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a Edição
Dados internacionais de catalogação na Publicação (CIP)
Index Consultoria em Informação e Serviços Ltda.
Curitiba – PR
Pacheco, José
P116 Crônicas educação / José Pacheco ; organizador
Samuel Ramos Lago. — Curitiba : Nossa Cultura,
2014.
48 p.
ISBN: 978-85-8066-140-8
Coordenação editorial
Prof. Samuel Ramos Lago
Revisão
Tania Growoski
Capa
Labores Graphici – Carlos Cesar Salvadori
Ilustração
Labores Graphici – Carlos Cesar Salvadori
Por que organizei esta
coletânea de crônicas do
prof. José Pacheco
Acervo Editora
• Em segundo lugar porque já tinha relatado o que tinha lido sobre a Escola da Ponte em
um de meus livros chamado: “Conversas com quem gosta de aprender”. Não satisfeito,
fui visitar com minha querida esposa Laura essa “extraordinária fábrica de ideias” lá em
Portugal.
Acervo Editora
• Fiquei extasiado! Confuso, atropelado pelos conceitos que ainda conservava na minha
“arqueologia” pedagógica”! Duas “miúdas” de 10 e 11 anos ficaram encarregadas de me
“apresentar” a escola. Mais espantos! Isso já faz 10 anos.
• Mas... o que será que a Escola da Ponte tem realmente de diferente de todas as outras
escolas?
Acervo Editora
Uma das salas na Escola da Ponte – trabalho em pequenos grupos com a pedagogia de projetos.
É uma escola muito engraçada, não tem Na Escola da Ponte, as crianças decidem
salas de aula, não tem turmas divididas por o quê e com quem estudar. Em vez de clas-
faixa etária, não tem testes, não tem nada. ses, grupos de estudo. Independentemente
Nada da escola tradicional que conhecemos. da idade, o que as une é a vontade de estar
É uma escola feita com muito esmero em juntas e de juntas aprender. Novos grupos
Vila das Aves, Portugal. surgem a cada projeto ou tema de estudo.
“... não passa de um grave equívoco a ideia de que se poderá construir uma sociedade
de indivíduos personalizados, participantes e democráticos enquanto a escolaridade for
concebida como um mero adestramento cognitivo.”
“É urgente interferir... questionar convicções e, fraternalmente, incomodar os acomodados.”
Quem ouve falar dela pela primeira psicológico, em espaços e tempos justapos-
vez hesita em acreditar. Surpresa maior só tos. Entregues a si próprios, encerrados no
mesmo a de quem a conheceu na década refúgio da sala de aula, a sós com os seus
de 1970. A Escola da Ponte era uma esco- alunos, o seu método, os seus manuais, a
la muito engraçada, não tinha bancos, não sua falsa competência multidisciplinar, em
tinha mesas, não tinha nada. O banheiro horários diferentes dos de outros professo-
sequer porta tinha. res, como poderiam partilhar, comunicar,
“Satisfazer as necessidades biológicas desenvolver um projeto comum?
mais elementares constituía um teste de O trabalho escolar era exclusivamente
entreajuda: as alunas iam lá fora em grupos centrado no professor, enformado por manu-
de cinco ou seis, fazia-se a parede e a porta ais iguais para todos, repetições de lições,
num círculo humano em torno da necessita- passividade. As crianças que chegavam à
da”, lembra José Pacheco, idealizador, dire- escola com uma cultura diferente da que aí
tor e, agora, ex-diretor da Escola da Ponte. prevalecia eram desfavorecidas pelo não
reconhecimento da sua experiência socio-
Hoje, os alunos têm um espaço para pu-
cultural. Algumas das crianças que acolhí-
blicar pequenos anúncios de oferta e procura
amos, transferiam para a vida escolar os
de ajuda para realização de pesquisas esco-
problemas sociais dos bairros pobres onde
lares, reúnem-se semanalmente em assem-
viviam. Elas exigiam de nós uma atitude de
bleia para debater os problemas da escola e
grande atenção e investimento no domínio
redigir seus direitos e deveres.
afetivo e emocional. Há 25 anos, tomamos
também consciência de novas e maiores
Entrevista com José Pacheco
dificuldades. Por exemplo, de que não pas-
O que motivou a busca de uma for- sa de um grave equívoco a ideia de que se
ma inovadora de ensinar e aprender que poderá construir uma sociedade de indivídu-
resultou na criação da Escola da Ponte e os personalizados, participantes e democrá-
quando isso se deu? ticos enquanto a escolaridade for concebida
J.P. Em 1976, a Escola da Ponte era como um mero adestramento cognitivo.
um arquipélago de solidões. Os professo- Em 1976, compreendemos que precisáva-
res remetiam-se para o isolamento físico e mos mais de interrogações que de certezas.
Na Escola da Ponte não há aulas J.P. Há 25 anos, a educação das crian-
em que um professor ensine conteúdos ças ditas com necessidades educativas es-
estanques. Também não há salas de aula peciais constituía mais um problema dentro
ou classes separadas por séries ou idade. do problema. A colocação de crianças com
O que foi mantido da estrutura tradicional necessidades específicas junto aos ditos
de uma escola? normais não era medida suficiente para se
J.P. Na Escola da Ponte, como em fazer o que recentemente se designa por
outros lugares, será indispensável alterar a inclusão.
organização das escolas, interrogar práticas André era um menino rotulado de mon-
educativas dominantes. É urgente interferir goloide. Sofria de “necessidades educativas
humanamente no íntimo das comunidades especiais” que o isolavam dos outros me-
humanas, questionar convicções e, fraternal- ninos. Até que um dia mudou de escola, foi
mente, incomodar os acomodados. A respos- acolhido num grupo e deixou de ter rótulo.
ta a essa pergunta é simples: hoje, restam
somente vestígios da “estrutura tradicional”. No padrão criado pela Escola da
Ponte, os alunos decidem o que estudar,
“O critério de formação dos grupos é montam grupos de interesse e trabalham
afetivo e o afeto não tem idade...” orientados por professores, não é?
“Não há um professor para cada turma, nem uma distribuição de alunos por anos de
escolaridade. Essa subdivisão foi substituída, com vantagens, pelo trabalho em grupos
heterogêneos de alunos.”
Claramente, a Escola da Ponte pare-
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ce-me baseada na pesquisa. Ela suprimiu
completamente a instrução?
É verdade que as crianças organizam tri- de seis, sete anos, que sabem falar e calar,
bunais para julgar os casos de indisciplina? propor e acatar decisões. São cidadãos de
tenra idade que, no exercício de uma liberda-
J.P. Em 1998, o tribunal foi substituído
por uma “Comissão de Ajuda” (por decisão de responsavelmente assumida, instituíram
da Assembleia!) com composição e funções regras que fazem cumprir no seu cotidiano.
muito diferentes. O velho e ineficaz “castigo” Poderão continuar a chamar-lhes alunos
foi substituído pelo “ficar a refletir”. “utópicos” que nem por isso eles deixarão de
Confesso a minha completa ignorân- existir. A “indisciplina” é a filha dileta do au-
cia, de indisciplina nada sei. Sei apenas de toritarismo e da permissividade. A disciplina
crianças que dão lições de autodisciplina na a que me refiro é a liberdade que, conscien-
sua escola. Sei de crianças que não enten- temente exercida, conduz à ordem; não é a
dem a indisciplina do gritar mais alto que o ordem imposta, que nega a liberdade. Como
próximo nas assembleias de adultos porque poderemos pensar em controlar as águas
na sua assembleia semanal erguem o braço revoltas de um rio, se nos esquecemos das
quando pretendem intervir. Sei de crianças margens que as comprimem?
Acervo Editora
“Questionávamo-nos por que razão os pais iam à igreja, ao estádio, ao café... e não
vinham à escola.”
Sugestão
Se você se interessou pela Escola da Ponte, recomendo o livro do meu amigo
Rubem Alves – A Escola que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir, Papi-
rus Editora – Você vai adorar!
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razão para nos preocuparmos com o futuro de o fato de a educação seguir ao compasso
da educação no país da Copa. de vontades e decisões de economistas,
Os doutos personagens deste imbró- empresários, especialistas em novas tecno-
glio não conhecem o elementar princípio do logias e outros leigos, gente para quem a
isomorfismo na formação, não sabem que o pedagogia ainda é ciência oculta.
modo como o professor aprende é o modo Diz-nos o dicionário que catarse (do gre-
como o professor ensina. Nem percebem go kátharsis) é a palavra pela qual Aristóte-
que, mesmo adjetivada de tradicional, inver- les, na sua “Poética”, designa “purificação”.
tida, ou híbrida, aula é aula, dispositivo cen- Na Psicologia, catarse equivale a experimen-
tral de um modelo de escola, que condena à tar liberdade em relação a situações opres-
ignorância trinta milhões de brasileiros. Trinta soras. Psicanaliticamente, também poderá
milhões de seres humanos não serão tragédia significar trazer à consciência recordações
suficiente? Quantas vítimas mais as escolas recalcadas, enquanto, na Medicina, catarse
e as universidades das aulas irão fazer? Não é o mesmo que purgação, libertação do que
será já tempo de a universidade assumir a é estranho à natureza do sujeito, evacuação
sua quota de responsabilidade? Se a univer- dos intestinos. Em dois mil e catarse, talvez
sidade é matriz e produtora de ciência, não seja tempo de escutar Paulo Freire e começar
deverá abandonar práticas desprovidas de a expulsar o sarro da velha escola, que se
qualquer fundamento científico? mantém enraizado nas nossas entranhas. Ao
Se ainda há professores universitários, invés de importar novos modelos de aula
que, podendo dispensar aula e xerox, recor- enfeitados com novas tecnologias, conheça-
rem a práticas medievais, não me surpreen- mos aquilo que de bom temos aqui dentro.
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Arcaísmos
Um sistema dominado pela burocracia
sempre liquidou movimentos renovadores
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Stock.xchng/Gokhan Okur
Resta saber quem avaliará arcaicas cepcionantes. A primeira dizia: Infelizmente,
secretarias de educação. Quem assumirá não tenho boas notícias. O prefeito não
a responsabilidade dos nefastos efeitos quer desenvolver o projeto aqui. Também
de uma política pública desastrosa, que puxaram meu tapete e, depois de mui-
produz um IDEB pífio, evasão maciça, o to sofrimento e reflexão, decidi solicitar
desperdício anual de 56 bilhões de reais e minha saída da secretaria da educação.
30 milhões de analfabetos? Percebi que a secretária está cercada por
pessoas incompetentes e más e não que-
Sob a égide do ministério da educação,
ro mais ficar num lugar onde eu não tenho
participei de muitas avaliações externas e
espaço, apoio e autonomia para trabalhar.
reconheço a sua importância. Acompanho
A segunda mensagem confirmava o fim de
secretarias de educação e técnicos compe-
outro projeto, que consumiu muitos dos meus
tentes, que não foram totalmente possuídos
solidários dias: Sinto-me envergonhada e
por burocráticos cinismos. Aprendo com
triste por ver que a premência do secretá-
universitários, para os quais a educação não rio está em resolver coisas burocráticas
virou ciência oculta. Apoio professores, que e deixar a educação em segundo plano.
não se instalaram num comodismo acéfalo. Não sei o que mais precisará acontecer
Solidarizo-me com pais, no seu afã de liber- em nosso país para que os educadores
tar os seus filhos de uma educação arcaica. decidam empunhar a bandeira da trans-
Mas o mês de maio trouxe más notícias... formação urgente.
Na mesma semana em que uma escola Onde estão os educadores? Por que
era caluniada, recebi duas mensagens de- consentem que perdure o que é arcaico?
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Aula invertida
A escola é uma instituição detentora de
esquemas arcaicos
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Stock.xchng/Mateusz Stachowski
sem tradução em português). Eu recomen- confrangedora a receptividade da universi-
daria substituir essa leitura por versos do dade brasileira a tais “inovações”.
Drummond: “Deus que livre vocês de Por que não reagem os pedagogos
uma escola em que tenham que copiar brasileiros ao neocolonialismo pedagógico?
pontos, de decorar sem entender, de Acaso os nossos professores universitários
aceitarem conhecimentos “prontos”, não leram Paulo Freire? Não leram Lauro de
mediocremente embalados nos livros Oliveira Lima? Afinal, o que leem os nossos
didáticos descartáveis, de ficarem pas- professores?
sivos, ouvindo e repetindo”. Ou escutar Certamente, não terão lido Drummond:
o amigo, Antonio Nóvoa, referindo-se à Eu também queria uma escola que ensi-
escola da aula: “uma instituição retrógra- nasse a conviver, a cooperar. Desconhe-
da, detentora de esquemas arcaicos de cendo que a “invenção” gringa já tinha sido
organização do trabalho, sistemas de inventada em escolas do Brasil da década de
ensino centralizados e estruturas físicas 1960, um centro universitário brasileiro pro-
e curriculares rígidas”. Hoje sabe-se que moveu uma palestra proferida pelo “inventor”.
este modelo está fatalmente condenado. Os E um consórcio de catorze universidades
brasileiros deveriam procurar caminhos de brasileiras vai adotar (leia-se: comprar) o
alforria científica e a sua maioridade educa- “método” – a intenção do consórcio é ca-
cional na obra de um Milton Santos, ou de pacitar 300 professores em três anos (sic).
uma Maria Nilde, mas insistem em comprar Volta e meia, mais uma moda pedagógi-
gato por lebre, desde que o gato venha do ca desce do hemisfério norte. Não faria mal
estrangeiro. Essas novidades importadas ao mundo se educadores tupiniquins não as
não passam de inovações requentadas. E é comprassem. Mas compram.
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Diagnóstico sumário
Vejo a educação com olhos de estrábico
Enfrento o calor tórrido de quartos de “ho- Sempre o ideb! Mas… o que avalia o
tel” do Brasil profundo, encaro com estoicismo ideb? Tentei explicar que as causas são múl-
noites maldormidas em enxergas imundas, os tiplas e complexas, mas a secretária insistia:
ataques dos pernilongos, o passeio de insetos “professor, faça, ao menos, um diagnóstico
por paredes imundas, morcegos voando no sumário”. Acedi ao pedido e, “sumariamen-
quarto... Suporto crônicos atrasos, suporto te”, apontei algumas das causas. Após cada
tudo, exceto discurso de político demagogo, afirmação, era evidente o aumento do des-
em tempo de campanha eleitoral. conforto no auditório.
Naquela manhã, a palestra estava Falei da manutenção de uma alfabetiza-
marcada para começar às oito horas. Após ção quase toda pautada num único “método”,
o hino, discursou o deputado, discursaram o qual, sendo um entre muitos modos de en-
secretários, durante mais de uma hora de sinar a ler, é hegemônico e, “sumariamente”,
promessas de obras feitas e de outras por causa de analfabetismo. Falei da falsidade
fazer. Já passava das nove, quando tomei ideológica de projetos político-pedagógicos,
a palavra e pedi um tópico para debate. A que, na prática, não são uma coisa nem ou-
secretária de educação lamentou que, tendo tra, ou serão, “sumariamente”, apenas políti-
investido tanto na formação dos professores, cos no ato. E expliquei que, porque nenhuma
o ideb do município não tivesse melhorado. atitude em educação pode ser considerada
Professores fizeram eco à secretária. E não politicamente neutra, muitas práticas escola-
tardaram as perguntas sobre as causas do res são, “sumariamente”, fonte de insucesso.
descalabro da educação: “só consguimos Abordei as estratégias utilizadas para com-
atingir o ideb 4!”. bater a indisciplina: mais câmeras de vigilân-
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cia, mais catracas, mais expulsões de alunos. dâneos de um obsoleto modelo de ensino,
E designei esses paliativos – que, não agindo aberrações decorrentes do modelo de escola
nas causas, perenizam as consequências – ainda predominante, com ênfase num frontal
como instrumentos de exclusão. Denunciei anônimo (a aula) e que pode ser evitado, se
uma gestão burocratizada, o predomínio de o permutarmos por situações de frontalida-
decisões de natureza administrativa – pes- de fundamentada. E que admitir que uma
quisa recente mostra que 90% dos diretores parcela dos jovens escolarizados possam
de escola gastam mais tempo tratando da não aprender (ideb 4, ou 9…), é criminoso.
merenda escolar do que em assuntos de Proferi, então, a frase por mim mais usada:
natureza pedagógica – como agravante, dado Que mais vocês querem saber?
que subsidia práticas desprovidas de funda- O silêncio prolongou-se por alguns longos
mentação científica. “Sumariamente”, enun- e penosos segundos. Até que uma professora
ciei os graves efeitos do predomínio de uma me atirou a pergunta que mais temo: “Mas,
cultura assente no individualismo, na compe- afinal, como é que o senhor vê a educação do
tição desenfreada, na ausência de trabalho Brasil?”. Ironicamente, respondi: Vejo-a com
em equipe. Referi a ausência de rigor na olhos de estrábico, cara colega.
avaliação. Descrevi os erros de um modelo “Sumariamente”, por aí se quedou a
de formação, que faculdades alimentam e discussão. E nunca mais recebi convites
secretarias patrocinam, bem como os nulos para palestrar naquela cidade. Não lamento.
efeitos de inúteis consultorias, que prometem Prefiro outras cidades, onde do diagnóstico
qualidades totais. Acrescentei que o EJA e já se passou à ação, onde se mudaram as
as classes de reforço são inevitáveis suce- práticas que levarão ao ideb 10...
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Um mundo, uma escola
A lição tradicional age contra os objetivos
da educação pública
Há cinquenta anos, Fernando de Aze- brasileiros. Khan diz que o velho sistema
vedo avisava: O que é bom para os Esta- está fracassando e precisa ser repensado,
dos Unidos pode não ser bom para nós... e que a educação formal tem de mudar.
Porém, novas modas, vindas do Norte, inje- São palavras de Salman Khan, excertos
tam plataformas digitais e laptops em escolas da sua obra “Um mundo, uma escola”, como
com práticas medievais. aquelas que se seguem: A lição tradicional
Se, no Brasil, o nortear (aquilo que vem age contra os objetivos da educação pú-
do Norte) sempre foi regra nas iniciativas de blica (…) A aula acaba por se revelar um
política educativa, agora, acontece um des- meio ineficiente de ensinar e aprender (…)
norte total. E as orientações (aquilo que vem A minha ideia de educação nunca foi a de
do Oriente) que prevalecem nos projetos ditos que ela estaria completa com uma criança
inovadores são de natureza neocolonial. Creio assistindo a vídeos no computador e re-
ser necessário desorientar, talvez mesmo solvendo exercícios. Muito pelo contrário.
suliar. É isso mesmo o que quero dizer: as Sempre sonhei em ser mais do que um
palavras produzem e reproduzem cultura. recurso online. Sentíamos que estávamos
Ouso discordar parcialmente da crítica em um ponto da história em que a educa-
feita pelo Fernando, na grata surpresa de ção podia ser repensada. Mas se alguns
uma exceção. Um americano de nome Sal- indicavam os vídeos a seus alunos como
man Khan nos trouxe um livro em que nos uma ferramenta suplementar, outros os
fala de uma educação reinventada e faz as usavam para repensar sua metodologia. E
mesmas denúncias do Azevedo, do Lauro, o que acontece nas escolas brasileiras? Os
de outros ilustres e saudosos educadores vídeos do Khan são usados como ele pro-
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põe, para acabar com as aulas, para repen- na sua sala de aula, usando vídeos do Khan
sar a metodologia? Não creio. Muito menos como complemento de aula, perenizando
para reinventar a escola, como Khan deseja. práticas que Khan critica. Aqueles que afir-
Uma revista publicou fotos de crianças mam tê-lo como referência apenas otimiza-
de uma favela de São Paulo, enfileiradas ram o modelo prussiano de escola. Foi pior
em sala de aula, exibindo, sorridentes, os a emenda do que o soneto!
seus laptops individuais. Por que se insiste Por que investir verbas faraônicas para
no uso de plataformas digitais de ensinagem enfeitar uma escola que continua prussiana?
e em dotar cada aluno com um laptop? Para Há mais de vinte anos, escolas europeias fo-
gerar monstrinhos adoradores de tela, na ram invadidas pelas novas tecnologias. Dessa
mera substituição do livro didático pelo invasão resta apenas lixo digital. No Brasil de
computador? hoje, a tentação da disseminação em escala e
Voltemos à leitura do livro do Khan... de mostrar efeitos de curto prazo provocam a
Ele nos convida a acabar com a escola de mesma cegueira branca naqueles que detêm
sala de aula, turma, série, prova. Porém, um os recursos e o poder de decidir. Ao invés de
sistema educativo nas mãos de burocratas se apoiar projetos efetivamente alternativos,
exerce seus podres poderes, impondo às es- em escolas que já abrem caminhos para
colas procedimentos medievais, num tempo novas construções sociais, há quem fomente
da introdução acrítica de novas tecnologias. a prática de um ensino gerador de individua-
E, talvez afetados pelos vícios de que pa- lismo, através da injeção de tablets no quoti-
decem os seus “superiores”, os professores diano da escola, numa mesmice em versão
que adotam os vídeos do Khan continuam digital. Lamentável!
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Nem o diabo lembra...
Valores devem ser ensinados sem a
contaminação de sectarismos
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Stock.xchng/Davide Guglielmo
te católico? As pessoas que são contra o qualquer que ele seja, pressupõe uma visão
uso do crucifixo, se não estiverem con- redutora do ser humano e de mundo. Va-
tentes, que se mudem para outra terra”. lores devem ser ensinados, mas sem a
Bem nos avisava o grande Abbé Pierre: “a contaminação de sectarismos. Sem negar
Igreja Romana não está ainda curada das a relevância de uma fé autêntica, o domí-
suas chagas: a miséria dos privilégios”. A nio do secular deve ser objeto de crítica e
Igreja Católica perde crentes e a hegemonia, debate, e não ficar subordinado a “verdades
enquanto surgem instituições evangélicas reveladas”. Muito menos deverá ficar nas
ávidas de espaço na educação brasileira, mãos de ensinantes que se consideram pro-
numa disputa por delimitação de território. prietários da consciência, da ética e da moral
Numa escola, assisti a uma cena degradan- dos outros, e que exercem sobre os alunos
te: uma professora “católica” acusava de to- sutis formas de condicionamento espiritual.
dos os males os evangélicos, e uma profes- Quem se recordará do projeto de lei “Deus
sora “evangélica” replicava no mesmo tom. na escola”, que feria o princípio da laicidade
Enquanto eu ensaiava uma prece: Que Deus do Estado e o direito à igualdade e liberdade
tenha piedade das crianças que caírem de consciência e de crença? Se a memória é
nas mãos desta gente! curta, convém prevenir novas investidas que
Num tempo de fanatismo, como é o contrariam o disposto na Constituição. Nem
nosso, é perigosa a defesa de um ensino o diabo se lembra de explicar a divindade
confessional nas escolas públicas, porque, como conteúdo escolar...
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Um lugar onde os professores
podem aprender
É preciso saber o que podemos ainda fazer
da escola com aquilo que fizeram dela
A sociedade quis, o homem pensou, à deriva! E todo o professor que aspire a ser
o diabo a inventou. Aí temos a Escola. Ao solidário, terá (como diria o meu amigo Pedro)
longo de mais de dois séculos, instalou- de se imaginar um navegador solitário.
se, estendeu tentáculos, fossilizou-se. A escola é um lugar onde os professores
Inútil e perversa, resiste ao curso da podem aprender. Só é preciso que estejam
História. Inventou estratégias de sobrevi- atentos. A ideia de que o ensino é um ofício
vência, gerou anticorpos, resistiu a crises e que a pedagogia é, como diria o outro, a
e síndromes que conduziram à falência arte de ensinar tudo a todos como se fosse
instituições tão caducas quanto ela. Inje- um só, confere alguma tranquilidade, pois
tam-lhe decretos, mas a Escola, tal como permite manter a crença nas virtudes de um
a ostra perante a presença de um grão de ensino tradicional, as expectativas e repre-
areia, aprendeu a contornar. E as pérolas sentações sobre as escolas. São ignorados
que produz são amostras sem valor, répli- os “efeitos colaterais” das práticas ditas
cas tão inócuas quanto as redundâncias tradicionais e a sua inadequação às transfor-
teóricas, as inconsequentes experiências mações sociais a que assistimos há mais de
de inovação e as correntes que as inspira- um século.
ram. Velha e matreira, a Escola aprendeu No princípio do século XX, Adolfo
a legitimar-se. Beneficiou-se de implantes Lima afirmou que “uma reforma radical
e cosméticos que lhe alteram o rosto sem é talvez possível, mas que uma reforma
lhe modificar as entranhas. não radical é inútil”. Um século decorrido
Alguns anestésicos discursos neoliberais sobre a sua sábia afirmação, é a cultura
incitam à devolução da Escola à comunidade. das escolas que continua a estar em cau-
Mas onde está a “comunidade”? Como se sa e urge transformar. É também a cultura
pode promover um diálogo se não há inter- pessoal e profissional dos professores
locutores? Até por dentro, as escolas são que é preciso reelaborar. É preciso saber
arquipélagos de solidões, jangadas de pedra o que podemos ainda fazer da Escola com
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aquilo que fizeram dela. Se concordarmos a relação entre saber escolar e sociedade se
com Pestalozzi, que (há dois séculos!) limite a reproduzir informação socialmen-
disse que “professor que não avança, te inútil? Será possível conciliar a ideia da
recua”, façamos a nós mesmos algumas articulação entre ciclos com a inexistência
perguntas: de projetos educativos que suportem uma
A cultura das nossas escolas já será efetiva autonomia pedagógica? Poderemos
pautada pela cooperação entre os profes- permitir que uma escola disposta a correr os
riscos da autonomia aceite continuar a ser
sores? Será possível conciliar a ideia da
uma extensão local controlada pelo centro
articulação entre ciclos com o trabalho do
do sistema? Ainda não nos demos conta
professor isolado física e psicologicamente
de que a mentalidade curricular tarda em
na sua sala de aula, cativo de uma racio-
ocupar o espaço de uma compartimentação
nalidade que preside a manutenção de um
disciplinar, que dificulta o diálogo horizontal e
tipo de organização da escola que limita ou
vertical na educação básica? Quanto tempo
impede o desenvolvimento de culturas de
mais irá manter-se a atomização curricular?
cooperação? Será possível conciliar a ideia
Por que razão se mantêm profundas diferen-
da articulação entre ciclos com a ausência de
ças de cultura entre professores de diferen-
tempos e espaços de encontro nas escolas tes segmentos de escolaridade? Se é mais o
provocada por diferentes componentes leti- que une que o que separa os segmentos do
vos, reduções ou acumulações? Poderemos sistema, por que há segmentação? E por que
permitir que uma escola básica “democrática” tratamos como bodes expiatórios os ciclos
seja dominada por práticas de natureza se- que estão a montante do nosso? Já agora,
letiva? Poderemos permitir que uma escola por que não interrogar a nossa cultura pes-
básica preocupada com a formação para a soal e profissional? Até quando insistiremos
cidadania recorra a modelos epistemológicos teimosamente em equívocos, meias-medidas
normativos e conformistas? Poderemos per- e ideias-feitas? Para se refundar a educação
mitir que uma escola básica preocupada com básica não teremos de repensar a Escola?
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Era uma vez, um “autista”
Naquele tempo ninguém usava o termo
“inclusão”
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Stock.xchng/Hidden
va que, consumado o delito, o aluno fora recuo. E o professor voltou para casa, pre-
expulso. ocupado. Não conseguira chegar sequer a
Aquele jovem professor não era daque- falar com o “aluno especial”, ou de “inclusão”,
les que cedo desistem de aprender. Com como hoje seria designado. Muito menos
a informação de que dispunha (nenhuma), conseguiu ensinar-lhe algo, enquanto durou
meteu mãos à obra. No dia seguinte, dividiu o que restava daquele ano letivo.
o quadro-negro em quatro partes e em cada Muitos anos decorridos sobre este
uma delas escreveu tarefas para cada série. incidente, o professor, já menos jovem e
Coisa que demorou uma meia hora. Posta a com algumas noções de prática teorizada,
classe em ação, dirigiu-se para o fundo da compreendeu que aquele aluno nunca tinha
sala, onde o autista se instalara. sido autista. Apenas lhe tinham colocado
Quando já estava a menos de alguns um rótulo. Aliás, compreendeu algo bem
passos do “autista”, prudentemente, deteve- mais importante e decisivo para a tomada de
se. O “autista” balançava a cabeça e isso decisões que, alguns anos depois, o conduzi-
talvez não augurasse algo bom… Recordou ram a uma profunda mudança na sua prática.
o aviso da senhora diretora: “este aluno é Depois de quarenta anos, o professor com-
autista e é perigoso”. O jovem professor preendeu que, na sua sala, não havia um
recuou. A situação repetiu-se, vezes sem “autista” – havia quarenta e nove. Ou melhor:
conta, ao longo desse dia: a cada aproxima- seriam cinquenta os “autistas”. Porque, den-
ção, novo movimento pendular da cabeça do tro das quatro paredes da “sua sala de aula”,
“autista”; a cada arremetida, novo estratégico todos estavam… sozinhos.
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Avaliação de desempenho
Um projeto de escola é um ato coletivo
Naquele ministerial recanto, havia de- crente de que trabalho de escritório é coisa
zenas de zelosas funcionárias batendo em de secretárias e que professor é aquele que
teclas de computador, em mesas atulhadas se forma para trabalhar com alunos e com
de relatórios e inutilidades afins. Perguntei a alunos trabalha!... Saí da reunião refletindo:
uma delas para que serviam tantas resmas num tempo em que tanto se fala de avaliação
de papel, quais os efeitos práticos daquela de desempenho dos professores, que avalia-
canseira. A funcionária respondeu que esta- ção poderá ser feita relativamente a profes-
va coligindo dados de um inquérito recebido sores sem alunos? E me veio à memória um
das escolas. Quis saber o que iria mudar outro episódio.
para melhor nas escolas, que pudesse ser Houve um tempo em que a lei previa
atribuído àquela intensa azáfama burocrá- que, em casos extraordinários, a avaliação
tica. Fitou-me com um olhar estranho: Isso dos professores fosse contemplada com
eu não sei. Limito-me a cumprir ordens. uma “menção de mérito extraordinário” e,
Depois de ser assinado pelos meus supe- consequentemente, os professores fossem
riores, o meu relatório vai para cima... recompensados com um reforço de salário.
“Para cima? Para onde?” – insisti. A Os professores da Escola da Ponte – já
funcionária parou, semblante carregado, e nesse tempo com o seu projeto reconhe-
mais não disse. cido como de elevada qualidade – foram
Tomei consciência de que todos aqueles convidados a requerer a benesse. Diziam-
técnicos eram professores. E eu, que estava nos ser um “ato de justiça, o mínimo que
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poderia ser feito em reconhecimento pelo rial? Como avaliar professores desperdiça-
trabalho realizado pela escola”. Solicitamos dos em funções administrativas? Que con-
o benefício e a resposta chegou peremptó- ceito de docência prevalece nos meandros
ria: “o reconhecimento de mérito só pode da avaliação de desempenho? Que critérios
ser atribuído a título individual”. presidem a avaliação de quem não age como
Recusamos a oferta individual. Ou professor?
todos, ou nenhum, porque um projeto O meu amigo Rui Canário dizia que
de escola é um ato coletivo. A proposta aprender a aprender com a experiência só é
foi indeferida. O júri recusou-se a avaliar possível a partir da crítica e da ruptura com
coletivamente os professores da Escola da essa experiência, mas não parece ser essa
Ponte, mas muitos pedagogos de gabinete a regra. Não aprendemos com a experiência
foram individualmente avaliados, receberam e mantemos práticas absurdas. A arte de
menção de mérito extraordinário, subiram na educar alunos continua a ser desvalorizada
carreira (docente!), alcançaram escalões de relativamente ao exercício de funções bu-
salário superior. rocráticas. Ser diretor de um arquivo morto,
A avaliação de desempenho não deveria numa qualquer repartição, continua sendo
começar “por cima” (pressuposta a hierar- pecuniariamente mais compensador do que
quia)? Como são avaliados os funcionários exercer a profissão de professor, numa sala
que alimentam a pesada máquina ministe- de aula.
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Remendos e ideias feitas
Inspiradas na lógica fabril, muitas escolas
agem como freios ao desenvolvimento
“As escolas deveriam ser como você ainda não sabiam ler e nem escrever. Puse-
diz, mas, com as condições que eu tenho, mos tudo de lado e trabalhamos só Língua
eu não posso”. Interrompi o discurso do Portuguesa”.
meu amigo professor: “A que condições Mais uma interrupção: “E a Educação Físi-
você se refere?” ca? Musical? Não fazem parte do currículo?”.
Balbuciou qualquer coisa acerca do núme- Não respondeu. Nem precisaria, porque
ro de alunos por turma, falta de espaço, tempo os professores não detém o monopólio das
e material. Depois de uma fraterna descons- “ideias feitas”. Frequentemente, os absurdos
trução de ideias feitas, o professor admitiu que são instituídos por determinação ministerial.
o que faltava era outra coisa, mas foi adiante: Esse meu amigo jurou ter lido alguns em
“Mesmo que os teóricos falem de ensino diver- legislação recente: “planos de recupera-
sificado, com trinta ou mais alunos em cada ção” poderão ser aplicados em alunos para
turma, nunca poderemos fazer esse ensino. E que “recuperem-se do atraso”; “aulas de
não se pode pedir a um aluno de sétima série recuperação para alunos mais fracos”
o que se pode exigir de um que está na oitava. foram generosamente pensadas para os
Não se pode voltar atrás, porque temos de contemplados com três ou mais negativas,
cumprir o currículo”. Interrompi-o mais uma ou que não tenham tido um “desempenho
vez: “Ora, explica lá!” aceitável”.
“Por exemplo, na minha escola havia O meu amigo e professor não me disse
alunos que estavam na terceira série e se o Ministério se deu ao trabalho de definir
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Stock.xchng/Unigraphy
conceitos como o de “aluno mais fraco” ou de gidos a alunos “que revelem capacidades
“desempenho aceitável”, ou se foi pedida às excepcionais de aprendizagem”.
escolas a explicação dos “atrasos”. Em con- Os legisladores até legislam a legiti-
trapartida, o Ministério contemplou os profes- mação de processos de exclusão escolar e
sores com sugestões naif. Cito uma delas, social, quando sugerem que se constituam
sem comentário: “os professores podem turmas com “currículos próprios”, constituí-
juntar os alunos em grupos e pôr os melho- dos por alunos sem sucesso escolar ou com
res para ajudar os mais fracos, ou reunir os “problemas de adaptação” (sic).
mais fracos para trabalharem matéria que Inspiradas na lógica fabril, com os seus
não compreendem tão bem”. cronogramas de produção e relacionamen-
Fiquei estupefato perante o semblante tos de trabalho hierárquicos, muitas escolas
de surpresa do meu amigo, quando descre- agem como freios ao desenvolvimento. Aco-
veu tão óbvias e vulgares sugestões minis- litadas por legisladores caducos, mantêm-
teriais. E não pude deixar de rir perante o se cativas de abstrações como: “turma”,
modo solene como acrescentou que o Mi- “carga horária”, “série”, “aluno médio”,
nistério prevê que as escolas adotem dois “aluno atrasado”. Não reconfigurando suas
tipos de planos: os de acompanhamento práticas de modo a dar resposta à diversida-
e os de desenvolvimento. Os primeiros de, adotam “planos de recuperação”, “aulas
serão pensados para prevenir situações de de reforço” e outros inúteis remendos minis-
retenção repetida. Os segundos serão diri- terialmente decretados.
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E = mc2
A energia de alguns é resultado de uma mudança
operada por contágio num contexto
Talvez devido à minha origem – as to, no qual a educação pode e deve aconte-
chamadas “ciências exatas” – dou por mim cer, isto é, a comunidade.
a usar metáforas da física. Por exemplo, Há mais de quarenta anos assisto a
o conceito de inércia: perante os trágicos tentativas de reformas e à inevitável falência
efeitos que produzem, por que razão as de reformas que não ousam operar rupturas.
escolas e os professores não mudam? Ou o Manifesto a perplexidade que levou Einstein
de resiliência: por que razão alguns mudam, a afirmar que insistir no errado é sintoma de
apesar dos imensos obstáculos com que se loucura. E formulo perguntas consideradas
deparam? Que estranha energia os anima? incômodas. O que se aprende dentro de um
Se a maioria cultiva a “resistência à mudan- edifício escolar que não possa ser aprendido
ça” – conceito caro às ciências da educação fora dos seus muros? Talvez o bullying... O
– como e por quê acontece a mudança de espaço de aprender é todo o espaço, tanto o
alguns? universo físico como o virtual, é a vizinhança
Em 1905, o físico Einstein criou uma fraterna. E quando se aprende? Nas quatro
fórmula: e = mc2. Ensaiei a sua adaptação, horas diárias de uma escola? Duzentos dias
dado que a pedagogia vem adotando concei- por ano? Que sentido faz uma “idade de cor-
tos da física. E assim ficou: a energia (e) de te” se não existe uma idade para começar a
alguns é resultado de uma mudança (m) aprender? A todo o momento aprendemos,
operada por contágio (c) combinado com desde que a aprendizagem seja signifi-
um determinado contexto (c). Acontece cativa, integradora, diversificada, ativa,
quando esse contágio se associa ao contex- socializadora. O tempo de aprender é o
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tempo de viver, as 24 horas de cada dia, tempo em que se proclama o reconhecimento
nos 365 dias (ou 366) de cada ano. das diferenças, o ato pedagógico mantém-se
Urge rever os conceitos de espaço e cativo de um fordismo tardio, ainda que se
tempo de aprendizagem, para que os “paida- enfeite a sala de aula com novas tecnologias.
gogos” não mais conduzam as crianças da Mas tenho motivos para ser esperanço-
comunidade para a escola, mas as libertem so. De uma escola agonizante, vejo emergir
da reclusão num gueto escolar e as devol- práticas protagonizadas por educadores,
vam à comunidade, na qual a escola consti- que compreenderam que escolas não são
edifícios; congratulo-me com a iniciativa de
tui um nodo de uma rede de aprendizagem
universidades que se assumem como “mul-
colaborativa.
tidiversidades” (feliz neologismo do meu
Enquanto a comunicação social faz eco amigo Augusto), e desenvolvem estudos em
de discurso de políticos, que nos falam de torno do conceito de “comunidade de apren-
desenvolvimento sustentável e dos saberes dizagem”. Aprendo com educadores, que
e competências para fazer face a um mundo aprendem com outros educadores, mediati-
incerto e em mudança acelerada, os profis- zados pelo mundo, sabendo que não se trata
sionais da educação reproduzem práticas de “levar a comunidade para a escola”, ou de
fósseis. Assistimos à perpetuação de uma fazer “visitas de estudo à comunidade”, pois
gestão centralizada do sistema, impedindo ninguém visita a sua própria casa...
que as escolas assumam a dignidade da auto- Talvez essas práticas anunciem ter
nomia e se constituam em elementos orgâni- chegado o tempo de uma nova construção
cos de comunidades de aprendizagem. Num social-escolar.
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Todo cambia (tudo muda)
A velha escola parece estar a parir uma
nova educação
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Stock.xchng/Yarik Mishin
vontade, / buscar na linha fria do horizon-
te”. Em boa hora, o MEC tomou a decisão de
criar um grupo de trabalho que acompanhe patíveis com necessidades educacionais do
e avalie projetos em curso, que provam a século XXI; o reconhecimento público dos pro-
possibilidade do verdadeiramente novo. Todo fissionais da educação; o fim do desperdício
cambia... Até o MEC pode mudar. decorrente de más políticas públicas; a substi-
Podem chamar-me de utópico, que tuição da reprovação e da aprovação automá-
não me ofendo. Se o poder público decide tica pela prática de uma avaliação capaz de
conferir estatuto de visibilidade a escolas que permitir que o aprendizado caminhe junto
já vinham afirmando múltiplas possibilidades com o desenvolvimento do pensar etc.
de mudança, este é um momento histórico. Lo que cambió ayer tendrá que cam-
Essas escolas serão acompanhadas e estu- biar mañana (O que mudou ontem terá que
dadas, será testada a qualidade e utilidade mudar amanhã). O Brasil dispõe de produção
dos seus projetos. científica e de práticas que provam a possi-
São projetos como muitos outros, que bilidade de uma escola que a todos acolha e
provam a vitalidade da componente saudável a todos dê condições de realização pessoal
de um sistema doente. Que mostram cami- e social, base da construção de uma socie-
nhos e apresentam reivindicações: a dignida- dade solidária, justa e sustentável. E, num
de de um estatuto de autonomia; a prática de país onde o tempo da educação talvez tenha
uma educação integral; uma universidade que chegado, temos tudo aquilo que é preciso:
se distancie de práticas de formação incom- gente, projetos, esperança.
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Lições de humanidade
Há que se cuidar do broto, para que a vida
nos dê fllor
Não vá por aí, que tem assaltante Lei Áurea, ainda existe uma cidadania que
esperando! conhece, possui e tem poder e uma cidada-
Arrepiei caminho, com um sorriso de nia que nada possui, pouco conhece e nada
agradecimento para o moço que me lançara pode. Há dez anos, o seu homem sofreu três
o aviso, e que afagava um vira-lata esquáli- derrames e caiu de cama para não mais se
do, que retribuía lambendo-lhe o rosto. Mais levantar. Antônia cuida dele com o mesmo
adiante, um menino de rua remexia num desvelo que dedica a um menino que uma
caixote de lixo e retirava dele um pedaço de jovem nordestina lhe confiou, antes de se
carne suja e infecta. Sacudiu-o, para soltá-lo perder nos atalhos da vida e da prostituição.
de pedaços de guardanapo de papel. Quando O meu menino é como o meu homem,
já abria a boca para engoli-lo, um transeunte não fala nem consegue andar dois pas-
foi até ele e deu-lhe uma nota de vinte reais. sos, mas eu peço à senhora que o deixe
E, em silêncio, se afastou... Cheguei, por fim, vir para a sua escola. Vai ver que ele ainda
à escola que pretendia visitar. assim consegue aprender...
Retirante baiana, Antônia chegou à Comovida, a diretora da escola abra-
grande cidade só com os andrajos que lhe çou Antônia e garantiu-lhe que o Edilson
cobriam o magro corpo. Não foi o amor, mas seria bem tratado e aprenderia tudo o que
a fome, que a fez parir dez filhos, juntando-os pudesse aprender. Antônia abriu no rosto
aos oito que o seu homem já fizera em outra um sorriso terno e desdentado e lá se foi
mulher. Vai fazer cinquenta anos, mas tem de bem com a vida. E eu ali fiquei, num
no rosto as marcas de séculos de prova- canto da sala, a voz amordaçada pela
ções – mais de um século decorrido sobre a emoção, incapaz de responder à diretora
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Stock.xchng/Claudia Meyer
quando me dirigiu a palavra: É como canta resgatar este outro que foi julgado, discri-
o Milton Nascimento, professor, “há que se minado e rotulado”...
cuidar do broto, para que a vida nos dê Comenius, na Pampaedia, nos diz:
flor”... “Nosso primeiro desejo é que todos os
Dizia o mestre Agostinho da Silva que homens sejam educados plenamente em
não existem só poetas de verso. A ideia de sua plena humanidade, não apenas um
que a pessoa tem de se dizer poeta porque indivíduo, não alguns poucos, nem mes-
faz verso, não é verdade. Poeta é aquele mo muitos, mas todos os homens, reuni-
que cria na vida alguma coisa que na vida dos e individualmente, jovens e velhos,
não existia. Na minha peregrinação pelo ricos e pobres, de nascimento elevado
Brasil das escolas, encontro poesia nos ges- e humilde”. Infelizmente, não parece que
tos mais simples, aprendo humanidade, me vamos nesse sentido. E, como alguém já
deparo com beleza a todo o momento. E, no disse, quando falha a educação, sobe à cena
dia em que conheci Antônia, aconteceu uma o policial e o juiz... Não vá por aí, que tem
overdose... Tatiane deixou uma mensagem assaltante esperando!
no meu computador: Mas, nas minhas peregrinações pelo
“O que me move é o amor, pela vida, Brasil das escolas, encontro muita e maravi-
pelo outro e por acreditar nisto traço meu lhosa gente que busca realizar o desiderato de
percurso como educadora na emoção e Comenius. A esperança – aquela que Pando-
no sentimento. Não posso basear minha ra não deixou que saísse da sua caixa e cuja
ação pedagógica no sistema falho, devo etimologia nos remete para a fé na bondade da
baseá-la no ato vivo, na emoção e na natureza – manifesta-se em discretos gestos de
relação que estabeleço a cada dia. Para educadores, que nos dão lições de humanidade.
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Imaginemos
A história de sete jovens considerados
perdidos e sobre como eles viraram
pessoas
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O professor repetiu a pergunta. E eles a que a gente explica. E quase todos os alunos
registraram numa folha, encimada pelo título: foram assistir à explicação. De régua em pu-
“O que precisamos saber”. E outros conteúdos nho, os sete começaram explicando que cada
foram acrescentados em forma de pergunta: centímetro na escala equivalia a um metro:
Em que ponto cardeal estará a porta? Quantas Não é um metro quadrado. É só um metro,
cantoneiras de alumínio teremos de comprar? não confundam medidas lineares com medi-
Os jovens interromperam o interrogatório das de área! – esclareceu um dos autores do
do mestre: Quanta o quê? projeto quando braços se ergueram para pedir
Quantos metros. E quantos metros qua- esclarecimentos.
drados de tela vão comprar? Sabem como se Quando todas as dúvidas foram dissi-
calcula a área de um retângulo? Conhecem padas e os professores concluíram os seus
as medidas de área? Quanto vai custar todo o registros de avaliação, os “sete do presídio”
material? Vocês vão pedir desconto ao dono descerraram uma placa: “Oferecemos este
da loja? Sabem calcular percentagens? O que viveiro à nossa escola”. Ato contínuo, cen-
comem esses pássaros? Qual o seu habitat? tenas de alunos os aplaudiram, cumprimen-
E os seus predadores? O que é uma cadeia taram, abraçaram, não os “sete do presídio”,
trófica? E por aí foi, progredindo um diálogo mas já sete maravilhosos seres humanos.
que deu origem a um roteiro de pesquisa. Imaginemos que esses jovens recupe-
Duas semanas depois, havia um convite raram a autoestima, que alguns cursaram a
afixado na parede: Quem quiser aprender universidade. Imaginemos que já são sexa-
como se faz um viveiro, o que é uma escala, genários e que todos são pessoas felizes.
como se calcula a área do retângulo e outras Imaginemos, também, que todas as esco-
coisas mais, vá encontrar conosco no viveiro, las podem operar tais milagres.
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Silêncios, segredos e mistérios
Pensar é estar doente dos sentidos
Era ainda moço, mas não esqueço o Professor, você sabe que eu tenho
rosto de Violante. O rosto e o seu trágico pai, não sabe? Mas ele diz que não é meu
silêncio. Aceitou o destino – como costuma- pai. A minha mãe me disse que o meu pai
vam comentar as vizinhas – e esperava o fim é aquele cliente que vai lá em casa, nos
sentada na varanda em frente à minha casa. sábados, à noite. E eu soube que esse
O marido conhecia o veredito médico: mater- senhor, que diz que não é meu pai, mas
nidade significava a morte da mãe e talvez do que é meu pai, tinha uma filha. Era minha
recém-nascido. Mas tinha imposto a sentença: meia-irmãzinha, compreende professor?
o varão da família teria de nascer. Era filha do meu pai, que diz que não é
meu pai, e da mulher dele, que não é a
Recordo-me dos seus últimos dias: olhar
minha mãe. Compreende, professor?
perdido, morta antes de o ser, a frescura dos
seus vinte e poucos anos apagada pela bar- Compreendo. Mas o que é que isso
bárie de um machismo impune, no Portugal tem a ver com...
de Salazar. Aprendi com Violante a combater É que eu pedi ao meu pai para brincar
todo e qualquer preconceito. E a rasgar silên- com a minha irmãzinha e ele me disse
cios coniventes. que, se eu me aproximasse dela, me dava
Com Marco aprendi que os silêncios um tiro nos cornos. E eu nunca pude brin-
podem encobrir segredos e explicações. car com ela.
Quando lhe perguntei por que razão chegava Não pode, mas poderá, daqui a algum
pontualmente atrasado à escola, explicou: tempo, quando...
Professor, você sabe que a minha Não posso, professor! A minha irmãzi-
mãe é puta, não sabe? nha morreu atropelada. É por isso que eu
Sei. Mas o que é que isso tem a ver chego todos os dias às dez.
com você chegar à escola só às dez horas? Explica lá!
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Desde que a minha irmãzinha mor- ção. Tantas perguntas lhe dirigi, que dela
reu, eu não ando bem comigo. Sinto uma obtive uma breve fala:
coisa aqui dentro... Quando acordo, vou Vejo coisas. Mas os outros meninos
até ao jardim do centro, roubo umas fl ores fazem troça de mim. Até a minha mãe me
e vou até o cemitério. Salto o muro sem diz para ter juízo...
o guarda me ver. Limpo a laje da minha
Eu acredito que você vê coisas.
irmãzinha, ponho fl ores fresquinhas para
Você acredita? Sério?
ela, sento-me ao lado dela e falo sobre a
minha vida, as minhas tristezas... E – olha, Sim. Que coisas você vê?
professor! – quando venho embora, para Um menino de camisa de mangas
a escola, eu digo-lhe sempre: Minha irmã, com babados, que sai de uma pedra, na
prometo que, quando for grande, vou beira do cafezal, todos os dias, por volta
comprar uma pistola e vou matar o nosso das três da tarde. Volta a entrar na pedra
pai! quando o sol vai embora. Eu falo com ele.
Com Marco aprendi o porquê de silêncios Não falo palavras, mas sei brincar com
que encobrem segredos. Com a Soraia, aprendi ele. As pessoas grandes me dizem que ele
que os silêncios podem conter mistérios. não existe, que é imaginação... Você não
tem medo do que eu estou dizendo?
Soraia era uma menina “difícil” – como
disseram os seus professores e colegas – Não. Por quê? Deveria ter?
pois permanecia num mutismo inviolável. Se Sorriu. Fomos brincar na beira do cafezal.
lhe dirigiam alguma pergunta, olhava para o Porque nem só do cognitivo vive o homem e por-
chão. Ao cabo de alguns dias de prudentes que o Caeiro, há já um século, escreveu o essen-
aproximações, logrei uns instantes de aten- cial: “pensar é estar doente dos sentidos”.
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Escolas são pessoas
Entre a Gávea e a Rocinha, o Gente poderá
contribuir para um re-ligare essencial
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Qual o modelo de pessoa e de socie- ção da escola, na relação pessoa a pessoa,
dade por trás de projetos como o Gente? no estabelecimento de vínculos impossíveis
Quais os valores por elas veiculados e os de estabelecer com uma máquina, dentro e
princípios que orientam as decisões? As fora do edifício-escola. “Estrategicamente”
novas tecnologias conferem um tom de mo- situado na interface entre a opulência da
dernidade ao projeto, mas a diretora Márcia Gávea e as carências da Rocinha, o Gente
foi objetiva na sua intervenção: Não se trata poderá contribuir para um re-ligare essencial,
apenas da introdução de novas tecnolo- poderá transformar-se numa comunidade de
gias na escola. Não basta trocar o quadro- aprendizagem, que logre atenuar a pesada
negro pelo monitor digital. E, se as escolas herança de séculos de difícil convivência
entenderem isso, poderão migrar de um entre alguns que têm tudo e muitos que nada
modelo de estudantes-papagaios repe- têm.
tidores da lição para um ambiente onde Como diria o mestre Paulo Freire, não
ocorra construção de saberes. Acredito é a educação que muda a sociedade, mas
que os professores do Gente entenderão é a educação que muda as pessoas, e as
isso e ajudarão seus jovens alunos a re- pessoas mudam a sociedade. Só precisa-
construir uma comunidade de aprendizagem mos de pessoas e parece que, agora, temos
chamada Rocinha e a usar as tecnologias Gente, que foi feita para brilhar e não para
para que isso aconteça criticamente. morrer de fome.
É disso mesmo que se trata: de utilizar
as novas tecnologias a serviço da humaniza-
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