.
14. Id., p. 72.
68
69

obrigações costumeiras, na ansiedade da tarefa sensivelmente retificada. A convicção de que os


próxima: na recusa das descontinuidades. A obser- atos destinados exclusivamente ao efeito do espe-
vância da disposição mítica consiste, para Rubin, táculo não são inofensivos se fortalece, em Rubin,
nessa mesma circunstância, em provocar a inter- todas as vezes que o adversário se apressa preci-
rupção mais cortante. "Juramo-nos escapar, na samente em esvaziá-Ios de sua significação simbó-
medida do possível, de qualquer prisão, mas era lica. Enquanto ele reivindica que o inculpem por
preciso um fim teatral para a tomada do Pentágo- ter urinado no muro do Pentágono, é por vadiagem
no"15. Deixar-se prender, para um manifestante que será preso17. Numa faculdade ocupada pelos
inflamado pela lenda, é a melhor maneira de as- estudantes, em que está em jogo nada menos que
sistir a um autêntico cair de cortina e, por conse- derrubar o governo, as detenções são caracteriza-
guinte, de conferir retroativamente ao lapso de das como ataque à propriedade privada18. A mais
tempo que precede uma completeza fabulosa. dura resposta que as encenações subversivas de-
A conduta dirigida pela inspiração mítica, des- vem temer é a de se verem convertidas em infra-
tacando, assim, de qualquer seqüência possível ções menores: não é esta a prova de que sua eficá-
I
I atos instantaneamente suficientes, parece, portan- cia específica ia residir naquilo que contém de mais
:
to, comprazer-se com uma perfeita esterilidade. E especificamente teatral? Por outro lado, o retorno
é esse exatamente o agravo comum dirigido aos publicitário que o poder estabelecido, por sua vez,
fatores de perturbação simbólica: sua agitação é não se priva de recolher de uma bela atitude gra-
pura pantomima, seus lances fulgurantes só visam tuita, o rendimento demagógico que ele extrai de
e conseguem ser imagem, esses fantoches e esses uma infinitesimal reforma, o benefício que o Prín-
fogos-fátuos não mudam nem perturbam coisa al- cipe assegura para si sabendo aparecer, o efeito
guma, sua turbulência carnavalesca é uma de- muito real que ele obtém distribuindo ninharias,
monstração de impotência, e todo esse exibicionis- toda essa potência oriunda da imagem contradiz o
mo é tão inútil quanto uma revolução de brincadei- orgulhoso dualismo que desejaria opor a atividade
ra. Régis Debray, crítico severo das atitudes inú- fecunda às esterilidades masturbatórias. Debray
teis, denuncia nesses termos o maio estudantil de admite, de passagem, que existe uma "eficácia re-
1968, "que foi para a Revolução o que o onanismo lativa do simbólico". Concessão oportuna, quando
é para o ato sexual"16.
se propõe, como ele faz, incluir a gesticulação es-
Entretanto, a oposição demasiado evidente en- querdista no fenômeno global que é a "sociedade do
tre a esterilidade das posturas espetaculares e a espetáculo"; pois essa perversão geral não precisa-
virtude agente do trabalho paciente precisa ser ria tanto ser vilipendiada se permanecesse sem

15. Id., p. 80.


17. Jerry Rubin, op. cit., p. 80.
16. Régis Debray, Les Rendez-uous manqués, Paris, SeuiI, 1975, pp. 123 e 55. 18. Id., p. 129.
70 71

conseqüência. A comum transformação do ato em Infelizmente, não é freqüente que um ato sim-
imagem, da vontade em pose, do projeto em mito bólico saiba contentar-se em ser exemplar. Ambi-
seria apenas deplorável se representasse simples- cionando ao mesmo tempo os méritos da ação di-
mente a impotência. A irritação que suscita indi- reta, ele abandona o verdadeiro teatro pela comé-
ca sem dúvida que se trata de outra coisa. dia do afã, defende-se de ser puro espetáculo e res-
O apego ao mito não é, necessariamente, este- vala para o estardalhaço. Maio de 1968 represen-
rilizante. No jogo de um modelo voluntariamente taria talvez ainda hoje um mito mais vivaz se se
simplificador, condutas eventualmente fecundas limitasse a criar a imagem de um abalo inédito,
idealizam seu objetivo, depuram seus motivos. em vez de querer, além disso, dar-se a ilusão de
Seria ousadia pretender que toda ação verdadeira instigar uma clássica revolução proletária. Quan-
implicasse uma escrupulosa consciência de suas do vitupera as falsas aparências esquerdistas,
razões, uma visão exata da complexidade de seus Régis Debray não é nada convincente se pretende
objetivos. É, antes, presumível que esforços perse- censurar as demonstrações espetaculares, que não
verantes pudessem ter por incitação e por susten- são tão vãs quanto diz, para melhor louvar o rigor
I"

I
táculo o mais esquemático símbolo. Por que a to- do trabalho estratégico, o qual, como se sabe, nem
mada do Pentágono seria um mito menos eficien- sempre, tampouco ele, termina onde pensava ir.
te do que a da Bastilha, ou a ocupação da Sorbonne Mas a diatribe é justa se atribui à impostura uma
do que a libertação do Santo Sepulcro? teatralidade que crê dispor de outros meios além
Um ato se torna espetacular quando um início daqueles que a cena oferece, e se nisso tudo se tra-
marcado, uma realização nítida, a ênfase de sua ta, mais precisamente, de opor-se à confusão dos
expressividade o tornam uma unidade plena de gêneros.
significação. Ao apressar-se em amaldiçoar a idéia As manifestações simbólicas dos anos 60 tive-
de espetáculo, reduzindo-a à de ineficiência, cai-se ram muitas vezes a virtude de contar, incondicio-
no engodo semelhante ao de opor os verdadeiros nal e exclusivamente, com os poderes do espetácu-
atos às vãs palavras: o mesmo que esquecer os.po- lo. Mesmo que tenha acontecido a seus autores
deres da linguagem. A reprovação que atinge cada superestimá-Ios, pelo menos não tentavam acredi-
vez mais dogmaticamente o que se denomina a so- tar que os paralelepípedos tenham o mesmo efei-
ciedade do espetáculo visaria com mais direito al- to que as granadas, nem que as imagens que in-
guns sentidos que ali se exprimem, os estilos que ventavam possam chocar outra coisa além das
ali prevalecem. A abjeção que as palavras podem imaginações. Daí, por exemplo, nos amigos de
significar não motiva a depreciação da linguagem Rubin, o interesse ingenuamente confessado pela
enquanto tal. Do mesmo modo, o desprezo dos ou- publicidade que a imprensa e a televisão lhes re-
tros que se manifesta no blefe de alguns atos não servava e a estranha indiferença pelas seqüências
justifica que seja censurada a capacidade que tem próximas das ações que empreendiam. Ao procurar
a conduta de formar imagem. agir apenas pelo exemplo, eles se encontravam
72

mais aptos a utilizar plenamente todos os seus


recursos dramáticos.
O pensamento espontâneo opõe a aparência do
gesto à seriedade do ato, a esterilidade das gesti-
culações à eficiência do trabalho invisível, a ilusão
do simbólico à realidade prática. Evitar-se-á subs-
tituir essa dicotomia simplista pela confiança in-
gênua nos poderes do gesto. Concedamos que ele
não tem eficácia alguma. Mas nem por isso é des-
,

i provido de alcance. PARÊNTESIS


Durante os Jogos Olímpicos de Munique, em
1972, dezenas de milhões de espectadores pude-
ram assistir pela televisão a um gesto ao mesmo
tempo muito simples e muito ativo. Ao término de
I"

I
uma prova, durante a execução do hino nacional,
o vencedor balançava ostensivamente sua medalha
dando as costas à tribuna oficial. Seria preciso, A teatralidade, o cálculo do rendimento espe-
para minimizar o alcance desse gesto e negar-lhe tacular, podem faltar em inúmeras condutas que
o peso de um ato verdadeiro, ignorar também a deverão sua qualidade a virtudes mais secretas. A
função dos ritos, dos cerimoniais, das festividades
escolha dos exemplos evocados até aqui restringiu-
organizadas. Era apenas um gesto, ele tinha uma
se aos gestos concertados: assim se reduziu o de-
influência apenas simbólica. Mas seria a realida-
sígnio que se formara inicialmente. À margem des-
de, cujo prestígio ele minava, de outra ordem? Se-
ses gestos deliberadamente emitidos para outrem,
ria inconseqüente admitir que os emblemas e as desenvolvem-se condutas mais fluidas: atitudes
insígnias, os concursos, os aparatos, são autênti- graciosas ou gratuitas, comportamentos soberanos,
cos fatores de pressão, e acreditar que a arte de sem preocupação com o efeito. Mas, querendo-se
subvertê-los tem a inutilidade das gesticulações. considerá-los exemplos, experimenta-se a dificul-
dade que há em citar uma conduta.
Não se menciona uma conduta como se pode
citar um texto. Uma obra de linguagem se atribui
um começo e um fim; ela é separável das contin-
gências que ac~mpanharam sua elaboração. Pres-
ta-se a uma reatualização a cada vez que se a relê.
Limita-se eventualmente a algumas palavras, que
encontram uma significação no instante em que se
75
74

crição malogra na restituição da qualidade exata


enunciam. Uma conduta, ao contrário, ganha sen-
de uma obra de comportamento, do mesmo modo
tido a partir de uma situação que não tem contor-
que o fariam as palavras se devessem mostrar o
nos assinaláveis e que, por esse fato, não se repe-
aspecto de uma pintura ou a aparência de um
tirá. Seus inícios são fugidios, seu fim é impreci-
monumento. É quase tão desconcertante ter de ci-
so. Não só o tempo que ela implica não é delimi-
tável, como também é intimamente solidária do tar como exemplo uma conduta quanto se ver obri-
gado a resumir um quadro.
espaço empírico em que se situa. Seu sentido de-
Ora, remeter à experiência direta tampouco
pende do lugar e dos arredores, dos parceiros, dos
é praticável: nesse caso, aqui não se visita, não
I' comparsas ou das testemunhas ocasionalmente
I' se reserva e nada se reitera. Embora a lingua-
presentes - componentes cujos limites são impos-
síveis de ser estabelecidos. gem se esquive, é impossível dispensar esse re-
curso aproximativo.
Longe de se caracterizar pela incapacidade de
Algumas condutas serão, conseqüentemente,
invenção, o comportamento pode seguramente pro-
privilegiadas; não em virtude de suas qualidades
duzír acontecimentos análogos a um chiste; mas
I I: intrínsecas, mas simplesmente porque são menos
ele o fará englobando tantas alusões a circunstân-
II I' incômodas de ser citadas do que todas as outras.
cias tão fugidias que sua obra, efêmera, dificilmen-
li! São aquelas que se destacam da continuidade am-
te se deixará captar pela análise. Esta pesa num
biente por um começo e um fim relativamente cla-
texto porque ele permanece e, num achado verbal,
'"
ros, por uma auto-suficiência que permite isolá-
porque se repete. Ela fica desamparada diante da
I 'I"
Ias. Uma conduta se relata tanto melhor quanto
111'1 I
fugacidade de uma situação vivida, como a musi-
,i,; mais comprimida estiver no tempo, mais intencio-
I'" cologia ficaria se nenhuma música pudesse ser nalmente distinta de seu contexto, mais delibera-
reouvida.
damente visível: será evocada tanto mais facilmen-
Uma composição musical se apresenta como
te como exemplo, quanto mais já tiver adquirido o
um objeto preciso. Sua execução por um intérprete,
estatuto do "gesto". Por essa razão, categorias que
ainda que seja menos fácil definir o que lhe é pró-
a pura reflexão estética não teria talvez retido
prio, possui, contudo, por sua vez, uma existência
distinta. Porém, e as circunstâncias dessa execu- como essenciais passam acidentalmente a ocupar
um lugar central. Assim, a referência às "ações
ção? A escolha da obra, a do lugar e do momento
exemplares", que correspondia à simples comodi-
podem ter uma qualidade criativa que depende de
dade da citação (pois já tinham, literalmente, qua-
uma arte verdadeira: arte da situação, do aconteci-
lidade de exemplos), acarretou uma valorização do
mento, do comportamento coletivo. Mas como tra-
teatral e do espetacular que conviria retificar.
çar os limites dessa situação? E como descrever tal
Porém, essa inclinação à teatralidade ou a pro-
momento sem deslizar do relatório à reinvenção?
pensão ao espetacular não seriam apenas o gosto
Por razões possivelmente diferentes, mas de
do gesto, levado à exacerbação? E não se deveria
maneira igualmente radical nos dois casos, a des-
76

pôr até mesmo esta idéia de gesto, agora, em ques-


tão? Atribuindo-lhe um papel preeminente, a pre-
sente reflexão se concedeu uma facilidade: entre
todas as condutas, ela restringiu seu interesse
àquelas que se abstraíam do fluxo (do vago)
corrente e que se autodesignam por sua intransi-
tividade.
Ao mesmo tempo, privilegiando o gesto, essa
reflexão sobre a arte das condutas oferecia a si
mesma a vantagem de encontrar tacitamente a ESTÉTICA ROMÂNTICA
caução de uma teoria estética já constituída: a que
se elaborou há cerca de dois séculos e que conser-
li!
I
va com freqüência, ainda hoje, a aparência de uma
verdade intemporal. Pois tudo acontece como se a
I I, doutrina romântica tivesse sido construída expres-
I
samente para se aplicar em particular ao gesto.
!
Tzvetan Todorov demonstrou que a doutrina
contida nos escritos de Karl Philipp Moritz,
I~:1,
August Wilhelm Schlegel e Novalis permanece
presente até no pensamento de Sartre, Blanchot
ou Barthes1 . Ele a resume com os traços seguintes:
1. valorização do processo de produção, sendo pre-
ferido o momento de formação ao resultado forma-
do, ao produto acabado; 2. recusa da função exter-
na: a beleza reside na intransitividade de uma coi-
sa realizada em si mesma; 3. afirmação da neces-
sária coerência interna da obra de arte; 4. vonta-
de sintética de uma fusão entre a forma e o con-
teúdo, entre a matéria e a idéia; 5. afirmação de
que o sentido da obra é indizível: as idéias que ela
encerra são intraduzíveis em linguagem comum,

1. Tzvetan Todorov, Théories du symbole, Paris, Seuil, 1977; "La Réflexion


sur Ia littérature dans Ia Franca contemporaine", Poétique (38), Paris,
8euil, 1979.
78
79

sendo a interpretação, portanto, infinita. Segundo


desenrolar do ato a atenção que se fixa comum ente
os textos teóricos do romantismo alemão, "esses
em seu resultad03.
cinco traços característicos (produção, intransiti-
É escusado procurar demonstrar que a idéia
vidade, coerência, sintetismo, expressão do indizí-
de intransitividade convém à essência do gesto,
vel) aplicam-se ora ao belo em geral, ora à arte,
pois é precisamente com essa idéia que este se viu
ora ao que não é senão um meio dela, mas meio
emblemático: o símbolo romântico". Basta conside- definido, quando foi preciso distingui-Io do at04•
Poder-se-ia dizer, com Lukács, que "o gesto é a
rar ponto por ponto esse corpo de princípios para
única coisa que se completa em si mesma"5, se
se verificar que ele convém ademais admiravel-
:~~II
r' ;:: essa fórmula não conviesse igualmente, palavra
mente ao gesto.
1:'11
,!rJ11
por palavra, à concepção romântica da beleza.
I 'i' Seria esse "momento de formação", preferido
Para Moritz, "o belo não exige um fim fora de si
pela estética romântica ao "resultado já formado",
mesmo, pois ele é tão realizado em si mesmo que
I o gesto criador, oposto à obra realizada? O primei- todo o fim de sua existência se encontra em si
ro princípio dessa doutrina se aplica, portanto,
1
mesmo ... A essência do belo consiste em sua rea-
mais imediatamente, ao próprio gesto do que à
lização em si mesma"6. Não se deveria, por conse-
poesia, à arte ou ao símbolo; ele só terá validade
guinte, remeter à ideologia romântica toda a sedu-
em relação a esses na medida em que forem con-
ção que pode exercer o gesto quando ele é como o
' cebidos como materialização de um gesto. Por isso,
descrevemos: esgotando-se em sua atualização,
,

\ I a pintura gestual, nos anos 40 de nosso século,


! dará a si mesma palavras de ordem que parecem
indiferente aos resultados, exemplarmente ergui-
do fora do encadeamento temporal?
demarcar os preceitos românticos. Ela desejará
Requer-se da obra de arte que ela possua um
"revalorizar o ser em ato em relação aos produtos
caráter sistemático, em que a finalidade interna
do ato"; "o gesto livre do artista sobre a tela será
(ou coerência) compense a ausência de finalidade
considerado o fim em si da pintura"2. Klee, Kan-
externa. Para definir essa propriedade, que atribui
dinsky, Hartung serão tidos como os "longínquos
à obra poética e que nega aos discursos prosaicos,
precursores" de uma "revolução estética" cuja teo-
Moritz procede por comparação e recorre à distin-
ria se encontra, na realidade, claramente formula-
ção entre a dança, organizada de maneira interna
da desde o fim do século XVIII. Recentemente, a
pela medida, e a marcha7 - como se esse novo
arte conceitual, a body art, a land art se aplica-
ram, por sua vez e segundo o mesmo princípio, a
destituir o objeto acabado de seu estatuto de obra, 3. Frank Popper, Art, action et participation. L'Artiste et Ia créatiuité
aujourd'hui, Paris, Klincksieck, 1980.
em proveito do gesto que o precede, a transferir ao
4. Cf. supra, pp. 27, 32-33.
5. Cito por Michel Maffesoli, La Conquête du prêsent, Paris, P.D.F., 1979,
2. Margit Rowell, La Peinture, le geste, l'action, Paris, Klincksieck, 1972, pp. p.176.
9-10. 6. Cito por Tzvetan Todorov, Théories du symbole, ap. cit., p. 188.
7. Id., p. 191.
80 81

princípio tivesse em suma, também ele, sua apli- ca, como também porque a estética não parou, até
cação mais clara e mais imediata no domínio dos os dias de hoje, de apresentar a unificação desses
gestos. Seria preciso, sem dúvida, suspeitar-se contrários como uma tarefa essencial da arte. Ora,
igualmente da presença da ideologia romântica na se essa exigência sintética recomenda, como seu
atração da volta ao passado, no desejo de contem- meio mais seguro, que a relação entre o significan-
plar o destino, nessa atitude que amiúde se mani- te e o significado seja "motivada", onde se encon-
festa em Nietzsche, por exemplo ("Gosto dos ani- trará uma possibilidade mais exata do que no ges-
versários, das noites de São Silvestre ... Adqui- to? Que discurso se organizará algum dia, para sig-
re-se uma visão segura, uma espécie de escorço do nificar o amor, de uma maneira mais bem "moti-
passado, toma-se a resolução com um coração mais vada" que o beijo ou que uma conduta generosa?
audaz e mais firme a retomar caminho"B), que con- Enfim, o último princípio da estética românti-
siste em emprestar à vida a autonomia de uma ca, segundo o qual as palavras da linguagem co-
d 'i! I
forma orgânica, a coerência de uma obra ou a or- mum não podem traduzir o conteúdo de uma obra
ganização de um gesto. de arte, aplica-se por sua vez diretamente ao ges-
O tema romântico da fusão dos contrários re- to. Este, com efeito, não menos que a arte, possui
cobre uma quantidade excessiva de oposições para a propriedade de exprimir as coisas sem as enun-
que se empreenda aqui o estabelecimento, a respei- ciar, sem que elas sejam ditas. Não apenas a sua
to de cada uma delas, do papel sintético que o gesto significação é sempre transmitida com a possibili-
(r está particularmente em condições de desempe- dade de denegação, como se observou acima9, mas
nhar. Deixando-se de lado aquelas que a história também lhe é facultado, devido à simultaneidade
das idéias fez definhar (mas o gesto não seria no- de seus aspectos, mostrar em conjunto significa-
tavelmente indicado para reabsorver a antinomia ções contraditórias que a linguagem não poderia
da "alma" e do "corpo"?) ou aquelas cujo alcance, condensar tão intimamente - como na crise his-
talvez erroneamente, tenha sido negligenciado nes- térica em que "a doente, com uma das mãos, segu-
te estudo (mas - falho ou não - não representa- ra o vestido contra o corpo (enquanto mulher), ao
ria o gesto o mais flagrante encontro do "conscien- passo que com a outra mão se esforça em arrancá-
te" e do "inconsciente"?) só reterá a oposição "for- 10 (enquanto homem)"lo. Os gestos que já foram
ma"/ "conteúdo", "matéria"/ "idéia" ou, segundo evocados para ilustrar o que se chamava então
uma terminologia que parece hoje mais precisa, efeito de parcimônia11 conviriam igualmente como
"significante"/ "significado"; não apenas porque ela exemplos do símbolo como define a estética român-
ocupa um lugar importante na doutrina românti-

9. Cf. supra, pp. 33-34.


8. Carta a sua mãe, citada por Daniel Halévy, Nietzsche, Paris, Grasset, 10. Freud, Les Fantasmes hystériques et leur relation à la bisexualité, trad.
1944, reed. 1977, pp. 71.72; "Ele passa a noite de São Silvestre relendo fr. em Névrose, psychose et perversion. Paris, P.UF., 1973, p. 155.
suas composições de juventude", p. 222. 11. Cf. supra, pp. 50, 56-58.
83
82

princípio de intransitividade fraciona a conduta e


tica: eles se captam num "relance", "num só lan- reserva a seus diversos momentos uma qualidade
ce"12e a percepção instantânea de sua forma liber- desigual, pois os instantes que ele caracteriza, rea-
ta a superabundância de seu sentido - de modo lizados em si mesmos, inúteis e belos, deixarão
que a linguagem cotidiana, incapaz de esgotar essa estender-se, no triste intervalo que os separa, lon-
riqueza, é ademais impotente para restituir o equi- gos períodos fatalmente transitivos. A menos que
valente de um tal contraste13. Suponhamos de pas- um estetismo voluntarista decida que cada mo-
sagem que isso se deva talvez ao seu aparecimen- mento será vivido como se representasse uma to-
to tão indizivelmente carregado de sentido que o talidade acabada e simbolizasse um destino. Para
It~11
;11
gesto de outrem suscita, com excessiva freqüência defender essa atitude, será preciso nada menos
1'1'11
de nossa parte, a pobre resposta que é a repetição: que a concentração crispada em si de um Malraux:
I' enquanto replicamos as palavras com outras que certo dia, ele estava no elevador com sua mulher
as prolongam, devolvemos um gesto, como se fos- quando ela lhe pediu que fizesse a gentileza de
I
, , se preciso anulá-Io, desfazer-se dele. livrá-Ia de um dos muitos pacotes que a atrapalha-
É importante destacar a afinidade que o cul- vam; ele se recusou a pegá-Io, considerando incom-
I' to do gesto mantém com uma doutrina formulada patível com a sua personagem carregar um paco-
I
há já duzentos anos. Não que seja preciso conside- te14. Mas, mesmo quando uma vigilância implacá-
! I rar essa doutrina como "falsa", nem mesmo como
"caduca". Mas não é inútil tomar consciência da
vel - e condições de existência privilegiadas - I
i
,1'\111,1

permite conferir a cada instante a completeza do I,

,I
'"
limitação que ela engendra. As condutas que ela gesto, de quanta certeza de gosto não se precisa
incita privilegiar deixarão, por conseguinte, de para se compor, de um só lance, toda uma vida,
aparecer como sendo as únicas dignas de interes- com a coerência que, por outro lado, essa estética
se estético.
exige!
Essa limitação é particularmente marcada Enquanto a música ou a pintura toleram a in-
pela própria natureza da concepção romântica. O terrupção e não se alteram por ter de depender da
disponibilidade de seus instrumentos e de seus
materiais, enquanto a poesia não enfrenta de for-
12. Friedrich Creuzer, citado por Tzvetan Todorov, Théories du symbole, op. ma alguma o fracasso quando chega a uma pausa,
cit., p. 254. a um branco, ao silêncio, a conduta tem a particu-
13. Nietzsche, de Bonn, onde então vivia, vai a Colônia. "Tendo pedido o en- laridade de nunca poder ser suspensa: ela conti-
dereço de um locador, foi conduzido, talvez por um engraçadinho, a uma
casa de tolerância. Entrou no salão público, e logo se viu cercado pelas
nua a tomar sentido e não-sentido, a derivar no
mulheres despidas. No meio do salão, um piano aberto. 'Fui diretamen-
te ao piano', contou ele, 'como o único ser que tinha alma naquele cômo-
do.' Ele sentou-se, colocou as mãos no teclado e fez explodir uma das po-
derosas improvisações que seus amigos admiravam. As mulheres, estu- 14. Relatado por Alain Malraux, Les Marronniers de Boulogne, Paris, PIou,
pefatas, ouviam. Nietzsche levantou-se de repente e saiu, deixando-as 1978, p. 174.
perturbadas." Citado por Daniel Halévy, op. cit., pp. 75-76.
84 85

informe, a consumir o seu tempo contado, mesmo ele reivindica a responsabilidade por seu crime e
quando a arte que ela requer se retira. Ora, impo- preserva sua vítima de tornar-se um cadáver anô-
tente para se protelar, a conduta é, além disso, nimo, um dejeto do Partido. Dir-se-á que apenas o
refratária ao arrependimento. Ela não é suscetível sentido flutuou e que, pelo menos, o acontecimento
de retoque. Nenhuma correção realizável, nenhu~ permaneceu intransformável? Mas o acontecimento
ma retomada do trabalho passado, nem da ociosi- em si reduz-se a nada: foi um acidente, acaso con-
dade, nem mesmo da volta ao esboço. Nenhum cor- tra o qual justamente Hoederer se revoltou inven-
te possível, diferentemente das artes que podem tando in extremis uma mentira. O gesto ulterior de
'~
suprimir um fragmento mal-sucedido, ao contrário Hugo dá enfim a Hoederer "a morte que lhe con-
i\:~
até, ao que parece, de todas as outras artes, em vém". Uma porta aberta com um chute: nesse ins-
i que é sempre possível anular uma obra malfeita e tante, o homem que foi assassinado dois anos antes
recomeçar tudo sobre novas bases. Aqui, os arre- morre por suas idéias em vez de morrer por acaso.
III pendimentos permanecerão sem efeito: teria sido Mas a liberdade de recompor o passado, que é,
',I,' preciso parar ali, era preciso partir naquele mo- numa tal perspectiva, a licença mais tentadora,
,11' mento. O erro de gosto, a inabilidade na execução poderia perfeitamente ser também a mais perigo-
II r
são irremediáveis. Uma lentidão no acabamento sa. É verdade que Sartre maneja uma distinção
de um episódio (uma visita, uma viagem, uma li- entre a piedosa intenção de Hugo e as operações
gação), e não só esse erro é irreparável no futuro, cínicas do Partido. Todavia, em nome de que inti-
mas corrompe o passado, embota o que o precedeu, midade será um mais apto que outro para decidir,
contamina para sempre por retroação os mais fe- no que se refere a Hoederer, que tal é "a morte que
lizes começos. lhe convém"? Milan Kundera, ao contrário, assimi-
É verdade que o artista das condutas, por mais la expressamente, por reservar-Ines a mesma des-
dedicado que esteja a essa ansiedade do irreversí- confiança, o indivíduo que retoca sua vida e o par-
vel, dispõe de um recurso para temperá-Ia. Pois se tido político que reinventa a história. Em Le Livre
o fenômeno de retroação, que submete o que está du rire et de l'oubli, Mirek queria se conceder, para
terminado às influências do presente, pode chegar completar seu destino que se aproxima do fim, o
à paradoxal corrupção do passado, permitirá por direito de que dispõe o romancista de reescrever
vezes, igualmente, sua emenda. Sartre, em Les ou de suprimir um episódio insatisfatório. Mas a
Mains sales, dá vários exemplos desses retornos de mulher, a quem outrora amou, e de que se enver-
sentido que afetam o que já aconteceu. Hoederer gonha, obstina-se em figurar em sua juventude e
não mais existe, mas sua morte será o que o Parti- não se deixa apagar. A existência retorcida de
do quiser que ela seja: assassinato político, se -Zdena, que atravanca a vida de Mirek, é análoga
Hoederer for um adversário, crime passional, finalmente à do próprio Mirek, que não convém ao
quando for reabilitado. Por sua vez, Hugo, o assas- Partido. Em ambos os casos, a coerência do todo
sino, num último gesto, fixa o sentido dessa morte: pressupõe que seja eliminado o detalhe refratário:
86 87

um homem aqui, uma lembrança lá. Portanto, sar de tudo, bastante próxima das posturas que ela
sempre é possível que um sentido retrospectivo rejeita? Aplicando-se metodicamente a inverter o
remodele, como a história coletiva, um destino in- romantismo, ela o lembra constantemente, como
dividual; mas isso se dará à custa da morte e do um contrário obsessivamente presente - quando
esquecimento. não retoma certos traços para os transpor do subli-
Como conceber uma estética das condutas que me ao frívolo, do espetacular ao minúsculo, na in-
escape a tais esquemas? Duas eventualidades po- tenção de "democratizar" o direito à aventura.
dem se oferecer: uma que consiste em tomar sis- Em vez disso, postular-se-á, antes, mais uma
tematicamente o contrapé da ideologia romântica, vez, que a atividade artística está para desempe-
111
a outra em escolher por princípio categorias que nhar, em relação à estética das condutas, o papel de
lhe sejam radicalmente estranhas. modelo e que ela pode sugerir princípios mais intei-
,

O esteta romântico queria momentos de exce- ramente afastados das seqüelas do romantismo.
I,i il ção, começos radicais (a partida do aventureiro, a
do emigrante, a efervescência da Grande Noite),
'11 '
acabamentos irrevogáveis (o adiamento da demis-
III são, a suspensão das atividades, o suicídio). Ser-
~ I "
lhe-á oposta a reabilitação da banalidade, a acei-
, 'I:
jl I' tação do cotidiano, a dignidade transitiva do tri-
I, ' vial, a digressão do transitório. Ele se impunha o
j
dever de viver sem tempos mortos e intensificar o
mínimo instante. Prefere-se agora percorrer com
displicência as monotonias diárias. Nunca perdia
de vista que cada um de seus gestos empenhava a
imagem global de sua vida. Objetando-lhe a fór-
mula de Cioran: "só descobrimos sabor no cotidia-
no quando nos furtamos à obrigação de ter um des-
tino", é pela obstinação no insignificante e no des-
cosido que se fará doravante valer o direito de ser
um homem comum.
Essa atitude, que Pascal Bruckner e Alain
Finkielkraut descreveram paramentando-a com
uma surpreendente sedução15, não será ainda, ape-

15. Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut, Au Coin de Ia rue, l'aventure, Pa-


ris, Seuil, 1979.
o SENTIDO DO INSIGNIFICANTE

:~ I '

Tudo o que se chama Arte, aqui e ali, ou-


trora e agora, é por demais disparatado para que
II uma função artística geral oriente esse heteróclito
e flutuante conjunto. Uma obra por si mesma é
ocasião de prazeres tão múltiplos e, para o mesmo
. sujeito, de abalos afetivos tão variados que uma
investigação, que se dedicasse à definição da fun-
ção estética, deveria interrogar-se imediatamente
sobre o estranho desejo que a faz postular uma tão
improvável unicidade de princípio.
Deixando-se de lado tal ou qual obra (sem dú-
vida, setores inteiros das Belas-artes), que serão
excluídas do campo de aplicação da fórmula pro-
posta, pode-se tentar definir uma função, que não
se deve apressadamente crer especificamente es-
tética, a qual, decerto, não é a única a reger as
operações reputadas artísticas, maS que pode
exemplificar-se de modos bastante semelhantes
em artes bastante diferentes, para que, ao mesmo
90 91

tempo, possa supor-se que seja consistente com Papel discriminante da linguagem? Mesmo
uma função original, que a qualifique provisoria- que ali não esteja a origem absoluta da segregação
mente de estética.
do essencial e do secundário, verifica-se que a opo-
É uma função de desfocalização, para se re- sição lingüística entre o que é pertinente e () que
sumir numa palavra e para não se recear situá- não é fornece o arquétipo mais claro das outras
Ia em posição negativa relativamente ao que a distinções aqui em causa e que a dualidade do sig-
precede. Estão em primeiro lugar a focalização nificante e do insignificante implica referência a
da atenção, a consciência seletiva, a discrimina- sistemas de signos, dos quais a língua é o mais
ção do essencial e do acessório, do significante e acabado. Entretanto, esta não estrutura de forma
do insignificante, do sentido e do acaso, da figu- tão imutável a matéria verbal que não possa subi-
ra e do fundo. A desfocalização destitui o essen- tamente dar sentido àquilo que, um pouco antes,
cial, dá sentido ao acidental, detém-se no deta- estava privado de pertinência, pois a poesia é a
lhe, deriva na margem. arte dessa transmutação. Parece que se levaria em
Qual é essa necessidade primeira que impõe à conta .ao mesmo tempo a primeira presunção, re-
atenção esquemas que negligenciam mil contingên- ferente ao efeito de abstração próprio da língua, e
cias? - O ato de fabricação, diz Valéry, em Eupa- a reserva que impõe a presença do recurso poéti-
linos, não se inquieta com todas as qualidades da co no núcleo da linguagem, avançando-se que a
substância que ele modifica, mas apenas com algu- discriminação dos elementos vivos e dos elementos
mas: "O homem constrói por abstração, ignorando mortos, quanto ao sentido, não é imputável à lin-
e esquecendo uma grande parte das qualidades do guagem enquanto tal, mas à função de comunica-
que ele emprega"1. Por conseguinte, necessidade
ção que tende a açambarcá-Ia. .
"prática"? Necessidade "pragmática", "utilitária"? Tudo pode ser signo, do gesto mais furtivo à
- Seria verdadeiramente preciso que, no campo postura menos estudada. Na própria substância
de consciência, a recuperação da realidade residu- da linguagem tudo faz sentido; tal palavra em lu-
al tenha como condição uma atitude "teórica", uma gar de um sinônimo, tal assonância, o timbre da
disposição "desinteressada", uma curiosidade "gra- voz, a fluência, o silêncio. Mas esses índices são
tuita"? Será preciso tomar partido nessas oposi- por demais fugazes ou singulares para que um
ções que relegaram a arte às regiões anódinas da consenso se estabeleça sobre o que significam. A
superfluidade? - Necessidade "vital"? - Mas será atitude de comunicação, que deve contar com a
que se acredita que a flutuação da atenção para reciprocidade dos interlocutores, reterá exclusiva-
além das balizas seja mortal? mente os significados experimentados, os signifi-
cantes instituídos, os signos estabelecidos. Afas-
tando o sentido inédito, que se prestaria a uma
1. Paul Valéry, Eupalinos ou l'architecte, Paris, Gallimard, 1960, Pléiade, voI. compreensão arriscada, a inteligências divergen-
lI, pp. 123-124.
tes, ela obscurece o que o engendra. Não é apenas
92 93

o ato de fabricação, como o definiu Valéry, é, gene- de uma justaposição entre o reino do sentido, es-
ricamente, o ato de comunicação que procede por tabelecido nos limites da obra, e o da insignificân-
abstração, "ignorando e esquecendo uma grande cia, que prolifera ao redor. A pintura moderna,
parte das qualidades do que emprega". desde o impressionismo, recupera o espaço bidi-
A função de desfocalização, em compensação, mensional da tela, impõe-lhe autodesignar-se
dá sentido ao insignificante: à sílaba na palavra, como o próprio lugar do sentido, impede-a de reto-
à pedra no muro, à cor na forma, à palavra na fra- mar o estatuto de invisível instrumento da pro-
se. A prosa de comunicação focaliza-se na frase, fundidade; ela reconquista em seguida a própria
cujos elementos serão apenas constituintes. A pro- substância dessa superfície, ressemantiza sua ma-
sa literária, sem perder de vista o enunciado glo- terialidade, recusando que se limite ao papel de
bal, assume suas unidades interiores, favorece em suporte fortuito da área colorida. Todavia, a obra
particular sua polissemia, que o contexto tende a necessariamente se interrompe, abandona suas
reduzir e que a intenção de comunicar visa a anu- margens ao acaso. Picasso não elude esse proble-
lar. A poesia encarrega-se ao mesmo tempo da coe- ma: "O grande lance é o espaço entre o quadro e a
rênciado texto global, das implicações plurivalen- moldura"2. Mas será esse ainda o lance da pintu-
tes de cada uma de suas palavras e até da textu- ra? Será que esse é, ainda hoje, o lance da "arte"?
ra das sonoridades ou das grafias. Desde que esta se tornou manifestamente objeto
I, Essa reconquista estética do insignificante é de um interesse institucionalizado e está por sua
! sem fim. A arte propriamente dita é apenas uma vez focalizada enquanto tal pela cultura estabele-
de suas etapas. A desfocalização artística consiste cida, a desfocalização perseguida não é mais "ar-
em dar novamente sentido a todos os detalhes que tística"; munida de métodos experimentados no
entram no espaço da obra, em colocá-Ios no mes- interior das Belas-artes, ela se dissemina fora
mo plano, em conferir-Ihes uma força significante dessa moldura.
igual. Mas essa operação de ressemantização de O teatro restitui a cada gesto todos os seus
todos os elementos presentes só é bem-sucedida poderes simbólicos, rompe o encadeamento dos
justamente nesse espaço privilegiado, à custa do movimentos transitivos, valoriza cada atitude,
fechamento da obra, às custas do circundante so- impede-a de fundir-se, despercebida, na totalida-
bre o fundo do qual ela se põe. A desfocalização de indiferenciada de tal ou qual conduta social-
não é o abandono da atenção nem o relaxamento mente identificável. Os silêncios deixam de ser as
da consciência; é como se a disseminação percep- pausas da significação; os ruídos tornaram-se coi-
tiva exigisse uma outra concentração e impusesse sa diferente de parasitas da comunicação; a qua-
uma indiferença mais completa em relação ao con- lidade das luzes não se reduz mais às funções da
torno desse novo centro. Ora, se os academismos
toleram essa contradição, a história da arte em
ato é a das recusas sucessivas da idéia resignada 2. Citado por LOllis Aragon, Les Collages, Paris, Hermann, 1965, p. 74.
95
94

dade estética? Na medida em que a definimos de


iluminação. Mas a amplitude nova da atenção as- maneira muito geral para distingui-Ia das artes,
sim solicitada, que, por ser difusa, não deve ser que são submetidas, por sua vez, não apenas à es-
menos vigilante, esse alargamento da consciência, pecialização de seus procedimentos respectivos,
agora desfocalizada e requerida para encontrar mas à heteronomia da apresentação de uma "obra",
sentido em cada entonação, em cada atuação, em pode-se sempre, é claro, postular que ela deve se
cada expectativa, só parecem possíveis às custas aplicar ao campo integral da vida cotidiana. Toda-
dos inúmeros artifícios que reduzem, por algum via, querendo-se evitar repisar simplesmente uma
tempo, o mundo às dimensões de uma cena. Ora, palavra de ordem, pregar vagamente a obrigação
o grande lance, ainda aí, para os mais exigentes, de "mudar de vida", querendo-se exortar os outros e
é a relação entre o palco e as fileiras do público, o incitar-se a buscar efetivamente os meios de
espaço entre a cena e os bastidores, o intervalo poetizar a existência, é preciso conceituar tão fir-
entre o espetáculo e o tempo profano que o prece- memente quanto possível pelo menos uma das fun-
de e o sucede. Muitos esforços do teatro contempo- ções que estão em atividade na prática das artes.
râneo tendem à abolição dessa fronteira instituí- Parece que, no que concerne à realização des-
da pela ribalta entre uma zona integralmente sa preliminar, um primeiro passo pode ser dado
semantizada e o lugar de penumbra onde a exis- que permita ultrapassar os sumários e agora mui-
,i
tência do público, contingente, permanece à mar- to oficiais encorajamentos da "criatividade": a
I gem dos desdobramentos do sentido. Outras ten- desfocalização da atenção ou, mais precisamente,
tativas, do mesmo alcance, suprimem os bastido- a exclusão do princípio de pertinência (tal como é
res, generalizam a troca dos cenários e das roupas definido pelas ciências da comunicação) representa
diante do público. O momento em que um ator talvez a operação cuja análise seria muito fecun-
endossa os índices vestimentários de uma nova
da nesse aspecto.
personagem não pode aparecer como sendo um Tomada de empréstimo à experiência teatral, a
instante altamente significante: por que ele se dis- idéia de bastidor pode ser generalizada, a ponto de
simularia como uma coerção transitiva, como uma simbolizar toda a classe dos lugares, das ocupa-
inessencial transição? - Contudo, essa teatraliza- ções, dos períodos que são dedicados à preparação
ção conquistadora, que ganha os bastidores, trans- do sentido e suprimidos de sua manifestação. O
põe a ribalta, distribui papéis aos espectadores, exemplo da recuperação progressiva, no espaço do
anexa os corredores e arrisca eventualmente algu- jogo cênico, das passagens adjacentes ao palco ou
mas incursões nas ruas vizinhas, interrompe-se aos corredores reservados ao escoamento do públi-
quando não é mais hora de atuar, quando a festa co, inspiraria então um modo de vida que instituís-
termina, ou quando, para os mais obstinados, che- se um mesmo grau de densidade semântica entre a
ga a hora de pensar em outras formas de ação. habitação e a rua (mas a rua seria então habitada),
Dirigiria o reconhecimento dos limites da arte a destinação e a estrada (mas o viajante não teria
teatral ou da pintura uma visão restritiva da ativi-
96 97

mais destino), a "vida" e o trabalho (mas a vida per- musical, pois o ruído resulta da superposição de
deria suas aspas, seus parêntesis, suas pontua- vibrações que são chamadas "não-harmônicas".
ções). O apartamento moderno, que dissocia o Ora, tal como a idéia de bastidores ou a de mar-
living onde se vive e os bastidores reservados à co- gem, a idéia de ruído pode ser empregada em do-
zinha, à toalete, ao sono, ao amor, seria substituído mínios estranhos à arte de origem; a teoria da co-
por um espaço comum, impedindo que uma ativida- municação designa dessa maneira os fenômenos
de qualquer fosse considerada indigna. que interferem com um sinal, seja qual for sua
Tomada de empréstimo às artes gráficas, a natureza (luminoso, gráfico, icônico, gestual, ver-
idéia de margem pode ser entendida, de forma
mais genérica, como conveniente a todos os espa-
ços neutros, aos dias vazios, aos tempos mortos,
aos encontros inuteis. A atenção marginal da qual
dão testemunho, no sentido literal, a poesia de
I
,
bal), e que limitam a transmissão da informação.
O trabalho musical, que consiste em enriquecer a
série dos sons disponíveis num sistema historica-
mente dado, aparece por conseguinte como exem-
plar fora do campo que lhe é próprio. Do mesmo
ApoIlinaire e a reflexão de Michel Butor, a caligra- modo que a música concreta subtrai os ruídos
fia desde sempre, a escritura versificada talvez e (acústicos) ao acaso e os introduz na ordem da
a história em quadrinhos mostra por vezes o exem- pertinência musical, a conduta cotidiana pode ar-
plo de uma possível reconquista, em benefício de rancar os "ruídos" (metaforicamente definidos) da
um sentido mais diversamente enraizado, dessas insignificância e conferir-lhes uma carga semânti-
extensões laterais e infecundas que são também as ca. Quais são esses "ruídos"? Trata-se dos parasi-
franjas de uma jornada, os dias seguintes de fes- tas da comunicação, dos elementos imprevistos
ta, os fins de vida. Num elogio da pane3, Jacques pelo código que, misturando-se ao sinal, confun-
Meunier indica de que modo a ruptura dos meca- dem a mensagem: reações singulares, comporta-
nismos provoca descobertas, experiências, abertu- mentos inclassificáveis. Tendo um colegial de de-
ras no inesperado. Para isso, pressupõe-se uma zoito anos fabricado sem autorização um engenho
verdadeira aptidão para apreender-se a providên- explosivo que estourara inopinadamente no ba-
cia marginal. Do contrário, o desarranjo da rotina nheiro de seu quarto de estudo, a vara criminal lhe
representará apenas uma perda de tempo, o inci- inflige quinze meses de prisão, catorze dos quais
dente será apenas uma confusão; deixar-se-á pas- com sursis: o rapaz anota cuidadosamente sua con-
sar a oportunidade de um encontro na irritação de denação num caderno de notas, tal como deve ter
ter faltado a um compromisso. anotado anteriormente, quando freqüentava as
A ideia de ruído, apesar de não ser espontane- reuniões dos escoteiros ou a aula de tecnologia, a
amente relacionada com a experiência da música, fórmula da mistura detonante4•
só é entretanto definível enquanto oposta ao som

3. Jacques Meunier, "Vive Ia panne!", Le Monde dimanche, 12 fev. 1981. 4. Le Monde, 26 mar. 1981.
98 99

o menor dicionário analógico enumera copiosa- roupas inadequadas à ocasião, cumprimentar com
mente as palavras que designam ruídos (zumbido, cortesia desconhecidos na rua: esses atos, mal saí-
vozerio, sussurro, chiado, marulho, estalo, crepita- dos do impensável, revertem ao insensato.
ção, grito, rangido etc.) e das quais a escuta musi- O dandismo de modo nenhum recomendava a
cal se privou até recentemente. Pelo menos tais lis- extravagância. Em vez do exagero no fausto ou na
tas podiam ser feitas antes mesmo do aparecimen- fantasia, ele procurava uma distinção sóbria. Sem
to da música concreta. Nada disso, no que se refere dúvida, tratava-se de se singularizar, mais por
à conduta. Num momento dado da evolução dos cos- refinamento que por incongruência. Era preciso
.'
"
tumes, e como resposta a uma situação determina- ser notado, mas sem recorrer aos procedimentos
'li da, o sistema dos comportamentos cuja pertinência vistosos; provocar a surpresa, mas utilizando me-
é admitida (seja qual for sua significação: que esta lhor do que ninguém os recursos comuns5.
se relacione com as categorias do permitido, do re- O dândi cultiva o detalhe essencial. Mais exa-
comendado ou do interdito), esse sistema sempre se tamente, tudo é detalhe para ele, e cada detalhe é
pretende relativamente aberto e, na medida justa- capital.
mente em que não é totalmente rígido, dispensa-se
de ser explícito: as virtualidades que exclui ficam É às coisas que têm menos importância que ele pretende
mais se apegar ... De um conjunto de práticas insignificantes e inú-
ainda mais recalcadas, sua enumeração, mesmo que
teis, ele faz uma arte que leva sua marca pessoal, que agrada e
parcial, ainda mais impossível. A codificação estri- que seduz à maneira de uma obra de engenho. Ele comunica aos
ta dos sistemas- musicais autoriza e provoca uma menores signos de roupa, de postura e de linguagem um sentido
formulação dos elementos que eles admitem, isto é, e um poder que eles não têm naturalmente. Ele produz do nada
dos sons, e permite o recenseamento dos ruídos que uma superioridade misteriosa que ninguém saberia definir, mas
cujos efeitos são tão reais e tão grandes quanto os das superiori-
excluem. Mas a codificação das condutas, muito
dades classificadas e reconhecidas. O dândi é um revolucionário
menos rigorosa aparentemente, impõe-se de manei- e um ilusionista6•
ra indireta e tácita, embeleza-se com a idéia de li-
berdade e mantém relações imprevistas no nada do
Ele é artista e, nisso mesmo, revolucionário, se
impensável. Não mais se trata aqui da classe dos
é verdade que a arte tem como efeito subverter a
atos interditos, que, no que lhes diz respeito, são
hierarquia que a ordem estabelecida postula entre
perfeitamente codificados e cujos traços pertinentes
o importante e o acessório. Sua conduta não é ex-
os tribunais nunca deixam de lembrar com precisão.
travagante. Mas seria correto chamá-Ia de excên-
Os comportamentos que escapam ao código não trica se, desse modo, se pudesse designar a liber-
acarretam uma interdição franca, suscitam uma re-
provação velada. Não infringindo regra explícita al-
guma, não têm a significação do delito; mas, por se 5. Emilien Carassus, Le Mythe da dandy. Paris, A. Colin, 1971, p. 1Ol.
comporem de signos inéditos, aparecem como um 6. Jules Lemaitre, Les Contemporains, 1875, citado por E. Carassus, op. cit.,
desregramento do princípio de comunicação. Usar pp. 253-254.
100 101

dade discreta que desloca bruscamente os valores conjuntura cênica. A atenção metódica aí seria len-
centrais. O dandismo transfere para os gestos ta e pesada. A focalização analítica delimita ape-
mais fúteis o cuidado exigente, comumente reser- nas signos já desertados. Nenhum outro campo
vado às tarefas reputadas sérias; ele mina por estético exige, como a arte das condutas, essa ex-
contragolpe os prestígios da riqueza, dos títulos, trema prontidão para a captura das coincidências,
da função social. Institui uma arte de viver no sen- cuja condição reside na atenção desfocalizada.
tido em que realiza essa desfocalização da atenção Aqui, menos ainda que em outra parte, Ó sen-
que o exemplo das outras artes autoriza a conside- tido premeditado não pode operar. Em vez do sen-
rar como sendo uma possível finalidade da ativi- tido fixado, do significante distinto e dos signos
dade estética. diferenciados: atenção flutuante, visão sem foco,
Mas ele quer, ao mesmo tempo, que o descen- vigilância esparsa.
tramento dos valores se imponha como uma nova A elaboração de uma agenda proporciona tal-
maneira de ser. Visa a instaurar uma codificação vez uma satisfação de ordem estética: a de ter pre-
das condutas, que redefina as convenções e regu- ludiado a eliminação das contingências, inserindo
lamente os usos. Uma decisão sobre nadas, que qualquer eventualidade na ordenação de um sen-
não se funda em nada, decreta obrigações de ves- tido global. Entretanto, o revés está à altura da
tuário, prescreve passatempos e fixa até seus ho- esperança: o acaso, não admitido, volta por refra-
rários. A exploração do inessencial, no dândi, in- ção, mas tem agora o aspecto amargo ou ridículo
clui a experiência do frívolo e da arbitrariedade, do absurdo. Por se ter querido proscrever o alea-
mas não se aventura a tornar-se disponível aos tório, impediu-se o poder de dar instantaneamen-
efeitos de acaso. te uma significação ao acontecimento.
É próprio da arte em geral tornar-se acolhedo-
ra dos achados fortuitos. Tirar partido dos mate-
riais é, ao mesmo tempo, deixar viver seus aciden-
tes (nós da madeira, particularidade pessoal de
um ator, tremor inopinado de um traço) e trans-
mutar esses dados contingentes em uma necessi-
dade nova. A função estética, que visa à evicção do
insignificante, só se manifesta de maneira plena-
mente convincente onde este se deixou afrontar
diretamente. Ora, é próprio da arte de viver lidar
com o acontecimento, em outras palavras, com o
imponderável e o imprevisível. A complexidade de
uma situação vivida ultrapassará sempre em mil
detalhes a de um problema plástico ou de uma
o FRANQUEAMENTO DO GESTO

Em nossas relações com outrem, a atenção se


focaliza no sujeito, naquilo que ele quer, naquilo
que ele é. Os gestos de outrem aparecem como os
índices de seu ser. Emitimos os nossos sabendo
que eles contribuem para revelar a pessoa que so-
mos. O efeito da desfocalização equivaleria a
dissociar os gestos do sujeito que os realiza, a
tomá-los pelo que dizem ou pelo que fazem, sem os
imputar a uma substância subjetiva. Nossas con-
dutas provavelmente se diversificariam se lhes
fosse concedida, em sua relação com a pessoa que
se supõe assumi-Ias, a liberdade que têm os dis-
cursos diante de seu locutor.
Definida pela intransitividade, a idéia de ges-
to, como se viu, reativa facilmente a estética laten-
te que herdamos do romantismo. Utilizada, em
compensação, para marcar a distância que pode
estabelecer-se entre uma conduta e seu ator, abre
perspectivas novas.
104 105

Quando uma conduta é qualificada pejorativa- to que se trata de significar, como o árbitro que
mente de simples "gesto", o que se incrimina não quer mostrar sua segurança de juízo por uma ra-
é talvez tanto sua ineficiência quanto sua insince- pidez que compromete a segurança, ou como o
ridade. Opondo-a aos "verdadeiros atos", não se ouvinte tão aplicado em emitir sinais de atenção
quer apenas negar-lhe qualquer influência prag- que não tem mais tempo para ficar atento. De
mática, mas censurar-lhe uma imediata falsidade. modo geral e de modo menos paradoxal no senti-
Não é a insuficiência de seus efeitos que se real- do corrente, a intenção de comunicação, por recor-
ça (seria preciso então suspender indefinidamen- rer necessariamente à convenção de um código,
te o juízo, na espera de repercussões sempre pos- não poderia tomar a conduta por matéria sem
síveis), é o vício inicial de sua intenção. A condu- provocar nela uma notável perturbação de seu es-
ta é apenas uma seqüência de gestos se o objetivo tado supostamente natural.
que pretende perseguir se transforma de chofre O comportamento assim submetido à função
em pretexto e se é flagrante que seus móveis são de comunicação foi qualificado anteriormente2 de
antes representados que sentidos. semioticamente imoral. É que ainda não aparece-
"Eu era uma falsa criança: sentia meus atos se ra a eventualidade do jogo ao qual se prestam os
transformarem em gestos", afirma Sartre em sua signos. Hipertrofiar os índices da respeitabilidade
autobiografial. Porque aprendeu a se ver pelos que se concede a si mesmo é uma coisa. Imitar por
olhos dos adultos, o pequeno ator conforma seu derrisão esses mesmos índices é outra. O acesso da
comportamento à expectativa deles e compõe para conduta ao universo das significações lhe abre ao
outrem um ser artificial. mesmo tempo a possibilidade de tomar de emprés-
Em que consiste precisamente o artifício de timo diversos recursos à linguagem e de se bene-
um gesto? Como se explica que, entre todas as ficiar, por exemplo, de uma distinção análoga
condutas culturalmente adquiridas, algumas espe- àquela que opera a análise do discurso entre o
cialmente sejam suspeitas de afetação? Como, por enunciado assumido e o enunciado citado.
meio do equívoco comum dos sentimentos, flagra- Na ordem verbal, com efeito, qualquer que seja
se o índice de uma particular inautenticidade? O o conteúdo literal de um enunciado, propõe-se a
ato se torna gesto quando seu único sentido é mos- questão de saber se o locutor dele se encarrega ou
trar-se, quando se dedica primeiro a se fazer com- não. Ainda que o discurso seja enunciado na pri-
preender, quando se transforma em linguagem. meira pessoa, esse "eu" não é necessariamente o do
Seu artifício é a ênfase dada a traços pertinentes autor. A literatura joga constantemente com o
devido aos quais ele transmite o que quer dizer. pluralismo subjetivo, com as posições defasadas do
Ocorre que, por isso mesmo, contradiz-se o proje- sujeito-autor, do sujeito-narrador, do sujeito-perso-

1. Jean-Paul Sartre, Les Mols. Paris, GaUimard, 1964, p. 67. 2. Cf. supra, p.47.
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nagem, com a distância que o escritor introduz en- ce as possibilidades mais finas ou mais extremas.
tre os dois "eus", quando dissocia autor e narrador, Mas vê-se que ele interessa igualmente às artes
quando é e não é a personagem à qual empresta que não são verbais. Ele poderia ser retido pela
uma voz, quando diz "eu" para ser um outro. Esse hipotética definição de uma função estética geral.
processo de desdobramento, a literatura o dispara Seria a conduta o único domínio onde ele não po-
ao infinito incluindo o artifício eventual do pseu- deria transcorrer? Suprimir-lhe a palavra seria,
dônimo, a prática constante do enunciado comen- primeiramente, simplificar abstratamente o com-
tado e até a vertigem da enunciação que se auto- portamento. Sua distinção é uma evidência falha
critica, e mesmo da crítica que vira derrisão. Ora, se incita a apreendê-Ios em concorrência. Falar em
o teatro e o cinema sabem igualmente provocar tal vez de se calar, dizer isso em vez daquilo, dizê-Io
diferenciação. Eles contêm a linguagem, é verda- assim e não de outro modo, são maneiras diversas
de, como uma de suas componentes, mas não é de se conduzir. A linguagem é um dos modos do
sempre por sua presença stricto sensu que criam comportamento. Ora, a prática da mentira osten-
uma enunciação distanciada. Um espetáculo, en- siva, por exemplo, seja ela de cinismo ou cortesia,
quanto tal, é suscetível dos modos paródico, irôni- afetuosa ou lúdica, introduz na própria conduta um
co, humorístico; nenhuma necessidade de diálogo desvio idêntico àquele que constitui a condição es-
nem de voz aff para recorrer, se preciso, a uma sencial das artes de ficção. Ademais, consideran-
compreensão de segundo ou de terceiro grau. A pin- do-se até o mutismo do gesto, é preciso reconhecer
tura presta-se também a essa defasagem. Quando que ele não é refratário a esse processo de desdo-
a pop art apareceu, colocou-se a questão de saber bramento, pois este opera no mímico. Embora pa-
se sua relação com a realidade contemporânea que reça pouco verossímil que uma conduta saiba citar
ela exibia era de fascínio, de afastamento ou de uma outra, que possa representar um ato que não
derrisão. Que a incerteza tenha por muito tempo seria o seu, é isso, contudo, o que acontece. Uma
persistido prova ao mesmo tempo que o decifra- breve mímica se assinala por vezes não apenas
mento da intenção última é menos fácil em pintu- como a paródia dos gestos de outrem, mas como um
ra que em literatura, mas que a distinção entre recuo tomado em relação a si mesmo. Por estreita
esse deciframento da enunciação e a leitura do que pareça a experiência que se pode aqui alegar,
enunciado é aí igualmente válida. Da mesma ma- ela basta para afastar um obstáculo de princípio e
neira, ainda, a música, ao fazer sucederem-se, abre caminho para uma estética cuja tarefa seria
numa obra, movimentos diferentes, engendra uma provocar metodicamente a multiplicação e o enri-
enunciação irredutível aos enunciados que ela de- quecimento de experiências da mesma ordem.
signa alternadamente. Assim, o fenômeno do des- Afastar de si mesmo os próprios gestos, mos-
dobramento subjetivo encontra talvez na lingua- trá-Ios, designá-Ios pelo que são, pelo que dizem ou
gem o campo privilegiado: o que o torna mais fa- pelo que fazem, administrando, aquém de seu
cilmente analisável, como também o que lhe ofere- enunciado, o implícito do sentido que a eles se dá.
108 109

Por exemplo, o gesto de um dândi do século a atividade profissional. Uma forma de vestimen-
passado: um rico financista deixa cair uma moeda ta, um estatuto profissional, fazem sentido distin-
e se abaixa para procurá-Ia, d'Orsay se agacha por guindo-se das outras formas, dos outros estatutos
sua vez e, para ajudar na busca, ilumina um can- simultaneamente concebíveis; eles identificam o
to queimando uma cédula3. sujeito que os adota ou os suporta, diferenciando-
A arte da conduta começa pela emancipação se das virtualidades que ficam excluídas. A reto-
dos gestos, quando eles são emitidos sem que se mada, em sucessão rápida, de possibilidades que
deva, neles, identificar-se. são, quanto ao sentido, excludentes umas das ou-
Fica, assim, invalidada a alternativa do natu- tras desregula, portanto, as bases da comunicação,
ral e do factício. Não há como suspeitar do gesto perturba a imputação das identidades. Ela provoca
de insinceridade quando este não pretende mais o retraimento do sujeito da enunciação e a liberta-
traduzir as disposições interiores nem os objetivos ção dos enunciados anônimos.
pessoais do sujeito que o inventa. Tendo Ruskin, Burne Jones e William Morris
Produzir gestos que se evita endossar. Essa convidado seus compatriotas a passar de uma es-
representação da conduta, longe de submeter-se às tética pictórica a uma estética estendida a toda a
críticas que visam a "mentira" do espetáculo, sus- vida, desenvolveu-se na Inglaterra, por volta de
pende, ao contrário, a pertinência de toda distin- 1875, um esteticismo do mobiliário e da roupa.
ção entre o verídico e o enganador. "Então se viu passear em plena luz do dia moci-
Esse franqueamento dos gestos e a diversifica- nhas vestidas com roupas da Idade Média, e du-
ção das condutas que dele resultaria parecem ter rante os serões essas mesmas mulheres apareciam
como condição que se saibam empregar os índices em vestidos copiados de quadros antigos, com lí-
mais capazes de significar a distância subjetiva. rios nos cabelos". Emilien Carassus, que cita os fa-
Amplificação paródica, por exemplo, a propósito da tos segundo Paul Bourget, acrescenta por sua vez:
qual seria inepto perguntar se ela é ou não since- "Encontraremos mais tarde, na França, afetações
ra. Além disso, sucessão, numa mesma conduta, de igualmente estranhas, expostas em Maftresse
gestos entre os quais se supunha que se escolhes- d'esth?des, de Willy, por exemplo"5.
se4, como quando se muda o estilo da vestimenta, Poder-se-ia falar em "afetação" se essas estra-
nhas roupas fossem usadas numa festa popular,
num desfile de carnaval? Certamente não. Está
3. Emilien Carassus, Le Mythe du dandy, Paris, A. Colin, 1971, p. 123.
convencionado que nessas circunstâncias a gente
4. Roman Jakobson define da seguinte maneira a função poética: a combi-
nação, em contigüidade, na construção de uma seqüência, de termos con- se disfarça. Por que o fato de passear com traje
correntes, pertencentes a uma série virtual, equivalentes entre si sob um
aspecto e diferentes sob outras relações. "A função poética projeta o prin-
cípio de equivalência do eixo da seleção sobre o eixo da combinação."
"Linguistique et poétique", Essaia de linguistique générale, Paris, Minuit, 5. Emilien Carassus,Le Snobisnte et les leUres françaises de Paul Bourget à
1963, p. 220. Mareei Proust, Paris, A. Colin, 1966, pp. 126-127.
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medieval é percebido de forma tão diferente num "próprios" gestos, quando aquele que fala é dispen-
caso e no outro? sado de apossar-se de cada um dos enunciados que
Pelo disfarce se exibe a diferença entre o ser formula?).
de empréstimo e a pessoa real (esse contraste faz Estreitamente imputados ao sujeito que os
rir). Na afetação, ao contrário, gostar-se-ia de dis- emite, os gestos têm uma coerência pobre. Fran-
simular os artifícios de uma identidade usurpada queados desse assinalamento único, não só seu re-
(essa confusão provoca indignação). Pobreza de gistro se estende (como no teatro, onde nem o au-
nossos jogos: não conseguimos admitir que entre o tor, nem o diretor, nem o ator são pessoalmente
disfarce e a afetação possam se estender todos os obrigados a assumir os gestos que mostram), como
graus da mudança de identidade. também se torna possível conceber condutas com
Quando Emile Faguet tomava o ônibus com implicações divergentes. Os gestos subversivos
um uniforme de acadêmico, ele nem estava disfar- mais matreiros extraem sua força da hábil relação
çado nem era afetado. que mantêm com a intenção bem pensante: é tão
Jacques Vaché mudava de uniforme sem ces- impossível acreditar que eles a partilham quanto
sar; ele passeava pelas ruas ora vestido de avia- estabelecer que zombam dela. Acontece o mesmo
dor, ora de hussardo. À diversidade sucessiva ele com o gesto, já citado, daquele jovem americano
preferia por vezes uma pluralidade simultânea: que, em Santiago do Chile, lavava a bandeira de
seu país de suas nódoas simbólicas; ou ainda da
De forma alguma abstencionista, é evidente, ele arvora um primeira manifestação pública do Movimento de
uniforme admiravelmente talhado e dividido ao meio, uniforme de Liberação Feminina: no dia 26 de agosto de 1970,
algum modo sintético que é, de um lado, o dos exércitos "aliados", uma dezena de militantes vão ao Arco do Triunfo
do outro o dos exércitos "inimigos" e cuja unificação totalmente
e ali depositam um ramo em memória da "mulher
superficial é conseguida com grande reforço de bolsos externos,
do soldado desconhecido". Nessas condutas aberta-
talabartes claros, cartas de estado-maior e voltas apertadas de len-
ços de seda com todas as cores do horizonte' . mente dúbias, o alcance ofensivo não é dissociável
do respeito literal concedido ao emblema ou ao ri-
As artes da linguagem autorizam o sujeito fa- tual, como se o mesmo gesto implicasse ao mesmo
lante a confundir sua identidade, e até a eclipsar- tempo dois sujeitos, de modo que as forças da or-
se enquanto prosseguem os jogos desencadeados. A dem, que não deixam de intervir, vão se expor ao
arte das condutas deveria admitir uma distinção ridículo de não poder sancionar um sem desautorar
absurdamente o outro.
semelhante entre o sujeito agente (suas intenções,
suas convicções) e os gestos que ele propõe, paro- Tzvetan Todorov distingue, em Barthes, o ca-
dia ou cita (Por que seria preciso que sejam seus ráter tradicional das afirmações (o conteúdo dos
enunciados, que reitera notadamente os temas da
intransitividade do texto, da pluralidade de suas
6. André Breton, Anthologie de ['humour noir; Paris, Ed. du Sagittaire, 1940,
p.234. interpretações) e o modo novo da enunciação: "ne-
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nhum discurso é inteiramente assumido, nem to- Casa-se com velas nos castelos alugados por uma noite, ao
som das violas ou das flautas-doces. Em Evron, em Mayenne, os
talmente condenado; sempre se ouve finalmente
habitantes se vestem com roupas do século X para ir ao mercado,
uma palavra por procuração"7. Como afirma que festeja seu milênio este ano ... Aqui e ali, os camponeses se en-
Barthes sobre si mesmo, "ele evolui ao sabor dos contram aos domingos para mutirões à moda antiga, onde ceifam
autores de que trata", sem aderir ao que afirmam, amarrando as gavelas à mão, formando uma roda para bater o
sem se manter tampouco à distância desses outros trigo com o mangual, suando bastante, torcendo-se de rir das brin-
discursos: ele queria empregar "aspas incertas", cadeiras nostálgicas dos rapazes da regiãoB•

"parêntesis flutuantes". Essa enunciação inédita


tem por efeito dispersar o "sujeito". Quem fala? A Semelhantes à festa, ao jogo e ao rito - se-
"pessoa" se encontra "se não anulada, pelo menos melhantes por isso igualmente ao teatro -, essas
ilocalizável". Todorov vê em tal concepção da escri- celebrações nostálgicas preenchem um tempo de-
tura a marca da modernidade, que consiste em "re- finido; são momentos separados, parêntesis na
conhecer o outro diferente de si mesmo, o outro em vida. Mas não é difícil imaginar que esses parên-
si mesmo, em inaugurar a era da alteridade e da tesis, como os de Barthes, podem se tornar "flu-
exterioridade generalizadas". tuantes" e que, por exemplo, os hábitos da refei-
Ora, o que pode a escritura, não estará o ges- ção entrem, cada vez com mais freqüência, na era
to, por sua vez, em condições de tentar? Parece até da alteridade. Bourdieu quer evidenciar, nas di-
que a arte dos gestos nesse ponto precedeu a ex- ferentes maneiras à mesa, a filosofia prática de
periência literária. Não será a relação que o ator cada classe social. É um estilo de vida que se ma-
mantém com sua personagem, há muito, rigorosa- nifesta no "comer-à-vontade" das classes popula-
mente idêntica à que Barthes institui com os au- res, em que a refeição é colocada sob o signo da
tores de que trata? O paradoxo do ator é que ele abundância, da liberdade, da familiaridade, da
não adere à personagem que faz viver. Ele lhe "sem-cerimônia". A burguesia, ao contrário, cóm
empresta seu corpo, assim como Barthes "empres- sua preocupação de "comer nos conformes", mos-
ta sua voz aos outros sem se fundir com eles". tra o valor que atribui à contenção e ao comedi-
Será essa relação transportável para fora do mento, à cerimônia social, à estilização da condu-
teatro? Talvez fosse conveniente afastar os casos ta9. Evidentemente, Bourdieu não ignora que a
em que é o teatro inteiro que se transporta para luta pela elevação social, portanto o sobrelanço
fora da cena que lhe é destinada, como nas cele- na distinção e a volta, supremamente distinta,
brações dos costumes de outrora. aos costumes populares tornam cada vez mais

7. Tzvetan Todorov, "La Réflexion sur Ia littérature dans Ia France 8. Josettte Alia, ('La Course au bon vieux temps", Le Nouvel observateur,
contemporaíne", Poétique (38): 141·147, 1978. A análise dessa "polifonia" (826), 6-12 set. 1980.
do texto é desenvolvida no livro que Tzvetan Todorov dedicou a Bakhtin: 9. Pierre Bourdieu, La Distinction, critique Badale du jugement, Paris,
Mikharl Bakhtine, le principe dialogique, Paris, Seuil, 1981. Minuit, 1979, pp. 215-222.
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difícil imputar qualquer etos a uma classe defi- se abre ao imaginário. Entretanto, a cisão subje-
nida. Sua reflexão negligencia todavia, o mais tiva é praticável até mais perto de si: na vida
das vezes, os casos de empréstimo, a infração ao profissional, como Sartre demonstrou com sua
hábito, a migração dos costumes, todas as práti- célebre descrição do garçom de café que represen-
cas que consistem em imitar, em experimentar, ta ser garçom de cafPo; também na vida senti-
em partilhar o etos do outro. I mental, em que as condutas de sedução consis-
Sem dúvida, esses fenômenos ainda não atin- tem em se atribuir, com toda a gama das coni-
giram um grau de freqüência estatística suficien-
te para que a sociologia se interesse por eles. A
estética, em contrapartida, deve talvez reconhecer
I
1

,1,
vências e dos papéis codificados, o amor que ain-
da não se experimenta; na própria vida amorosa
e no erotismo, que inventam, como jogos, mitolo-
neles a operação de uma categoria suscetível de se gias secretas ou figuras intercambiáveis.
tornar para ela essencial: a dispersão subjetiva. Se fosse mais correntemente aceito que nossos
A arte de se comportar poderia então se de- gestos não se destinam diretamente a exprimir
finir como o exerCÍcio assíduo do afastamento de nossas convicções íntimas, nossas intenções pro-
si mesmo. Fundando-se no exemplo que o teatro fundas, nossos pontos de vista pessoais, admitin-
oferece constantemente, mas que não é o único a do-se que com eles jogamos como se fossem uma
oferecer - pois a pintura, a música ou a litera- linguagem e que eles devem servir para citar as
tura implicam igualmente a expatriação afetiva, atitudes que queremos ressaltadas, ser-nos-ia
a experimentação emocional, o jogo dos senti- dado por acréscimo poder relacioná-Ios também,
mentos e das idéias que são experimentados sem de vez em quando, de maneira inesperada e bela,
que se deva aderir a eles -, esta arte consistiria a nós mesmos, ao sabor de uma coincidência que
em manejar, em todo comportamento, o índice de é preciso prontamente captar.
uma íntima distância. Assim como é lícito nutrir- O escultor Manolo entra, num sábado à noite,
se hoje "sem-cerimônia" e comer amanhã "nos na igreja da Rue des Abbesses e, pegando uma
conformes", ou tomar emprestados os ritos da esmoleira colocada diante do altar da Virgem, co-
refeição japonesa, depois os de uma refeição afri- meça a fazer a coleta murmurando com uma voz
cana, é possível igualmente experimentar os ges- finória: "Para os pobres, por favor". Os fiéis dão
tos de uma fé que não se possui, permanecer, por cada um seus dois tostões. Manolo, depois de se
exemplo, sentado por muito tempo numa mesqui- ajoelhar e se persignar, vai-se embora com a cole-
ta até que se se torne outro, como a gente se tor- tall. Ora, de fato, ele era paupérrimo.
na outro ainda escutando um concerto de órgão
numa igreja barroca. O jogo da alteridade fica
sem dúvida facilitado, nesses últimos casos, pela
10. Jean-Paul Sartre, VÊtre et le néant, Paris, Gallirnard, 1943, pp. 98-99.
distância que separa a cultura de origem e a cul- 11. Pierre Labracherie, La Vie quotidienne de ia boheme littéraire au XIX'
tura de empréstimo, pelo amplo espaço que aqui siécle, Paris, Haehette, 1967, p. 230.
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Num concurso do conservatório, uma atriz sem dade como contrapartida de sua interioridade ba-
futuro, entrando em cena para representar a som- nal: criadores de gestos, levando a discrição pes-
bria Eriphile de Racine, pronuncia o início de sua soal a ponto de fazer de seus afetos e convicções
tirada olhando para o júri: "Não os constranjamos, próprias o jogo secreto de sua fidelidade. Quando
Doris, retiremo-nos". Tinham-lhe repetido que ela se retiram, o gesto inteiro de sua vida tem a den-
era ruim, que não tinha voz, traquejo, tempera- sidade de uma obra. O enigma é completo. Tudo é
mento. Ela diz o texto de Racine, o texto trágico, possível. Nem mesmo se exclui que tenham sido
a grande tirada tão bem adaptada a sua ínfima "sinceros".
situação: "Não os constranjamos, Doris, retiremo-
nos", deixando o teatro para sempre12•
A relação ambígua que um autor mantém com
sua obra, a distância mais ou menos marcada que
ele opõe, não só a suas personagens, mas igualmen-
te ao sujeito virtual encarregado da função de
narrador - como ao sujeito latente que o tom, o
gênero, o registro empregados implicam e até ao
tema que deve assumir o sentido global da obra _,
todo esse jogo das distinções reivindicadas, denega-
das, reafirmadas constitui o espaço próprio da lite-
ratura e, por extensão, da invenção artística. A pre-
sunção de "insinceridade" seria, portanto, aqui vã.
Mas, na medida em que nenhuma adesão é a priori
requerida entre a pessoa do autor e os pontos de
vista que ele encena, torna-se lícito, para ele, opor-
tunamente, apropriar-se intimamente deles.
Face aos protestos habituais de sinceridade,
que nos deixam indiferentes, tão tristemente pre-
visível é a vida interior de nossos semelhantes,
quem nos dera encontrar amiúde verdadeiros ar-
tistas da conduta, mais preocupados em nos dar
um prazer teatral do que em exigir nossa intimi-

12. Suzanne Bernard, Le Temps des cigales, Paris, J. J. Pauvert, 1975, pp.
37-38.
ESTÉTICAS

"É o gesto que conta": fórmula benévola pela


qual se desculpa a modicidade de um dom, a me-
diocridade de um serviço prestado. Aprecia-se a
qualidade do gesto, na falta de seus efeitos. Justi-
ficação ambígua, que lembra e ao mesmo tempo
nega que se esperava um resultado mais substan-
cial. Agir pela beleza do gesto, tal é o recurso que
se oferece aos militantes das causas perdidas.
Quando o fracasso é certo, resta ao menos o estilo.
A falência é inevitável, mas não lhe faltará distin-
ção. Sucumbamos com topete. Se a morte é nosso
destino, toda conduta não é mais que um gesto:
apliquemos aí as formas e concluamos na beleza.
A idéia do gesto, quando é compreendida no
sentido do espetacular, do intransitivo e do simbó-
lico, induz tal estética do brilho e reatualiza a
ideologia romântica que a subtende. Apesar de a
assimilação da beleza e da inutilidade declarada
ter caído em desuso nas artes refletidas, quando se
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trata da conduta da vida, a estética espontânea e os propósitos que se extirpam continuam a ade-
que a rege faz ressurgir essa referência longínqua. nr a sI.
Pode-se, entretanto, conservar a idéia de ges- Segundo a estética derivada do romantismo, o
to, entendê-Ia de uma maneira totalmente diver- campo aberto ao gesto se estende até dois extre-
sa - como a possibilidade de introduzir a alteri- mos aparentemente opo.stos: a forma global de
dade em si - e conceber um comportamento que uma vida (o grande gesto que constitui um desti-
seria doravante capaz de engendrar um sujeito no individual) e o instante privilegiado (o breve
plural em vez de exprimir uma pessoa constituída. momento em que o gesto, auto-suficiente, acede a
Segundo Philippe Audoin, o surrealismo, que é um estatuto mítico). Esses pseudocontrários têm
"dotado de violência, é igualmente algo livre; uma em comum definir-se pela intransitividade: em
postura, um gesto rápido, preciso. As justificativas ambos os casos, o gesto é uma totalidade fechada,
ideológicas existem, podem formular-se, mas o que sem finalidade externa, e por isso mesmo, simbó-
conta ao final, enfim, é a atitude, é o gesto"l. Uma lica. A insatisfação estética torna-se então alta-
vez mais, como na estética do simbólico, "é o ges- mente provável. O destino não tem o rigor que se
to que conta". Mas a fórmula mudou de sentido. esperava, sua linha não é tão nítida quanto se de-
Enquanto o despeito se encontrava há pouco com- sejava, contingências demais confundem-lhe o tra-
pensado pelo brilho do gesto, agora, a intensidade, çado. Quanto ao instante, ele só está inteiro no so-
a convicção, a própria violência, coexistem com o nho. O momento vivido é transitivo, captado de an-
que o gesto pode ter de livre. A paixão é compatí- temão pelo futuro próximo, já empenhado no tra-
vel com a distância interior, a emotividade e a ten- balho em curso ou na tarefa vindoura. Supondo-se
são com a liberdade, o sentimento do trágico da que se possa extrair do fluxo costumeiro algum
existência com o jogo soberano. É possível ser sé- instante verdadeiro, a continuidade comum da
rio sem se levar a sério, conter uma resolução ina- existência, ao contrário, parecerá ainda mais ba-
balável sem ser tomado por ela. Ser outro em si nal e mais morna. Assim, para Mallarmé, que le-
mesmo resume-se nisto: não ser desertado, nem vava sua atividade de poeta até a mais pura inu-
possuído, mas exatamente o que se chama ser "ha- tilidade e que devia circunscrever a profissão que
bitado". o fazia viver, nas palavras de Valéry, "em não sei
O gesto rápido e preciso se destaca de seu au- qual reserva e em qual região miserável e servil de
tor, desata-se do sujeito, como se usasse aspas, si mesmo"2. A menos, evidentemente, que o instan-
como se estivesse enunciado com essa elocução ní- te radical seja o do último gesto (como no caso da-
tida, bem articulada, que têm os atores. No desa-
jeitamento e no balbucio, os gestos que se tentam 2. Paul Valéry, "Sorte de préface", Variété, Paris, Gallimard, 1957, cal.
Pléiacie, tomo l, pp. 682-683. "Mas esse admirabilíssimo doutor em letras
sublimes que dispensava à sua volta lições de pureza espiritual, que nos
1. Philippe Audoin, "Le 8urréalisme et le jeu", Entretiens SUl' le surréalisme, oferecia a meia voz uma doutrina de forma deliciosa que inspirava uma
Paris, Mouton, 1968, p. 456. espécie de mitologia generalizada, sofria cada vez menos silenciosamen-
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quele doente a quem é vetado o uso do álcool e que siasmo OU frenesi). Então, o ato e a intenção pres-
majestosamente se mata num jantar regado a crita fazem um só corpo. Anula-se a liberdade
champanha; como também Dom Juan, em outro interior, teria dito outrora a moral. Nenhum espa-
banquete). O gesto intransitivo, quer seja conquis- ço disponível - deveria dizer a estética -, nenhum
tado contra o prosaísmo que o limita quer sobre- intervalo, nenhum jogo por meio do qual a exterio-
venha como um último desafio, espalha ao seu re- ridade e a alteridade do gesto se possam mostrar.
dor o definhamento e só se realiza plenamente na Essas duas concepções não esgotam certamen-
morte. te as possibilidades abertas à estética das condu-
Em contrapartida, se o gesto é compreendido tas. Não está excluído que se possa orientá-Ia numa
como a possibilidade de introduzir um afastamen- outra direção, reservando à noção de gesto um
to de si em relação a si, não há atividades ou mo- papel muito menos favorável. É possível, além dis-
mentos privilegiados. Toda ocasião se presta a essa so, que o próprio gesto seja suscetível ainda de al-
defasagem íntima. Desvio francamente aberto às guma outra compreensão. O que é exemplificado
vezes (na paródia, na ironia, no jogo), às vezes pelo teatro não é ap"enas o simbolismo dos atos
imperceptível (quando se exerce uma profissão arrancados aos encadeamentos pragmáticos, nem
com escrúpulo e desprendimento; sem amargura o franqueamento dos gestos desatados do sujeito,
nem indolência, ainda que sem zelo; interessando- é também o desenvolvimento de movimentos que
se por ela, mas recusando-se a investir nela a to- vão até o fim de si mesmos. Comparados aos dos
talidade de si mesmo). comediantes, nossos gestos - no sentido físico do
Assim se extingue a espera ansiosa dos mo- termo - parecem com freqüência hesitantes, qua-
mentos de exceção. Mas não resulta disso que se sempre contraídos; eles são muito curtos; emi-
qualquer situação seja tolerável. À vontade de dis- tem involuntariamente sinais contraditórios. Os de
tanciamento subjetivo se opõem os sistemas polí- um ator são mais amplos, mais resolutos. Da mes-
ticos, religiosos, familiares que, não contentes com ma forma, uma ação teatral geralmente agita uma
regrar a literalidade da conduta, pretendem reger necessidade que se desenrola até as suas realiza-
o estado de espírito com o qual se observam suas ções extremas, enquanto nossos atos se esgarçam
injunções (como essas empresas que utilizam em no inacabado. Por conseguinte, tomado no sentido
proveito próprio a mística do dinamismo, que não figurado, o gesto, instruído pela experiência tea-
se limitam a distribuir as tarefas, mas exigem que tral, poderia se definir assim: uma conduta dirigi-
elas sejam cumpridas com convicção, com entu- da por uma determinação irreversível, que prosse-
gue até seu termo; o contrário das veleidades, das
meias-medidas. Essa definição, com toda certeza,
te a corvéia de professar outra coisa e a dilapidação das horas preciosas difere amplamente daquela que acaba de ser desen-
que devia sacrificar ao seu dever inferior" [... ] I'Todos os anos, a aproxima-
ção do fim das férias envenenava nele a emoção do momento supremo dos
volvida: o afastamento de si mesmo, a distância
funerais do verão." subjetiva contrariam o grande movimento no qual
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se entra de cabeça (nem por isso, porém, são con- seria apenas contrário à convicção da maioria dos
trários exatos; algum recuo em relação a si mesmo artistas, mas resultaria sobretudo em julgar equi-
é compatível com o fascínio dos limites). Ela se vocadamente sua influência real em domínios onde
distingue igualmente da definição que foi anterior- ela é perfeitamente dispensável. Para levar em
mente considerada: a atração pelo espetacular e conta o caráter experimental e exploratório que ela
pelo simbólico é estranha à paixão que se lança até espontaneamente se atribui, e para não desconhe-
seu fim, preocupada demais com aquilo que ela cer, ao mesmo tempo, o que pode haver de especí-
quer para se preocupar com o que se parece. fico na atividade estética, poder-se-ia imaginar que
O objetivo desta reflexão não consistia em lan- a arte é o lugar privilegiado de uma pesquisa que
çar os fundamentos da estética das condutas: não visa a prover a conduta cotidiana (tanto quanto
se acreditou que devesse haver, nesse domínio aquela que não é de modo algum cotidiana) com
como tampo'Uco em outro qualquer, uma estética meios ou conceitos nos quilis ela precisa muito se
única. O propósito não era sequer examinar exaus- inspirar para se tornar menos insípida, pobre e
tivamente os diversos sentidos que o gesto pode as- feia.
sumir: retiveram-se dois deles, que não são os úni- Terá essa operação analógica, essa transposi-
cos possíveis, como acabamos de ver rapidamente. ção do ato artístico para o comportamento geral
Tratava-se, antes, de testar um dispositivo analógi- encontrado aqui uma aplicação probatória? O au-
co, de apreciar-lhe a fecundidade, na esperança de tor deste exercício não faz questão de defender sua
que ele prometa prolongamentos indefinidos. Pres- hipótese, nem de se retratar. Um gesto pedia que
supôs-se que as artes instituídas podem fornecer o fosse tentado. Mais do que um autor, era-lhe ne-
exemplo de certos esquemas ou modelos3 que são cessário um ator. Uma breve peça em dois quadros
transponíveis até para a conduta geral da vida. devia ser encenada. O gesto foi cumprido. Que o
A arte atual pede uma redefinição de sua fun- entendam como quiserem.
ção: se a questão for julgada segundo a abundân-
cia das obras deliberadamente agressivas, o sim-
ples deleite deixou de representar uma justificati-
va suficiente. Todavia, designar-lhe um fim com-
pletamente exterior, colocando-a, por exemplo, a
serviço de causas consideradas prioritárias, não

3. A hipótese de uma l'artialização" da experiência, de um esquematismo


sociotranscendental vindo da arte, constitui objeto de um estudo muito
erudito e muito mais amplo que o presente ensaio por parte de Alain
Roger, Nus et paysages. Essai sur Ia fonction de l'art, Paris, Aubier, 1978.
A tese de Alain Roger é discutida em Jean Galard, "Reperes pour l'élar-
gissement de l'expérience esthétique", Diogene, (119), 1982.

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