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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Departamento de Antropologia Social


Patricia Carvalho Rosa

“Das misturas de palavras e histórias”:


Etnografia das micropolíticas de parentesco e os “muitos jeitos de ser Ticuna”.

Campinas
2015
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CNPq, 141355/2011-5


Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Marta dos Santos - CRB 8/5892


Rosa, Patricia Carvalho, 1981-
R71d Ros"Das misturas de palavras e histórias" : etnografia das micropolíticas de
parentesco e os "muitos jeitos de ser Ticuna". / Patricia Carvalho Rosa. –
Campinas, SP : [s.n.], 2015.

RosOrientador: Vanessa Rosemary Lea.
RosTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas.

Ros1. Índios Ticuna. 2. Parentesco. 3. Casamento. 4. Transmissão inter-
geracional. I. Lea, Vanessa. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.




Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: "Of mixtures of words and stories" : ethnography of
kinship micropolitics and the "many ways of to be Ticuna".
Palavras-chave em inglês:
Tucuna
Indians kinship
Marriage
Intergenerational transmission
Área de concentração: Antropologia Social
Titulação: Doutora em Antropologia Social
Banca examinadora:
Vanessa Rosemary Lea [Orientador]
Antônio Roberto Guerreiro Jr.
Cecilia
Anne McCallum
Marina Denise Cardoso
Maria Paula Prates
Data de defesa: 18-12-2015
Programa de Pós-Graduação: Antropologia Social

Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

A comissão julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos


Professores Doutores a seguir, em sessão pública realizada em 18/12/2015, considera a
candidata Patricia Carvalho Rosa aprovada.

Prfª. Drª. Vanessa Rosemary Lea [Orientador]


Prfº. Drº. Antônio Roberto Guerreiro Jr.
Prfª. Drª. Cecilia Anne McCallum
Prfª. Drª. Marina Denise Cardoso
Prfª. Drª. Maria Paula Prates

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão examinadora, consta no processo de


vida acadêmica da aluna.
Agradecimentos

Talvez esta tenha sido a parte mais prazerosa da composição da tese,


especialmente em seus últimos tempos de gestação, de silêncios e incertezas. Foi o momento
de voltar no tempo, rir e lembrar contente, também cansada, do que compôs este trabalho, de
afetações e coautorias múltiplas. Ele se fez por muitas estradas, entrecruzou-se com muita
gente, muitas ideias, interlocutores e desafios instigantes; este trabalho é tecido por muitos
encontros felizes, de muitas experiências plurais, pessoal e academicamente estimulantes e
transformadoras, que, todavia, seguem por amadurecer. Foram intensos cinco anos de
relações com esta tese por caminhos que se iniciaram por estradas no sul do país, com o
desafio de seguir “na luta com parentes Kaingang”, cujos planos alteraram-se já nos dias
iniciais do doutorado, quando novos horizontes surgiram e decidi ir, enfim, para a Amazônia.

Foi, então, que parte destes caminhos tornaram-se rios, igarapés, florestas;
mosquitos, calor úmido, por vezes, insuportavelmente desnorteador, especialmente quando se
está em cidades completamente desastrosas no meio da floresta, cada vez mais devastada.
Mais do que paisagens antes conhecidas desde etnografias alheias, viver e aprender nos
“beiradões do Solimões” foi decidir também enfrentar e começar do zero uma pesquisa e
novas relações entre pessoas desconhecidas; enfrentar debates políticos-etnológicos
diferentes, aprender uma língua. Acabei no Alto Solimões por motivos completamente
aleatórios, instigada por amigos e outros pesquisadores que por lá haviam passado. Assim, o
que eu sabia “dos Ticuna”, da região eram apenas anedotas e experiências também alheias.
Esta tese também é resultado de um encontro, em especial, com Luis e Adriano,
dois homens Ticuna, a quem conheci em Manaus, em fevereiro de 2012, data de meu primeiro
diário de campo! Neste dia deu-se início as experiências etnográficas num complexo cenário
em que renderia, se eu tivesse talento literário, contos com cenários similares aqueles de Luis
Sepúlveda, porém com personagens a la Tarantino na Amazônia.
Os agradecimentos que se seguem, iniciam-se pelo óbvio e merecido: para aqueles
que me permitiram estar entre eles, “nas bagunças e nas seriedades da vida”; dirigem-se para
aqueles interlocutores que neste texto são tratados como colaboradores. Assim, quando em
trechos do texto a seguir estiver escrito algo em terceira pessoa do plural, refere-se as nossas
reflexões conjuntas e assumo o risco de tê-las mal interpretado ou tê-las usados
indevidamente. Retornando ao encontro especial, tudo começou com Luis e Adriano, como
dito. Eles apresentaram-me um mundo de condições de possibilidades antes de “chegar aos
beiradões e aprender das intimidades dos índios”, como me diziam eles a respeito do tema de
pesquisa, os casamentos e as políticas de parentesco. Ao fazê-lo, ambos referiam-se ao meu
interesse de conhecer “os jeitos dos ticuna casarem”, “pegar marido e esposa”, e “das
políticas de negociações”, “das vontades e as regras das nações [clãs]”; o “problema do
sexo malfeito”; “do casar certo ou casar errado”.
Além deles, estes caminhos foram feitos com aqueles que em Rio Bonito,
Tabatinga, São Paulo de Olivença e Amaturá (com mais brevidade) encontravam-se nesse
tempo, vivendo em suas aldeias e comunidades que pertencem ao municípios citados, ou que
viviam nestes espaços urbanos. A cada colaborador expresso a mais profunda e sincera
gratidão. A cada um dos Ticuna que eu conheci, com quem aprendi e também trabalhei, sou
grata pela coragem que tiveram em deixarem-se estar com uma estranha; pela confiança, pelas
duras conversas, pelos conselhos e acolhimento, que só não foi de todo alegria, porque nem
todo aprendizado é fácil.

Agradeço a eles ainda pela paciência e didática com que me ajudaram a traduzir e
apreender algo, ainda que bastante rudimentar, de seu difícil idioma; pelo cuidado que
tiveram comigo, pela contagiante alegria e risos com os quais me receberam e ensinaram a ser
um “jeito” de gente, ali com eles, e além. Também é preciso agradecer a eles, por fim, por
terem me deixado ver, escutar e acompanhar cenas e momentos duros, frágeis,
desconfortantes e com os quais, sem escape, eu também tive que aprender a lidar; algumas
mortes de conhecidos e de dois interlocutores, em especial, atravessaram-se no caminho,
tornando o tempo de pesquisa, de escrita e a pesquisadora, fundamentalmente, sensível às
adversidades da vida indígena; eventos estes que me ensinaram também a compreender os
limites das exposições, das implicações do objeto deste trabalho; “assim é, tem que aprender
dos jeitos de lidar com o mundo perigoso”, como certa vez tomei nota do que alguém dizia-
me sobre uma dessas perdas de parentes, que mesmo inquietantes tornaram-se momentos de
conhecer que nem todo casamento ou intenção de realizá-lo é, pois, um processo jubiloso.
Para passar a entendê-los também em suas expressões “tristes”, foi preciso igualmente
envolver-se em seus dramas, aprender com eles os conteúdos de suas preocupações. Para
alguns colaboradores estes meandros de negociações expressavam-se como linguagem
daquilo que não deveria constar neste trabalho, enquanto para outros, contudo, esses eventos
críticos alteraram-se em motivos de visibilidade política, “de militância”. Tento respeitar
estas diferentes formas de encarar os fatos e negociações matrimoniais com bases nas quais se
baseia a tese e reconheço feliz as negativas recebidas de interlocuções, partes importantes
neste trajeto.
À todos a seguir agradeço e dedico este trabalho.
A cada nome mencionado, outros tantos se incluem conjugados, são extensões
afetivas daqueles e cujos agradecimentos eu espero retornar de igual modo, com igual respeito
e apreço. Ernesto e Rosa, Elis, Pedro, Nonato, Roberto e Angélica, Marcolino, José, Maria,
Graci e Luisa, Fantino e Fred, Joaquim; Nonato; Nazareno; Mariano; Lurdes; Alberto, Félix,
Isara e Fernando, Luis e Juraci; Juan e Constância, Pablo e Anita, Firmino e Lora; Nguyaecü,
Yiatchiĩna, Neiva, Ezequia, Rosalina; Mercedes; Darü'püuna, Mutchique’ena, Botchicüna,
Metchicüna, Waire’ena, Tchori; Mepaweecü; Arindal, Clarindo, Simião, Narcísio e Marisa;
Jairo e Alcinda; Mario e France; Darcy; Diflores, Glaudêncio; Abel e seu grupo extenso, Nair;
Paulo; Emiliano; Romilda e Zaqueu e todos desse querido grupo extenso; Jonas; Crispiano e
Claricia; Sirlei e Quintino; Reco; Giclarque; Edson; Sarney; Artêmio; Vanécio; Frederico e
todos de seu grupo extenso; Santino, Nicodemo; Mepaweecü; ao Oston e a Elen, ao pequeno
Marco, seus avós paternos Neusa e Noginel, sem os quais uma parte da estadia “no mato” não
seria possível. Ao José, filhos destes últimos, à sua esposa Maria, sempre afável, e aos
pequenos “irmãos” Josinei, Lia, Luisa; às “amigas” e “irmãs” Graice, Elza, Joice, Simone;
Ao Flavio e seu irmão; à Romilda e Zaqueu e todos seus filhos; ao Jonas e Elisia; à Arnaldo e
Ziza e todos os de grupo extenso; Mercedes, outra doce “mãe de brincadeira”, que prosava e
dava-me “bulacha” e a melhor banana moqueada que já provei; à sua filha Arlene e ao João,
cujo acolhimento foi generoso, intermitente e sempre feliz; aos seus filhos e meus “irmãos de
aldeia” Arilene e Alexandre, com quem diariamente, aprendi que ser criança ali era mais do
que brincar de ser gente grande; à Elias e seus filhos; ao Neco e sua “senhora” por ensinarem-
me, corroborando o que Luis e Adriano me haviam suscitado, que o mundo coerente e seguro
da cosmologia “não ensina tudo”; à Roberto, Jandira e Ana Mowatcha; Hilda, Fernanda;
Abraão; Quintino; Pedro, Quirino (in memorian); Edna, Tereza, Rosa, Claudino; Santo,
Reinaldo, Danilo, Claudia, Mislene.

À Josiane, com quem aprendi em campo a ser pesquisadora, um pouco professora


e um pouco etnóloga. Com quem, especialmente, venho aprendendo a fazer pesquisa
colaborativa, quem me abriu espaço em sua vida, aos seus dilemas, ao seu sorriso e aos seus
grupos de parentes, os quais, como ela, respeitosamente, acolheram-me sempre bem e
cuidadosamente entre suas tensões. Moëtchi patchaueya. À Mercedes, pela mulher forte e
valente que és.

Abrindo-se aos demais parceiros de tese, de campo, de vivências no Alto


Solimões, sou grata à Flavia Melo, por tudo que lá se iniciou nos processos de aprendizados
mútuos, conflitantes e sempre inspiradores. Na relação doméstica, pessoal e acadêmica, do
início ao fim deste percurso nos beiradões e, certamente, muito além dele, seu suporte,
“maninha”, foi imprescindível.

Ao grupo do Observatório da Violência de Gênero no Alto Solimões, pelo


acolhimento e respeito; pela contribuição intelectual e pelas boas vivencias, pelas “balinhas”
sempre geladas e boas conversas; pelas semanas a fio de campo, desbravando os beiradões.
Com vocês aprendi muito no processo de formação de cada um, sobretudo a não sucumbir, a
tentar sempre; a chorar e ter “nervosismos”; e resistir, principalmente, aos medos da escrita,
da pesquisa. Em especial admiração à Ester Maia (in memorian), companheira de alguns
insights aqui contidos; pela alegria de vida e generosidade. A todos os demais pesquisadores
vinculados ao grupo e que em diferentes momentos desse projeto em andamento colaboraram
com os diálogos.

Inara Nascimento, pela companhia, pela confiança; ao Eleaquim, que se somou a


essa família extensa, trouxe à ela poesia e cachorros! Ao Gabriel e Telminha, que abrigaram,
pelas conversas e parcerias. Ao Luis, ao Alex, à Lucia; à Naila e a trupe da moto em Rio
Bonito, pelos resgates e atoleiros enfrentados com astúcia.

Em Tabatinga, dai também por outras estradas-rios, nada foi possível sem a
presença e o desvelo de Tati, la mama; a amiga, a quem agradeço pela simplicidade de seus
argumentos tão preciosos sobre a vida na fronteira; sobre ser uma mulher forte, sem perder a
doçura.

Agradeço ao Pedro, ao Jean, a Gisa, a Marisa e Raiana. Ao Leo, querido, pela


amizade, e alegria; pelas falas duras quando precisei, pelo incentivo e aprendizados. Ao
Sanderson e a Pati, eu agradeço imensamente pela acolhida, pela companhia prazenteira! Aos
também parceiros de boas conversas, cervejas e discussões sobre os mundos ameríndios e as
políticas da vida: Leopoldo, cuja pareceria e diálogo foram indispensáveis, Bernardo, Victor,
Hermísia e Kely. À Blanca, que surgiu nesse caminho pelos cruzamentos que a vida trouxe ao
Solimões e à Campinas, pela amizade e pela companhia na fronteira; por mostrar-me o quão
bonito pode ser tornar uma relação de interlocução naquele lugar confuso.

Na Universidade Nacional de Colômbia agradeço ao acolhimento, e às


facilidades; ao diálogo com Dani Mahecha, com quem aprendi muito sobre os bastidores
daquilo que não publicamos e nos afeta. Ao German Uchoa, quem me apresentou à Jean-
Pierre Goulard. À este último, eu sou extremamente grata pelas conversas e e-mails trocados
sobre nossas pesquisas; pela generosidade com que compartilhou de excertos de sua
experiência entre os Ticuna no Peru e instigou diretamente algumas reflexões.

Entre o Alto Solimões e conexões, sou grata à outros que, como eu, estão ou
estiveram trabalhando por lá, junto aos Ticuna: Luciano Cardenes pelas dicas e contatos
prévios à chegada em campo. Também nesse rumo, sou grata à Maria Isabel Cardozo, que
generosamente dialogou sobre a pesquisa, sobre o campo e seus dilemas. Aline Magalhães e
Edson Matarezio com quem os diálogos sobre a pesquisa também foram importantes, cujas
teses também auxiliaram a refletir sobre meu trabalho.
Ao Marco Tobon, por ter-me dito, e modo inspirador e certeiro, que essa pesquisa
se transformaria em novas oportunidades de fazer antropologia. E foi nesse espaço de
mudança que nos aproximamos e aprendemos a trocar nestes caminhos entre fronteiras e
diferenças tão variadas e criativas. Sou grata ao José Miguel, quem também de modo
cativante, porém cronista, apresentou-me inicialmente, antes de qualquer decisão pelo Alto
Solimões, uma paisagem apaixonada da Amazônia transfronteiriça.

Em Campinas, sou grata a todos que me receberam: à Renata Nóbrega, por toda
sua alegria, musicalidade e disposição; pelo acolhimento em casa, pela convivência aqui e na
sua extensão em Rondônia; à toda seu extenso e querido grupo familiar. À Talita e Euclides,
pela chegada, pela boa sorte e hospitalidade inicial. À Ana Clara, que nos apresentou antes
mesmo de eu chegar.

Aos colegas e amigos: Inácio, Desirrè, Carlos Eduardo e Igor pela companhia,
solicitude e aventuras pelas antropologias e vivencias nesse trajeto de doutoramento. Ao Igor,
pela amizade, pelo carinho e por revelar na dureza de todo o ser, um espaço preciso à doçura,
à calma e sempre boas conversas, também pela companhia e amizade. Ao Carlitos, pela
gentileza, pela sempre contente, falante e serena presença. Pela paciência, pela esperança que
carrega na justiça dos homens, ao seu modo “xangô velho de ser”, pela convivência
doméstica; por compartilhar dessa inquietante afetação pelo campo que nos motiva a ser
antropólogos, afinal. Desirrè, outra “companheira na luta”; com quem aprendi de política, da
vida, da dureza que é enfrentar distancias de quem se gosta, sem, com isso, deixar de sorrir,
animar uma cervejinha; com quem se dança até cansar! Inácio, o cara mais tranquilo que
conheci nesta turma, com quem aprendi também a rir das m... que nos passavam; de cair e
seguir em frente, sempre!
À Iara, à Tereza, ao Benete por ajudar a tornar nossas salas e espaços de trabalho
mais aconchegantes e pelas canecas de café sempre abastecidas.

Aos companheiros de tantas andanças, de tantas coisas. A cada um sou grata pelo
modo como cada qual, ao seu jeito, povoou esse caminho. Diego, pela reciprocidade de ser
porto seguro, parceiro de conversas e trabalho. Lucybeth, pela mulher que és, pela boa e
alegre companhia. Eva, pela confiança, pelo acolhimento na hora mais certa de terminar a
escrita. À Ava, por ser quem és, por dizer o que precisa, o que quer; bom tê-la nesse caminho;
um brinde às ressacas de segunda-feira.
Andrea Ponce, compa de tantos momentos particulares, de presença forte e
determinada, cuja companhia fez-me desendurecer um pouco. Ao Mateus, pela vizinha
companhia, pelos mates, conversas e mapas da vida; pela leveza que tens, pelo que sabes
cativar e compartilhar; por todo apoio amigo. Gustavo, pela boa companhia em dias
gastronômicos, por ajudar-me com as tecnologias informacionais; Aline, difícil dizer, mulher
guerreira, pesquisadora audaz, dançarina espetacular, amiga nas horas precisas.

Ao grupo de interlocução no Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena (Cpei): a


Gabi, pela doçura e alegria que tens em desbravar o campo; a os desafios da experiência na
aldeia, para além dela. À Verônica, Luiza, Diogo e ao Ian, que se somaram ao grupo, fazendo-
o mais feliz e os diálogos mais enriquecedores! Ao Antônio pelos diálogos, amizade e
acolhimentos nesse grupo. À Kenia, Roberta, Patrik, Petras, Jose, Luciana e ao Carlos, nesse
grupo, mas noutros espaços desse universo de interlocução, por todo apoio. Ao Rodrigo, Bob,
Alejo, Gernan, Adriana. À Mari, Ernenek também estendo os agradecimentos pela alegria das
boas conversas, aprendizados compartidos. À Marina Novo, pelo reencontro aqui, pelas boas
conversas.

À Ana e Augusto, pelos amigos e gente que são. Entre canoas, remos e florestas, a
gente vai se cruzando, vai tecendo essa rede, enfrentando banzeiros e provocando resistências.
Ao Tomé, um xêro. Grata, meus queridos. Por vocês cruzou-se mais um querido nesse
caminho, Jorge.

Numa outra extensão desses caminhos de doutoramento, deixo profundo


agradecimento aos pesquisadores do Pagu pelo gentil, generoso e profícuo acolhimento entre
vocês, em especial a Adriana Piscitelli, Laura Lowenkron e Natália Corazza, que também
aventuram-se no Alto Solimões, compartiram do pôr-do-sol, do calor e humidade amazônica,
dos fluxos intensos naqueles lugares e pelas leituras e críticas. À Iara Beleli pelas conversas e
alegres estímulos; Carol Branco, Bruna Bumachar, Carol Pavejeau, Ana Paula Araujo, Ana
Paula Luna, Paula Togni (in memorian).

Aos professores do Departamento de Antropologia: Nadia Farage, Bibia Gregori,


Gita Debert, John Monteiro (in memorian), Suely Kofes, Nashieli Loera, Omar Ribeiro,
Emília Godoi, Ronaldo Almeida; Susana Durão, por estar presente na reta final de produção
da tese, em apoio, na torcida e no trabalho em pareceria.
À Maria Jose, Márcia, Sônia, Reginaldo, Rita, Juliana e todos os demais que dão
vida ao universo burocrático do qual somos todos presas, muito obrigada. Inclusive por
lembrarem-me dos prazos!

Ao CNPq pelo fomento desta pesquisa; ao FAEPEX pelos auxílios e fomentos


complementares.

Aos meus pais, que não sei dizer ao certo se compreendem claramente o que eu
faço, o que significa este trabalho, e não é o que mais importa. À eles sou grata por serem
quem são, do modo como se fizeram e fizeram a mim, em suas próprias estradas e caminhos.
À Leticia e João, que de longe, na ausência, também acompanham estes meus caminhos. Ao
Marcelo, por muito e por tudo. Por ter sido, desde o início dessa jornada um incentivador, um
professor, um irmão e um amigo, especialmente. À Antonádia, por deixar-se ser parte desse
muito compósito no universo das tensas e intensas relações em família e por mostrar-se forte
e amiga; pelo trabalho que inspira, por ensinar que generosidade e reciprocidade se aprende,
se cultiva e retribui.

Àqueles que estão nestas estradas-rios há longos tempos, o carinho sempre


presente, a despeito das distâncias: Gabriela, minha irmã de vida, amiga e companheira;
Rafael, amigo e irmão de tantas vivências e alegrias; Márcio, pelo potente e radiante ser que
és; Luciano, querido, pelo incentivo, pelo carinho de sempre; ao João, amigo parceiro de
muitos aprendizados e inspirações culinárias e musicais; à Cândice, pelas aproximações tão
bonitas; Elias, pelos acolhimentos e boa companhia de sempre; Dudu, meu querido amigo de
tanto tempo, tantas conversas e desabafos; e Luis Fernando Fagundes, por sempre motivar a
luta, o indigenismo e o diálogo. Obrigada a cada um de vocês por serem amigos, partes disso
e muito mais. Nas paragens brasilienses, mais extensões constitutivas, às mulheres de força e
afetos, Clarisse Jabur, Simone Soares e Lediane Felzke.

Agradeço ainda à Márcia Abdala e o Ricardo Ferreira, dos Expedicionários da


Saúde, pelo apoio, pela oportunidade de com eles conhecer pela primeira vez uma das aldeias
que faz parte deste trabalho. Nesta experiência, pude conhecer à Lucille Kanzawa, fotógrafa e
mulher inteligentemente curiosa com o que se passa no mundo. Uma amiga querida, ao lado
de quem compartilhei um do momentos felizes dessa pesquisa. É dela o crédito de parte das
fotos que exponho no texto.

Agradeço, por fim, aos membros da banca pela leitura, pelas críticas e
perspectivas apontadas nos diálogos e arguições. Adriana Piscitelli, que esteve presente na
qualificação. Ao Antônio Guerreiro, Cecilia McCallum, Marina Cardoso e Maria Paula
Prates. À Vanessa, orientadora desta tese, eu agradeço pela confiança e pela oportunidade de
trabalho ao seu lado. Sua generosidade alimentou esta pesquisa, produziu diálogos, nem todos
consensuais, porém importantes em minha formação; a experiência de estar com ela em
campo, no seu universo etnográfico-relacional, foi definidora de meus próprios rumos. Não
segui com os Mebengokrê, como ela certamente desejasse, mas aprendi no pouco tempo entre
eles, e com ela, a saber, o que queria para o meu próprio trabalho.
“Parente é isso, é coisa de tempo, de como o sujeito
se faz na vida, na vivência das palavras e histórias
nesses beiradões do rio. Casar faz partes desses jeitos
de ser, do fazer parente, do se fazer gente, cada um
no seu jeito”. Tiuaecü (outubro, 2012).

“Para os parentes casar é importante, transforma a


pessoa, deixa conhecer mais dos seus jeitos de estar
no mundo”. Tchori (dezembro, 2014).









Resumo:

Esta tese consiste na etnografia dos eventos cotidianos de produção e significação das
micropolíticas do parentesco, especialmente focalizadas nas tramas que as envolvem e
empregam sentidos plurais ao casar e ao casamento entre uma rede de interlocução ticuna,
povo indígena de língua epônima, habitantes das margens e interflúvios do rio Solimões, no
sudoeste do estado do Amazonas. O tema das micropolíticas de parentesco é enfocado a partir
das análises indígenas a respeito destes fenômenos, buscando conhecer como estes laços são
concebidos situacionalmente como “casar certo” (meã cü ni'i), “casar errado” (tchire cü
ni'i). Para tanto, observamos suas presenças num contexto de socialidade particular que
envolve relações de conjugalidades intergeracional e marcadas pela presença simultânea de
múltiplos referentes sociopolíticos que os significam. Se aos interlocutores o casamento
(ni’igü) conjuga a ideia de “compromisso”, descrita como situações de conjugalidades, e
“obrigações”, apresentada como aliança que se estende além da diáde do casal, argumenta-se
que o casamento é o operador que estabiliza diferenças em variadas escalas político-afetivas,
maneja e relaciona alteridades, e, com efeito, manifesta-se enquanto momento propício, por
isso relevante, de fabricação da pessoa e do parentesco. Interessa-me, com base nesta
premissa etnográfica refletir como articulações transformacionais envolvendo o dispositivo
ticuna da sexualidade, materializado na ideia indígena de “sexo malfeito”, engendram e
atualizam os critérios e valores que circulam nos regimes de troca matrimonial e sistemas de
aliança. Para tanto pergunta-se o que ocorre quando justaposto ao aparato da exogamia
clânica, além das posições dos cônjuges potenciais entre consanguíneos e afins, também se
torna relevante saber a respeito das práticas e opções afetivo-sexuais dos pretendentes ao
matrimônio.

Palavras-chaves: índios Ticuna, parentesco, casamento.


Abstract

This thesis is the ethnography of the everyday events dedicated to the production and
significance of kinship in its micropolitics, mainly focused on the plural directions envolved
in the plots and senses of "getting married" among a ticuna network. The ticuna indians are
speakers of an eponymous language and inhabitants of the banks and interfluves of the
Solimões River in the southwestern state of Amazonas. The theme is focused from the
indigenous analyzes regarding these phenomena by observing them in an intergenerational
context and marked by the simultaneous presence of multiple sociopolitical referents, as these
ties are designed alternately as "to marry properly" (meã cü ni'i) and "to marry wrong" (tchire
cü ni'i). If, for the interlocutors, the marriage (ni'igü) describes a marital status as being in link
with an idea of "commitment", describes as conjugalities relations, and "obligation", presentes
as alliance’s polices beyond the dyad of the couple, what is argued here is that marriage is the
operator that stabilizes differences, dealing with the alterity, and, in fact, it manifests itself as
a propitious moment, relevant, in the production of persons and kinship. It interests us to
reflect about how the articulations regarding the Ticuna's sexual devices engender and update
the criteria and values circulating in the marital exchanges and aliance system arrangements,
especially when the apparatus of the clan's exogamy requires knowing not only the positions
between consanguines and affines, but also the sexual and affective orientations and practices
choises of the candidates for marriage.

Keywords: Ticuna indians, kinship, marriage.




Mapa do noroeste amazônico, região do Alto Solimões em destaque.

Notas linguísticas

A grafia das palavras da língua Ticuna presentes ao longo do texto seguiu o


padrão utilizado pelos interlocutores, usando o modo por eles indicado para a escrita e
tradução. Cabe ressaltar que não há uma padronização estabelecida para a grafia de tal língua
indígena, havendo diferenciações não apenas referente à escrita, como também de variação
dialetal, dependendo da região e do país no qual se está inserido (Santos Angarita, 2005;
Soares, 2000; Vasques, 2011), tendo em vista que a língua Ticuna é amplamente falada
(acima de 60.000), por indígenas dispostos numa área extensa distribuídas por três países:
Brasil, Peru e Colômbia.

A língua ticuna é tonal, contando com um sistema de cinco níveis fonêmicos de


altura que constituem o primeiro sistema de tom tão intrincado a ser encontrado na América
do Sul, de acordo os autores citados, o que torna esta língua indígena, do ponto de vista dos
estudos linguísticos, uma caso de relevante interesse acadêmico. Na língua Ticuna, citando a
Soares (idem), “são materialmente encontrados os seguintes níveis fonéticos de altura (pitch):
alto, meio-alto, médio, meio-baixo, baixo e extrabaixo”. Também segundo a linguista, os tons
fonológicos podem ser maximamente reduzidos a dois – os tons alto e baixo (1995 a, b, 1996,
1998, 2008) – ou, como sugere Montes Rodríguez, (1987, 1995), ter a sua redução limitada
aos tons alto, médio e baixo.

Em termos de suas propriedades específicas, a referida língua indígena ao mesmo


tempo em que oferece características desafiadoras, quer quanto à fonologia, quer quanto à
sintaxe. Em seu vocabulário encontram-se facilmente empréstimos tupi e alguns quéchua
(Montes Rodríguez, 2004). No que tange a operacionalidade e contextualização do
bialfabetismo em castelhano e português entre os Ticuna e sua operacionalidade e uso nos
processod de aprendizagem escolares na região da tríplice fronteira remeto o leitor ao trabalho
de Leturia Nabaroa (2010), que discute acerca das quatro propostas ortográficas coexistentes
nos territórios ticuna – quatro no Peru, um na Colômbia e outro no Brasil – resultantes de
processos sócio-históricos de constituição das escolas por diferentes linhas missionárias que
por ali se estabeleceram e fomentaram temas a respeito da educação escolar indígena. Este
trabalho situa de modo interessante o tema de unificação dos alfabetos e explora as
dificuldades que se apresentam em tal processo. Por fim, ao leitor interessado no debate mais
recente sobre a problemática do não isolamento linguístico do idioma ticuna, conferir o
trabalho de Orphão de Carvalho (2011), quem primeiro propôs a relação de proximidade
ticuna-yurí, grupo indígena que ocupou a margem esquerda do rio Solimões até o século XIX.
O linguista examina um conjunto de 25 palavras do ticuna atual com o vocabulário que
aparece em Martius (1867) e os dimensiona comparativamente aos dados apresentados por
Curt Nimuendaju (1972[1952]). Posterioremente, esse debate é retomado em 2013 por
Montes Rodríguez e Goulard, os quais, ampliando o material mencionado de comparação,
reiteram a hipótese do não isolamento da língua ticuna.

Grafias

De acordo com a cartilha ticuna desenvolvida no Brasil e usada como apoio neste
trabalho e no aprendizado do idioma indígena, a língua possui 16 consoantes e 6 vogais,
sendo que as vogais carregam o tom e podem, ainda, incluir características como nasalidade e
laringalização (Nailson, I. & Cavucens, S., 1985). Apenas em alguns casos utiliza-se o acento
agudo para indicar a diferença tonal existente entre palavras. E a nasalização é indicada por
um acento til sobre a vogal e a laringalização não é representada na escrita.

Consoantes

b, c, d, g, m, n, nh, ng, qu, r, t, tch, w, y, '

Vogais

a, e, i, o, u, ü, *

c** pronuncia-se como o som inicial da palavra copo em português

qu pronuncia-se como o primeiro som da palavra quilo em português

tch pronuncia-se como o som inicial da palavras tia em português

y pronuncia-se como som inicial da palavra dia em português

w consoante que pode ser pronunciada como o último som da palavra mal em português

' é uma consoante que consiste de uma pausa, causada pelo fechamento da glote

ng pronuncia-se como o n de manga em português; em Ticuna o 'g' não soa

ü é um som entre 'i' e 'u' e que não se encontra em português

* Há casos de palavras ao longo do texto em que escrevo utilizando ǖ, segundo a grafia


utilizada pelos interlocutores.
**Há casos em que as palavras são alternativamente marcadas pela letra K, especialmente
tratando-se de redes de interlocução peruana ou sujeitos que foram alfabetizados neste país.

Convenções

* Ticuna

A opção pela grafia do nome da etnia Ticuna com C e não K é decorrente do modo como
majoritariamente os interlocutores que compõem a rede de diálogos desta tese o empregam.
Assim, sempre que desta forma aparecer, corresponderá à informações levantadas por mim
junto aos interlocutores. Eventualmente, haverá ao longo do texto algumas citações nas quais
a grafia é variante, usos estes em que estarei seguindo a proposta dos autores referidos, de
acordo com a citação.

*Apresentação de dados, glosas e traduções

Sempre que se estiver citando falas, conversas, expressões, menções, conceitos e palavras de
meus interlocutores, em português ou na língua indígena, estas estarão “entre aspas” e em
itálico. Suas traduções e glosas estarão seguidas entre (parênteses). Tal convenção não ocorr
nas citações. Há um glossário ao final do texto, no qual o leitor poderá consultar mais
informações sobre glosas e traduções angariadas em campo e também usos de outros
etnógrafos para correlações. Para remeter o leitor ao glossário indicarei *.

Identificarei os respectivos interlocutores, períodos e contextos de conhecimento das


informações referidas, usando-se também dos recuos indicados nas normas de formatação
ABNT. Sempre que alguma palavra em ticuna esteja mencionada fora desse padrão, é o autor
que a emprega, não se tratando de uma citação.

* Sempre que estiver utilizando ticuna estarei referindo-me às pessoas que compõem este
texto para diferenciar o uso de Ticuna, para aludir ao povo indígena; ticuna também opera em
alguns casos como adjetivos, segundo as normas de usos de etnônimos indígenas sugeridos
pela Associação Brasileira de Antropologia.




















Sumário

Prólogo 22

Introdução 50

Primeira Parte:
“Para lembrar-se” 80

Capítulo I
Do início do “sexo malfeito” e os “males do mundo”. 81
Para lembrar-se 82
1. Na’ane, “nosso mapa” 84
1.1. Antes do “sexo malfeito”, a indiferença 89
1.2. Do desejo do sexo, os “males do mundo” 91
2. Gestação, os múltiplos e as oposições criativas 93
2.1. Womãtchi 94
2.2. Da pescaria à afinidade 99
2.2.1. O povo Magüta 100
3. Sangues, os “males dos corpos” 103
3.1. Sangues generizados 106
4. “mã’ǖ, corpo no tempo” 109

Capítulo II
Relações, parâmetros e aberturas. Aprendendo a casar. 117
Da pescaria ao parentesco 118
1. Sabores e diferenças 121
1.1. Nações 122
2. Aberturas e movimentos 125
2.1.“Gente de baixo, gente de cima: misturas de jeitos e saberes” 126
3. Relações no tempo, relações no espaço 129
3.1. Patcha 129
3.2. Tanü 131
3.3. Pa’mai 133
4. Aprendendo a casar bem 134
5. Petchica, “lugar do casal, da família do fazer parentes” 138
5.1. O casal 138
5.2. “Família” 142
5.3. Famílias e configurações político-espaciais 143
5.4. Yora 148
5.5 Nigü, “o compromisso” 149
6. Buscando cônjuge 149
Segunda Parte:
Alterando-se na mistura 155

Capítulo III
“Woca”. Fazendo-se “ticuna legítimo, ticuna ticunado”. 156
Abrindo-se, “capturando jeitos” 157
1. Awane 159
2. “Casamentos com gente de fora para fazer aldeia” 161
2.1. Relações – Lurdes e Plínio 164
2.2. Negociações 167
2.3. Efeitos 169
3. Fazendo-se parente 171
3.1. “Marcando nações”, criando relações 173
3.2. Reconhecendo quem é parente 175
3.3. Tornando-se gente, parente 177
4. “Legítimos” e “ticunados” 180
5. “Pegar no jeito ticuna” 186

Capítulo IV
Casando-se com “gente de fora” 189
“Gentes de fora”, gradientes e estatutos 190
1. “Se casa melhor desse lado do rio” 193
1.1. Gradientes 197
2. “A gente transforma marido” 198
2.1 Relações – Juan e Constância 198
2.2. Negociações 201
2.2.1. “Tempo de prova” 204
2.3. Efeitos 207
2.3.1. Fazendo inveja nas parentas 208
3. “Morando com o inimigo” 209
3.1. Relações – Anita e Pablo 210
3.2. Negociações 214
3.3. Efeitos 217
3.3.1. Provedor, mas não parente 219
4. Das mulheres que “amansam maridos” 220
4.1. Transformar 224

Capítulo V
Sobre casar na igreja. Dos “parentes pecadores” e “parentes womãtchi” 227
Do casar na igreja, versões do sexo malfeito 228
1. Dos “parentes pastores” 230
2. “Das vontades do sexo” e virgindade 236
2.1. Relações – Fernando e Isara 237
2.1.1 “virgindade” 240
2.2. Negociações 241
2.2.1. Honra, documentos e conselhos 245
2.3. Efeitos 247
3. Das vontades do sexo e womãtchi 247
3.1. Relações – Juraci e Luis 248
3.1.1 Dos “consertos” e fugas possíveis 248
3.2. Negociações 251
3.2.1. Yereu 252
3.3. Efeitos 255
4. “Parentes poluídos, palavras que combinam” 256

Terceira Parte
Antíteses de si mesmo. 262

Capítulo VI
Sobre ser solteiro ou “parente vazio”. 263
Sobre jeitos de estar no mundo
1. Ngemâ: quando casar não é intenção 266
1.1 Relações – Nguyaeccü 266
1.1.1. “O namorador” 269
1.1.2. “O procurado” 272
1.2. Negociações 274
1.2.1. Em busca de marido 275
1.3 Efeitos 278
1.3.1. “Parente Vazio” 280
1.3.2. “O parente com jeito errado de ser homem” 283
2. Quando casar não é possível 286
2.1. Relações – Ezaquia 286
2.1.1. “Até quero casar, mas como esposa” 287
2.1.2. “Parente Vazio” 288
2.2. Negociações 290
2.2.1 “Virar mulher” 293
2.3. Efeitos 294
2.3.1. Dos prazeres e orifícios 296
3. “Ser solteiro” porque “vazio” 298
4. Fluxos relacionais, “jeitos de ser homem”, “jeitos de ser mulher” 300

Capítulo VII
Sobre estar “casal de mulher”: 305
Dos “amores proibidos” e dos “romances vigiados”.
“Do amor proibido, “romances vigiados”
1. Do “romance de prima com prima” 308
1.1. Relações - Darü'püuna e Mutchique’ena 309
1.1.1.“Casal sem casamento” 311
1.1.2. “Disfarces” e fugas 312
1.2. Negociações 316
1.2.1. Do sexo dos termos 317
1.2.2. Do problema do mesmo sexo 318
1.3. Efeitos 320
2. “Amores disfarçados” 322
2.1. Relações - Botchicüna e Metchicüna 322
2.1.1. Dos amores, políticas e prazeres 324
2.3 Negociações 325
2.4. Efeitos 327
3. “Casal de duas mães?” 329
3.1. Relações - Waire’ena e Tchori 329
3.1.1. Do casamento 332
3.2. Negociações 332
3.3. Efeitos 334
4. Dos casamentos pretendidos, “jeitos de ser mulher” 336

Epílogo 342

Bibliografia 352

Apêndice 371

Glossário
22

Prólogo

Da pesquisa, das relações iniciais

Era fevereiro de 2012, Manaus, centro da cidade.


-“Então a senhora não é da praia, veio sem recomendações? ” De tal modo
expressou-se Luis, irmão de Adriano, ambos jovens homens Ticuna, residentes nesta cidade
há longos anos, por conta de seus engajamentos na política indigenista e, por isso,
funcionários de uma ONG sediada na capital manauara. Luis prossegue informando que se
eu fosse da “praia”, possivelmente, saberia de antemão mais das “histórias de casamentos”
que envolviam seus parentes vivendo nas margens do rio Solimões. Ademais, acrescia o
rapaz, que eu não teria chegado por ali “sem recomendações” e perguntaria, talvez, de
outros assuntos, como tratavam de esclarecerem-me os irmãos, desde suas experiências com
os enredos de pesquisas antropológicas por ali haviam sido desenvolvidas anteriormente.
No decurso desta conversa, realizada para com eles com o intuito de me organizar
para “subir o rio” pela primeira vez e chegar a Rio Bonito1, onde buscaria providenciar
possibilidades de diálogos com outros indígenas, que como eles, viviam no universo das
“vontades”. Expressão que, como explicavam, refletia um dilema que me atraia para o
campo, a saber, de estarem seus relacionamentos conjugais situados “entre as negociações
das regras e dos afetos”; “das regras de como se deve casar bem na cultura”, praticando a
exogamia clânica, e “as vontades de se estar junto de quem quer”, que circunscreviam
outros fatores e princípios morias e sociopolíticos à produção de alianças matrimoniais e
políticas que conformam o casamento.
De Adriano, logo após tais afirmativas de seu irmão, eu ouvi a seguinte
provocação que me situaria, inicialmente, no complexo contexto relacional entre eles e seus
“parentes ticuna com os antropólogos e seus trabalhos”. Assim anotei, no primeiro diário
de campo desta pesquisa:
“Casamento e negociações? Por quê desse interesse, professora? Eu, que
estudei na cidade, sou criado em família de professores e lideranças, de
gente que andou por aí com os antropólogos, não conheci ninguém ainda
querendo saber de como se vira gente casada. Ou não. Como a dona imagina


1
Fundada em 29 de janeiro de 1898, o município encontra-se à mais de mil quilômetros de distante de Manaus,
sendo seu percurso realizado por via fluvial, tardando oito dias subindo o rio, ou em avião, cuja duração de
viagem é de aproximadamente uma hora e meia.
23

que a gente escolhe nossos companheiros? Já ouviu dizer das regras das
nações, de casar bem entre pessoas de clã diferentes, não mesmo? ”

Lhe respondi que sim, que já havia conhecido excertos dessas teorias indígenas de
troca e aliança que circunscrevem o sistema de parentesco indígena ao ler outros
antropólogos. O rapaz, então retrucou, rindo e bastante à vontade enquanto tomávamos um
quente tacacá apimentado, num quiosque no centro da cidade: “e o que a dona pretende
conhecer, aprender e escrever com os assuntos do casamento? ” Sem muito hesitar, lhe
afirmo com certo tom de indagação reversa, que, se fosse para subir o rio e realizar pesquisa
entre seus “parentes”, no alto curso do rio Solimões, meu interesse seria de conhecer o que,
além das “regras das nações” e o princípio de troca matrimonial exogâmica, haveria de
interessante para contribuir com esses aparatos sobre o sistema de parentesco em tela, desde
as perspectivas e análises deles próprios sobre as “tais vontades”. Disse-lhes, portanto, que
me interessava por conhecer estes dilemas por eles comunicados entre as “regras” e “os
afetos”.
Adriano, o mais velho dos irmãos, em certa altura da conversa, confirma que há
“muito mais para saber” sobre os casamentos e suas “negociações” do que os “saberes dos
antigos”, referindo-se especificamente ao dispositivo das “regras de casar bem”, apenas
observando se os “clãs se cruzam certo”, estando “cada um [dos cônjuges estaria] de um lado
da negociação”. Ao incitá-lo no assunto, Adriano logo diz que a dimensão dos “afetos” e
“vontades” inscritos nas “negociações”, ao que se referia, em poucas palavras, “aos jeitos dos
parentes aprenderem a fazer cultura sem estarem isolados dos jeitos dos brancos”,
“misturando” valores e referentes relativos “aos jeitos certos e errados de fazer casamento e
vida de marido e esposa”. Com efeito, diziam-me eles, e posteriormente presente em outras
situações etnográficas, “pegamos dos civilizados os jeitos de fazerem suas políticas, suas
culturas, suas religiões e jeitos de organizar a vida entre os seus, para entre nós,
aprendermos o que é fazer parente feliz”.
Luis com isso aclara a proposição que interseciona noções indígena de troca e
aliança acrescendo que dos referenciais exógenos que alimentam noções sobre modos de
casar – à exemplos mencionados, “homem com homem”, “mulher com mulher”; “gente
ticuna com gente de fora”; “casar na igreja”, “casar no papel” – há um regime interno de
transformação em curso que alia “os jeitos da política dos brancos” em suas próprias
“medidas de fazer jeitos ticuna de ser”. Uma dessas capturas da alteridade em questão está
infletida, então, nos próprios processos de “negociação” de pesquisas, além e aquém do tema
24

dos casamentos. Luis dá continuidade à sua prosa comunicando que havia conhecido a outros
pesquisadores e afins, cujos interesses, diferentemente aos meus, direcionavam-se às
problemáticas rituais, dos processos de educação escolar e de formação de professores
indígenas bilíngues e, nessa arena de debate, as implicações das políticas de educação
diferenciadas2.
O mesmo colaborador complementava dizendo que havia outros “parceiros”
interessados em conhecer questões envolvendo outros âmbitos das formas de socialidades
com os exteriores não ticuna e as capilaridades de poderes, de saberes, agências e atores
diversos que entre seus parentes e suas instituições locais – como àquelas voltadas à saúde, à
política indigenista, a problemática fundiária ou da conversão religiosa – ganhavam seus
fluxos e campos de atuação. Ou, como Adriano sintetiza, estas relações de socialidades “entre
interesses dos antropólogos e os indígenas” haviam se tornado “temas de pesquisa que
querem saber dos problemas de política dos Ticuna com os outros índios e com os brancos,
que estão se fazendo, nas misturas de saberes, parceiros ou inimigos” 3, demarcando, pois,
um longo percurso de colaboração.
Luis, ao ouvir atento as reflexões de seu irmão, expõe também, porém noutra
escala política, alguns enredos que alicerçam suas reservas e certa surpresa em relação ao meu
interesse, incentivando, de certo modo, levar a cabo o trabalho: “se é para fazer pesquisa
sobre os jeitos de ser Ticuna, veja como são os muitos jeitos de pensar nos casamentos”. A
partir disso, era preciso dimensionar estes temas no que eles significam nesse “mundo de
misturas de saberes” que envolvem “as histórias de conversas e diálogos com outros
pesquisadores e os jeitos de ser nos beiradões”, nas sociologias regionais e “histórias” de
colonização da região.
Uma dessas formas de socialidade com os exteriores e introjeção da alteridade
está infletia, então, nos próprios processos de “negociação” de pesquisas, quando eles, ao

2
Para referências às diferentes expressões de organização política e intersecções com as problemáticas da saúde
e educação em contextos territoriais ticuna no Brasil, cf. Gomes Gruber (1998), Ertal (1998, 2001), Nunes Cruz
(2011), Paladino (2006).
3
A região do Alto Solimões e os Ticuna tiveram lugares como objeto de reflexão antropológica, marcadamente
registrado por uma agenda de engajamentos políticos institucionais, alguns especialmente voltados à
compreensão das relações e efeitos dos processos coloniais e os repercussões do regime tutelar no interior de
suas formas organizativas. Dentre estes destaco alguns versando sobre a relação política entre as linhas de
fronteiras e identidades, para citar alguns: Alviano (1945); Porro (1992); Zárate Botía (2003); Cardoso de
Oliveira (1996, 1999, 2002); Oliveira Filho (1977, 1988); López Garcés (2000, 2003); Macedo (1996, 1999);
Goulard (1994, 2000, 2003, 2005); Magalhães (2014); Almeida (2011); Faulhaber (2007); Faulhaber & Toledo
(2001); Fritz (1981); Pereira (1999). Além destes, sugiro ao leito interessado em aproximar-se dos processos de
territorialização e fronteiras ler a coletânea de artigos organizada por Zárate Botía “Fronteras, Territorios y
Metáforas” (1993) e Aponte Motta (2011). Para dados complementares sobre a presença indígena na região cf.
Ricardo e Ricardo (2011). Dados sobre sobre mobilidade, gênero e sexualidade cf. Olivar Nieto; Melo & Rosa
(2015).
25

proporem novos caminhos etnográficos de entendimento ao parentesco e suas dimensões


sociopolíticas, aliam inevitável e criativamente dois planos de geração de regimes de
conhecimentos, ou ações simbólicas diferenciantes: por um lado, um sistema de troca e
alianças embasado nas regras convencionais de exogamia e evitação do incesto, do
“womãtchi”, um modo de praticar “sexo malfeito” e, com isso provocar infortúnios e
contextos de instabilidades e, por outro, um sistema de troca e alianças colocado à prova das
dimensões pessoais e individualizantes, quando noções de “sexo malfeito” transformam-se em
variações de “pecado” relacionados à valores de “virgindade” ou problemáticas afetivo-
sexuais de “casais de mesmo sexo”.
Decidir pelo tema dos casamentos e suas tramas de negociações, para eles e para
mim, resultava defrontar-se com um universo indígena em que valores morais e políticos
dissonantes em pleno processo transformacional, culminava, pois, noutras facetas
socialidades, conformando as micropolíticas do parentesco num objeto que extrapolava um
estudo sobre as dimensões estruturais e terminológicas de troca e aliança, que se materializa
nas relações matrimoniais. De acordo com eles, “assunto” de pouco interesse antropológico.
Para eles, neste sentido, outro aspecto ético-metodológico relevante para a minha
pesquisa era a de buscar diálogos intergeracionais entre seus parentes para conhecer sobre os
“casamentos” e as “negociações” que os constituem, quando mencionaram certeiros:
[…] há aqueles pesquisadores que acham que os mais antigos, nossos
velhos, é que contam o mais certo da cultura; deixam os jovens de fora das
conversas. Ai, não se conhece como os casamentos e as negociações se
transformam. Há gente antropóloga que ignora os conhecimentos, as
misturas de saberes; mas já têm pesquisadores de fora que chegam sabendo
que têm pesquisadores ticuna; e falamos isso para a dona é porque tem a ver
com o nosso jeito de ensinar vocês sobre como nós fazemos nossas
perguntas, para ajudar vocês a entenderem bem as coisas. [...] Uma dessas
perguntas é saber porque se casa, como se faz para casar e com quem e de
que modo se pode fazer compromisso”.

O resultado inicial dessa proposta conduziria a produção de dados nos quais


perceberíamos justamente a dinâmica transformacional em jogo, quando

[...] Cada um hoje tem um jeito de ser índio, eu penso assim. Há outras
coisas acontecendo na vida dos índios, que não só isso de política de
casamento bem feito porque é tradicional na regra de cruzar os clãs certo; ou
26

errado porque casou com gente de mesmo clã. Hoje é índio com branco,
homem e mulher, mulher com mulher, homem com homem; tudo isso já é
assunto de casamento e negociação. Vai vendo, dona. Disso daí só indo lá
para o Alto Solimões para aprender. Casamento tem a ver com isso, com
muitos jeitos de ser Ticuna, de ser fazer parente nessa vida”.

***
A partir dessas primeiras imagens do campo, o locativo a mim direcionado, “da praia”,
como categoria êmica, parece estar se referindo a uma rede de pesquisadores vinculados,
direta ou indiretamente, ao Museu Nacional/UFRJ, no Rio de Janeiro, cujo trajeto de
pesquisa e engajamento neste âmbito está respeitosamente demonstrado em campo por
parcela daqueles que se tornaram (também) meus interlocutores e aceitaram tecer comigo
outros diálogos. Adriano e Luis, cujo pai, José, e alguns tios, paternos e maternos, são
alguns desses expoentes, “antigos pesquisadores”, colaboradores durante muito tempo “dos
parceiros da praia”. Ambos, no tempo de produção desta pesquisa estavam agora noutra
posição reflexiva, “com outros saberes” acumulados.
Os irmãos, com base nisso, situavam-me também em um circuito alheio à essas
relações mencionadas, a Unicamp, alguém chegada “de São Paulo do Sul”. Luiz e Adriano
comunicavam-me através disso então, a respeito de certas agendas e “parcerias”, que em
vários momentos do campo iriam mediar e contextualizar os caminhos de “negociação” que
eu mesma precisaria enfrentar, ao compreenderem que meus interesses de pesquisa
dirigiam-se à outros temas e interesses, em várias perspectivas, distanciadas daquelas com as
quais, nesse longo trajeto de diálogos e intervenções, eles e seus “parentes” vinham
traçando as tais “parcerias” e construindo juntos horizontes possíveis de interpretação e
análise de seus próprios contextos de vivência.
Assim, eu entendia que eles estavam, àquela altura, avisando-me previamente de
que portas, talvez, se fechassem mediante a escolha do tema de pesquisa, o que me parecia
compreensível e urgente respeitar. Com efeito, tudo o que se lerá daqui em diante sobre os
casamentos e as micropolíticas relacionais que o envolvem enquanto uma possibilidade de
leitura sobre o parentesco indígena em tela teve como pressuposto epistemológico fazer da
experiência de campo um modo de “participação”.
Ao modo exposto por Favret-Saada (1990:157), o sentido empregado à
participação foi aqui perspectivado como um instrumento de conhecimento. Nesse sentindo,
seguindo com a apresentação das relações que resultaram nesta tese, ouvi de José, pai dos
27

irmãos acima referidos, já em Rio Bonito em julho de 2012, a seguinte sentença, quando
com ele, eu resolvia assuntos da tramitação das autorizações necessárias à realização da
pesquisa: “aqui antropólogo não faz pesquisa sozinho. Aqui se faz trabalho junto com os
Ticuna, no nosso jeito de fazer pesquisa”.
José, à época do campo, residindo numa aldeia aos arredores de Rio Bonito,
ocupava a posição de chefia política como “importante cacique” da aldeia na qual morava e
onde minha inicial rede de interlocução iniciara-se. Com ele, fui apresentada à outras
“autoridades ticuna”, algumas das quais também mulheres, já expandindo os horizontes de
diálogos e pontos de vista sobre os quais comentavam os irmãos supracitados ser necessário
incorporar. Levando a sério a provocação e incentivo desses últimos, como já dito, os
primeiros colaboradores ticuna nesse trabalho, “era vez de novas pesquisas, novas gentes
[Ticuna e não indígenas] fazerem história e explicar sobre jeitos de ser nos beiradões do
rio”; “de falar dos jeitos certo ou errados” de produzir conjugalidades e as implicações
delas nas tramas das composições das alianças afetivo-políticas mediadas pelo casamento.
Este último, desde as incipientes conversas em Manaus até o final do último campo, em
dezembro de 2014, foi descrito como “compromisso de se estar junto de alguém e com seus
parentes”, aqui tratado, por isso, como vínculo-aliança, como se descreverá doravante.
Poderia trazer ao texto outras tantas anedotas para evocar o tema da pesquisa e
suas relações constituintes, porém selecionei estas imagens justamente por me remeterem à
situações que pouco se lê em outros trabalhos etnográficos, apesar de certo modismo sobre
as relações de simetria intelectual na antropologia contemporânea4. O diálogo entre esses
interlocutores incitado na articulação com o texto já clássico de Favret-Saada remete ao uso
cuidadoso que a autora faz, e que inspira estas reflexões de abertura, do que ela propõe ser
um "procedimento de equivalência" ou de “afetação”. Estes, a saber, seriam reflexões sobre
modo através do qual a etnografia e seu objeto – aqui não a feitiçaria, mas as micropolíticas
de parentesco lidas pelas lentes do casamento e dos muitos jeitos de ser indígena – situam-se
em um mesmo plano de relação, descrevendo mutuamente processos de produção de
saberes, dispondo-se em uma relação recíproca de transformação, seja dos aportes teóricos-
analíticos seja das implicações relaciomais que implicam fazer etnografia.
Esta tese é senão fruto de muitas afetações, quando, tomando de empréstimos as
colocações de Favret-Saada (2005, p. 155, 159), “ser afetado” concerne a uma dimensão
central do trabalho de campo, a de experienciar um "outro lugar", de ser "tomado" pelas suas


4
Cf. Viveiros de Castro (2002b; 2004, 2012) para reflexões similares.
28

"intensidades específicas", as quais, usualmente, "não são significáveis". Não se trata, então,
deste trabalho e da posição de quem o escreve denotar uma relação fusional tampouco de
projetar, por condescendente empatia ou presunção etnográfica, como seria estar no lugar
dos interlocutores, senão de estar nesse lugar e com eles efetivamente. A partir dai, então, de
deixar ser “habitado” por eles, por seus “problemas” e “políticas de vivências”, como
cunham meus colaboradores ticuna e, especialmente neste trajeto, de saber os limites das
descrições e análises sobre suas próprias experiências no entorno do tema do casamento,
sexualidade, troca e aliança.
Para passar à etnografia, estes primeiros constrangimentos abrem, pois, a tese
para colocar, em breves palavras, os caminhos que a configuraram enquanto multisituada e
colaborativa. Este último adjetivo é entendido aqui, particularmente porque a etnografia,
enquanto método relacional, isto é, de conhecimento recíproco, fora produzida ou, nas
palavras indígenas, “feita junto com quem quer, com quem acha bom falar dos casamentos,
dos seus problemas e negociações”, como me recomendara seu José, ao elaborar comigo
um plano de trabalho anexado junto aos protocolos e autorizações. Nesta ocasião, ele me
alertava que o tema de meu trabalho, apesar de “ser um assunto de cultura do povo Ticuna”,
precisaria ter desvelos sérios. Nesse rumo, aprendi com ele, de modo similar ao que ocorrera
ao longo do percurso da pesquisa desta tese junto à outros colaboradores, não se tratar,
primeiramente, de uma etnografia sobre “os Ticuna do Alto Solimões”, tampouco a respeito
de seu sistema de parentesco, descrito através dos casamentos, para esboçar teorias de
relações de troca e alianças. Desde já previno ao leitor deste texto que o tema do parentesco
não é tratado por meio de ferramentas de análise terminológicas, caso seja seu interesse.
Neste aspecto, esta tese assume sua lacuna.
Meus “anfitriões” 5 caracterizaram a proposta de pesquisa como “trabalho de
antropologia para falar dos muitos jeitos de ser Ticuna, falando de casamento e de como se
negocia, de muitos jeitos os compromissos e as brigas de se fazer ou não gente casada e
pensar sobre o sexo malfeito”. Este último, veremos, tido aqui como dispositivo de
sexualidade que intersecciona e estrutura as “versões” ou os modos pelos quais se
transforma as percepções a respeito dos modos de “casar certo ou errado”, nos proporciona
meios empíricos de transitar entre as micropolíticas cotidianas de convivência e seus plurais

5
Cf. Borges (2013) e Prates (2014) quando ambas as autoras, em realidades etnográficas distintas, apresentam
reflexões instigantes sobre pesquisa etnográfica dimensionadas aos efeitos de poder e diferenças gerados pelos
usos conceitos como cultura, relativismo, diferença e universalismo, quando ambas empregam a ideia de
“anfitriões” aos sujeitos de suas pesquisas, como meio através do qual eles mesmos se empenham para livrarem-
se, similarmente aos que meus próprios colaboradores indígenas, dos grilhões que os segregam
epistemologicamente no tempo e no espaço de relações de produção de conhecimento antropológico.
29

regimes morais, portanto de valores e éticas, e o sistema de aliança convencional, inserido


no aparato da “regra das nações”.
Em suma, quero apenas mencionar com isso que aprendi nessas iniciais conversas
em Manaus, à época sem muitas pretensões, e depois em Rio Bonito, onde tudo iniciou-se,
que antes de minha “chegada desavisada”, era preciso saber não apenas de antropologia, mas
como, lá, no Alto Solimões, entre essas redes de colaboração Ticuna, os processos de
produção de conhecimentos sobre modos de vida indígenas e suas interfaces com sociologia
política da região requeriam igualmente “saber das histórias das antropologias sobre os
ticuna e seus antropólogos”, como pontuou certa vez a “pesquisadora” Metchicüna, e deles
com seus colaboradores de pesquisa. Destaco estas imagens do campo porque as entendo, no
que cautelosamente estas figuras de poder explanavam sobre os processos de suas
“parecerias” com os pesquisadores não indígenas que se dispunham a estar engajados por ali,
quando me diziam que se “aprende”, em fim, sobre os casamentos e suas negociações nesse
contexto, “não só lendo antropologia”, mas “ouvindo, conhecendo” as “versões” e os modos
de produções de conhecimento propostos pelos “pesquisadores indígenas”.
O que, em minha leitura e experiência de deixar afetar-me lá, culminou em parte,
no título da tese: “Das misturas de palavras e histórias”. Não apenas no que implica,
veremos, nos pontos de vistas e análises diversificadas sobre o objeto em questão, narrativas
sobre micropolíticas de parentesco, casamento e sexualidade que envolvem as tramas de
conjugalidade e aliança, mas, especialmente, para entender tais intersecções num plano da
conjunturas e contingências conformadoras dos trajetos de cada interlocutor com o tema de
pesquisa que nos colocou em diálogo.

Um trajeto, “uma vida dura”

Conjugando as perspectivas dos colaboradores, pode-se, neste prólogo, convidar o


leitor a entender facetas de uma contextualização sobre situações macrossociológicas que
“marcam” as variadas situações e espaços de vida que conheci no Alto Solimões,
fundamentais à compreensão das micropolíticas de parentesco que nos interessa descrever no
texto. Meus colaboradores autodenominam-se nas duas variantes de igual valor sociopolítico:
“Magüta” e “Ticuna”, e alguns outros como “yunatü ticuna”. Seus territórios sobrepõem-se à
linha de fronteira geopolítica que separa Brasil/Peru/Colômbia e têm o rio Amazonas ou
Solimões como contorno principal ao que se denomina região do Alto Solimões (ver mapa).
30

“No lado brasileiro” dos territórios ticuna, onde se ambientalizou a pesquisa,


estima-se que habitam mais de 46 mil pessoas, distribuídas em cerca de 120 aldeias, inseridas
em 27 Terras Indígenas, segundo dados provenientes da Fundação Nacional do Índio
(doravante apenas FUNAI). No Peru, a população indígena ticuna está estimada em 7.000 e
na Colômbia em cerca de 8.000 pessoas (Cardozo, 2012) 6 . Tal configuração “entre
fronteiras” é decorrente de processos de colonização da região, definida por Goulard (1994,
2000, 2003, 2005, 2009) como “fluvialização e sedentarização”, apresentado como resultado
de deslocamentos forçosamente mobilizados pelos agentes coloniais à parcelas da população
ticuna, e não apenas, movendo-os das áreas de terra firme às ribeiras do rio Solimões e de
seus interflúvios. Tais deslocamentos, de acordo com o autor, são provocadas a partir no
século XVII pelas chamadas “correrias”, inicialmente desencadeadas com a presença das
missões jesuítas da coroa espanhola e portuguesa à região7.
Numa revisão cuidadosa destes dados em congruência com as perspectivas
indígenas, Cardoso de Oliveira (1972), e especialmente João Pacheco de Oliveira Filho
(1977, 1988)8, no quadro de pesquisas realizadas por pesquisadores brasileiros, passamos a
ler os efeitos desses processos enquanto “territorialização”, resultantes de ações de
intervenção não apenas nas paisagens, mas nos modos de vida indígena, no cerne do qual, de
modo exógeno, os Ticuna tiveram suas territorialidades e espaços de vivência definidos,
violados, controlados e circunscritos aos espaços demarcados desde a perspectiva das ações
do Estado e seus projetos desenvolvimentistas, sobretudo a partir dos anos da década de
1950. Com efeitos desses eventos, as expulsões e expropriações de seus territórios
originários culminou, como descrevem os autores supramencionados, nos abandonos das
vidas em malocas plurifamiliares para organizarem-se em comunidades, aldeias e povoados,
que de modo geral, impelidos, os colocaram em disputa territorial com outros grupos
indígenas que, que em similar situações, habitavam a região, especialmente os Omagua (ou
Cambeba). Estes grupos vizinhos, atualizam-se na memória dos meus interlocutores, quando
mencionavam que “os Ticuna junto com os Cambeba, os Cocamas, os Kanamari, os


6 Há um expressivo número de produções etnográficas sobre contextos sociais ticuna em “resguardos” indígenas
no lado colombiano de seus territórios, os quais podem ser conhecidos, para citar alguns, em Forero (2010),
Garavito (2007), Moreno (2006); outras leituras interessantes ainda nessa intersecção entre direitos diferenciados
e política públicas versam a respeito de processos de implementação de planos de vida (Vieco, 2013). Algumas
discussões sobre formas locais de comercialização de cultura material e políticas de áreas de proteção ambiental
também nestes contextos vizinhos podem ser lidas em Meza (2013), Sánchez (2008) e Yagüe Pascual (2013).
7
Cf. Para mais aportes sociohistóricos Acuña (1891) Alviano (1945) Fritz (1922).
8
Nestes trabalhos, a principal referência ao universo social Ticuna, convergindo ou atualizando informações,
refere-se à etnografia de Curt Nimuendaju, etnólogo alemão que, em 1929, fez sua primeira viagem à região e
que lá faleceu em 1959, enigmaticamente, assinado (Cf. Faulhaber, 2010, 2013) .
31

Wuitoto, tudo sofreram com a chegada dos civilizados”, marcando, contudo, suas
singularidades, ao afirmar que “Ticuna é mais forte, venceram muitas batalhas. Se
transformaram nos jeitos de ser, e hoje é a maior população daquele rio”. É, contudo,
apenas a partir do início final do século XIX que a ocupação definitiva das ribeiras do rio
Solimões, em ambas as margens, provoca novos processos de disputas territoriais, agravadas
pela instalação das empresas seringalistas na região, que tomaram a mão de obra indígena
como suporte principal (Cardoso De Oliveira, infra; Oliveira Filho, infra).
Como situam Luiz e Adriano, a partir das narrativas que conservam de seus pais,
“a seringa marca o jeito Ticuna de fazer autonomia”, quando dimensionam tal processo
violento às emergências das primeiras organizações indígenas, muitas delas associadas, mais
uma vez, aos deslocamentos no território transfronteiriço. Desta vez, porém, em “fugas dos
patrões”, “do serviço na seringa e dívidas nos barracões”. Nessas conjunturas os “duros
trajetos de vida” mediante o contato, a partir dos anos iniciais da década de 1940, marcado
pela instalação do primeiro Posto Indígena do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) na região
e, mais tarde, a partir dos anos finais da década de 1950, com a atuação das missões da
Igreja Batista, atenuam-se parcialmente os processos de exploração da mão de obra
indígena, entretanto não do esbulho de seus territórios. Essas mudanças sociopolíticas
provocaram certa vez a afirmação derradeira de seu José de que “a selva virou cidade”, e,
com efeito, os “jeitos de fazer cultura” também foram se modificando, e “os Ticuna
começaram a aprender e domar os brancos, os civilizados”.
A partir dos anos 1960, incentivado pelos programas de colonização da região
pelo Estado mediante as políticas de proteção das fronteiras, com a criação Comando de
Fronteira Solimões/1º Batalhão Especial de Fronteira, novas estratégias de ocupação e a
estruturação das pequenas cidades e povoados que se formavam ao longo do rio
desenvolveram-se. Instalaram-se neste período os serviços de atenção básica à saúde,
bancos, órgãos do governo, especialmente promovidos pela instalação do exército de
fronteira e seu corpus militar, que na perspectiva de de seu José, por exemplo, operou “para
proteger o que era dos indígenas e que virou problema de fronteiras e Direitos”;
“problemas de nacionalidade”; “de novas regras de aldeia”. “Nesse tempo”, como se
referem em campo, fora “tempo de autonomia”, “de ajudas” e “melhorias de vida” aos
indígenas, que se definem pela possibilidade de terem reconhecidos novas posições entre
aqueles ditos “civilizados”. Os indígenas, ainda que localizados na base da pirâmide social,
como apresenta Roberto Cardoso de Oliveira (1972), passam a ser vistos como grupos
sociais, cujo espaço de atuação residia especialmente no abastecimento de alimentos,
32

gerando, ademais, novas ocupações laborais também vinculados às forças militares, com a
inserção de homens ticuna ao exército. As mulheres, pelo que soube de minhas
colaboradoras indígenas “eram apagadas” destes processos de interlocução, quando nestes
trabalhos citados, as perspectivas sobre tais processos transformacionais eram descritas
majoritatiamente por perspectivas masculinas.
No tocante aos aspectos sobre os territórios Ticuna e seus processos fundiários,
pode-se dizer que estes são reconhecidos e demarcados a partir dos anos 1980, após cenas de
massacres e contendas entre os indígenas e fazendeiros (Magüta, 1988; Faulhaber, 2002).
Momento, então, gerativo à novos espaços de atuação política, simultaneamente para a
emergências das primeiras organizações Ticuna e suas participações nas articulações das
políticas indigenistas de âmbito nacional. Nesta breve compilação, aprendi que “uma
história dura”, como Adriano caracterizava o estado da arte dos processos de contato
continuados e interlocuções com um mundo exterior violento com as diferentes faces do
universo não ticuna, cujas relações projetam-se nas suas próprias lógicas políticas,
transformaram “a fronteira em espaços de convivências na lei deles”, aqui retomada, ao que
entendo, pela chave da diferença produtiva, dimensionada às “políticas de convivências” no
âmbito das quais o tema central deste trabalho se insere.
33

Da etnografia

Em Rio Bonito:
Entre redes de parentes, “romances” e “amores proibidos”

Foto aérea do Município de Rio Bonito. Imagem de domínio público.

Cheguei para iniciar a pesquisa no Alto Solimões e residir em Rio Bonito em


junho de 2012. A população do município é de aproximadamente trinta e sete mil habitantes,
dos quais pelo menos onze mil são indígenas, segundo dados do último censo do IBGE de
2012. Estes últimos residem no que localmente se nomina por “área rural”, estando algumas
aldeias e comunidades distanciadas não mais do que quinze minutos em moto do centro da
cidade. Algumas delas são de formações mais recentes, que se conformam, pela morfologia
e mapa do município, “um bairro indígena” – como ouvi dizer um Assistente Social ticuna
vinculado ao CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), no qual era empregado no
cargo de Agente Comunitário Bilíngue.
Eu chegara lá com suporte de um projeto de extensão9 vinculado à Universidade
Federal do Amazonas, no campus ali presente, no âmbito do qual estava uma de minhas
primeiras interlocutoras mulher, Tutchiãüna. Ali residi por seis meses, na cidade, em casas
de amigos, não nas aldeias nas suas adjacências, onde começara a tecer minhas redes de
interlocução. Entre junho e dezembro de 2012 realizei a primeira etapa do campo, toda ela


9
Observatório da Violência de Gênero no Alto Solimões, à época coordenado pela antropóloga e discente Flávia
Melo, e no âmbito do qual eu fui colaboradora nas atividades de campo do projeto e formação dos alunos de
graduação nele inseridos.
34

produzida deste modo: visitas às aldeias e comunidades do entorno à Rio Bonito, sempre à
convite ou acompanhada por alguns colaboradores indígenas.
Ao lá chegar, tinha por interesse maior concentrar esforços com uma pequena
rede de interlocução, previamente anunciada por Tutchiãüna, Luis e Adriano, no seio da qual
eu vislumbrava atentar às relações de conjugalidade mantidas e sancionadas entre “casais de
mulheres e casais de homens indígenas”. Contudo e felizmente, as iniciais interlocuções com
esses “casais de mesmo sexo”, alguns deles parentes dos irmãos anteriormente mencionados,
expandiram-se, e, ao final da escrita deste texto, o objeto inicial, centrado apenas nos
matrimônios homoafetivos, ganhou outros colaboradores, outras tantas “versões” sobre o
lugar da conjugalidade e casamento, não restringidos, assim, à esses universos dos ditos
“amores proibidos”, “romances “vigiados” e “solteirices forçadas”, como se configuravam
os relacionamentos assim descritos e tema da terceira parte da tese. Com estes casos iniciais,
logo aprendi que nem toda situação de conjugalidade resulta “casamento de verdade”,
“casamento legítimo”, “reconhecido pelos parentes”.

***
Essa primeira etapa do campo contou com uma rede de interlocução iniciada com
Tutchiãüna, que, ao final, somava vinte e cinco indivíduos indígenas, dos quais, quinze eram
mulheres, muitas delas, parentas daquela. Essas mulheres eram quase todas ligadas por
relações de consanguinidade e afinidade; eram avós, tias, irmãs, cunhadas, noras, primas,
filhas, netas uma das outras, nem todas em situações homoafetivas. Elas e seus demais
“patcha” (parentes) estavam espraiados em três aldeias, “Aldeia Grande”, “Aldeia Nova", e
“São Joaquim”, além da comunidade “Rio Doce”, que é uma extensão destas últimas, e está
em processo de identificação fundiária, no aguardo de sua homologação. Estas aldeias ou
comunidades, para usar o referente local, pertencem ao mesmo complexo territorial. Juntas
elas foram um conglomerado de aldeias, muito próximas, distribuídas de modo contíguo, de
maneira que para chegar em uma delas, por via terrestre, bastava cruzar os caminhos que as
interconectam, observando as placas de identificação alocadas nos limites de cada uma10.
O acesso às comunidades era feito comumente em moto, pois alocam-se, como
dito, relativamente próximas da cidade, tardando, a mais próxima, a Aldeia Grande, a uns dez

10
Aldeia Grande, fundada em meados da década de 1950, contava com aproximadamente 5.862 habitantes,
caracterizando-se como a mais populosa desse complexo territorial; São Joaquim, fundada em 1977, abrigava
novecentos e quarenta e três moradores, organizados em cento e vinte uma famílias; e Aldeia Nova, criada em
meados dos anos 1960, contava com cerca de oitocentas e setenta pessoas, distribuídas em cerca de duzentas
famílias, das quais, cento e quarenta estão associadas à Associação de Mulheres Indígenas Ticuna desta
comunidade, segundo a presidente da mesma, em novembro de 2012.
35

minutos, e mais retirada, Aldeia Nova, a cerca de trinta minutos, em dia de sol. Em dias de
chuva, não me atrevia a encarar as barreiras de lama nas quais se tornavam os caminhos
estreitos e sinuosos de terra batida que ligavam as comunidades e estas ao perímetro urbano11.
Todas elas tinham escolas municipais e/ou estaduais que ofereciam ensino
fundamental e ensino médio à população aldeada; havendo cursos de formação para jovens e
adultos, aos quais, pelo que percebia, atendiam as mulheres casadas, que passavam o dia
envolvidas em suas atividades domésticas, e que nele participavam no horário noturno. Todas
as aldeias desse complexo inicial de pesquisa eram atendidas ainda pelas equipes
Multidisciplinares de Saúde Indígena atuantes no Polo Base, centro referência de atendimento
à saúde nas comunidades e aldeias. Cada aldeia tinha ainda sua própria associação de
artesãos, organizações locais voltadas à formação intercultural indígena e também associações
de estudantes de diferentes níveis; havia igualmente algumas associações de pescadores e de
moto-taxistas indígenas, dos jogadores de futebol e ex-seringueiros.
Em todas as quatro comunidades observava-se uma diversidade de credos e de
instituições religiosas com qualidades diferentes de atuação confessional. Todas elas tiveram
influências direta destas instituições para a formação de suas territorialidades. Pelo visto e
pelo dito, há organizações católicas, com pouca visibilidade, se comparado a expressiva
presença de organizações protestantes – igrejas presbiterianas batistas; organizações
pentecostais – Assembleia de Deus, Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Pentecostal
Quadrangular. Somando-se a esse quadro, há o Movimento Messiânico da Santa Cruz12.
Cada uma dessas comunidades pelas quais eu circulei no entorno de Rio Bonito
tem uma forma de organização política e seu corpus administrativo independente. Desde
2009, com a reestruturação administrativa da FUNAI, os Postos Indígenas (P.I) foram
desativados e alguns ex-chefes de posto passaram a assumir funções nas Coordenadorias
Técnicas Locais, enquanto outros aposentaram-se, restando localmente as figuras dos
“caciques” e “delegados” como “autoridades” políticas e principais figuras de poder, sem
deixar de incluir-se nesse grupo os pastores (todos indígenas e homens), e Agentes Indígenas
de Saúde e professores (homens e mulheres). Cada uma dessas aldeias, em geral, possuíam

11
Pode-se também chegar à elas por canoas, pois todas estão à margem direita do rio. Em poucas ocasiões fui de
barco. Com algumas exceções, muitos interlocutores eram proprietários de motos ou algum de seus parente as
tinham, sendo facilmente providenciado a carona; e quando não me buscavam na cidade, eu ia na carona de
moto-taxistas – daqueles que aceitavam fazer a corrida –, que girava em torno de dois ou três Reais no perímetro
urbano e chegava a custar até quinze Reais, quando o destino era às comunidades indígenas.
12
Para uma cartografia mais completa sobre o tema, contendo o levantamento das instituições religiosas na
região de abrangência desse estudo e a historicidade desta relações, cf. Wright (1999); ver também para
etnografias e análises sobre processos variados de conversão e as inflexões na organização política, territorial e
ritual ticuna: Oro (1977; 1989), Lima (2013), Hüttner (2007) Macedo (1996), Almeida (2011).
36

um cacique e um vice-cacique, a quem também chamam de “capitão”, salientando a perdura


das formas de organização implantada pelos órgãos indigenistas em tempo de colonização e
pacificação (Cf. Oliveira Filho, 1977, 1988).
Se vê em cada uma delas alto-falantes de metal, os quais nominam de “boca de
ferro”. Estas ferramentas de comunicação, alojadas no alto de postes, são interligadas e
conectadas a um rádio, desde onde se pronuncia. Através dele, o cacique faz seu
pronunciamento diário, informando a comunidade das novidades, das agendas culturais,
políticas e religiosas. Ainda assim, essa ambientação não é tão barulhenta e não disputa
espaços sonoro com as motos, principal veículo local, que circulam com bastante frequência,
e cuja procedência, majoritariamente, é peruana, devido ao baixo custo para compra e
manutenção, incluindo a gasolina 13 . Algumas vezes, escutei músicas proveniente destes
aparatos, mas, normalmente, a ambientação sonora desses transmissores presta-se a expandir
as “vozes da igreja e dos caciques”. O seu é, aparentemente, livre a quem precisar, mas opera
simultaneamente como dispositivo de controle moral, quando é usada para anunciar eventuais
furtos à roças, à casas, à galões de gasolina, de canoas, de peixes. O que se resumiu numa fala
de Josefa, num dia em que em sua casa em “Rio Doce”, operaria como meio de “pedir ajuda
aos parentes para controlar os criminosos, os ladrões e sem-vergonhas”. Ações que
variavam muito em termos de efetivação, podendo ser apenas “envio de recados”
repreensivos e “educativos” àqueles identificados como agentes dos furtos ou empréstimos
desavisados circunscrevendo também ações de enunciação de certas “ofensas”, de “palavras
feias” e agressões.
Negociações
“Dona moça, há temas de pesquisa que não gostamos e que não
daremos autorização para senhora pesquisar aqui. Não leva à mal,
mas são nossos jeitos de controlar o que falam e escrevem sobre
nossa cultura”.
O cacique de uma das aldeias, na qual majoritariamente residiam meus
interlocutores iniciais neste primeiro momento de campo, ao expor esta assertiva e
providenciar os trâmites formais para a realização da pesquisa nesse circuito de colaboração
deixou-me evidente que temas que envolvessem estas relações afetivo-conjugais entre “casais
de mesmo sexo” estavam circunscritos num conjunto de “saberes perigosos”.


13
Não há em Rio Bonito postos de gasolina, sendo essa vendida nas ruas, em galões plásticos tipo pet e chegam
custar entre sete e doze Reais o “cocão” (litro), o qual, algumas vezes, fora mobilizado como moeda de troca em
campo. Possuir uma moto brasileira ou colombiana é signo de status nas aldeias.
37

Por tais “saberes perigosos” eu entendo que estas figuras de poder descreviam um
conjunto de ações práticas e simbólicas que envolvem mecanismos de regulação dos corpos e
relações que colocariam o tema da violência físico, moral e psicológica em destaque, ou como
eixo de análise, no que tangencia as sanções à realização da pesquisa tendo como tema central
as relações homoafetivas. “Saberes” que eu entendia estarem sendo controlados e mediados
pela “preocupação” do teor do tratamento analítico, quando, de acordo com estas figuras
indígenas, “poderiam vazar”, de um modo “perigoso”, aos domínios de ações exteriores,
gerando entre eles e seus interlocutores não indígenas, nas diferentes instâncias de diálogo
com facetas do estado – saúde, Polícia Federal, FUNAI, órgão de assistência social do
município –, “trazendo problemas” que, para eles, “se resolve nos jeitos ticuna de fazer
políticas de convivências” 14.
As problemáticas dos “casais de mesmo sexo” e da homossexualidade e as
consequentes implicações nas micropolíticas do parentesco aqui tratadas na terceira parte da
tese, em especial, e que se expandem além desse domínio etnográfico em Rio Bonito, por
opção da pesquisadora, na tentativa de respeitar os receios e solicitações feitas por tais figuras
de poder, neste texto não serão analisadas a partir da categoria de violência. Ressalvo,
contudo, que o tema é pertinente, porque está posto, como veremos, desde as narrativas
mitológicas, e exige, para isso, um exercício em conjunto a ser feito, assumindo a lacuna
etnográfica em relação a sua presença estruturante nas formas de refletir, organizar e atuar em
relação aos matrimônios e à gestão do parentesco no universo dos interlocutores. Utilizo-me,
como uma estratégia narrativa para tratar desses nuances, as falas indígenas, no interior das
quais eles próprios explicitam suas análises a respeito, expondo, desse modo, conteúdos sobre
os quais tenho consentimento.
A complexidade do enredo é demonstrada quando ao solicitar autorizações,
pessoais e aos responsáveis por unidades territoriais nas quais estavam alguns dos
interlocutores em situações de conjugalidades homoafetivas, a negociação de toma-las como
objeto de estudo foi permeada por estes desvelos ao tema de meu interesse inicial. Ouvia, sem
negar certo temor, mesmo que conhecidos, tais relacionamentos não aconteciam, de que era
coisa de indígenas “na” cidade e que eu “precisava cuidar”. Adentrava, deste modo, um
campo de relações interpessoais tensionadas e permeadas por “conflitos”, motivados pela
presença simultânea de referentes políticos, cosmológicos, morais e éticos que relacionavam

14
Aliados ao tema das conjugalidades homoafetivas, assuntos de feitiçaria e mortes, especialmente aquelas
provocadas por suicídios, estavam inseridas nesse conjuntos de informações com as quais eu precisava tomar
“cuidados”. Para etnografias versando sobre estes últimos temas, analisados em diferentes perspectivas cf. Erthal
(1998, 2001), Valdivieso (2005), Cardozo (2014), Magalhães (2014).
38

problemáticas da sexualidade com os sistemas de aliança e valores constituintes das “versões”


de casamentos “certos” ou “errados” que ia conhecendo por ali. “Conflitos”,
“preconceitos”, “brigas de vontades” que se manifestavam em diferentes escalas de
socialidades cotidianas, seja no âmbito das relações entre pais e filhos, destes com as
“autoridades” ou com as redes comunitárias, seja com os campos de relacionamentos
interétnicos.
Segundo anotei da fala do mesmo cacique acima evocado em relação à liberação
de minha presença e trabalho de campo, o mesmo pai de uma interlocutora em situação de
“casamento com outra mulher”, e também pastor, “depois ficam por aí dizendo que os Ticuna
são gays”; “vão dizer que na aldeia a vida é assim, meus companheiros de igreja podem não
gostar”. Ele mesmo, ao colocar-se na berlinda dessa complexidade conflitiva entre valores e
princípios justapostos, afirmava que “nossa história já é marcada por tantas coisas ruins”,
sugerindo, alternativamente, que “melhor, se eu quisesse “conversar disso [dos
relacionamentos homoafetivos], não contar bem de onde saiam as conversas, ai não tem
problema”. Ele chegou a mencionar, na mesma ocasião, sobre os efeitos de uma reportagem
veiculada em 2008, na Folha de São Paulo15, sobre casos de homossexualidade entre seus
parentes, porém em Tabatinga, que gerou uma série de repercussões locais, refletidas, desde
seu ponto de vista, “em problemas com os brancos que trabalham com a gente, também com
os parentes mais religiosos que não aceitam isso”. O que, veremos, casos de não aceitação
destas relações afetivos-sexuais, tem gerados espaços de mobilidade de indígenas para a
cidade, local que diziam-me entender como “lugar de mais liberdade, menos conflitos”.
De acordo com o tal cacique, tais parentes “de casamento de mesmo sexo”, são
vistos muitas vezes, pelos princípios morais que os constituem, “misturados aos saberes dos
antigos”, como “coisa de pecado, do demônio”. As reflexões sobre esses eventos, de acordo
com este senhor, bem como sua filha que reside na cidade com a “esposa”, incentivaram a
pesquisa, não destoante de outros muitos colaboradores. Contudo, muitos deles solicitam os
cuidades devidos em relação às identificações, escolhendo muitas vezes pseudôminos,
permitindo que suas experiências fossem parte deste estudo, desde que, eu a fizesse
“mascarando” certos dados que pudessem identificar pessoas, lugares e relações. Mediante
tal conjuntura, nomes das aldeias e comunidades, cidades e outros detalhes são modificados,
sem que os interlocutores deixem de “estar nos jeitos como são”. Estes informes estendem-se
também ao outro circuito de interlocução, apresentado em seguida.

15
Link para a reportagem referida: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2008/07/426640-indios-gays-sao-alvo-
de-preconceito-no-am.shtml
39

Nestes primeiros meses de campo eu não falava, nem era capaz de entender com
qualidade o idioma ticuna, para além de expressões de saudação, agradecimentos e alguns
vocábulos e termos relacionados aos assuntos diretamente ligados ao tema da pesquisa.
Contava, assim, com a ajuda sempre presente e paciente de Tutchiãüna para traduzir e mediar
os diálogos com quem desconhecia o meu idioma, ou que não queria se expressar por meio
dele. Paulatinamente, fui aprendendo algo do complicado idioma indígena, ao mesmo tempo
em que eu ganhava mais tradutores, multiplicando, assim, os pontos de vista sobre o tema do
casamento e tudo o que o envolvia nestes contextos de interlocuções iniciais.
Foi nesse ampliamento dos horizontes de interlocução e especialmente da
qualidade de comunicação, que as relações de confiança geradas com o tempo de
convivência, permitiram apreender os delicados meandros sobre os quais Luis e Adriano,
ambos com relacionamentos “disfarçados”, alertavam-me, antes mesmo de chegar ao campo
entre seus parentes. Ambos os irmãos, casados com mulheres ticuna na aldeia de origem,
assumiam-se, em Manaus, “homens que casam com mulheres para disfarçar”. A
complexidade político-moral incutida nessa ambígua relação de “disfarces” das identidades
de gênero, segundo eu ia conhecendo, denotava uma série de problemáticas envolvendo
questões associadas aos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo, aqui tratado por mim
como relacionamentos homoafetivos, cujos equivalentes no idioma nativo fora-me ensinado
nas seguintes expressões: “nge'e tügürüe nge'e ma taã ti ni'i” (“mulher casada com mulher”)
e “yatücü rü nügürü'u yatücüma na ni'i” (“homem casado com homem”). Respectivamente,
tais conjugalidades produziam a relação “tügümucügü” (“casal de mulheres”) e
“nügümucügü” (“casal de homens”) em contrapartida àquelas “tügümucü” (“casal de um
homem e uma mulher”).
O que se descortinava na lógica desses “disfarces”, apenas entendidas quando
iniciado o campo longe de Manaus e desses interlocutores iniciais, já em Rio Bonito, foi o
cenário de tensas afetações com as quais a proposta de pesquisa precisaria lidar, caso quisesse
leva-la adiante, com o recorte exclusivo dos “amores proibidos” ou “casamentos e romances
disfarçados”. Gradativamente, eu fui compreendendo que o tema das relações homoafetivas e
o objeto de suas análises não poderia ser levado a diante, sem que outros constrangimentos,
desta vez, relacionados com a não permissão explícita de algumas figuras de poder, as
“autoridades indígenas”, ocorresse. Foi, então, por um pouco de sorte e amadurecimento, que
a rede de interlocução foi alargada, dando vida à outros contextos e problemáticas que
envolviam o meu tema de pesquisa.
40

***
Uma segunda etapa de campo presencial em Rio Bonito ocorreu entre dezembro
de 2013 e finais de fevereiro de 2014, quando residia em Tabatinga, e para lá me deslocava,
mantendo as mesmas dinâmicas de pesquisa já mencionadas. Recebia meus interlocutores e
amigos indígenas também nesse período em minha casa na cidade por vários dias, em que
trabalhávamos em traduções, passeávamos, conversávamos e “resolvíamos questões na
FUNAI”, visitávamos parentes adoecidos na CASAI (Casa de Apoio ao Índio), ou que
residiam na cidade; ou simplesmente “dávamos um tempo”, como diziam. Longe de lá, segui
as conversas com alguns colaboradores por telefone, e-mail e redes sociais.

Em Yuatchawa:
“Aldeia pequena”, “aldeia gente que casava certo.”

Imagem frontal de Yuatchawa. Foto de Guilherme Carvalho

A segunda etapa de campo ocorreu entre abril e maio de 2013, somando no total
vinte dias. Desta vez, a passagem pelo Alto Solimões havia sido motivada pelo convite para
acompanhar as atividades de uma Organização não Governamental de Campinas, cujas ações
voltam-se para a área de assistência voluntária à povos indígenas na Amazônia Legal. E, pela
segunda vez, suas ações atenderiam na região atenderiam parcelas da população Ticuna, e
também aos indígenas da Terra Indígena Vale do Javari. A sede desta expedição era na aldeia
Yuatchawa, a cinco horas em lancha rápida (200hpm), descendo o rio Solimões desde
Tabatinga. Eu já tinha ouvido notícias acerca da referida aldeia, mas não a conhecia
pessoalmente.
41

Yuatchawa é uma aldeia ticuna de médio porte, com cerca de quatrocentas e


quarenta pessoas. Pertencente à outra unidade territorial que os antecedentes, a aldeia está
igualmente à margem direita do rio Solimões. Ela está situada à beira de um braço do igarapé
“Santa Sofia”, que a conecta à outras aldeia e comunidades vizinhas, e a “São Vicente”, este
último é um povoado multiétnico, surgido na década de 195016. O povoado é descrito por
muitos ticuna em Yuatchawa como uma “colônia de peruanos”, “como os antigos barracões,
onde se paga e sempre se deve”, referindo-se ao monopólio do comércio e dos serviços
oferecidos e sob administração de membros de uma das antigas famílias de peruanos que ali
se instalou. Por isso, o pequeno lugarejo, apresenta-se como a principal fonte fornecedora de
mercadorias às comunidades indígenas que a rodeiam, em alternativa à cidade.
Cheguei à Yuatchawa para iniciar o campo pela primeira vez, após a passagem
mencionada de abril, nos dias iniciais de julho de 2013. Cheguei com mediação e de carona
com alguns enfermeiros não indígenas, que chegavam à área para trabalhar. Levei comigo
fotos captadas durante a estadia anterior para retorná-las aos donos, como havia prometido.
Esta aldeia, bastante diferente daquelas às quais eu estava tendo contato nos
arredores de Rio Bonito, era pequena, silenciosa, distante da cidade. Yuatchawa oferecia ao
que chegava uma atmosfera tranquila, sem motos, sem músicas em alto volume. Por ali,
apenas em ocasião das visitas ilustres, como fora a “dos médicos de São Paulo do Sul”,
realiza-se o ritual de puberdade feminina mais conhecido deste grupo indígena, a “Moça
Nova”, momentos em que se pode ver muitos com as faces pintadas com os motivos clânicos.
Por ali, apresentam-se como “aldeia de gente crente”. Contudo, como sempre frisavam:
“crente no jeitinho dos Ticuna”. O que se tornou bastante evidente, quando meses depois,
observei um surto de ataques de feitiços acometer muitas pessoas por ali, emanados por um
feiticeiro local, e cuja atuação de “curação” era empreendida paralelamente por xamãs locais
e pastores indígenas.
Foi justamente conversando sobre os grafismos clânicos que eu observava o uso,
mesmo em momentos não rituais, por mulheres mais velhas, depositárias de tal saberes, que
se iniciaram as conversas voltadas ao tema dos matrimônios. Ali diziam-me pintar o rosto
com os grafismos clânicos e ensiná-los na escola para mostrar que Yuatchawa “era aldeia de
gente que casava certo”.

16 É o ponto de referência de chegada à aldeia, a partir dele, em época de seca, tem-se acesso por uma estrada
aberta na floresta; em tempos de cheia, contorna-se o igarapé. Atualmente, com aproximadamente 13 mil
habitantes, o local é resultado de migrações, não apenas de ticuna chegados de outras aldeias nos interflúvios do
rio, atraídos originalmente pelas possibilidades laborais fora dos seringais, onde o regime de trabalho não era,
como menciona Cardoso de Oliveira “voluntários, diferentes das encontradas nos igarapés, onde a mão de obra
indígena é engajada de forma compulsória” (1972: 61-63).
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Explicavam-me que “casar certo” entre os moradores dali “era tradição”, algo
exposto também como “uma regra”. Aprendia que por ali, como dizia um dos mais antigos
caciques e sua esposa, “casar bem é casar com gente de desenho [matü] diferente do seu”.
Citavam, com isso, exemplos de combinações interclânicas possíveis e realizadas por ali,
manifestando conhecerem o que me diziam ser “a regra das nações [clãs]”, enquanto alguns
outros, meio sem graça, respondiam a minha indagação, já intencional – pois sabiam que eu
estava pesquisando os matrimônios entre seus parentes à montante do rio –, que sim, havia
alguns ali na aldeia que não sabiam “bem dessas regras”. Porém, sem necessariamente
denotar um problema de “perda de saberes da cultura”, situando os jovens principalmente,
que vinham aprendendo “outros jeitos de ser e fazer casamentos”. E diziam que isso era
prosa para conversas sobre a “história dos índios” dali, que para conhecê-las, era preciso
tempo para aprender. Com o intuito de aprender, então, escolhi Yuatchawa como um segundo
espaço para a etnografia. No total, foram três estadias em Yuatchawa, duas breves, entre 10 e
20 dias, e uma mais longa, no ínterim dessas citadas, com duração de quatro meses.

***
Logo de início, as perguntas sobre meu estado civil eram lançadas, notadamente
pelas mulheres, com as quais teci aproximações mais intensas e duradouras, deixando no ar
certa expectativa, estendidas aos homens, os jovens e os adultos, de como era possível alguém
viver sem marido ou fazê-lo a tão longa distância. Quando entendiam que eu ficaria ali
“solteira”, que não pretendia trazer companhia para aprender com eles, os mesmos refletiam
sobre as relações matrimonias ali na pequena aldeia. Aprendia através desta diferença que por
ali o tema da solteirice era uma questão central, quando alguns interlocutores que compunham
a rede de convívio de uma de minhas duas “famílias emprestadas” estavam em plena
“negociação de solteirice”, podendo acompanhar certos dramas morais e político no entorno
desta não produção de conjugalidade e aliança.
Sempre muito alegres, meus “parentes de aldeia”, principalmente os mais jovens,
com quem conseguia melhor inserção no início da estadia, posto que compartilhávamos certas
condições sociais, “gente sem compromisso”, fazendo associação, como disse, as nossas
“solteirices”, ajudavam-me, pouco a pouco, a situar-me nas “políticas de vivência”. Ademais,
muitos deles, mas não a maioria, era falante da língua portuguesa, ainda que precariamente,
em níveis “fracos”, como qualificavam, mas fundamental à minha inserção. Quase sempre,
eles preferiam tecer conversas em ticuna, esforçando-se para fazer-me compreender e
ensinavam-me pacientemente seu idioma. Eles ajudavam-me a compreender os contextos do
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lugar, mostrando por onde eu deveria e podia andar, “visitar” e “conversar”, tendo em vista
que estando alojada no seio de um determinado circuito relacional, eu deveria atentar-me às
suas rotinas e às suas políticas de relações. Sem muitas opções laborais ou diversões urbanas
para “curtir”, os jovens saiam para outras comunidades para ver os festejos da igreja ou para
jogar futebol.
A geração entre cinquenta e sessenta anos, especialmente os homens,
apresentavam maior fluência do português, aprendido na escola dos missionários que
frequentaram quando jovens, e também pelas relações com os órgãos indigenistas e
mobilidades entre a aldeia e cidade. As mulheres, em situações distintas, diziam-me que
aprenderam o parco português, quando o sabiam, com os esposos e nas andanças que fizeram
pelos beiradões, muitas delas, quando estiveram trabalhando como domésticas nas casas dos
patrões de seus pais ou familiares, nas cidades. Mais recentemente, algumas delas entre trinta
e quarenta anos estavam frequentando cursos de alfabetização na aldeia.
Em Yuatchawa, como nas aldeias em Rio Bonito, há pequenos comércios,
montados nas casas de alguns moradores, onde se é possível conseguir algumas provisões
alimentícias da “cidade”, quais sejam: arroz, óleo vegetal, produtos de higiene e limpeza, e,
especialmente, guloseimas, farinha de mandioca e gasolina. Porém, estes produtos
manufaturados não suprem as principais demandas cotidianas, e, quando preciso, dirigem-se
em suas canoas ao povoado próximo. Outra forma de aquisição de mercadorias estrangeiras e
manufaturadas sem sair de casa, é fornecida pelos homens peruanos, os “maleteiros”, regatões
que viajam pelo rio, desde Iquitos, percorrendo comunidades ribeirinhas e indígenas
vendendo seus produtos de vestuários, cosméticos, decoração, utensílios domésticos, música,
remédios, entre outros. Exceto alimentos. Alguns desses homens, viajam com ajudantes
indígenas, para auxiliá-los com o idioma ticuna. Com eles é possível ter um sistema de
crediário, mantido através da “palavra” e de registro em “caderninhos”, que carregam os
vendedores e os compradores, com a vantagem de não cobrança de juros, como parece ocorrer
em muitos comércios.
Nas casas que eu frequentava, o alimento consumido majoritariamente provinha
da roça: farinha de mandioca, frutas e tubérculos, cujo manejo era parte notável das atividades
femininas. Este era complementado pela proteína animal fornecida pela pesca e carnes de
caça, muitas vezes de anta, jacaré, cutias e pássaros; nunca macaco e veados cujo
conhecimento e provsão era ofício masculino. Estes dois últimos, contavam-me os velhos
caçadores, era um alimento vetado, porque o veado era uma transformação da onça-pintada,
que em tempos pretéritos, havia comido o pai dos gêmeos míticos, Yoi e Ipi. Em relação ao
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primeiro, nunca soube claramente porque sua evitação de consumo, além de alguns
comentários que aludiam à sua carne propriedades qualitativas “dos brancos” como “seduzir e
fugir”, “trapacear”.
O consumo de “alimentos de fora” expressavam-se no vício “copiado” dos
“civilizados” em relação ao consumo do sal e do açúcar. Para além desses, de uso cotidiano,
nas casas em que morei, apenas nos dias posteriores ao recebimento de recursos advindos de
“salários e benefícios” é que se observava o consumo, especialmente de refrigerantes,
goiabadas, carne embutidas, ovos, calabresa e sucos artificiais em pó. Na última semana do
mês, entre os dias 25 e o dia 30, moradores da aldeia costumava-se ir à cidade referência,
quando “desciam” em “catraias”17 para resgatar salários e benefícios sociais, e “abastecer a
casa”.
Yuatchawa contavam até a última visita em dezembro de 2014, com uma escola
municipal que atendia as demandas de ensino fundamental, duas pequenas igrejas Batistas,
cujos pastores são ticuna, de diferentes gerações. Claramente observava-se ali algumas cisões
políticas associadas às diferentes formas de lidar com a religião no cotidiano do lugar,
notadamente expressa por conflitos de interesse político, quando ali também pastores
exerciam espaços de comando e assumiam relações de poderes em decisões, inclusive
atuando como gestores morais do parentesco, ao “aconselharem” os cônjuges, ou interferirem
em processos de “negociações” de alianças conjugais.
Similar ao que se passa nas comunidades e aldeias em Rio Bonito, em Yuatchawa
não há rede de abastecimento de água e de saneamento básico. A principal fonte de água é o
igarapé que a circunda e a coleta é feita em cisternas improvisadas com caixas d’águas onde
se reserva o que provem das chuvas18. Há luz elétrica, desde 2009, disponibilizada pelo
programa federal Luz Para Todos, mas nem todas as casas a utilizam. A aldeia de Yuatchawa,
de acordo com as narrativas colhidas sobre sua fundação, remonta ao “tempo da chegada dos
pastores batistas gringos [norte americanos]”, entre o final dos anos de 1950 e início dos
anos de 1960. Muito escutava-se, nesta perspectiva temporal, que o tempo do presente

17
Embarcações com capacidade para cerca de 30 pessoas, construídas em madeira. Em Yuatchawa, havia duas
embarcações desse tipo, que ofereciam o translado, cujo valor sai entre R$ 10 e R$ 15 o trecho.
18
A aldeia conta apenas com um poço artesiano, angariado por um indígena de uma ladeia vizinha que se tornou
vereador. Essa é única fonte de água potável de que os moradores dispõem para encher sua bacias e baldes com
água em tempos de seca, entre junho e final de outubro, quando pela escassez de chuvas, o igarapé seca,
obrigando as pessoas a locomoverem-se, em casos mais extremos, à beira do rio Solimões. Nesses meses, nem
mesmo as canoas pequenas, usadas para a pesca, sem motor, movidas à remo, conseguem deslizar pelas águas do
igarapé que a circunda. Este torna-se apenas uma piscina rasa de água escura e barrenta, onde as crianças
dispensam horas do dia brincando e, onde, também algumas famílias, que não se abastecem da água do poço, por
questões de aliança política, a usam para banhar-se e lavar utensílios e roupas.
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etnográfico era o “tempo de agora: de casas de zinco, benefícios, de energia elétrica, dos
parentes crentes e misturas de saberes”.
E ao falarem da aldeia atual, os moradores de Yuatchawa não dispensam
comentários sobre os processos de mudança espacial, morfológica e de recursos econômicos,
que contemporaneamente fazem dali um “tempo do presente”, descrito e concebido como
continuidade dos períodos antecedentes, e como tempo da “mistura de gentes” por excelência.
O tempo dos “antigos casais”, fundadores da aldeia, conjugados com a chegada dos
missionários estrangeiros é, portanto, apresentado como momento referente a fundação mais
recente da atual aldeia, “já sem malocas”. Ela é composta por uma rede de parentela oriunda
dos quatro casais que ali moravam no início dos anos da década de 1950, alargando seus
grupos de parentela, cada qual dando origem aos clãs que hoje ali se vê multiplicar pelos
casamentos efetivados. Estes laços, como me dizia uma senhora, filha mais velha de um
desses casais fundadores de Yuatchawa, são realizados “já no estilo do civilizado, na igreja,
perante a palavra de Tupanae (Deus) ”. E refletindo, ela prossegue, “na verdade, é tudo
junto, bem misturado nosso jeito”.

Negociações

Ao voltar à aldeia após a visita com a ONG supracitada, meio de surpresa, pois
apenas me havia comunicado com alguns conhecidos feitos na primeira passagem, não
demorou a circular a notícia da chegada da “enfermeira de São Paulo do Sul”. Muitos vieram
conferir. Passei o dia inteiro de visitas à essas pessoas, e de em todas as casas ser recebida
com alguma comida ou bebida, etiqueta indispensável na rotina daquela gente. A todos que
visitava e com aqueles com quem cruzava caminhos que interligam os espaços domésticos eu
respondia às indagações sobre idade, nome, e explicava sobretudo às mulheres, de que eu não
tinha filhos e, que, por isso, eu chegara ali sozinha; tentava, no ínterim dessas prosas, desfazer
a impressão de que era profissional da saúde.
Fui convidada a ficar com um desses grupos de pessoas até que os enfermeiros
com quem chegara retornassem à cidade, após suas atividades de vacinação. Nos dias de
chegada por Yuatchawa e depois de reiterado convites para ali ficar e aprender sobre
matrimônios e suas negociações, procurei organizar uma reunião com as lideranças locais, o
que levou quase uma semana para conseguir, e sem muito sucesso. A aldeia havia recebido da
prefeitura da cidade referência à terra indígena recursos para implementação de obras de
melhorias – pavimentação de uma pequena estrada que a comunicava com outra aldeia, esta
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de maior porte e onde ser alocava o Posto de Saúde – e, nesse momento em que eu visitava a
aldeia, as obras estavam a todo vapor. Nela envolviam-se não apenas os servidores
contratados pelo município, vindos de fora, mas também fornecia “emprego de salário” à
muitos homens locais. Entre eles, estavam o cacique e o vice-cacique. Por tal razão, encontrá-
los dispostos a realizar a “reunião” era tarefa difícil, pois chegavam ao final do dia exaustos.
Passou-se uns 10 dias, e tentei retomar as negociações, quando eu anunciava aos
que me hospedavam que melhor era retornar à Tabatinga, onde havia fixado morada para esse
período de campo, que entre idas e vindas da aldeia, e passagens por Rio Bonito, durou nove
meses de campo. Seguia, com isso, a orientação dos coordenadores das Coordenadorias
Técnicas Locais do órgão indigenista, todos nesta ocasião indígenas, para verificar se me
“autorizavam” na aldeia para, então, dar prosseguimento às burocracias previstas. Pois já
quando eu estava me organizando para “pegar carona” com os enfermeiros de volta à cidade,
foi anunciado na “boca de ferro” sobre a reunião com a “antropóloga-enfermeira”.
Reunimo-nos num sábado pela manhã na única escola local, inaugurada pelo
governo do município em 2009, onde “trabalhavam” apenas professores ticuna,
diferentemente do que soube ocorrer em Rio Bonito. Havia sido chamado o cacique e o vice-
cacique, localmente também glosado de “1° e 2° capitão”; além deles, os professores, e os
três Agentes de Saúde local - todos figuras que compõe a rede de lideranças dali, homens e
mulheres. Compareceram, além deles, alguns curiosos e algumas pessoas com quem já havia
conversado antes19. Ali a referência “à praia” e alianças de pesquisa e engajamentos não era
forte. Esse fato denunciava certas lógicas políticas entre os “parentes de cima e debaixo do
rio”, revelando orientações relacionais importantes ao desenvolvimento da pesquisa,
especificamente em relação aos casos de “casamentos de gente do mesmo sexo”, e das
interlocuções dos locais com outros antropólogos e suas próprias experiências em
colaborações acadêmicas.
Nesta ocasião, expus minhas intenções de pesquisa, esclarecendo dúvidas sobre os
objetivos e metodologias de coleta de dados. E, sobretudo, como iria utilizá-los na produção
da tese. A reunião durou mais de quatro horas de conversas, em vários momentos
pronunciadas somente em ticuna e, deixando claro as relações de poder que circunscreviam

19
A reunião foi organizada com a ajuda do “secretário geral da comunidade”, que acumulava outras duas
funções: de pastor e de serviços gerais na escola. E a pauta da reunião tinha, além do meu assunto, a discussão
para organizar os festejos do sete de setembro, que incluía desfile e brincadeiras para a arrecadação de recursos
para a escola. Enquanto isso, minhas “famílias emprestadas” se organizavam para me receber. Além desta
primeira reunião na escola, outra foi feita no dia seguinte, desta vez aberta a toda comunidade, e público desta
segunda não somou mais que trinta pessoas, muitas da quais estavam presentes porque eram interessadas em
obter fotos e material da reportagem veiculada na televisão sobre a passagem dos médicos pela aldeia, que eu
levava cópias comigo.
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minha presença ali, usando-se da língua portuguesa apenas para traduzirem-me algumas
passagens que julgavam relevantes. Pessoas manifestavam-se a toda hora, alguns a favor,
outros contra a minha presença na aldeia. Finalmente, deliberou-se que era permitida a
realização da pesquisa, cabendo para tanto, as devidas providências junto à FUNAI, onde eu
deveria levar a “autorização da comunidade” para ser protocolada, oficializando, então,
minha hospedagem. A partir disso, ficou acertado que a contrapartida de minha estadia ali,
estabelecida pelas “autoridades”, seria auxilia-los na escola, especificamente nas questões
“do Plano [Político] Pedagógico” que precisavam providenciar, além de aulas, “cursos de
redação em português” aos que pretendiam fazer vestibular e exames de seleção aos cursos
técnicos de enfermagem oferecidos na cidade.
Igualmente eu poderia prestar auxílio aos assuntos da escola, ora ajudando
professores na organização de suas aulas, ora os ajudando em questões burocráticas,
relacionadas à execução de melhorias na infraestrutura da instituição, via elaboração de
projetos para a Secretaria Municipal de Educação e outras instituições que achassem prudente
buscar alianças. Isso tudo registrado no “documento de autorização”. E, ainda, me
comprometi a desenvolver junto aos interessados, um pequeno livreto com narrativas “dos
antigos moradores”, com o objetivo registrar neste material relatos que falassem da aldeia,
que iria completar em janeiro de 2014, quarenta e dois anos de fundação. Tal registro
comporia o acervo da biblioteca da escola. O tal livreto segue pendente de finalização, posto
que àqueles que o propuseram realizar junto comigo não deram continuidade às atividades,
logo após minha estadia estar oficializada.

***
Quando na aldeia, eu realizei algumas poucas idas à cidade acompanhando-os e
conheci também algumas outras aldeias vizinhas, caracterizadas como “mais tradicionais”,
“sem igreja”, “lá para o centro”, “no mato sem ver o rio, nem de longe”, como ali, diziam-
me. Simultaneamente, os moradores em Yuatchawa ao caracterizarem-se a si mesmos, como
“aldeia pequena”, já mais próxima dos igarapés que a ligavam ao rio Solimões, diziam-me
comparativamente, ao perguntar como era a vida na cidade e nas comunidades em Rio Bonito,
ser ali “lugar de sossego”, “de gente longe das brigas e confusões”.
Elegi, das cento e onze famílias que conformavam a aldeia até o último campo,
seis para “trabalhar” efetivamente. Cada uma delas traduzidas pelos interlocutores como
grupos de parentela extensa, “tanü”, composto cada qual por diversas unidades domésticas,
que juntas formavam um “petchica”.
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Ao visitar as casas e, paulatinamente ganhar confiança para juntar-me a eles em


momentos outros, buscava desenhar um esboço das redes de parentela, identificar os grupos
fundantes do que me diziam ser a “raiz” daquele local, na tentativa de ter material para o tal
livreto. O que mais, aparentemente, lhes agradava era que eu ouvisse narrativas sobre o lugar;
me envolvesse nas fofocas; que falece sobre minha vida e família na cidade para que a partir
desses outros referentes, eles mesmos tecessem seus comentários sobre “seus jeitos de ser”.
Lograva, com isso, alcançar os conteúdos compositores das relações matrimoniais que
compunham os grupos de parentelas, conhecendo um número de narrativas conjugais em
detalhes, similar ao que ocorria também em Rio Bonito. Conforme também conseguia
autonomia com a linguagem, podia conhecer as trajetórias dos sujeitos com quem dialogava,
homens e mulheres, jovens e adultos, dos quais vários eram de fora, ticuna ou não, que ali
faziam suas vidas e davam ritmo à dinâmica na comunidade. Em Yuatchawa também se
desvelaram casos de intensões de casamentos “entre casais de mesmo sexo”, com a mesma
tônica de “negociação”, ainda que bem menos controlada, que havia conhecido nas aldeias
em Rio Bonito. Dessa maneira, seguindo interessada em conhecer as narrativas conjugais ou
aquelas que comunicassem ensejos de não as contrair, usei como principal ferramenta
etnográfica o convívio diário, visitas às casas da aldeia, iniciando por aquelas cujos donos eu
já conhecia e deles seguia para as demais.

***
Metodologicamente, então, esta pesquisa foi empreendida, do inicio ao fim,
usando-se exaustivamente a etnografia do cotidiano realizada na convivência diária, em
períodos intermitentes de vivência em aldeias, seguindo-se do acompanhamento de rotinas,
dos “casos”, “romances”, “namoros”, “casamentos”, disjunções conjugais, e suas
“negociações”. Especificamente em Rio Bonito, produzi essas relações também nos espaços
citadino nos quais alguns casais de colaboradores, notadamente aqueles cujos
relacionamentos homoafetivos ou incestuosos não eram permitidos em suas aldeias de
origem, encontram na cidade espaços mais propícios para experiênciá-los, sem, contudo,
desfazerem os laços com seus parentes nas aldeias e comunidades.
Trabalhar com tal recurso foi rentável por justamente expor os caminhos gerativos
das relações e, ao conhecê-las, poder dimensioná-las aos efeitos de relacionalidades e
conexidade (Carsten, 2000, 2004) produzidas e qualificadas cotidianamente, ora como bons
casamentos ou seu reverso. Decerto, gerou-se espaços para a observação de tipos de parentes
e pessoas, percebendo uma miríade de termos de parentesco e relação resultantes dos modos
49

de ser em questão. Cabe notar, por fim, que faço uso desse material e de algumas exegeses
produzidas no decurso dos diálogos20, sendo alguns desses registros feitos em áudio, todos
com cópias aos colaboradores. Contudo, majoritariamente, meus dados foram salvos nos
diários e cadernos de notas.


20
Alguns dos excertos são editados, mantendo-se sempre indicação [...] quando minhas, ou de pausas e
“arrumações” de traduções com alguns colaboradores (...). Tenta-se, contudo, não alterar o sentido.
50

Introdução

Do casar, do casamento e os muitos jeitos de ser

- Vocês gostam de falar de casamento, não é?

- “Conversar sobre casamentos é falar de como a gente vive; é falar da nossa cultura
(nacüma*), dos jeitos de ser gente; do jeito que parente está se fazendo no mundo. ”

- Como é casar?

- “Casamento é nigü*. Assim, do compromisso. Jeito de estar com outra pessoa, de virar
parente no jeito de marido (nate), de esposa (namâ); não só deles de casal de homem e mulher
(tügümucü*). Casar faz virar outro tipo de gente, de parente. Aí é deles [do casal] com os
parentes, os patcha. Tem as obrigações, o porã'ãcü, assim, de trabalho, de se fazer na feitura e
na vivência com outros parentes, por isso daí tem nossas políticas de vivências para fazer bem
casamento”.

- E como se faz os casamentos?

- “Aí sempre depende de quem você é. Das vontades de cada um [risos]; [...] os jeitos
de pensar e fazer casamento vai conforme o jeito de ser dos Ticuna por todo esse rio, e somos
muitos, de muitos jeitos, né? Ai para casar certo ou errado, como diz, vai depender da pessoa
que está de prosa com a dona. [...] Cada um vai falando assim a versão dele. [...] não tem jeito
de ser uma coisa só nessa vida, nem de pensar sobre o casamento. [...] vai ter sempre um jeito
errado para lembrar do jeito certo. Daí vem essas palavras dos antigos, dos clãs, do jeito de
ser Ticuna, e como a gente mistura esses saberes por aí. Por isso daí, para pessoa fazer
compromisso que fique bem para todos, tem de verificar”.

- Verificar?

- “ [...] se casa Ticuna com Ticuna, verifica o clã dos parceiros para o compromisso,
para não casar errado e misturar sangue (nagü) muito parecido, de mesmo tipo de gente,
entende? Isso vai deixar poluição (puya) no mundo. Isso no nosso saber é womãtchi, quando
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casa errado no mesmo clã ou com parente que não é o certo, que se cria junto como irmão,
por exemplo. Isso vem do ensinamento dos antigos das regras dos clãs. ”
- “[...] também se verifica outras coisas do jeito da pessoa. O mundo e a vida dos nossos
parentes foi mudando. Hoje o casamento para ser bem feitinho tem que ver com o trabalho da
pessoa, se de salário ou de roça; se tem condições, né, de se sustentar; se tem casa, ou vai
morar com o pai e mãe; se já tá com ou sem filho; se vem de família política importante, de
grupo de parentes de feiticeiros; se é chegado na bebida, na droga; se é da igreja, e qual delas,
porque aqui [na aldeia] temos a nossa, né, ai vai ver se combina os pensamentos nisso dai
também; [...] verifica se a pessoa tá bagunçando por ai; se é bom partido, como diz [risos].
- [...] se a pessoa não é da aldeia, [pergunta-se] de onde vem. Isso vale se casa gente
Ticuna com gente Ticuna, ou gente Ticuna e uma gente de fora, homem ou mulher. Tudo
passa nessa negociação”.

- E o que negocia nos casamentos?

- “[...] Assim parente diz que negocia, no português. Negociar tem disso das perguntas
que a gente faz para saber quem é o pretendente na vontade de se ajuntar com filha, sobrinha;
filho, neto. Verifica se está tudo certinho [risos]. É bom saber se os que querem virar casal são
primos certos para casar ou não; isso é negociar, tem que verificar, perguntar a situação da
pessoa; ajudar a fazer casal para ficar tudo bem entre eles e nós, os parentes, os aliados. ”

- E os muitos jeitos de casar está relacionado com os muitos jeitos de ser, então?

- “ [...] tem jeitos de ser homem, jeitos de ser mulher de muitos tipos. [...] casar é disso
de combinar no que têm de diferente para fazer mais parentes, mais pensamentos, mais
territórios. Casar pode ser no jeito tradicional, assim dos ajuntamentos de casal, só no
conselho do parente que já casou, que sabe orientar; de ir pra casa da sogra ou do ficar com
pai da noiva; pode ser de festa, na igreja; na confissão com os pastor, que verifica também
como está a pessoa e orienta já com os conselhos nas palavra de Deus; pode também casar no
papel [registro civil], ai, desse jeito, o casal se ajunta assim lei dos ticuna da regra dos clãs
com a lei dos brancos, que oficializa noutro jeito o tal compromisso, né [...].”
- “ [...] tem jeitos de ser homem, jeitos de ser mulher de muitos tipos. [...]

- E o sexo malfeito?
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“[...] se negocia junto, para não deixar fazer isso dai, que é o tal womãtchi. A história do sexo
malfeito diz que, primeiro, era um jeito feio de fazer parente, errado, porque mistura gente de
clã igual, ou gente safada que queria casar com a irmã. Isso no tempo dos antigos ancestrais.
Por isso daí o sexo malfeito só de misturar o clã é womãtchi [incesto]”;
“[...] como disse, dona, o tempo muda, o mundo muda, os pensamentos e saberes da gente
mudam. Hoje tem outros jeitos de fazer sexo malfeito: tem parente que namora homem com
homem, mulher com mulher. Um jeito de fazer casal de dois iguais, noutro jeito. Ai uns
dizem que esse compromisso é casamento errado. [...] tem sexo malfeito que aprendemos com
a chegada da palavra nova, da virgindade. Aí vira o pecado, para os parentes crentes, da
igreja. Tem assim também o sexo malfeito porque namora [relacionar-se sexualmente com
alguém] sem compromisso. Isso no pensamento de alguns parentes também é feio, vira
desonra. (...) aí tem negociação de proibição também para esses solteiros que não quer[em]
casar, porque só namora, não querem fazer mais parentes, grupo de aliados, vira namorador
(aãrüã'ẽtchaé). Vai vendo, dona, tem casamento que diz que é um jeito de fazer sexo malfeito
porque parente casa errado com gente sem vergonha, bebum, feiticeiro, peruano, branco. [...]
é assim, sexo malfeito é um saber nosso que veio se fazendo e mudando junto com nossos
pensamentos e jeitos de estar nesse mundo com os outros parentes e conhecendo outras gentes
nesse mundo. Escreve no seu trabalho disso daí, que casar e casamento tem a ver com jeito da
pessoa se fazer no mundo, por isso é de verificar e negociar”.

- Tal processo está relacionado com a “palavra” “ã'caítchi”?

- “ [...] ã'caítchi é transformar, se fazer de jeitos diferentes; de mudar e seguir, assim eu


penso essa palavra no fazer do casamento, do parente. Pois assim é. Dessas diferenças de
jeitos, que já vem do tempo antigo, do ancestral, é que vamos se fazendo nesse nosso mundo
no tempo de hoje. Verificar se vai fazer casamento certo ou errado vai nessas perguntas que a
dona moça está aprendendo que faz compromisso acontecer ou não: tacü i cue’ga? ngure ya
cürü taunecü? nünã'ü da yetücü arü mã'ü? nünã'ü nã'ã pacu aru mã'ü?”
(Pedro, casado, 75 anos, pastor, xamã e “aposentado da roça”; Doralina, 70 anos, casada,
“aposentada da roça”) 21 .


21
Essa conversa teve extensão de aproximadamente quatro meses de diálogos com seu Pedro em conjunto com
sua esposa, Doralina, toda reunida em diário de campo e algumas parcelas registradas em áudio, especialmente
aqueles excertos conduzidos em língua ticuna, e traduzidos por eles mesmos, hábeis falantes de seu idioma,
português e espanhol. Tal conversa é apresentada editada.
53

Estas costumavam ser as perguntas direcionadas pelos interlocutores, sempre que


iniciavam algum diálogo sobre alguém que se ia casar, ou ao menos publicitava intenção. Elas
referem-se, na ordem a cima exposto: “quem é você”, nas variações de traduções mais usuais,
“qual seu nome”, “qual é o seu clã”?; “a idade”; “como é a vida do rapaz [o pretendente]?
” e, “como é a vida da moça [pretendente]”. À estas soma-se outra de igual relevância, de
acordo com as menções de seu Pedro e Doralina: “tacüne yacurü ĩ'ãne?”, aplicada para saber
a procedência, quando um pretendente à aliança conjugal, homem e mulher, não é da mesma
aldeia, comunidade ou grupo de relação, o que inclui ainda “gente não indígena”.
Inicio a apresentação do tema, do objeto e dos objetivos desta tese por elas, à
medida que se expressaram enquanto evidentes e fundamentais marcadores êmicos de
diferença e identificações sociais. Uma vez comunicadas, tais problemáticas orientam os
sentidos e proposições das “verificações” das condições sociais e os parâmetros de
socialidade operativos nas práticas das “negociações” de aliança e troca matrimonial ticuna.
Com efeito, a partir do entendimento dos lugares que estas últimas ocupam na trama de
produção (ou não) de alianças matrimoniais e políticas, tema desta tese, elas revelaram-se
como vetores etnográficos que comunicam os gradientes morais, éticos e políticos de
proximidade e distanciamento necessários à “boa convivência”, e, a partir disso,
direcionaram-me ao complexo contexto de significados plurais, e em transformação, do que
implica casar-se entre minha rede de interlocução.
Desse modo, as “questões existências” (Maizza, 2009) e as problemáticas por elas
evocadas no diálogo preliminar expõem a proposição da tese, tratando-se fundamentalmente
de uma etnografia de “versões” indígenas a respeito do casar (“ni’i”) e do casamento
(“nigü”*). Para tanto, utilizo-me do recurso das descrições de narrativas conjugais em
pretensão, já realizadas ou desfeitas, envolvendo uma rede intergeracional de colaboradores,
circunscrevendo pessoas ticuna e não indígenas. Estes colaboradores são homens e mulheres,
em situações políticas, religiosas, sócio espaciais, linguísticas, econômicas, de nacionalidade
e também sexuais que os atravessam diferentemente e os inserem numa trama de
“negociações” envolvendo suas relações e relacionamentos enquanto “jeitos de casar certo
(meã cü ni’i) ” e “jeitos de casar errado” (tchire cü ni’i) ”. Com este recorte proponho
observar os processos cotidianos que tecem as “negociações” matrimoniais, buscando
conhecer por meios dessas experiências como produzem tais qualificações, explorando-se o
que cada uma revela a respeito do lugar e valor expresso à alteridade e à diferença,
interseccionada às questões de sexualidade.
54

Pontos de partida, teorias etnográficas

Aprendi nos quinze meses de campo que constituíram a pesquisa etnográfica e a


vivência na região do Alto Solimões, alternada entre estes dois circuitos de interlocução
previamente apresentados, que casar e casamentos são formas de relações políticas, afetivas e
sexuais concomitantes. Para os interlocutores, falar sobre suas ocorrências situa-nos
etnográfica e analiticamente numa arena relacional articulada nas tramas gerativas igualmente
de sentidos ao parentesco e suas políticas internas de manejo e produção coextensiva de
pessoas, agentes e parentes e seus desdobramentos numa cartografia socioespacial que
conforma suas territorialidades. Neste sentido, casar (ni’i) denota possibilidade, ou a
“vontade”, de estar e relacionar-se afetivo-sexualmente de alguém. Implica, pois, disposição à
conjugalidade, às “parcerias de casal”, sem que tal vínculo, uma vez constituído, denote
necessariamente “compromisso (nigü) ”. Este último parece corresponder às extensões
políticas da aliança, veremos, efetivada quando o casal assume-se e é inserido como parte
compósita num circuito de “obrigações (porã'ãcü)” e reciprocidades com os afins adquiridos
e com seus consanguíneos, nas posições de “marido” e “esposa” e suas implicações nas
formas de socialidades daí advindas como “cunhado(as), tios(as)” e etc. Casamento nesta
equação relacional é aqui apresentado como ação de efetivação de tal vínculo conjugal através
da coresidência e subsequentes relações de comensalidade e consubstancialidade inerentes às
alianças e aparentamento associado, uma vez que nessa conjuntura, é conceitualizado como
“compromisso”. Por isso, a tese propõe tal conjunto de relação enquanto vínculo-aliança.
Para, então, compreender os processos de entendimento locais sobre as
qualificações “certas” ou “erradas” associadas aos laços conjugais e às formas de alianças
deles derivadas, parte-se do pressuposto analítico encontrado na literatura etnológica que o
tem como objeto, e com a qual esta etnografia é convergente, que entre os Ticuna o
matrimônio está orientado pela lógica da exogamia, proposta pelo par de metades
(“ngechi’igü/achi’igü”)22. Estas unidades classificatórias usualmente foram-me referidas no
idioma indígena como “cuã”, marcadas pela distinção entre os clãs patrilineares dispostos em
número flexível e indeterminado de emblemas que os identificam e, dentro dos quais, sem
restrições, pode-se “trocar os pares de casar, respeitando a regra dos clãs” - ou das
“nações”, tal qual se emprega amplamente como homólogo daqueles. “Cuã”, notadamente,
traduz simultaneamente “clã/nação” e “conhecimento”.

22
Cf. Nimuendaju (1972:56), Cardoso De Oliveira (1983, 1983, 1996), Oliveira Filho (1988), Goulard (1998,
2009).
55

Nesse contexto, retomando o lugar das “verificações” que geram espaços


inteligíveis aos conteúdos das distinções “casar certo” e “casar errado”, dizer o nome (ga)
entre os Ticuna é apresentar-se pertencente a uma dessas unidades distintivas. E, com efeito,
uma das perguntas lançadas aos pretendentes é justamente, qual o seu nome, “tacü i cue’ga?”,
ou “qual o clã que dá nome a você?”. Sabendo-se da resposta, se conhece se o pretendente é
um “primo certo” ou “errado de casar”, como traduzem os meus interlocutores os gradientes
de proximidade ou afastamento, não necessariamente termos equivalentes aos que
empregamos quando nos referimos às posições genealógicas de primos cruzados ou paralelos,
pois, notaremos no capítulo II, estes parâmetros são moldados conforme as circunstâncias de
convívio. Com base nisso, “ter clã, é ter conhecimento” próprio aos Ticuna, de saber-se como
se está no mundo, “que tipo de parente se é” em relação ao outro com quem se comunica a
vontade de conjugalidade e matrimônio.
Para casar bem, nesta perspectiva, há que se cumprir as “regras das nações”. A
proeminência sobre o cumprimento deste princípio de troca exogâmica descreve uma
possibilidade valorizada de vínculo conjugal, realizada com o cônjuge preferencial, que se
encontra neste sistema dual, na mesma geração, alocando-se na posição de “tchauta’a”,
traduzida como “primos e primas certos de casar”. Esta posição terminológica é exposta na
condição que circunscreve, sem distinção de sexo, os primos cruzados bilaterais (Goulard,
1998; Goulard & Barry (1998/1999).
A “regra das nações” emerge, desde meu ponto de vista analítico, como um
dispositivo de controle sociopolítico do parentesco e da socialidade ticuna. Isso porque, para
alguns interlocutores, este referente equivale “a regra conhecida para fazer uma boa
convivência entre os parentes”. Por isso, muitos a descrevem como “a regra, a lei do Ticuna
mais forte”. Tais prerrogativas funcionam, por um lado, e fortemente dimensionadas ao ideal
de evitação do “womãtchi” (incesto clânico e consanguíneo), cuja condição é o reverso
assimétrico e “perigoso” à caracterização do que dizem ser atributos à um “bom esposo”,
“boa esposa”, e, portanto, um vetor antissocial de produção criativa ao parentesco e da
aliança.
Mediante o exposto, as questões e problemáticas antes destacadas foram,
paulatina e analiticamente, sendo pensadas no decorrer do campo e posteriormente na escrita,
como uma teoria ticuna de desvelo e controle na produção de vínculos conjugais e das
alianças. Logo, dos corpos e relações que os constituíam.
“Casar errado”, em nível intraétnico, poderia ser sintetizado pelo
descumprimento da “regra” exogâmica, desencadeando processos de “temores (mü’ǔ) ”,
56

“perigos (ãucümãǖ)” e “entristecimento (ngetchãǖ)”, reiterando, com efeito, a instabilidade do


mundo social em que vivem os interlocutores, desde os tempos prístinos, momento no qual se
deu a instauração das normativas de troca matrimonial. Estas, de acordo com a historicidade
do dispositivo do “sexo malfeito” (objeto de descrição da primeira parte a tese), foi criada
pelos agentes ancestrais, os “ü’ünegü”, imortais, cujos corpos-pensamentos são sempre jovens
e alegres e habitam um patamar cosmológico apartadado e de plenitude, donde não se casam.
Tal cosmografia é resultante, veremos, de uma série de eventos malsucedidos de
exercício malfeito, igualmente da sexualidade e da troca, entre estes agentes primordiais,
servindo atualmente aos mortais ticuna, os “yunatü”, de “lembrança” pedagógica para que se
evite adquirir um “corpo pesado, cheio de sentimentos e pensamentos fracos”, que impediria
à pessoa ticuna e suas agentividades, ao seu “mã’ǖ” – glosado como “seu jeito, seu
pensamento, seu corpo” – readquirir a condição de imortalidade post mortem, como prevê a
filosofia política do grupo (Nimuendaju, 1972; Oliveira Filho, 1988; Goulard, 1998; Santos
Angarita, 2010, entre outros).
Tais condições são aqui paralelamente conjugadas às capacidades de socialidades
que provêm e oportunizam o desenvolvimento de redes de trocas e reciprocidade entre afins e
consanguíneos no âmbito das alianças políticas, econômicas, religiosas, rituais, entre outras.
As referidas condições e disposições expressas sinopticamente por Pedro, ou “jeitos da
pessoa estar na vida”, pelo que aprendi, incluem qualidades sociais, éticas, morais e laborais
diversas, mobilizadoras para a contribuição e geração de subsídios à outros fluxos de
socialidades. E, nesse sentido, elas desvelam-se na etnografia como valores que simbolizam a
relevância das “verificações” como um mecanismo complementar àquelas primeiras
perguntas supracitadas, sobre o grupo classificatório de pertencimento, relevantes à evitação
da condição incestuosa. Estas facetas “de como a pessoa esta na vida” aparecem em várias
narrativas de “negociações” matrimoniais e de alianças na fórmula, por exemplo, “nunãüã
yima meã tamaã maükü?, cuja tradução equivale à “como é um bom marido?”, “como está o
corpo-pensamento daquele sujeito esposo”?
Estes dois instrumentos de controle da produção de parentesco, observado pelo
prisma do casamento, quando aliados, remete-nos aos quesitos que se acoplam aos princípios
filosóficos das “regras das nações”, evidenciando que se é preciso atentar num universo
social, como o aqui descrito, aos efeitos das comunicações que empregam os colaboradores
com os contextos diversificados com os quais convivem. Relembrando as proposições do
prólogo feitas por Luis e Adriano, “há muitas misturas de saberes” constituintes dos “muitos
jeitos de ser ticuna”, sendo igualmente preciso, pois, mapear aspectos dos trajetos sociais do
57

cônjuge potencial associados aos estilos de vida e pontos de vistas sobre o mundo. Nesse
caminho, foi possível angariar os dados e apresentá-los aqui sob a perspectiva de escalas de
referentes sociais e cosmológicos intercalados, sem que um sobressai-se ao outro, compondo
um repertório de relacionalidades relativas às micropolíticas de parentesco desenhadas
entremeadas à jogos de relações de poder, as quais assumem formas e conteúdos conforme os
colaboradores, a partir de suas narrativas de negociações conjugais ou para evita-las,
enfrentam-se num contexto de “misturas de saberes”.
A abertura ao outro, no sentido proposto por Lévi-Strauss (1993), expressa-se
criativamente nos moldes ticuna de relação com o exterior na ideia de “movimento”, que
implica na produção e atualizações de pontos de vistas (“versões”), envolvendo o tema do
casamento, da aliança, sexualidade e suas tessituras, justamente porque cada “jeito de ser” é
resultante dos efeitos dessas relações de socialidades e seus frutos nas “políticas de
vivências”. Entre elas, aquelas voltadas à produção da aliança matrimonial, que alargam os
princípios de prescrições incestuosas às novas formulações do “sexo malfeito”, aqui em
destaque analítico, como bem nota as falas de Pedro e Doralina a cima mencionada.
Mediante a centralidade encontrada nas narrativas conjugais apreendidas durante
o campo, as “versões” sobre o “sexo malfeito” são lidas enquanto facetas de processos de
transformações sociais que têm lugar nos universos indígenas tomados como unidades de
análise, alocando o casamento e problemática da sexualidade como motivos que se alteram
nos fluxos dos “movimentos” de abertura à diferença e alteridade (Overing, 1984; Hèritier,
1994; Lévi-Strauss, 1993). O “sexo malfeito”, nesse enredo, como explicita a exegese de
abertura desta introdução e a seguir descrita nos sete capítulos, implica no operador central
que permitirá analiticamente conduzir o leitor pelos “movimentos” transformacionais que
conformam as micropolíticas de parentesco etnografadas, aqui descritas e tomadas como
objeto de estudo, para explicitar os sentidos que empregam “aos muitos jeitos de ser ticuna” e
suas inflexões nos modos de significação do casar e do casamento.
Tomando, assim, o “sexo malfeito” enquanto eixo que costura os capítulos da tese,
pretendo com ele mover-nos no interior das experiências analisadas num fluxo entre um
sistema de alianças matrimoniais calcado no princípio de exogâmica clânica, as “regras das
nações”, e suas formas transformacionais, atualizados nos “muitos jeitos de ser”, que dão vida
e dinâmicas às micropolíticas cotidianas que produzem sentidos diferenciantes ao parentesco
e aos seus modos de agenciamento. Mediante isso, as narrativas conjugais que foram
escolhidas para compor cada capítulo que se segue buscam revelar um variado conjunto de
valores e perspectivas dos colaboradores ticuna, que ao circularem entre eles e em seus
58

contextos de socialidades, em consonância ou dissenso, apontam para que, justapostos nestas


escalas sociopolíticas que englobam simultaneamente a presença e operatividade dos
referentes das “regras das nações”, “dos jeitos” e “vontades” pessoais em jogo nas
negociações matrimoniais, pode-se aprender novas teorias etnográficas sobre aspectos
engendram um regime de trocas e alianças indígena.
Se casar bem ou errado depende, assim, das relações de forças que conduzem os
critérios e valores à aliança e a conjugalidade, estou pensando estas relações enquanto
socialidades orquestradas por campos de saber-poder em disputa por espaços de
legitimidades, quando o tema dos “conflitos de vontades” emerge como ponto central das
negociações e seus objetos. No decorrer dos capítulos observa-se a atuação conjugada dos
aparatos sociocosmológicos das “regras das nações” e de agentes específicos de atuação
nesta escala cosmopolítica de parentesco, como são os “bichos da floresta”, as entidades
perigosas (“ngo’ogü”), especificamente apresentada na figura temida do Yereu, que “mata
quem casa errado, descumpre a regra das nações e vira gente womãtchi [incestuoso]”. Essa
entidade, atua conjuntamente às “autoridades” do parentesco, caciques, pastores, policiais
indígenas, grupo de parentes ou Agentes de Saúde ticuna, os quais, a partir de outros
princípios morais e éticos, gerem as relações, visando não apenas punir e vigiar, mas
“aconselhar”, “mostrar jeitos de ser” alternativos aos perigos que entendem latentes à certos
arranjos conjugais. Lado a lado e concomitantemente, estes os gestores morais do parentesco,
humanos e não humanos, agem, em diferentes perspectivas de controle, para administrar,
como quero mostrar, as “políticas de convivências”.

Das misturas de palavras e histórias

“Somos muitos Ticuna, de muitos jeitos, de jeitos misturados,


de pensamentos diferentes. (...). Assim é mistura. Depois que
a na’ane* [mundo, cosmos, território] foi ganhando outros
fios de pensamento (tü*) que o seguram [estruturam e
moldam], abrindo e fechando para as gentes e seus saberes
nesse mundo – índio, não índio, parente, não parente –, é que
os pensamentos e conhecimentos, nossas palavras, foram
sendo diferentes, multiplicando, porque são muitas as histórias
de vivências dos Ticuna nesse beiradão” (Pedro).
59

Se, como sabemos a partir de diferentes aportes americanistas, a filosofia


ameríndia é definidora de uma constante num universo ontologicamente multifacetado, está é
o lugar criativamente reservado à diferença e às inconstantes imagens de alteridades dela
derivadas (Overing, 1975, 1983/4, 1985, 1999, 2002; Rivière, 1969, 1984; Albert, 1985;
Viveiros De Castro, 1986, 1996; Lea, 2012; Gow, 1991, 1997; Vilaça, 1992, 2006, para citar
alguns). A diferença como princípio de relação indígena, como situa Lévi-Strauss (1993),
emerge como proposta analítica sobre a “abertura para o outro”. Isto é, ao lugar que a
diferença ocupa no sistema de troca como mecanismo de produção de afinidade no
pensamento indígena, e possibilidade de relações extra-locais.
O que nos diz seu Pedro, pastor e xamã, e sua esposa Doralina, nos diálogos
supracitados, não passa ao largo desta premissa e resume, em certo sentido, algumas
proposições sobre as quais se assentam os argumentos sobre casar, casamento, conjugalidade
e aliança ticuna. A diferença e alteridade tem necessária presença, pelo que entendo das
colocações a cima e a seguir, como primado às transformações sucessivas desencadeadas no
cosmos e na cosmografia ticuna, “que fez chegar novas palavras para o parente pensar o
jeito de ser e se ajuntar no compromisso com alguém”.
Nesta dinâmica, como se vem apresentando, “mistura” descreve as relações
sociocêntricas aos domínios de socialidade indígena, no qual seu interior é diverso, opera
enquanto afluência, “movimento”. A ideia de “movimento” está associada à tradução do verbo
“ã'caítchi*”, similarmente glosado como “transformação”; “virar”; “fazer diferente”, “se
fazer noutro jeito”. Alterações sobre si mesmo, porque sempre em relação com outros. Sugiro
seu uso, assim, no sentido de alterar-se entre posições, entre pontos de vistas. São estas
“misturas”, enquanto figura de linguagem, que, afinal, colocam em movimentos e em
conflitos “os jeitos de ser ticuna”. E é por meio delas que se imprime significado social ao
casar e ao casamento, sendo nesse recurso narrativo que se busca no restante do texto
compreender o lugar deste como meio de produção de pessoas e parentes em coextensão ao
cosmos ticuna (“na’ane”). Posto isso, “mistura” é tratada analiticamente como a forma da
relação (Strathern, 1995, 2006), quando se entende que o real conflito do encontro de pontos
de vistas (ontologias, “jeitos de ser”) reside na forma de se conceber e se lidar com a
diferença (Almeida, 2014). Pois é impensável nos contextos em que esta etnografia se
realizou, haver qualquer enredo às “versões de casamento” fora dessas “misturas”.
“Palavras”, neste âmbito, remetem-se às noções êmicas de regimes de produção
de conhecimento [cüã], descritos por diferentes interlocutores, nas seguintes asserções:
60

“[...] saberes; o que se aprende, o que se conhece e o marca cada pessoa,


cada parte do mundo”; “[...] saberes que são nas palavras dos antigos, são
também feitos de novas palavras que chega de fora, das vivências que cada
um faz, sozinho, no casamento, com os parentes sem casar”; “[...] palavra
pode ser conselho de pai, de mãe, palavra de cura do xamã, do pastor, na
palavra de Deus, do enfermeiro, do professor, da novela, da cidade, do
parente. Assim é, palavras que formam pensamentos (nã’ē), aí tem de todo
tipo”.
Parece-me, pelo exposto, possível, pensar numa dupla articulação heurística para
compreender ao que se referem os interlocutores quando evocam as “misturas” de “palavras”
dimensionadas às “histórias” dos modos de produzirem parentesco e casamentos. “Histórias”
aludem, numa dimensão, às conjunturas sociopolíticas; aos contextos de socialidade nos quais
tomam lugar esses processos de comunicação entre diversos referentes e repertórios de
produção de saberes, portanto perspectivas, de lugares de ação e enunciação (Lévi-Strauss,
1975, 2008, 2010). Por isso, as “histórias” são tratadas como contextos, conjunturas, no seio
das quais as “versões” sobre modos de casar e refletir a respeito do casamento e dos muitos
jeitos de ser materializam-se na temporalidade reticular do pensamento ticuna.
Estas histórias aproximam-se e operam como “linguagem mitopoiesis” à medida
que, como argumenta P. Gow (2001) a propósito dos Piro, na sua dimensão social, elas
operam como meios de resolver contradições das praxis, sem uma clara separação do que seja
sincrônico ou diacrônico, nesse processo de dupla referência constitutiva: nós e os outros e as
“novas e mais antigas” referências sobre modos de “boa convivência”.
“Palavras” e suas “misturas”, com efeito, são registros filosóficos e éticos
centrais às condições de geração de significados ao social e seus motivos de transformações,
enquanto as “histórias” ticuna parecem dizer, se bem entendo, evocar também o que M.
Sahlins cunhou como um “conjunto de relações mutuamente em contraste, e por isso mesmo,
mutuamente definidora de signos”, cujo reflexo analítico propõe historicidade à estrutura.
Com isso, o autor sugere a “mitopráxis” como mecanismo descritivo dos processos de
mudança que reordenam localmente as estruturas (1990:16).
E, ademais, considerando o uso das falas indígenas como instrumento narrativo
para conduzir o texto, estas articulações entre as “palavras” e “histórias” poderiam
aproximar-se também do que D. Gallois (2002, 2007) sugere aos contextos Waiãpi,
ferramentas de discursos políticos sobre o mundo e seus agentes. São assim, os modos
explicitamente políticos de falar ao outro sobre si, perspectivado desde seus próprios saberes
61

sobre o outro. É pujante o lugar de destaque que empregam os interlocutores ticuna, e


arriscaria ampliá-la aos Ticuna como um amplo espectro, para a memória, “o conhecimento”
sobre seus “jeitos de ser e como casar bem”.
Entrelaçadas, estas perspectivas heurísticas endossam um componente alegórico
indispensável aos entendimentos dos significados empreendidos ao objeto de interesse desse
trabalho, o casamento, o parentesco e mediação em curso entre eles operada pela sexualidade
e aliança. Os “jeitos” e as “políticas de vivências” entre os interlocutores resultam dessas
orientações, ordenando sempre instavelmente os modos de relacionam-se entre si e com seus
outros. Por isso, “mistura” é como um “movimento”, lido como espaço de transformar-se
sempre em outro de si mesmo (Lima, 2005; Kelly Luciane, 2003, 2011; Das 2007). Nessa
armadura, “palavras” e “histórias”, como veremos ao longo da tese, tornam-se manifestas nas
“negociações” de seus regimes ético-morais, enquanto um conjunto de valores voláteis, ainda
que imprescindíveis, à produção do cotidiano. A questão, em suma, quer enfatizar estarmos
passando ao largo de qualquer linguagem, prática ou simbólica, de “ausência”, “perda”
(Naveira, 2007). “Mistura” é também sinônimo de aquisição, manejo e incorporação (sempre
tencionado entre domínios generizados e de relações de poder) de outros pontos de vistas. O
que permite, analiticamente colocar “misturas de palavras e histórias” como o enredo, a
armação sociológica, na qual a alteridade e a transformação ocupam um modo particular de
criação; cedem lugar estrutural ao outro.

Propostas

Mediante estas apresentações inicias, abaixo eu pontuo algumas perguntas que me


guiaram na produção da etnografia. A partir delas, passo a expor seus caminhos analíticos.

O que ocorre se ademais de ações incestuosas, quando o sexo malfeito ganha


faceta de pecado, “virgindade (paütchi´é) ”, de desonra? O que implica jovens
optarem por não se casarem? Ou, então, planejam realizá-lo noutros momentos de
suas vidas, pois demandas como estudos, trabalhos fora da roça ou na cidade, que
lhes seduzem mais, manifestem-se aos púberes nas relações de “obrigações”
evocadas pelo vínculo-aliança? No que implica na rede de afins e consanguíneos
quando alguém se casa com “gente de fora” (não indígena), especialmente aqueles
há quem costumam tratar de “antigos inimigos” (homens não indígenas de
nacionalidade peruana), cuja memória das relações anteriores os situam como
cônjuges não preferenciais? Como percebem casos de mulheres solteiras com
62

“filho de rua” (mães solteiras) e quais as implicações de “fazer” filho de pai não
ticuna, num regime de descendência patrilinear?
A partir disso, como elaboram seus gradientes de aparentamento expressos nas
categorias de “parentes legítimos ou ticunados”? Igualmente me interessa saber o
que ocorre quando se casa com ou sem “papel de cartório”, quando tais
componentes exógenos atuam em certas dinâmicas de visibilidade política àqueles
que eventualmente estão alocados às margens das relações por estarem em
condições equivocadas de conjugalidade? Por fim, como os interlocutores refletem
quando seus parentes se casam “homem com homem”, “mulher com mulher”? Ou
qual a repercussão, etiquetas e princípios de negociação quando se casa ao “modo
antigo”, juntando-se rede de dormir, ou “no jeito da igreja”, “com conselho do
pastor, sob as palavras de Deus? ”

É nessa conjuntura criativamente tensa e conflitiva entre processos de produção


de regimes de conhecimentos que envolvem o casamento articulado às problemáticas da
sexualidade, da aliança e relações de poder que este conjunto de questões apresentadas visam
pensar que tipos de contribuição esses debates etnográficos propulsionam para as refletirmos
as imagens de socialidade e de relações de poder nesse trabalho. Com tais perguntas,
igualmente, incita-se refletir sobre os contrastes e agenciamentos realizados entre interior e
exterior das socialidades ticuna, especialmente, a partir do ponto de vista das mulheres, do seu
lugar social e das dimensões políticas de suas relações de conjugalidades ou não, que não se
restringem ao espaço aldeão.

Eixos analíticos, alguns caminhos iniciais

Parentesco ticuna em contexto

Etnografias e análises voltadas ao parentesco ticuna não são abundantes e


atentam, especificamente no que conheço, em levantar hipóteses às terminologias e suas
extensões práticas na vida cotidiana e ritual. Exercícios seminais empreendidos Ivan Lowe,
nos 1960, por exemplo, resultaram numa grade terminológica publicada num manuscrito, o
qual, posteriormente, foi usado por Curt Nimuendajú em sua clássica monografia, “The
Túkuna” (1972). Neste texto, publicado inicialmente em 1952, lê-se que esse povo se
organiza a partir da “divisão em clãs (clans), agrupados em metades (moitiés), cujos nomes
63

ele relata nunca ter conhecido. Fato que mobiliza o autor a referir-se a elas apenas como
metade “A” e metade “B”, e sendo por ele grafadas como “kiá” (1972:56).
Posteriormente, Roberto Cardoso de Oliveira, João Pacheco de Oliveira Filho e
Jean-Pierre Goulard, foram aqueles que retomaram o tema, cada qual com seu objeto de
pesquisa particular. O primeiro e o último são aqueles que desenvolveram hipóteses e
dedicaram-se com mais acuidade ao assunto.
Em uma leitura comparada entre eles, encontramos em Cardoso de Oliveira (1983) informes
de que os Ticuna dispõem-se também em “metades (moitiés), exogâmicas e anônimas,
combinada com a sua real unificação [sic] patrilinear, alcançada pelas alianças interclânicas
(e, portanto, às metades)” (p: 56). Em releitura, anos depois, o mesmo autor comenta que as
alianças interclânicas seriam a expressão de “uma endogamia tribal” (1972:65), quando
conclui dizendo que “os Tukúna estão organizados em grupos clânicos, em número não
fechado e patrilineares, identificados uns com aves, outros com plantas” e que “o conjunto de
clãs identificados por nomes de aves forma uma metade enquanto os demais formam outra”
(Idem).
Como ilustra a síntese proposta em Matarezio Filho (2015:41) Roberto Cardoso
de Oliveira sugere “que a natureza dos clãs ticuna seria de descendência patrilinear, não
implicando dizer que eles reconheçam linhagens funcionando em seu sistema de parentesco”.
A súmula ainda aponta a partir dos textos de Cardoso de Oliveira que “uma linhagem
acarretaria na possibilidade de uma pessoa demonstrar, por meio de conexões genealógicas,
sua descendência com um ancestral em comum com outros membros da linhagem” (idem).
Em continuidade, Matarezio Filho informa também que o que se teria no caso dos clãs ticuna,
na análise de Cardoso de Oliveira, em seu texto “Aliança Interclânica na Sociedade Tukúna”
(1983), é resultante do modelo de “descendência estipulada” (Cardoso de Oliveira, 1983:54
apud Matarezio Filho, 2015: 41). Matarezio Filho atenta então ao fato do entendimento sobre
a “descendência estipulada” estar contida na própria noção do autor referido do que é um clã
ticuna, definido como um grupo de pessoas descendentes de um ancestral mítico, do qual não
é possível demonstrar uma conexão genealógica”. No caso em tela, entre os ticuna a figura
ancestaral é associada ao um dos irmãos gêmeos, Yoi.23 Complementando estas assertivas,

23
No texto de Roberto Cardoso de Oliveira (1983), segue-se: “[...] Em última análise, a descendência entre os
Tukúna obedece a mecanismos de afiliação do Ego a um grupo (no caso, o do pai), sem consideração pela “linha
de descendência”, definida por Radcliff-Brown, como “arranjo de parentes de um indivíduo que se pode
demonstrar num diagrama de parentesco” [citando Radcliff-Brown, 1951: 43, Murning Social Organization]. Cf.
Lea (2012) onde a etnóloga conclui que basta exogamia para fazer sentido às matricasas kayapó, lógica que seria
equivalente aos clãs ticuna.
64

Roberto Cardoso de Oliveira atualiza os informes de C. Nimuendaju, sugerindo que “os clãs
são reconhecidos por um “nome técnico”, geral a todos eles” e grafado por ele como “kï'a”.
Cardoso de Oliveira, por fim, produz uma discussão que não se levou adiante,
sobre um eventual sistema totêmico em operação entre os ticuna, a partir de uma leitura da
crítica lévi-straussiana em “Totemismo Hoje”, onde se lê a afirmação de que “uma metade não
é mera soma de clãs” (1983: 57). A respeito deste debate, novamente no texto de Matarezio
Filho (2015: 57-58), indica-se:
“Cardoso de Oliveira, baseando-se nas definições de Lévi-Strauss, que “uma
metade não é mera soma de Clãs” (1983 [1964]: 57), deve ser pensada
“menos como uma instituição identificável por traços precisos, do que como
um método aplicável à solução de problemas múltiplos” (Lévi-Strauss apud
Cardoso de Oliveira, 1983[1964]: 57). O clã forneceria ao indivíduo uma
regra negativa, a consciência de que ele não pode se casar dentro de seu
próprio clã, devendo buscar seu cônjuge em algum dos n outros clãs. As
metades exogâmicas reduziriam os grupos a dois e forneceriam uma
“determinação positiva” de casamento, então, “em lugar de se saber que não
se pode casar dentro de um grupo, aprende-se que se deve casar num outro
(idem: 58)”.
Em Oliveira Filho (1988) lê-se que “as nações se alinham em metades
exogâmicas” (: 89), no que nos deixa entender que o etnólogo, em acordo com os autores
precedentes, sugere que são “grupos de descendência unilinear, cujo pertencimento se faz por
linha paterna”. Em continuidade, o autor as caracteriza como unidades sociológicas não
nominadas, apresentando “cü” como referência a elas no idioma indígena, afirmando,
ademais, que cada uma das metades está composta flexivelmente por clãs, opostos e
complementares, cujos “nomes derivam de elementos da natureza” (Idem). É neste material
etnográfico que verificamos o emprego pelos Ticuna, mais enfaticamente, do termo “nações”,
referindo-se aos clãs, sem, contudo, encontrarmos aí alguma discussão sobre a procedência do
emprego de tal termo, que faremos doravante, no capítulo II.
Goulard (2009: 95 e passim), mais recentemente, para encerrar o breve sobrevoo
pelas principais referências etnológicas concernentes ao tema do parentesco, também o
dimensiona às formas duais de organização do universo social Ticuna, porém seus dados
etnográficos são angariados com redes de colaboração com Ticuna peruanos, distintamente
dos demais trabalhos citados, realizados com interlocução Ticuna no Brasil. O etnólogo
65

francês apresenta aportes similares aos já mencionados, a despeito das “linhas de fronteiras”24
e dos intervalos de tempos, contextos e agendas antropológicas variadas que atravessam estas
produções.
A sua etnografia apresenta o par de metades igualmente não nominadas, referidas
apenas pelo término genérico por ele grafado como “kü-a” (Idem: 116). Estes estão marcados
pela distinção entre os clãs “com penas” e os clãs “sem penas”. E na mesma linha
argumentativa anterior, cada metade é composta de clãs cujos nomes derivam de elementos da
natureza, segundo a divisão opositiva que os relaciona, “servindo assim para nomeá-los”
(Idem: 116). Nesse sentido, faz-se notar que o nome pessoal (ga) sempre remete ao clã ao qual
se pertence, relembrado o lugar central que ocupa este emblema identitário mencionado na
introdução da tese. Este autor produz uma análise detalhada acerca da onomástica e processos
de nominação ticuna, pontuando que o nome elegido é composto por conjuntos de referências
feitas a um hábito ou característica física do animal ou planta epônimo.
Dando continuidade a revisão dessa bibliografia, nota-se que a respeito da
onomástica e nominação, há, contudo, certas convergências. Como indicava Nimuendaju,
“em todo caso, a ideia de que algumas características do epônimo devem, ou pode aparecer
nos membros de um clã, não é totalmente estranha aos Tukuna” (1952: 58). O etnólogo
alemão reitera, informando não haver “sequer um traço de crença em um parentesco místico
comum aos membros de um clã e a respectiva árvore ou animal correlacionado com ele, nem
essas correlações representam qualquer valor emocional” (idem). Nos textos de Cardoso de
Oliveira, nota-se, no mesmo rumo, que ao se pronunciar um nome, seu ou de terceiro, uma
pessoa se situa num “sistema de classes encadeadas” (1983: 88). Da perspectiva de Goulard,
os nomes pessoais teriam “sua função na transmissão de um ou vários sinais, destinados a
representar ou transmitir uma informação. Apenas sua decodificação, de acordo com ele,
permite dar sentido para estabelecer a comunicação social; isto é, as modalidades possíveis de
relação entre pessoas” (2009: 92, tradução minha). O etnólogo francês menciona ainda a
respeito das qualidades sensíveis que caracterizam o nominado e epônimo como “modos de
ser sociais ou morais dos clãs’, que nunca são reivindicados diretamente por membros do clã
em causa, mas no discurso de terceiros para quem eles refletem sua realidade” (Goulard,
2004: 79).
Goulard e Barry, L.S (1998/1999) propõem juntos neste artigo uma leitura do
sistema de parentesco ticuna como uma formulação dravídica, na qual a terminologia de G+l


24
Cf. Faulhaber (2007, 2003), López Garcés (2000).
66

e G-1 expressa claramente a oposição entre consanguineos/afins, considerando, entretanto,


sua presença em relação a um segundo tipo de aliança, a saber, os matrimônios oblíquos. A
hipótese dos autores reside em que, a partir do exame de seus dados, haveria entre os Ticuna,
um duplo sistema de alianças. Por um lado, os matrimônios entre os primos cruzados, cuja
terminologia angariada os aloca na posição de “tchauta’a”, no âmbito da qual se privilegia o
intercâmbio de irmãs 25, e não apenas o matrimônio oblíquo. Por outro lado, haveria a
combinação dos matrimônios com a filha da irmã.
Afirma-se, na sequência do texto, que este modelo, no caso ticuna, não se
analisaria "isoladamente", mas considerando um outro modo específico de composição de
aliança, qual seja, a relação com o tio materno, que possibilitaria compreender a associação de
certas assimilações geracionais particulares, considerando as equivalências terminológicas
que não dependem de um modelo dravídico estrito como primos cruzados matrilaterales =
primos cruzados patrilaterales = filhos da irmã. Sem estender-me demasiado nestas
problemáticas, que por mim não foram analisadas com base nas genealogias produzidas em
campo, sem condições de diálogo, portanto, a conclusão dos autores é de que a exclusividade
do matrimônio oblíquo e/ou do matrimônio de primos cruzados bilaterais não permite explicar
o conjunto de posições destas equivalências por eles observadas. Assim, argumentam que
uma das principais consequências sociológicas da combinação de alianças, à exemplo da
repetição do casamento entre o tio materno e a sobrinha, seria evitar a disputa entre os
cunhados, à medida em que ao dar a filha ao irmão da esposa, o cunhado altera-se naquele
que presta serviços ao sogro, tendo em vista que nestes casos analisados pelos autores o
padrão de residência é uxorilocal.
Nesse recorrido, o que temos parcialmente angariado, descrito e observado nos
estudos sobre o tema do parentesco, são dados versando sobre operacionalidade do par de
metades exogâmicas, como visto linhas a cima, concernentes à uma análise terminológica,
não em consenso entre estes autores. Em sua tese, defendida em também em 2015, E.
Matarézio revisa estas referências, reiterando haver nelas diferentes assertivas analíticas,
muitas das quais, de cunho experimental, como a sua própria proposta, produzidas a partir de
seus materiais etnográficos com poucas evidências, tratando-se, ao que se apresentam,


25
Este, seguindo o argumento dos autores, se reflete na formulação dravídica clássica de a maioria dos termos,
na divisão das duas metades exogâmica, assim como nas práticas empíricas, quando o matrimônio de primos
cruzados bilateral é a forma preferencial de união. Citando: “Esto se inscribe en el marco de un fenomeno
generalizado en la Amazonia que indica la presencia en una sociedad de multiples opciones de clasificación
terminologica, éstas pueden variar al punto de formar sistemas alternativos” (1998/9:74). (...) “La inscripción
terminológica no exclusiva del intercambio de hermanas y del matrimonio oblicuo es particularmente importante
en este caso” (idem: 75).
67

baseadas em estudos de casos bastante restritos. Especificamente, os evoco nesse texto, como
veremos no conteúdo do capítulo II, para sublinhar, em relação aos últimos campos de
análises, que este trabalho tampouco avança.
***
Parentesco nesse trabalho é apreendido enquanto uma série de ações sociais,
tecidas assentadas num repertório multisituado de referenciais a respeito do que denote estar-
se aparentado com alguém. Ele conforma-se e será assim apresentado por meio de uma
filosofia política dinamicamente situacional da diferença projetada na dependência da
alteridade para a produção de “identidades”. “Os muitos jeitos de ser ticuna” são tomados
neste texto como espécie de eixo etnográfico para pensar as transformações dos valores e
significados em diferentes escalas, nas socialidades intraétnicas e interétnicas, que produzem
o lugar social ao casamento, dimensionadas às micropolíticas de parentesco.
Com efeito, as relações de parentesco definem-se a partir de três tópicos
componentes simultâneos de sua forma e fundo: produção do corpo (“naüne”), da pessoa
(“mã’ǖ”) e território e cosmo, (“na’ane”) como contiguidade conceitual, que estes propõem-
se conjugados e, apenas assim criativamente operativo, uma concepção de “ser (na) ” e dos
parentes (“patcha”), dimensionados aos “jeitos certos e errados de casar”. Estas relações
produzem a equação entre corpos-pensamentos que habitam o mundo e “seres viventes
(duü’ǖgü), de todos os tipos, ticuna e não ticuna, bicho, planta, alimento”, enquanto partes de
uma mesma “rede de pensamentos” que sustenta o mundo. Por isso, “as palavras”
[conhecimentos, saberes, referentes], misturam-se na “na’ane” formando os “muitos jeitos de
ser ticuna, de ser e fazer o mundo”, os parentes e os inimigos e uma variedade de Outros
(“awane”). Do exposto, usamos parentesco neste texto como um momento transformação que
conforma, no crivo do casamento, sujeitos enquanto agentes e pessoas, dotados de “jeitos”
singulares e numa dinâmica cumulativa entre relações que a conformam26.
A triangulação entre afetos, memória e palavras foi eixo analítico proposto por P.
Gow, a partir dos Piro, na região subandina peruana. A memória e a história Piro, como
categoria de análise, engloba seus conceitos de cultura e identidade, contextualizando as
“misturas de sangue” e “raças de gentes”, simultaneamente passadas e prospectivas, à medida
que alimenta e atualiza, aproximando-se ao modo Ticuna, as categorias de alteridades com


26
Cf. M. Strathern (2006: cap. 10, Causa e Efeito). A autora propõe agente como um ente, cujo ponto de vista,
dotado de agência, age com outro em intenção – a “pessoa” –; esta é, com efeito, ponto de referencia ou
motivação à ação daquele. Ação, motivo e efeito não estão apartadas, conectam-se e propõem escalas relacionais
diversas. A agência, capacidade criativa e potente, esta contida no agente, não na pessoa. Mas toda pessoa que
age com intencionalidades, é um “agente”.
68

base nas quais, por diferenciações gerenciadas de acordo seus princípios éticos e morais, se
fabricam como um ou como outro.
Este aporte nos serve também de base heurística, quando focamos o parentesco
justamente na produção destes componentes à produção de corpos-parentes, que se fundem
enquanto “memória encorporada” (Gow, 1989, 1991, 1997). O parentesco, nesta proposta,
como reflexo de “mundos vividos” (Gow, 2001) é percebido e tornado operativo enquanto
corporificação plena da temporalidade na fala, conforme as “misturas” vão ganhando formas,
relações e conteúdos semânticos a partir de referenciais associados às subjetividades e trajetos
de vida particulares. Com efeito, seu sentido e lugar social ticuna é deslocado e negociado no
interior das “negociações” e aí caracterizado. E enquanto eixo analítico ele é focalizado sobre
trajetos biográficos e narrativas de conjugalidades. Através dessas ferramentas alcança-se
caracterizações de mundos possíveis, quando falar sobre casamentos nos guia nos contextos
macro e microsociológicos que dão lugar à emergências das instituições sociais nativas,
dentre as quais, o parentesco e suas “regras” e variações nos regimes de conduta e etiquetas.
A tese busca, neste quadro referencial, contribuir com o aparato bibliográfico já
elaborado sobre o tema deste estudo entre a rede de interlocução exposta, lançando mão de
narrativas conjugais e “versões” conceituais ao casamento, provendo, assim, novas teorias
etnográficas às parcas informações que se têm angariado, ultrapassando, especificamente, a
instância explicativa das “regras das nações”. À medida que eu ia conhecendo os liames das
relações de parentesco nesse contexto de pesquisa, surpreendia-me, não haver numa vasta
bibliografia dedicada aos Ticuna, muitas referências sobre os casamentos, os cotidianos
desses vínculos, para além de hipóteses sobre padrão de residência, das mobilidades e
trânsitos motivados por alianças entre redes de parentesco como um componente subjacente à
descrição da constituição de alguma aldeia; e, mormente, a centralidade do regime dual de
organização do mundo, descritos pelas metades e pela relação entre os “imortais” e os
“mortais”.
O interesse deste trabalho, em relação ao parentesco, por fim, está situado nas
formas de performatizações, nas experiências emocionais e negociadas (Carsten 2000, 2004,
2007), naquilo que evidenciam relações que precisam continuamente ser produzidas, e,
eventualmente, reincididas (Vilaça, 2006; Coelho De Souza, 2001, 2004; Gow, infra). As
enunciações sobre o estar-se aparentado de alguém, via vínculo conjugal e aliança
matrimonial ou situações, mais incomuns, de esquiva delas, sugere algo no sentido dos
processos da vida, de pessoas que se associam entre si como parentes (Carsten, 1997). A
convivialidade (C. Hugh-Jones, 1979; Overing, 1999; Mccallum, 2013a; Galli, 2012) é aqui
69

um marco estruturante nas formulações de relações entre os colaboradores, o “jeito de estar


na vida” depende sempre de que forma se está ou não vinculado a alguém, ou a uma rede.
Parentesco, assim, também está sendo pensado como uma área da vida na qual
pessoas investem suas emoções, suas substâncias, energia criativa e novas imaginações. As
narrativas pessoais e as exegeses produzidas para contextualizar alguns de seus conteúdos
proveram-me espaços dialógicos e reflexivos, situando-me nas relações de poder que tecem as
dimensões sociais das “regras das nações” e “as vontades” que mobilizam as “negociações”
matrimoniais, por meio das quais entendemos sobre que tipos de corpos, pessoas, parentes,
afetos e memórias, os relacionamentos e práticas sexuais são considerados produtivos a
determinados circuitos de relações.

Exteriores e alianças

Aliado à proposta citada da centralidade da “diferença necessária”, conjugo para a


análise dos casamentos também a ideia mais geral do “esquema da predação familiarizante” e
do “consumo produtivo” de Fausto (2001). Desloco, contudo, o objeto. Pergunto aqui qual o
lugar dos casamentos, e não a guerra, o xamanismo e ritual, nas lógicas ticuna de interação
com o domínio exterior e seus modos de reconhecer, qualificar e resgatar da subjetividade
alter, também expressa entre os afins potenciais ticuna, com os quais os colaboradores que
têm seus relacionamentos conjugais ou apenas afetivo-sexuais estão colocamdo-se em
embate, e os quais também constituem os interiores cotidianos. Nessa arena, atributos
simbólicos dos outros são igualmente acionados para, como propõe Fausto, “se possa
consumir sua diferença” (idem: 329).
A partir da etnografia junto aos Parakanã, indígenas falantes de uma língua tupi-
guarani que vivem entre os rios Tocantins, na altura da atual represa de Tucuruí, e o Xingu,
este esquema analítico esboça uma crítica ao englobamento da guerra pela reciprocidade e sua
consequente redução à “fórmula sintética do dom” (idem: 323). Para isso, o autor desenvolve
o argumento de que a predação é um modo assimétrico de relação que implica controle
simbólico sobre o outro pela incorporação de suas capacidades genéricas, “não bens ou
pessoas”.
O inimigo aqui, entre os ticuna colaboradores desta tese e deles com os seus
Outros, é uma miríade de possibilidades de alteridades constitutivas: “parentes de baixo ou
do alto, do centro ou do beiradão”, “brancos”, “civilizados”; os “parentes pastores”,
policiais e “capatazes” indígenas bem como outros gestores morais do parentesco indígena;
70

estrangeiros sob imagens de nacionalidades, notadamente os peruanos; diferenças que são


consumidas sob fluxos de condições econômicas, linguagens corpóreas, estéticas e morais; a
alteridade manifesta-se nos clãs, nos grupos extensos cujas afiliações político e religiosas
divergem, e, as alteridades também apresentam-se em formas de orientações sexuais e de
gênero.
Estas conexões geram outros signos que passam compor os agenciamentos entre
homens e mulheres no âmbito do casamento, também das demais relações cotidianas. É nessa
intersecção que propomos o diálogo com a proposta mencionada, visando compreender e
pensar a rentabilidade de sim, alargar as possibilidades etnográficas para pensar as relações de
consumo produtivo vinculados aos poderes criativos e transformativos, porém desde domínios
de ações femininos, empreendidos na mesma lógica de captura simbólica por agenciamentos
(Mccallum, 2002).
Nos ambientes de conjugalidades mediados pelo exterior, especialmente quando
esposos vindos de fora lançam imagens de estratégias de mulheres que “caçam maridos”
para, através do consumo de um tipo específico de inimigo, alterarem-se de solteiras, com
desvalorizados estatutos de pessoa, às mulheres casadas, que “ganham panelas”, “freezer”,
“dinheiro do trabalho de motosserra do marido”, “do benefício do filho”. Tais mobilidades
sociais e alterações no âmbito do parentesco estão simultaneamente mediadas nas esferas dos
afetos – “carinho”, “amor”, “cuidado”, “prazer”. Neste contexto, as formas de familiarizar
diferenças e alteridades são tidas como aspectos essenciais do ciclo de reprodução social. Por
meio desta relação, reduz-se o estatuto de alteridade a um espaço de identidade, quando ações
femininas também se produzem, por exemplo, como domínios agentivos nos quais, entre elas,
fabricam-se como doadoras e receptoras de “parentas” e fazem circular esposos e “esposas”.
Relacionalidades que interseccionam relações de gênero, troca e aliança.
Ao recorrer a esse conjunto analítico, particularmente relido aqui criticamente a
partir do ponto de vista ticuna, quero enfocar, salvaguardando suas particularidades
contextuais, que agencialidades femininas produzem potencialmente análises de relações de
cuidados e transformação daquilo que, absorvido de fora pelo vínculo-aliança, não é
necessariamente uma prerrogativa política masculina, como comumente lemos descrito pelos
eventos da guerra, xamanismo ou ritual.
Concorda-se, nesse rumo, com corolário etnológico que, em linhas gerais, tende a
observar formas de socialidades voltada ao exterior e ao interior como esquemas contrastivos
entre os domínios das relações gênero (Lea, 1986; Mccallum, 1989, 2001; Belaunde, 2001,
2005; Lasmar, 2007; Galli, 2012), especificamente no que fazem criticar pontos de análises
71

que os descrevem como campos de produção da consanguinidade e afinidade (C. Hugh-Jones,


1979; Taylor, 1983, 1985) na vida cotidiana, sendo este relegado à esferas do feminino
enquanto aquele, aos domínios masculinos (Ladeira, 1982; Erikson, 1987; Descola, 2006,
2001; Fausto, 2001, para citar alguns). Sublinho, entretanto, que ao propor formas de simetria
nesse lidar com os exteriores realizados entre domínios de ações femininos e masculinos, não
viso afirmar que estes campos de agenciamentos sejam complementares, no que implica
igualdade e paridade de acessos às essas arenas de comunicação27.
Se, de acordo com Fausto (2001), “a predação é um momento do processo de
produção de pessoas do qual a familiarização é o outro" (:418), nos propomos a vê-la, em
suma, desde o crivo do casamento e conjugalidade, como meios de alterações agentivas no
cotidiano de homens e mulheres, menos como guerra, ainda que relações estejam em disputas
e denotem assimetrias, mas como aparelhamento à equação entre a produção e controle da
“afinidade matrimonial” e “afinidade potencial”. O exterior está contido igualmente nos
alimentos, nas vestimentas, nas palavras, nos nomes, nos afetos, na memória que informa os
valores que se moldam às conjunturas da aliança.
Nos interessa, a partir dai, refletir como articulações envolvendo dispositivos
ticuna da sexualidade, abordado desde a noção que dá origem aos casamentos e seus
princípios cosmosociológicos, o “sexo malfeito”. O “sexo malfeito” e os meios de manejo
dele emergem como pivô dos próprios processos sucessivos de transformações das
socialidades e do cosmos, sendo ele o eixo pelo qual se transparecem modos de apropriação
de novos conteúdos semânticos, engendrando e atualizando os critérios e valores que circulam
nos regimes de troca e aliança, quando, também, “parentes com jeitos de mulheres” e
“parentas que gostam de mulheres”, buscam mecanismos de driblar a esterilidade do vínculo-
aliança feito por cônjuges do mesmo sexo, como enfocado na última parte da tese.
Nestas situações, tecnologias reprodutivas abrem espaços de agenciamentos das
diferenças, passando a informar alternativas outras para a produção de parentesco, de termos
de relações e posições sociais, como “ser mãe sem pai ticuna”, indicando ser possível “fazer
sexo sem homem para virar mãe”, sem que isso interfira negativamente ou produza irrupções
às transmissões patrilineares, senão as reconfiguram. Isso reflete-se como efeito de que o
dispositivo da exogamia clânica e outros coeficientes que produzem a dinâmica entre os
“binômios graduáveis” (Viveiros De Castro, 2002a), afinidade e consanguinidade, requerem

27
As mulheres ticuna, em certos circuitos de convivência, ocupam, desde os anos 1980 lugares de destaque na
política indigenista, dentro e fora de suas redes de parentesco (Faulhaber, 2002/2003; Torres, 2007; Costa, 2013).
O acesso à escolarização, em diferentes níveis, tem sido cada vez mais disponível à todos, mas evidentemente
que não em igual ou nas mesmas condições (Cf. Paladino, 2006) .
72

saber, para dar continuidade e eficácia à centralidade desse fenômeno, além das posições
entre consanguíneos e afins, de igual modo, “dos jeitos que estão [sexualmente atuando] na
vida”.

Sexualidade e Micropolíticas

Até aqui viemos apresentando a ideia indígena de “sexo malfeito” como eixo
etnográfico que nos proporcionará daqui em diante observar um conjunto de transformações
socioculturais a respeito da problemática política que engendra questões de sexualidade aos
“jeitos de ser” e as implicações destas formas relacionais no sistema de aliança, apresentado
pelas narrativas de conjugalidades e de suas produções ou evitações. Neste trabalho, a
problemática da sexualidade não é tratada a partir das práticas sexuais em si, ou das
descrições sobre os modos pelos quais os colaboradores as realizam. Isso se dá por motivos
bastante simples. Primeiro, porque não entendo ser este tipo de informação relevante, posto o
tom de indiscrição que tem inerente enquanto ferramenta etnográfica, e, por consequência
ética, poderia incorrer contra os desvelos a mim dirigidos em relação ao tema, já apresentados
em seção anterior.
Tive acesso ao problema que envolve os processos transformativos desse conceito
indígena em questão através das dialéticas diferenciativas informadas pelos modos certos ou
equivocados de contrair matrimônio. Com efeito, a sexualidade, como componente da aliança,
da produção da pessoa e do parentesco é proposta nesta tese enquanto “experiência”. Nesse
sentido, a enfoco como problemática que envolve correlações de forças e de poder entre
campos de saberes diferenciados de socialidades, circunscritos e expostos por discursos e
reflexões dos colaboradores, que expressam por meio destes as plurais modalidades de
diferenças de “jeitos ser” envolvidos em “negociações” matrimoniais e de conjugalidades.
Para abordá-la opto pelo diálogo com M. Foucault, especialmente a partir de
leituras da “Microfísica do Poder”, da “Arqueologia do Saber” e de aportes contidos na
trilogia da “História da Sexualidade”, especialmente o volume I e II. O autor nestas obras, de
modo geral, está refletindo a problemática da sexualidade como um dispositivo de saber-
poder, elaborada a partir do referente de uma sociedade moderna capitalista e cristã, no
âmbito da qual, o nascimento de instituições sociais, notadamente aquelas voltadas às áreas da
saúde social – psiquiatria e sexologia –, passam a conformar um corpus legitimado de
discursos de verdades, elaborados e expostos por um conjunto de regras, normas em séries de
eventos historicamente situados.
73

Foucault afirmava, neste recorte, que nas sociedades ocidentais, durante séculos,
se ligou o sexo à busca da “verdade”, especialmente a partir dos modelos de relação e
moralidades do cristianismo, quando instrumentos de “confissão”, “o exame da consciência”,
tornaram-se modos através dos quais a sexualidade é situada no centro dos debates, fazendo
dela um meio de pensar a normatização dos corpos e da “genealogia do sujeito” (2006); “de
determinar, em seu funcionamento e em suas razões de ser, o regime de poder-saber-prazer
que sustenta, entre nós, o discurso sobre a sexualidade humana” (1988:18). O sexo, nas
sociedades modernas, nesse caminho, tornou-se algo que era preciso “examinar”, “vigiar”,
“confessar” e “transformar em discurso”. Podia-se falar de sexualidade, porém para tê-la
enquanto objeto de proibição, no interior de uma complexa economia política. Nesse cenário,
gera-se enunciados e enunciadores específicos, formulados no tempo e nos espaços das
relações nos domínios de saber e poder, voltados ao controle das populações – biopolíticas –,
no âmbito do qual discursos são produzidos e disputados nas dinâmicas dos campos de
produção de conhecimentos científicos e as disputas de verdades em jogo.
Sexualidade, nesse enredo, será tratada pelo autor enquanto experiência. Como
um dispositivo, aqui traslado a ideia, à medida que remete à ideia de uma analítica do
conjunto heterogêneo de saberes-poderes que a envolvem no jogo de forças que constitui as
dinâmicas discursivas sobre o casar e o casamento pelo eixo do “sexo malfeito”.
Um dispositivo foucaultiano refere-se aos operadores materiais do poder, isto é,
técnicas, estratégias e formas de assujeitamento utilizadas pelo poder, materializadas em
meios de designar discursos, práticas, instituições ou mesmo campos de saber28. O mesmo
autor expõe (1996) que os “autores”, os enunciadores de verdades morais e políticas, seriam
uma espécie de fundadores da discursividades, aqueles que estabelecem por seus capitais
mobilizados, uma ilimitada possibilidade discursiva. Algo que permite aproximar esses
informes ao relevo narrativo comunicado na tese às “misturas de palavras e histórias”, “os
muitos jeitos de ser” na interccionalidade com as posições assumidas pelas “autoridades” e
entidades variadas encarregadas da gestão de “problemas de namoros e casamentos”, das
“regras e vontades”, portanto, de parentesco, da pessoa e do corpo. Os interlocuotes indígenas
criam, com isso, suas formas próprias de “governabilidade”, sempre em não isolamento com
aquilo que cunhamos ser os fatores externos às cosmopolíticas ameríndias.

28
Em diversas passagens, Foucault fala em “dispositivos de poder”, “dispositivos disciplinares”, “dispositivos de
sexualidade”, etc. Cf. 2014, Ditos e Escrito, Volume 3 e 4; também Agambem (2005) para um olhar crítico. De
acordo com este último, dispositivo é algo de geral (um reseau, uma "rede") porque inclui em si a episteme, que
para Foucault é aquilo que em uma certa sociedade permite distinguir o que é aceito como um enunciado
científico daquilo que não é científico. Tal preocupação, no âmbito deste trabalho, não nos concerne e gera
também o limite de alguns aproximações.
74

Se pensado na realidade ticuna aqui refletida no âmbito das relações de


“negociações” e avaliações das relações de conjugalidades pelos efeitos de corpos-parentes, a
sexualidade tem usualmente uma função estratégica concreta e inscrita sempre em uma
relação de diferença. Por isso, ainda dimensionados às “misturas de palavras e histórias”
concernentes às micropolíticas de parentesco, notaremos que a sexualidade como dispositivo
ticuna que compõe a aliança, está diluída num conjunto de praxis, de conhecimentos, de
medidas, de instituições e de agentes, cujo objetivo sociológico é de administrar, governar,
controlar e orientar os efeitos das relações tomadas como foco, em um sentido em que se
supõe útil, os comportamentos, os gestos e aos conhecimentos e prazeres das pessoas. Nos
termos ticuna, “para fazer boa vivências”, que inclui devir imortalidade como perspectiva,
enquanto o “mundo do meio, dos mortais”, se vai “fazendo gente no jeito que melhor sai das
vontades”.
Cabe notar, porém, que o autor frânces, não se propôs a fazer a sociologia
histórica da proibição ou da emergência da sexualidade como um dispositivo de controle,
senão nos sugere a história política de uma produção de "verdades" a seu respeito. Antes,
portanto, de ter como objeto explorar a natureza da ideologia vigente e suas consequências a
respeito da sexualidade, o filósofo preocupava-se em fixar o "método" que as engendram. E
reside justamente nesse ponto, o meu interesse de diálogo com os seus aportes, para refletir os
dados que meus interlocutors apontam em campo e analisar a sexualidade como dispositivo
componente das alianças matrimoniais por eles vivenciadas. Ao focalizar o “sexo malfeito”
nessa interface com o dispositivo da sexualidade, busco fazê-lo sobretudo e especificamente
pela criatividade analítica que os métodos arqueológico e genealógico foucautianos sugerem.
Isto é, no que é possível buscar um novo olhar sobre a historicidade do conceito ticuna, não só
descrevendo o seu lugar social como uma “lembrança” pedagógica, evocada pelo mito, mas
nos aproximando das suas formas de descontinuidades e reatualizações no percurso dos
trajetos dos narradores também perante os nascimentos das instituições nativas e suas
tecnologias de controle do parentesco, da sexualidade.
Nesta perspectiva, o método arqueológico procura estabelecer a constituição dos
saberes, aqui vinculados ao “sexo malfeito” e ao sistema de aliança, privilegiando as
interrelações discursivas e sua articulação com as instituições nativas, vislumbrando, com
isso, responder a como os saberes a seu respeito se apresentam e se transformam nos
cotidianos etnografados. O método genealógico, a ele correlacionado, pode ser entendido
como a análise do porquê dos saberes, que pretende explicar sua existência e suas
transformações situando-o como peça de relações de poder ou incluindo-o em um dispositivo
75

político e moral que permite observar o movimento pendular entre as “regras” e “as
vontades”. Deslocando, portanto, os objetos, aqui menos preocupados em pensar enunciados
científicos sobre a problemática da sexualidade e suas inflexões nas micropolíticas ticuna
versando sobre matrimônio, troca, aliança e sexualidade, quero nessas aproximações
metodológicas, conhecer aquém de que tipo de poder age sobre as negociações, mas que
efeitos ele faz circula entre os enunciados que validam como “certo” ou “errados” os “jeitos
de ser”, para permitir ou não uniões afetivo-sexuais; como e em que conjuntura em certos
momentos ele se modifica na forma do “sexo malfeito”.
A ideia de dispositivo da sexualidade, enfim, está tecida na equação entre
discurso, poder e subjetivação, na qual, para Foucault, o segundo não se situa numa
instituição ou sujeito, ele é capilar; reprime e ao um só tempo gera efeitos de saber e
verdades, em formas de normas 29 . É nessa articulação que lanço mão do aparato da
‘micropolítica’, que nada mais é do que 'espaço que mantém opções em relações', no sentido
também usado por Taussig (1987); ou um 'campo de negociação', usado por Foucault (1988,
1998, 2004, 2006). Em diálogo, a ideia de micropolítica em ambos os autores está associada
às esferas de poder que reúnem interesses discursivos diferenciados que sustentam lógicas,
desejadas e autorizadas ou desautorizadas.
Foco, a partir daqui, olhares às relações de alianças, em diferentes níveis
cotidianos e de suas instituições particulares (Gow, 1991, Fonseca, 2004, 2008). Um limite a
ser apontado nesse diálogo com M. Foucault, parece-me centrar-se no que o autor dispõe
como uma passagem irreversível entre o dispositivo da aliança e da sexualidade, cada qual
descrito como momentos diferenciados e operados sob conjunturas progressivamente em
direção à um mecanismo global de controle, o panóptico30. Aqui, como dito, o dispositivo da


29
“Trata-se (...) de captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações (...) captar o poder nas
suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto em que ultrapassando as regras de
direito que o organizam e delimitam (...) Em outras palavras, captar o poder na extremidade cada vez menos
jurídica de seu exercício” (Foucault, 2006:182).
30
“o dispositivo de aliança se estrutura em torno de um sistema de regras que de ne o permitido e o proibido, o
prescrito e o lícito; o dispositivo de sexualidade funciona de acordo com técnicas móveis, polimorfas e
conjunturais de poder. o dispositivo da aliança conta, entre seus objetivos principais, o de reproduzir a trama de
relações e manter a lei que as rege; o dispositivo de sexualidade engendra, em troca, uma extensão permanente
de domínios e de formas de controle. Para o primeiro, o que é permanente é o vínculo entre parceiros com status
definido; para o segundo, são as sensações do corpo, a qualidade dos prazeres, a natureza das impressões [...].
enfim, se o dispositivo de aliança se articula fortemente com a economia devido ao papel que pode desempenhar
na transmissão ou na circulação das riquezas, o dispositivo de sexualidade se liga à economia através de
articulações numerosas e sutis, sendo o corpo a principal – corpo que produz e consome”. (Foucault, 1988, p.
101)
76

sexualidade é componente da aliança ticuna, não um aparato evoluído de um dispositivo


anterior de aliança.
Micropolítica do parentesco diz respeito, assim, as maneiras como se entrecruzam
os níveis das diferenças sociais formadoras das “vontades” e “regras e suas regras”,
articulando diferentes níveis de socialidade, sem necessariamente evocar uma oposição
distintiva entre escalas mais amplas e os interiores constitutivos das sociopolíticas (Guattari &
Rolnik, 1999) ticuna. Parentesco, casamento sexualidade e aliança relacionam-se pela
articulação entre relacionamentos de pessoas como parentes conjugando a um só tempo,
veremos, aparatos socioculturais às dinâmicas das novas possibilidades legislativas e
tecnológicas, recriando idiomas às essas conexões. Uma leitura possível ao lugar reservado às
perguntas sobre “o jeito da pessoa estar na vida” pode desenhar-se por aí, informando os
“muitos jeitos de ser ticuna”.

Sobre a estrutura da tese

A tese está organizada em três partes. A primeira, intitulada “Para lembrar-se”, é


composta por dois capítulos e tem como objeto central descrever os regimes de historicidades
ticuna no que tange, especificamente, a emergência dos dispositivos da sexualidade, “sexo
malfeito”, e as derivações iniciais infletidas nos parâmetros e gradientes de relacionalidades
que passam a organizar as “versões” de casamentos “certos ou “errados” articulados às
formas de aliança e troca. Esta primeira parte, então, se propõe enquanto uma espécie de
arqueologia da ideia de “sexo malfeito” como dispositivo da sexualidade, descrita e
apresentada aos leitores através do recurso de narrativas mitológicas, “as palavras dos
antigos”, dimensionadas aos tempos-espaços em que os narradores as experienciam e as
atualizam a partir de suas próprias experiência matrimoniais. Com isso, busca-se evidenciar
como o surgimento da ideia de “sexo malfeito”, inicialmente associada à práticas incestuosas
relatadas no mito de origem, revelam aspectos relevantes que nos conduzirão, nos capítulos
posteriores, ao entendimento dos processos sucessivos de transformações pelos quais ele
passa, alargando os princípios que regimentam a organização social e fundamentam suas
lógicas binárias que passam a estruturar igualmente o parentesco e regimes de casamento e
aliança, quando à tal ideia, conjugam-se novos significados e mecanismos de controle.


77

A segunda parte da tese é intitulada “Alterando-se na mistura” e está composta


por três capítulos, nos quais se objetiva observar por meio de narrativas conjugais variadas
aspectos das lógicas de atualização dos parâmetros de relação de parentesco, seus gestores e
instrumentos moldantes de corpos e relações, quando novos e simultâneos referencias
político-morais, justapostos às “palavras dos antigos”, passam a realocar os critérios e valores
às negociações maritais dimensionados às problemáticas da sexualidade. Aqui o dispositivo
da sexualidade opera, como mencionado anteriormente, enquanto artimanha estratégica que
demonstra as passagens reticulares entre os dispositivos de aliança normativos, aqueles
alocados analiticamente no sistema de aliança que privilegia a análise estrutural do esquema
da exogamia clânica, aos referentes que emergem em resultado das intercomunicações
indígenas com os exteriores semânticos, que conjugam ao incesto, outros regimes de
conhecimento que produzem novos significados ao “sexo malfeito”.
A terceira e última parte da tese, intitulada “Antíteses de si mesmos” está
composta por dois capítulos e seu tema central de debate volta-se à duas problemáticas
instigantes, no que concerne o parentesco ticuna, no avesso de suas “versões”: solteirices e
conjugalidades homoafetivas. Aqui, seguindo a lógica da presença simultânea dos referentes
normativos e aqueles gerados das “misturas de saberes e histórias”, os capítulos e suas
narrativas correspondentes objetivam apresentar as implicações que esquivas à conjugalidades
e a aliança provocam no sistema de parentesco, acionando para tanto, a ideia de “parentes
vazios”, especialmente articuladas às questões de identidade de gênero, explorando noções de
“jeitos de ser homem e jeitos de ser mulher”. Esta parte dispõe ainda, noutro capítulo,
imagens que dão continuidade a apresentação do “sexo malfeito” como espaço de
entendimento das relações de poder que transitam entre diferentes instâncias e agentes de
controle e gerência da vida, dos relacionamentos conjugais e dos corpos, desta vez
focalizados em relações de “casais de mulheres”. Com estes casos, se propõe,
incipientemente, pensar sobre as formas de governabilidades indígenas, as quais
interseccionam-se, num pêndulo entre os símbolos convencionais das “regras das nações” e
as “vontades”, imagens que demonstram o trânsito criativo entre formas variadas de poder e
formas coercitivas, tensionado nas teorias etnográficas apresentadas no que estão associadas à
gestão entre diferença e identidade.
Dos capítulos

No Capítulo I, “Do início do “sexo malfeito” e os “males do mundo” expõe-se,


recorrendo à excertos do longo mito de origem dos Ticuna e das “palavras dos antigos”, uma
78

perspectiva da cosmografia do mundo indígenas, articulando noções espaços-temporais à


dimensões político-morais, a partir das quais se é possível conhecer a articulação entre noções
de pessoa-corpo-território-parentesco como contiguidade conceitual com a de “sexo
malfeito”.
O Capítulo II, “Relações, parâmetros e aberturas. Aprendendo a casar”,
conheceremos as conjunturas cosmopolíticas de surgimento e instauração das “regras das
nações” e do regime de exogâmica clânica, como seguimento central dos atos de “sexo
malfeito”. Veremos seus efeitos relacionais nas micropolíticas atuais de parentesco ticuna,
para, numa ordem intraétnica, conhecermos a operacionalidade das categorias sociocêntricas,
como imagens que propõem gradientes de aparentamento e diferenciação.
No Capítulo III, “Woca”. Fazendo-se “ticuna legítimo ou ticunado”, seguimos,
em conexão aos anteriores descrevendo as micropolíticas de parentesco, desta vez
dimensionada ao exterior, na figura do afim potencial, visualizada em narrativas de um
casamento interétnico, a partir do qual o clã de boi (woca) “faz lembrar” modos possíveis de
manejo da alteridade, produzindo com base em seu estatuto diferenciado, um signo que
desvela o exterior contido produtivamente nas relações de socialidade conjugal. Aqui destaca-
se o consumo produtivo da diferença e dos inimigos através dos agenciamentos femininos.
O Capítulo IV, “Casando-se com “gente de fora”. Produzindo “maridos”,
“inimigos de situação” e “boas parentas””, descrevemos relações de conjugalidades
realizadas entre mulheres ticuna brasileiras e homens não indígenas peruanos, os quais
ocupam uma posição de inimigos, a quem o vínculo-aliança é idealmente vetado pelo atributo
da desconfiança que carregam. Interessa-se, ao discorrer sobre estes casos, conhecer a
respeito dos modos possíveis de transformar esses pontos de vista outros, tensionados no
decorrer das intercomunicações matrimoniais, em possibilidades controladas e criativas às
formas ticuna de socialidades “bem-feitas”.
No Capítulo V, “Sobre casar na igreja. Dos “parentes pecadores” e “parentes
womãtchi””, descreve-se processos de atualização das “versões” de “sexo malfeito” usando-se
de fragmentos da historicidade da “chegada do pecado”. Este está atrelado ao dispositivo da
sexualidade como componente pivô e articulador da aliança e a conjugalidade através da ideia
de “virgindade” e “honra” e sua interface justaposta ao conceito de incesto clânico e
consanguíneo, produzindo modos de se estar em relações de maritais que produzem “parentes
womãtchi” [incestuosos] e “parentes pecadores”. Aqui damos especial atenção aos espaços de
atuação dos gestores morais do parentesco, na figura do “parente-pastor” e dos mecanismos e
pedagogia modeladora contidas nas “palavras de Deus” que transformam, em dadas situações
79

sociais, o fato de “casar na igreja” uma estratégia política de “salvação” e de mobilidade


social.
No Capítulo VI, “Sobre ser solteiro ou “parente vazio”. Quando casar não é
intenção e o casamento uma não possibilidade”, o objeto de descrição e análise reside em
conhecer e refletir acerca da elaboração local da categoria de relação “parentes vazios”, a
partir de suas situações de “solteirices” diferenciadas realizadas entre dois jovens ticuna,
quando um não quer casar-se pela responsabilidade do “compromisso”, enquanto outro, por
querê-lo efetivar, é coagido por não querer ser “esposo”, senão “esposa” de outrem.
No Capítulo VII “Sobre ser “casal de mulher”. Dos “amores proibidos” e dos
“romances vigiados”, alargando ideias de solteirices anteriores, agora focalizado descrições
em situações conjugais de “casais de mulheres”. Interessa com suas experiências afetivo-
sexuais observar usos de estratégias para reivindicar reconhecimentos desses laços, pois ao
fabricarem-se no “jeito de ser ngüe tügüma mãêgüé”, isto é, ou com outras ênfases,
“mulheres ticuna que gostam e se sentem realizadas ao fazerem fazem sexo com mulheres”,
são vistas como tipos particulares de “parentes vazios”.
80

Primeira Parte:
Para lembrar-se.

“Para conhecer sobre os Ticuna de hoje, não tem jeito, tem que começar do
início da história do sexo malfeito. Ele que fez nascerem os males do
mundo, os males do corpo, do pensamento dos humanos mortais (yunatü).
Daí começa isso do casamento. Esse era o tempo antigo (yeguma*) quando
toda a gente era imortal, eram gentes ü'ünegü*. Nesse tempo não existia nem
os Ticuna de hoje, nem essas gentes todas por aí. Desse início vamos indo
até chegar a esse tempo presente, tempo dos Ticuna descendentes dos
Magüta, aquela gente primeira que foi pescada do rio com vara pelo Yoi,
nosso pai, nosso criador, o criador das gentes mortais: Ticuna, dos outros
índios, dos brancos. Isso foi no tempo de antes, nas histórias dos antigos que
eu vou contar” (Ernesto).
81

CAPÍTULO I

Do início do “sexo malfeito”


e os “males do mundo”

Interlocutores

Ernesto e Rosa: senhor ticuna, setenta e cinco anos, clã de onça pintada; casado há mais de quarenta
anos com Rosa, clã de avai de sessenta e nove anos; pais de nove filhos, avós de pelo menos uns doze
netos. Ambos foram professores, atualmente aposentados, e “dedicados à roça e prosa”; eles são
admirados por muitos de seus conterrâneos de aldeia pelo conhecimento acerca das “histórias dos
antigos”. Ambos são bilíngues.

Elis: mulher Ticuna, clã de onça pintada, trinta e cinco anos, casada há quinze anos com Felipe, de
mesma idade, do clã de jenipapo. Elis é neta de Ernesto e Rosa. É conhecida na aldeia onde moram
como uma “mulher de talento na roça”. Sem estudo, ela aprendeu o português e o espanhol “na
vivencia pelos beiradões”, espaço no qual, de acordo com ela, “se mistura muita gente, muitas
línguas, muitos jeitos”. Elis e Felipe têm juntos três filhos.

Pedro: um simpático e fleumático xamã, também pastor, clã de avai, casado “desde muito jovem”,
com Margarita, clã de mutum. Ele bilíngue, ela sem domínio da língua portuguesa, juntos tiverem
doze filhos e em torno de vinte netos, todos, como seus filhos, residentes na aldeia. Pedro,
infelizmente, faleceu após o termino do campo, “de uma tuberculose forte”. Ao saber triste da notícia,
um de seus filhos, com quem trabalhei bastante em campo, disse-me “não há tristeza, dona. Ele se foi
pro mundo dele, pro Éware, a terra sagrada”.

Cláudio Sánches: Homem “ticuna brasileiro”, na faixa etária de dos 25 anos, clã de onça pintada,
filho de um dos irmãos mais novos de Pedro. Ele está casado com uma mulher “ticuna peruana”, de
mesma faixa etária, do clã de japó. Ambos residiam no Peru. Os conheci na aldeia onde reside seu pai
e seu tio paterno referido, ocasião na qual ela me vendeu o mapa da região do Alto Solimões,
produzido por ele, após participar de parte das conversas com seu tio e comigo sobre ideias de
territorialidades e cosmografias ticuna.

Nonato: xamã, cinquenta e oito anos, clã de avai; “compadre” de Pedro; casado com Noêmia, uma
exímia parteira, de sessenta e poucos anos. Juntos têm cinco filhos, dos quais, três (todas mulheres)
com eles corresidem. Nonato e Noêmia são agricultores “aposentados”.
82

Para lembrar-se31

“Nas palavras lembramos jeitinhos para fazer os nossos pensamentos,


nossos jeitos de ser. Nelas se vai aprendendo porque o casamento é
importante pros Ticuna de hoje, o povo Magüta, a gente yunatü (...). Nem
tem jeito bem certo de contar e de seguir o que essas palavras antigas
lembram. Cada um contará de um jeito, de sua vivência. Essas palavras
dizem que o mundo foi mudando. Por isso é assim, vai mudando as palavras
e histórias vão mudando jeito do parente ser e falar disso daí. Depois, a dona
moça junta isso com o que vai ouvindo por aí, da gente aqui em casa, dos
outros parentes por onde for nesses beiradões do rio. Começamos pelo
tempo em que o sexo malfeito criou os sentimentos de tristeza, raiva, inveja,
as misturas de sangue errado. Foi disso daí que os ancestrais tiveram os
primeiros problemas do gostar de sexo [risos]. Foi disso daí que surgiu a
sociedade dos Ticuna de hoje, por causa do sexo malfeito aprenderam de
fazer casamento. Ai, devagarzinho essas lembranças vão ajudando a saber
das negociações de casamento nos dias de hoje, porque os Ticuna têm regras
de casar e proibir. Começamos, assim, pelo início dessas histórias
(Ernesto).32

O início da história começa naquele tempo (noregù*) dos “imortais, dos


encantados”.33 Estes seres primordiais são referidos pelos Ticuna como os ancestrais mais
antigos, “os ü'ünegü”, descritos pela condição de “meã na maǖ”, glosado como “aquela
gente que vive bem; gente que é corpo sem males”. Dotados de “sabedoria”, estes seres “são
mágicos”. Esta condição os torna “ngümawa”, cuja tradução reflete suas capacidades de
produzir “bons pensamentos” e seus efeitos. Por isso, não envelhecem, dançam, cantam e
namoram ao seu gosto.
Neste capítulo são expostos excertos do longo mito de origem dos Ticuna e de sua
“sociedade” contemporânea, narrado pelo casal Ernesto e Rosa. Ao evocar as
“nacümatchiga”, por eles glosado “história do povo, história dos ancestrais”, seu objeto e
objetivo consistem em introduzir ao leitor, do mesmo modo como a mim fizeram os


31
Aprendi que recordar, lembrar, pensar em algo/alguém pode ser dito pela expressão cuã’atchi*.
32
Esta conversa de abertura, como todas as demais que compõem este capítulo, foram registradas entre abril e
julho de 2013.
33
Ver Oliveira Filho (1988:74) para informações sobre o uso da expressão “encantado” como análoga à aqui dita
invisíveis/imortais/sagrados. O autor situa que esse mesmo tipo de evento é bastante comum e difundido nas
ontologias de populações ribeirinhas na Amazônia, remetendo-se à obra de Galvão (1955) e Nunes Pereira
(1980). Cf. Almeida (2014).
83

interlocutores, algumas premissas dos constrangimentos morais que entremeados em um


amplo panorama a respeito das filosofias políticas desse grupo dão início a um complexo e
não heterogêneo “mapa dos jeitos de ser e pensar as maneiras de estar entre parentes”, como
sintetiza Ernesto. De igual modo, essas narrativas iniciais nos guiarão na compreensão dos
capítulos posteriores, quando veremos uma sorte de vivências conjugais, nas quais
destacamos os processos sociais que envolvem a intenção de casar e a efetivação do
casamento (“nigü”*). Para compreendê-las, contudo, não pude, analiticamente, desarticulá-las
de enredos de conformação de narrativas sobre suas territorialidades (“na’ane”*), de suas
cosmopolíticas dimensionadas sob uma gama de eventos que descrevem os interlocutores ao
comporem as transformações por eles vividas.
Deste modo, ao escutar estas narrativas, estamos adentrando os processos de
formação dos regimes de conhecimentos que, iniciados no “tempo dos ancestrais”, ganham
contornos e conteúdos flexíveis, conforme são lembrados pelas narrativas dos princípios de
socialidades com base nos quais os colaboradores referenciam as lógicas de construção dos
laços de parentesco atuais, em seus gradientes de proximidade e afastamento. Percurso, como
já dito na introdução, entendido de forma similar ao estilo Piro, no Peru (Gow, 1991, 2001),
ou aos Quom, no Chaco argentino (Tola, 2012; Tola & Cúneo, 2013), enquanto um
“conhecimento encorporado” da formação de tais laços.
Começamos, então, conhecendo o tempo-espaço de socialidade que envolve todos
as “gentes” humanas e não humanas que povoam a cosmografia ticuna, sugerida aqui pelo
conceito de “na’ane”, cujas narrativas a respeito descrevem a presença dos “ü'ünegü”, “seres
imortais”, que habitam o Éware, morada dos demiurgos, e, que entre si, “vivem sem
casamento, sem compromisso”. É conhecendo como vivem estas entidades que passamos a
entender como sua participação no cotidiano dos interlocutores expõe bases de seus princípios
relacionais, uma vez que “os Ticuna de hoje” são descritos por seu contraponto conformador
enquanto “mundo dos mortais, da gente dos corpos com males”, dimensionado e concebido
como coextensão semântica às teorias de corporalidade e pessoa indígena, que culminam no
conceito de “mã’ǖ”, “um corpo-pensamento”. Neste enredo, direcionamos os modos como os
interlocutores percebem e associam o exercício da sexualidade como operador destas
diferenças ontológicas, geradoras dos patamares que hoje conformam a cosmografia em tela,
seus “mapas” relacionais.

84

1. Na’ane, “nossos mapas”

“Onde vivemos é a na’ane, é lugar de todo ser vivo, os duü’ǖgü. Na’ane é o


jeito que no nosso idioma, no nosso pensamento de ticuna a gente pensa que
é o mundo, o território. E ele está sempre mudando, indo no embalo, como
diz, das políticas de vivência, que foi criada assim, de primeiro, com os
ü´ünegü. Depois, vai vendo como segue a história, ela vai ficar dividida em
momentos de vivência diferentes; a na’ane é como o corpo, os pensamentos
das pessoas, ela ganha vida, movimento nunca é igual. Essa na’ane é feita no
comecinho, com os fios [tü*] de cabelo das mulheres ancestrais. Foi
mudando e mudaram os fios esses dai; agora é misturado em muito jeitos de
pensar, por isso daí que nosso mapa cresceu. Se muda as gentes que moram
na na’ane, esses fios mudam [porque os fios] que fazem seu jeito [contorno]
se enroscam de outros jeitos, com outros jeitos de ser, como diz aqui. As
gentes da na’ane se transformam. Foi assim, que aconteceram as divisões da
na’ane entre os tipos de gentes. Tá vendo? Agora essa na’ne tem fronteira,
parente Ticuna brasileiro, parente Ticuna colombiano e os parentes de longe,
os Ticuna peruano, que ficaram nesse mapa dos brancos, do outro lado do
rio. Tem os ü´ünegü lá no mundo deles, nós aqui na aldeia dos mortais”.

Pedro, um xamã reconhecido em sua rede de convivência, com estas palavras, nos
ajuda a apreender a ideia de “na’ane” enquanto uma cartografia inconstante de tempos-
espaços relacionais produzida nos trânsitos e coexistências de agentes, humanos e não
humanos, cuja distinção central manifesta-se, segundo ele e os demais interlocutores dessa
tese, nos seus corpos (“naüne”), sendo este último o marco diferenciador dos patamares de
socialidade e regimes ético-morais singulares entre aqueles que a povoam, num eterno
desequilíbrio dialético. Proponho tal leitura mediante um outro excerto deste mesmo senhor,
quando ele menciona, enfaticamente, que “na’ane é o corpo do tempo”. Um corpo (“naüne”),
que pelo que venho aprendendo com esta etnografia está em contiguidade semântica com o
que se entende enquanto “tempo das vivencias feito de conhecimento, de memória, de
inovação, do fazer parente, do fazer gente como Ticuna”.
Nesse sentido, as colocações de Pedro, desde minha perspectiva analítica,
parecem remeter a uma ideia de territorialidade assentada naquilo que aparatos explicativos
socioantropológicos se reportam aos processos de construção social dos espaços de vida
recobrindo redes de relações entre pessoas e lugares articulados e conectados por diferentes
85

mecanismos de significação, usos e apropriações dos territórios (Godoi, 2014; Little, 2002;
Haesbart, 2009; Sahlins, 1997; Oliveira Filho, 1998). Enfatiza-se nestas perspectivas que
territorialidade, então, não se limita somente à inscrição e materialidade das paisagens, senão
a sociabilidades que exprimem investimentos práticos e simbólicos resultantes num sistema
de representação social.
Partindo desses pressupostos heurísticos, tendo a ler a proposta desse senhor
ticuna no que ele propõe como “inovação” enquanto aspectos processuais, não desvinculados
de uma ideia de corpo e sujeito bastante descritos nas etnografias americanistas, desde os anos
1960, quando passamos a nos perguntar sobre o lugar do corpo enquanto locus relacional,
lançando luz a um conceito de pessoa indígena que se configura na extensão das próprias
ideias de territorialidade e socialidade. O que, retornando às palavras de Pedro, faz-se
compreensível, quando ele insistia em refletir sobre a relação fundamental ao conceito de
“na’ane”, de que “não há vivente nenhum, sem na’ane, nem na’ane sem vivente”. 34
Agarita Santos, Ticuna colombiano e linguista, nessa mesma esteira dos caminhos
explicativos fornecidos por Pedro nos diz que “na’ane” é teia relacional e reticular,
constituída pelo “macro que inclui tudo o que existe no universo, humanos e não humanos”
(2013: 12). Mais do que isso, segue o autor ticuna, “na’ane inclui o micro”, referindo-se aos
“espaços específicos e determinados que sejam diminutos e estão em integração com o
macro”; “na'ane inclui o tangível e o intangível” (Idem). “Na’ane”, portanto, como uma
relação entre parte de todo, é proposta pelo autor, ao que menciona: “cada ser (na) conforma
um na’ane e dentro de cada ser existe outros na’ane” (idem).
Esta relação fractal é disposta na seguinte colocação de Pedro, ao remeter-se às
narrativas sociohistóticas de conformação da cosmografia ticuna, explanando acerca da
condição indispensável “de misturas para ter mais gentes, mais jeitos de ser, se não é fim da
na’ane...
“Quando começou, tinha nadinha desse Brasil, Colômbia, Peru, Manaus,
Letícia [Colômbia], Iquitos [Peru]; não tinha documento, a língua
portuguesa, o espanhol; a fronteira; isso de aldeia, de terra indígena. O rio
Solimões não existia. Era só a água mágica do igarapé dos imortais. Nesse
tempo deles, dos ancestrais, a na’ane não estava toda formada, era do'ü*, que
quer dizer crua, para crescer como semente, que está na terra, mas conforme
o vivente mexe na terra, ela cresce diferente. Na’ane também é o lugar de

34
Cf. Cayón (2008) a propósito de aportes similares ocorridos entre os Makuna, povo Tukano Oriental no
noroeste amazônico e cf. a coletânea “Tierra adentro: Territorio indígena y percepción del entorno”. Alexandre
Surrallés e Pedro Hierro (eds.). Lima: Tarea gráfica educativa, 2004.
86

agora, nesse tempo nosso aqui como gentes mortais, yunatü ticuna. Ai cada
um tem jeitos de ser, cada grupo no seu jeitinho. Tudo gente como a gente,
gente bichos, gente árvores, gente como os não índios. Tudo isso tem alma
(ã’ẽ), aquela força principal para qualquer um ser considerado gente de
pensamento (duü’ǖgü). É assim digamos essa ã’ẽ: o que deixa a pessoa de
pé. Toda a gente que é duü’ǖgü, O mapa da na’ane os jeitos de ser dessas
gentes, isso vai conforme o vivente foi aprendendo do sexo, do namorar bem
ou errado. ”
O caráter de instabilidade e alteração que nos interessa reter dessas exegeses
indígenas que compõe a ideia do conceito ticuna em voga, na ocasião desta conversa, ganhou
dois exemplos disso que se vem descrevendo como “mapa”. Claudio, um sobrinho do
narrador acima mencionado, nos escutava e propôs fazer um “mapa” do que seria uma
imagem possível, desde seu ponto de vista, desses movimentos de transformações dos quais
estávamos a discutir. Para ambos, em trajetos bastante diversificados de produção de
conhecimento, esboça-se o mesmo sentido proposto à cosmografia (“na’ane”) e a uma ideia
de corpo (“naüne”) enquanto espaço-temporal contíguo e relacional, que congrega uma
totalidade fluida de agentes e agências. Para ilustrar seus pontos de vistas desses
“movimentos” transformacionais que evocaremos ao longo da tese, abaixo seguem duas
imagens, a primeira, o “mapa” da “na’ane” primordial, produzido por Pedro e uma de suas
netas, logo após, o “mapa” de Claudio.
87

Imagem do “mapa da na’ane” primordial produzida por Pedro.


88


Mapa da região do Alto Solimões produzido por Cláudio.

89

1.1. Antes do “sexo malfeito”, a indiferença

As narrativas míticas ticuna nos descrevem que os primeiros seres “imortais”


eram feitos do vapor d'água. Naquele tempo, dizem, não se conhecia o intercurso sexual para
procriar. Contam que do vapor d'água surgiu Mowichina, um demiurgo, caracterizado como
“um homem bonito, forte”. Como ele, surgiu sua “parenta” Ta'é, “uma mulher forte como
ele”. Do vapor d'água Mowichina cria o mundo e todos os “seres vivente desse tempo”. E é
ele, Mowichina, quem tem o poder de transformar o espaço-temporal da “na’ane”, a cada
episódio de destruição, em um novo terreno de vivência, cuja forma esférica (-pü) aloca aos
“duü'ǖgü*”. E, por isso, afirmam os interlocutores, sempre que se avista a neblina sobre o rio,
“é ele [Mowichina] renovando o mundo”.
Mowichina dá início a uma segunda geração de “gentes imortais”. Com ela,
atualizam-se outros pares de dualismos importantes, que se conjugam em mortais/imortais;
homens/mulheres; sexualidade/assexualidade, “poluído/sem males”, agora iniciando
contornos mais evidentes de relações de gênero que marcam a cosmografia em tela, alocando
ainda, e sobremaneira, o exercício “malfeito” da sexualidade como operador das novas
gerações de “humanidade”.35 A abertura dos orifícios sexuais será então o desencadeador
dessas dialéticas de aberturas à diferença, que passarão a dar novos ritmos transformacionais a
“suas gentes e corpos” .36
Mowichina cria, então, o Ngutapa, que “não tinha pai nem mãe nesse tempo,
porque não tinha gravidez”, por isso, parece que eles só “faziam namoros sem casamento”.
Rosa narra tal episódio, nas seguintes proposições, retomando desde seu ponto de vista,
noções sobre corpo e pessoa, destacando os trânsitos ocorridos entre as versões de
sexualidade:
“Ngutapa foi trazido ao mundo por Mowichina. Foi assim, sem ter feito sexo com
nenhuma mulher, como mágica. Nesse tempo era assim se ajuntava, não casava


35
Necessário lembrar-se da distinção entre humankind (espécie humana) e humanity (condição de humanidade,
de capacidades agentivas), as quais são traduzíveis por humanidade (Viveiros de Castro, 2002a). Ao longo do
texto quando a ela me referir será sempre em relação ao segundo sentido. Para a teoria do “perspectivismo
ameríndio” cunhada pelo autor, humanidade/humanitude deve ser entendida como uma capacidade reflexiva e,
nesse sentido, ela não é uma essência que pertence a uma espécie. Humanidade é um modo de ser e agir -
capacidade de atuar como humano - que está aberto às diversas espécies, não restrita, pois, somente àqueles seres
que nós compreendemos os como humanos, pois alguns animais, plantas e minerais são dotados de tal
potencialidade agentiva. Isso significa dizer que tanto o meu ponto de vista quanto o ponto de vista do jaguar,
como apontam o etnólogo citado, operam da mesma forma, pois ambos agenciam modos humanos de ser e agir.
36
Cf. C. Lévi-Strauss, em O Cru e o Cozido sobre o tema das “aberturas corporais” nos mitos da América do Sul,
no qual o etnólogo inclui referências a mitos ticuna.
90

como agora de marido e esposa, que fazem casa e filhos juntos. Isso só aparece
depois, quando Ngutapa dá origem à novas gentes [gerações]. Não tinha, naquele
tempo, vagina de mulher aberta, nem isso de família. Era só gente feita de vapor
d’água. Por isso, lá no Éware, no lugar desses ancestrais, os corpos deles são
outros. Sempre belos, são jovens os invisíveis. A água do igarapé deles é mágica,
cheia de poder da juventude. Diz que é saber deles isso daí. É o rio de onde saíram
os peixes que vieram antes de nós, os parentes antigos”.

Depreendem-se dessa fala, claramente, sentidos às outras lógicas de socialidade


neste espaço-tempo de convivência dos imortais, naquilo que distingue “jeitos e pensamentos
dos mortais” e os “imortais”, nessa versão deste “início de história de sexo e namoro sem
compromisso”. A esse respeito, Rosa, corroborando com as falas de seu esposo, aponta que
independente das não situações de conjugalidades, os códigos de condutas gerados por
socialidades diferenciadas e generizadas existiam e organizavam o tempo-espaço no Éware:
“Essas gentes de primeiro moravam separados. Às vezes, assim dividiam
as tarefas. A Mapana tinha roça grande para cuidar; o Ngutapa e o
Mowichina caçavam com zarabatana (ĩ'ẽ) e faziam veneno forte; juntos
homem e mulher cuidavam da na'ane; só que nunca dividiram a mesma
casa, assim de casal. Mapana e Ngutapa eram parentes de namoro, não de
filho e compromisso. Naquele tempo não tinha parente assim de cunhado,
irmão, irmã; não tinha obrigação de vivência como agora; nem negociação
de casamento, de pedidos. Eles não fizeram família juntos. Naquele tempo
não se tinha regra de casar. O povo dos primeiros imortais sabia
comportar-se, mesmo assim. Aí vovô conta dessas palavras para gente
lembrar que um dia pode voltar a ser assim, sem nigü [vínculo-aliança],
mas é preciso fazer bem esse compromisso com parceiro, não fazer mal
para ele aqui e com meus parentes de casamentos, os meus aliados. Por
isso daí esses ancestrais já tinham seus bichos para cuidar da na’ane
naquele, contra aqueles que saiam da linha”.

Vê-se aqui, alguns princípios do que no tempo atual do casamento e da aliança


são formas de socialidade constitutivas do que descrevem a tradução de ao “nigü”:
cooperação, mutualidade, complementaridade e respeito. A mesma colaboradora aclarava que
já se tinha notícias também nesses primórdios sobre os seres “ngo'ogü”, entidades cujos
poderes a eles outorgados por Ta’é os qualificam como entidades nocivas, que assumem
aparências diversas e habitam atualmente a floresta. Eventuais encontros com estes “seres
91

perigosos” são fatais, causam enfermidades, “loucuras”, “visões”, levam à morte aqueles que
“descumprem as regras de comportamento”. Eles são descritos genericamente pela categoria
de “bichos”, nas variantes que conheci em campo: “gente-bicho”; “espíritos malignos”;
“demônios”; “soldados de Deus”, “bichos de Ta’é” .37
Em situações de “poluição dos pensamentos” deve-se evitar estar sozinho, posto
que um “ngó’o ataca aproveitando que a pessoa está sem ajuda, está só com seus
pensamentos ruins (nacüma i tchi'e)”. Nestas situações, descreveram-me recorrentemente,
que ao “atacar” suas vítimas, os “ngo’ogü” ferem suas presas, “sugam seu sangue pouco a
pouco”, deixando a pessoa desorientada, “vagando” e tornam-se, com isso, “loucos”,
“histéricos”.38 Como “guardiões” do Éware, onde alguns deles vivem com Ta’é, a ajudam a
não deixar entrar “almas poluídas (natchi’i)” no Éware.
Minha leitura dessas condições de parentesco de pura afinidade entre as
primeiras gerações de imortais, condicionadas pela lacuna proposital da conjugalidade, é
narrada como termômetro da memória daqueles que na posição de mortais ticuna lembram-se
de que para alcançar sua condição de pessoa plena, projetada no devir imortalidade (Goulard,
1998), para fora do patamar de relacionalidades em que se encontram, portanto, precisam
além de saber casar bem, como veremos, também assumir certos “jeitos”, condutas e
etiquetas, adequadas a suas performances de gênero.

1.2. Do desejo do sexo, os “males do mundo”

A condição de estabilidade que caracterizava o tempo-espaço primordial dos


“ü’ünegü”, contudo, modificar-se-ia quando Ngutapa “perde controle pelo sexo” desejando
procriar com Mapana, para como Mowitchina, ter filho para dançar com ele. Tudo ocorre
quando certo dia, com fome, Ngutapa sai para caçar em companhia de Mapana. No caminho
de tal caçada ambos discutem, culminando numa série de violações que dão origem à vagina
(“tchinü”*) e ao sangue fértil e menstrual, fruto de seu choro. Alguns interlocutores afirmam
que a “briga”, “negociação” era porque Mapana não gerava filhos a Ngutapa, “que bravo,


37
Nimuendaju (1971) traduz o termo ngo’o como “demônio”, termo também empregado por muitos de meus
interlocutores, sobretudo entre aqueles convertidos, justificando o uso das três últimas glosas citadas acima,
notadamente referindo-se ao caso particular do Yereu, vinculado aos casais ou pessoas em situações incestuosas.
Voltaremos doravante a esse ponto.
38
Dizem ainda que tipos particulares dessas entidades causam suicídios. Cf. Erthal, 1998; Magalhães, 2014;
Cardozo, 2014.
92

com raiva, bate em sua companheira de namoro, assim um tipo de esposa sem compromisso
de casamento”.39
Alguns interlocutores afirmam que esse sangue já “era aviso dos males” que
estavam por colocar a imortalidade em risco, evocando a sentença fatídica: “foi bem aviso
que a na’ane ia se fazer com outro tipo de gente”40. Ngutapa é, então, na sequência da
narrativa, atingido pelos ferrões das cabas a que uma avó-pássaro presenteou Mapana para ela
“vingar” o ato sofrido. Essas cenas de violência pretérita, segundo esses interlocutores, dão
início ao “tempo de sofrimento”, que perdura nos tempos atuais, e, como já veremos,
materializam-se na perda da imortalidade de homens.
O desfecho de tal evento foi que os joelhos (“ãpüü”) de Ngutapa incharam,
“estavam grávidos (ãpü’üe41)”. De tal “gestação sem sexo”, fruto da vingança de uma mulher
violentada, nasce do joelho direito de Ngutapa, Yoi e sua germana Mowatcha, do joelho
esquerdo, Ipi e sua germana Aicüna.

Imagem dos germanos míticos. Figura retirada do livro Torü duǖ’ǖgü Manoel Inácio Pinheiro
Dawegocü, p.16.


39
Em Nimuendajú (1972), Oliveira Filho (1988) e Goulard (1998, 2009) é possível ler-se versões bastante
congruentes com esta que apresento. Santos Angarita (2010: passim p. 303-314), entretanto, apresenta uma
variação desta versão na qual Ngutapa violenta sexualmente sua esposa. Em suma, assim o autor conta:
“[Nugtapa] La llevó al monte diciéndole que iba de cacería y aprovechó esta situación para atraparla; allí la
cogió, la desnudó, la amarró con bejucos contra un árbol y de esa manera abusó sexualmente de aquella
inmortal”. Ao levantar esta versão entre alguns interlocutores, disseram desconhecer estes atos, afirmando, do
contrário, que tais ações são recorrentes entre os “mortais”. Não obstante, não negam que o episódio é dramático,
“e por isso ajuda a lembrar de saber ter bom comportamento”.
40
“Menstruação simbólica”, segundo Matarezio Filho (2015) que analisa o mito em relação ao ritual de
puberdade feminina.
41
ãpü’üe se traduz literalmente como estar cheio. Aplica-se também para dizer que o paneiro de farinha está
repleto; que o ouriço da castanha está com frutos, por exemplo. Cf. Matarezio Filho (2015, Capítulo II, sobre os
conjuntos de transformações nos mitos ticuna que envolve a figura do homem grávido, pensando sua passagem
até eventos de reclusão feminina, passando pelo sangue como operador simbólico da diferença de gênero (: 136).
93

2. Da gestação, os múltiplos e oposições criativas

“Assim foi que surgiu no mundo nossos pais, Yoi e Ipi e suas irmãs. Yoi e
Ipi são os ancestrais. Já são outra geração de gente imortal. Esses ai já eram
de jeitos diferentes. (...) Depois que eles chegam no mundo, veio os
problemas de vivência, foi inventada as regras de convivência e isso tá
marcado até agora nas nossas políticas, assim da organização dos jeitos de
ser dos parentes. Eles não sabiam controlar as vontades por sexo esses
irmãos. Um deles veio no mundo mais forte do que o outro. Brigavam
demais.... Suas brigas fizeram triste o Ngutapa, o Mowichina, a Taé, todos
os duü’ǖgü. Ai, foi que separou o mundo em aldeia dos imortais, lá no
Éware, o mundo do meio dos mortais ticuna e das outras gentes que foram
surgindo: os brancos de todo os tipos, os outros povos indígenas, os gringos.
Eles vieram para fazer a na’ane e as suas gentes mudar de novo. ”


Yoi e Ipi, tal qual o par tupi Lince e o Coiote ou o par jê Sol e Lua apresentados
por Lévi-Strauss nas “Mitológicas”, são descritos como gêmeos, que crescem depressa, e
cujos qualitativos contrastivos sempre se distinguem um do outro assimetricamente, numa
desigualdade sempre relativa. Yoi, irmão mais velho, é o primeiro a sair com sua irmã
Mowatcha dos joelhos de Ngutapa. Sabe-se que Yoi era calmo, pensava antes de agir; fazia
tudo certo; Ipi, com características antitéticas, apresenta-se desobediente e atrevido; era
aventureiro, perguntador, não escutava muito aos conselhos, tinha desejo pelas mulheres.
Dotados de tais atributos, os irmãos ancestrais foram crescendo, ensinando os que vinham a
ser assim também. Descreve-se que Yoi, sempre ajudando ao seu irmão mais novo,
aconselhava-o, do mesmo modo que fazia com suas irmãs, de quem apenas mencionam serem
de características similares ao Yoi. O Yoi faz roça, caça e faz zarabatana, seguindo o que
Ngupata e a Mapana o aconselham. Ipi, no jeito dele, se metia em aventuras arriscadas; rouba,
mente, trapaça, engana seus irmãos. Frisa-se nestas narrativas que Ipi, é “gente em quem não
se confia”.
94

Atributos Yoi Ipi

Associado ao lado esquerdo e ao


Associado ao lado direito
Orientação ao leste (daukena) oeste (tawama)
direção da nascente do Solimões e para onde correm as águas do rio;
da morada de seus predecessores também associado ao Peru.

Gêmeo mais velho Gêmeo mais novo


Nascimento

Zarabatana Arco e flechas


Habilidades
Bom manejo do controle sexual Mau manejo do controle sexual
Moralidades
Calmo, produtivo, caçador, Agitado, falador, perguntador,
atento, prudente atrevido, desobediente
Mowatcha Aicüna

O mito ticuna conta que os irmãos, em companhia de suas irmãs, recriam o


tempo-espaço a pedido de seus geradores. Porém, agora, Yoi e Ipi afastados de seus “pais
criadores” estão ao gosto de seus “próprios desejos”. Com efeito, depois do afastamento, a
distância produzida gera a instauração definitiva da desordem sob a “na'ane”. E sem o auxílio
dos demiurgos, reconstruir o mundo, tal como o que viviam os “ü'ünegü”, já não era possível.
Como sublinham meus interlocutores: “nesse tempo dos irmãos começa a existir outras
maldades do mundo”. É o solapamento de um tempo de “boa convivência.

2.1. Womãtchi
“Womãtchi é sexo malfeito. Assim, de primeiro, era namorar com a irmã,
com a mulher que estava com o seu irmão. Assim foi com Ipi. Ele queria
namorar a irmã dele, a Mowatcha, depois a Aicüna. Já pegou a moça que o
Yoi queria se ajuntar. Casamento nesse tempo aí parece que não tinha, mas
já se ia morar junto, assim de casal de um homem e uma mulher
(nügümucü). Não tinha palavra dessa de virar esposo (nate) e virar esposa
(namâ). Não era compromisso, casamento, só casal [conjugalidade]. Daí
desse tempo que aprenderam os antigos as regras para casar bem, por causa
disso daí parece, do sexo malfeito. Assim diz nas palavras dos antigos”
(Ernesto).
95

É após atos de sexo malfeito, cometido por Ipi, que, “triste”, Yoi, assim como
fizeram seus predecessores, separa-se, definitivamente, de seu irmão. As ações de incesto
foram empreendidas por Ipi, primeiro, desejando dormir com sua irmã Mowatcha. Evento que
provoca novas tensões, “porque ele não sabia controlar seus desejos; ficava chamando sua
irmã para fazer sexo com ele”.
Posteriormente, Ipi comete um tipo de incesto contra Aicüna, sua germana gêmea,
evento este que dá origem à vagina (“tchinü”) nesta nova geração – indicando que as
consequências dos atos violentos de Ngutapa sobre Mapana não surtiram efeitos em seus
filhos, no que tange aos aspectos da sexualidade feminina, ao menos. Rosa explicava, ao
narrar esses episódios, que “tchinü” refere-se à “parte do corpo da mulher, com respeito”,
diferentemente, de quando se “faz piada”, empregando-se o termo “ngeatchare” – cujo
emprego observado em campo ocorria sempre entre algumas interlocutoras jovens, entre doze
e vinte dois anos, solteiras, ao fazerem brincadeiras jocosas entre si, aludindo tal termo às
mulheres que tinham “vagina grande”; “usada muitas vezes”; “quem gosta de fazer filhos ou
namorar por aí”. E rindo glosavam: “boca de mulher para semente de homem”,42 referindo-se
ao sêmen como fonte de sementes, o que veremos, doravante, ser uma metáfora bastante útil
nas teorias de concepção, a partir das quais se entende que as insígnias identitárias (metade e
clã) são transmitidas aos filhos pelo sêmen (“namũ”), que é resultado, para alguns, do
consumo de bebida fermentada de mandioca (“pajuaru”), produto especificamente dotado de
agência feminina, tendo ambos, inclusive, mesmas nominações. Voltaremos a esse ponto.
Tudo se passa quando Ipi sabendo que lhe era interdito alimentar-se com carne de
gavião, “teimoso”, insiste em roubar a carne de sua germana Aicüna, que, para não a perder
para Ipi, a escondeu entre suas pernas, resultando, então, novamente na abertura dos orifícios
sexuais femininos. Ernesto assim contou-me tal episodio mítico:
Em um terceiro ato “de sexo malfeito”, Ipi, desta vez, “rouba a mulher de seu
irmão Yoi” - de nome Tetchi arü ngu'ü Tetchi arü ng'ü, que traduz literalmente fruto da árvore
de umari (geoffroea spinosa). Ipi a engravida (“ãpüü’e”) às escondidas. Tudo se passa
quando sozinhos, Ipi e Yoi e suas irmãs, então, para refazerem a “na'ane” derrubam a
samaumeira que tapava o sol e cujos galhos mais altos, que alcançavam o firmamento, eram
sustentados por uma preguiça gigante, a pedidos de Mowtchina. O tombamento de tal árvore
deu mais movimento aos tempos-espaços diferenciados, redesenhando a morfologia do

42
Cabe notar ainda que a casa (“ĩ’pata”) corresponde ao um corpo feminino (Cf. Goulard, 2009), onde a porta
principal í’ã, por exemplo, traduz-se como vagina/boca da casa. Cf. outras etnografias com descrições similares:
C. Hugh-Jones,1979; Hugh-Jones, S. 1979; Van Velthen (1995); Erikson (1987, 1996), Lea, (1986), para citar
alguns.
96

“mapa” da “na’ane” primordial: onde tombou a copa da árvore está o Éware, morada dos
imortais. No tronco e galhos estão os mortais, e as variadas escalas do “mundo do meio
(duẽtagüane)”. Passa-se a ver as estrelas, a lua e sol, antes escondidos dos imortais.
Em troca da ajuda, Yoi “entregou” em casamento sua irmã Mowatcha para o
quatipuru que os auxiliou na tarefa de derrubada da samaumeira. Dizem que esse matrimônio
foi o primeiro casamento que gerou “filho pelo sexo”, como lembra Rosa, a narradora que
havia comentando sobre a origem “mágica” dos seres primordiais. Ela mesma enuncia que
“nesse tempo, parece que aprenderam a trocar as irmãs e os filhos começaram a nascer da
vagina e serem feitos do sexo de casal. Aí parece que começou isso de família”. Não à toa,
diziam Rosa e Ernesto, que no tempo deles de “jovem e para casar”, ensinaram-lhes que
desse episódio pretérito surgiu um dos quesitos para “um bom” cônjuge, entre eles, notam
saber derrubar a mata para abrir espaços de roça, simultaneamente a outros atributos como
domínio da língua portuguesa, espanhol, estudo e trabalhos remunerados.
Porém, inesperadamente, o tronco da samaumeira seguiu rebrotando e iria
alcançar de novo o céu, lugar de morada da preguiça gigante. Para isso não ocorrer, era
preciso tirar-lhe o coração (“mã'ũne”). Este coração, “sede da vida da árvore”, depois de
enterrado, tornou-se a semente do umari. Dele nasceu uma árvore da qual o fruto tornou-se
uma “bela mulher”, personagem central na relação conturbada entre os gêmeos, a qual põe em
movimento mais uma série de atos de “sexo malfeito”, desta vez, contudo, definitivos ao
surgimento dos “Ticuna de hoje e das primeiras regras de casar”. Passa-se, assim, a se
redesenhar as lógicas de parentesco, quando a consanguinidade genérica característica do
tempo prístino passa a ser “um problema de parente”, qualificou Rosa, que nos conta que:
“Passou tempo, o umari ia crescendo, caiu a frutinha, virou gente, virou a
moça Tetchi arü ngu’ü. Yoi a levou para casa para ser sua mulher. Com
medo (mu’ǔ) que seu germano roubasse dele a mulher, Yoi diminui a esposa
dentro de uma flauta de osso. Após muitos esforços de Ipi para conseguir ver
ela, certa vez dançou com o pênis (natchane) para fora. Tetchi arü ngu'ü
achou foi bem graça de Ipi, saiu da flauta e ficou visível a ele. Como temia
Yoi, ao ver a cunhada Ipi fez sexo com ela (tchangewaë). Depois ele tentou
disfarçar, com medo de seu ato. Tentou devolver Tetchi arü ngu'ü para a
flauta de onde saíra, mas já não era possível. Sua barriga estava grande. Ipi
sai correndo em busca de seu irmão e no caminho pega a fruta da paxiúba
(Socratea exorrhiza) e esfrega no seu pênis, para disfarçar, fazendo com que
o órgão dele inchasse, para disfarçar que estava assim cheinho de sêmen
(namũ). Isso disfarçava, tirava dele a culpa e de ser pai do filho que vinha. ”
97

Narram alguns interlocutores, que nesse tempo Yoi “não era ingênuo”, sabia que
fora seu irmão o causador da gestação “com sexo” de sua esposa. De acordo com meus
tradutores ticuna, “womãtchi” poderia ser traduzido como “carnes trançadas erradas”,
“carnes mal trançadas”; o que acarreta na “feitura [fabricação] “gente [mã’ǖ] poluída; assim
como que o suporte [mã] não fica firme, não está no lugar certo”.43.
O que resulta, pois, na ideia de “sexo malfeito” como ação que “não presta
(ucaǖ), deixa pessoa, corpo e pensamento dela poluído (puya)”. Algo na oposição dos efeitos
de viver-se bem que conformam os “fios de pensamento” desse tempo-espaço relacional. Seu
Pedro é quem descreve o princípio causal de tal estado de “poluição”, mobilizado pelo
exercício da sexualidade equivocado:
“O que faz gerar essas poluições é o sexo malfeito. Esse sexo malfeito pelo
Ipi, esse safado que não controlava o desejo pelo sexo, vira sangue de
mulher, traz cheiro forte, perigo (ãucümãǖ). Naquele tempo dos primeiros
imortais, não se roubava mulheres de seus parentes. Cada pessoa, Ta’e,
Mapana, Ngutapa, Mowichina andavam de namoro com quem queriam e não
se ajuntava rede de dormir na maloca deles. Começaram a sentir, eles os
homens, primeiro, os de desejos de sexo malfeito, foram furando as
mulheres e deixando vir os jeitos de fazer parente de outro jeito, fizeram,
nesses tempos dos antigos, que ia mudando os pensamentos já os primeiros
nomes [termos de parentesco] de parentes quando chegou os irmãos gêmeos,
de jeito diferentes, os Yoi e o Ipi”.
Disso se pode aferir que o contato inicial com a contaminação dos “pensamentos”
é fruto de moralidades expostas pelos homens imortais, Ngutapa e posteriormente Ipi.
Desencadeiam-se, pois, necessidades de orientações éticas para a “boa convivência”. A ideia
de contaminação (“üwa”) emerge, então, nesse tempo dos antigos, em decorrência de laços de
conjugalidades arranjados de modos equivocados. Por isso, afirma-se que “womãtchi” é
efeito de um tipo de casamento errado desencadeado por Ipi, cujas consequências vão do
entristecimento dos parentes aos impedimentos de devir imortalidade, uma vez que Ta’é,
segundo contam, ensinou aos seus “bichos” guardiões do Éware, a arte do canibalismo. Alguns
desses “bichos” vão em busca de “gente womãtchi”, perseguindo-os pelo forte cheiro que
emanam de “sangue poluído (puya)”. Acham a pessoa, onde ela estiver, na aldeia, na cidade,
mesmo em “São Paulo do Sul”, afirmavam.


43
Cf. Valenzuela (2010) onde o etnógrafo propõe desde sua rede de interlocução ticuna na Colômbia “carne
torcida, pensamento torcido” (:10).
98

As ações de Ta’é visam barrar a entrada de gente nestas condições, mesmo antes
da morte, quando as almas em tais estados, são por ela devoradas, e seus resíduos tornam-se
“as gentes defeituosas” do “mundo de baixo” [subaquático ou subterrâneos]”.44
“Womãtchi”, em poucas palavras, é o símbolo da relação com alguém
excessivamente próximo. É o “desejo descontrolado”, tanto em relação a Ngutapa quanto a
Ipi, que converte o intercurso sexual em uma escala deletéria de exercício da sexualidade.
Afinal, produz-se com tal ato o inverso do parentesco, ou seu negativo: o incesto. Desse
modo, “womãtchi” é o evento necessário à produção da diferença, que passará, com a
instauração da “regra das nações” e o dispositivo de exogamia, a ser o princípio organizador
do tempo-espaço relacional do parentesco. Nesse sentido, “womãtchi” foi mencionado como
“lembranças” deixadas pelas “palavras dos antigos para fazer bem gente e parente ticuna,
aprender a casar certo”.
Mais do que ações violentas empreendidas por homens, o “sexo malfeito”, a
abertura ao outro está neste formato “perigoso, entristecedor” e dúbio, associado aos atos de
Ipi – o que não raro se atualiza no cotidiano das “piadas” entre os interlocutores, que
costumam qualificar algum homem que esteja portando-se de modo exagerado, ou “sem
responsabilidade”, não restrito às condutas sexuais, como: “aí vai o parente de Ipi”. Yoi,
então, na sequência das narrativas míticas, deixou sua “bela mulher” ao germano, a quem
“queria como esposa” em consequência do “sexo malfeito”.
O exílio dos demiurgos provocado pelos contínuos atos de “sexo malfeito”, e dos
irmão criadores dos “Ticuna de hoje”, gerou a condição de tudo aquilo presente no “mundo do
meio (duẽtagüane)”, zona na qual vivem os interlocutores: a submissão ao tempo, onde se
envelhece, se morre e se conhece o estado de tristeza (“ngetchãǖ”); onde se briga, onde se
aprende a arte da feitiçaria (“tchutá”); onde se tem religião, pecados; sovina (“uaü”),
.45
“dívida”, traição (“ta nee”) ciúmes (“nüŭwae”), fofoca (“oregütaegü’e”) Não à toa, o
“mundo do meio” é tempo de instabilidade (“do’one”), “de gosto amargo (ü)” e socialidade
perigosa (“ãucümãǖ”) e “poluída” (“puya”). Como frisou Rosa, “aqui nesse tempo e lugar da
na’ane que vivemos agora, tem casamento, regras e confusão. É tempo de gente tudo poluída,
já vem com sangue no corpo, para marcar esse jeito diferente de ser”.


44
Cf. Santos Angarita (2010, 2014) para uma descrição detalhada destas zonas cósmicas.
45
Aprendi alguns modos de designar o que meus interlocutores de tese afirmam ser algo correlato à noção de
“fofoca”. Ensinaram-me sobre um gênero discursivo bastante pejorativo, “oregütaegü’e”, traduzido literalmente
como “palavras feias”. Aprendi também haver outras formas para “falar mal de alguém”, para se emitir
“palavras malditas”, quais sejam: õwiga”, “uuchiega”. Em relação aos ciúmes, ensinaram-me que pode ser
“we’e”, aparentemente associado com “ciúmes de amor”.
99

2.2. Da pescaria à afinidade

Com o nascimento do filho de Tetchi arü ngu'ü e Ipi, era preciso empreender
alguns cuidados de proteção, especialmente a prática lembrada até hoje de pintar o corpo
(“chà e matü”) de recém-nascidos (“o'oiracü”) e da parturiente com jenipapo (e), cujos
corpos estão sensíveis dado o contato com sangue no momento do parto. São pintados, então,
como meio de evitar ataques indesejados de seres “ngo’ogü”, que têm a cor negra46. Alguns
interlocutores disseram-me que se os pais não levam tal resguardo a sério, “passam bem mal
da barriga [referindo-se ao estômago, que parece estar na fisiologia ticuna associado ao
coração], e parece que foi coisa da mulher do Ipi que deixou isso daí para lembrar dos
cuidados”.
Contudo, Ipi, desatento (na ngeã’ē*, “sem pensamento”), ao preparar o sumo para
que sua esposa realizasse o procedimento de pintura, sem escutar os conselhos de seu irmão e
de sua irmã Mowatcha, que já havia tido uma filha, acaba ralando o seu próprio corpo,
mesclando-se à tintura negra. Após ter o corpo pintado pela mãe, esta, então, descarta o que
sobrara do sumo negro no rio Éware. Tempos depois, essa borra jogada fora vira piracema.
“O rio fica cheio de peixes; peixes de todo o tipo; de todas as espécies”, contam meus
interlocutores. Ipi, estando mesclado com o sumo no rio, torna-se peixe também. Tetchi arü
ngu'ü, por consequência das atitudes negligentes de seu ex-marido, ficara sozinha com seu
filho, e “desamparada, como mãe solteira”. Diziam-me que ela sentia saudades e vergonha ao
mesmo tempo, e queria seu homem de volta. Yoi a vê triste e a chama para pescar, na
tentativa de trazer o irmão incestuoso de volta. Nesse ínterim, Yoi casou-se com a filha da
irmã de Ipi, Aicüna, que havia se unido à cutia, e, com sua “sobrinha”, Yoi teve um filho47.


46
Cf. Carneiro da Cunha (1978) a propósito de evento similar entre os Krahô. O mesmo procedimento entre os
ticuna é realizado contra ações de feitiçaria e em qualquer outra ocasião em que se entenda que os corpos
estejam frágeis e suscetíveis à captura de sua alma, componente indispensável à sua condição de estar vivo
plenamente (mà), especialmente crianças e idosos, porque seus corpos, segundo aprendi, estão mais fracos, com
pouca força vital (pora), momento em que estão no melhor jeito que os ngó’ogü da floresta gostam, comunicou
Nonato, um outro interlocutor, aposentado da roça e xamã. Pinta-se de preto também como método para espantar
pernilongos (ã).
47
Sobre casamentos do tipo oblíquo, Cf. Goulard & Barry (1998/1999). Em campo não soube de nenhuma
ocorrência.
100

2.2.1 O povo Magüta


48
Imagem do mito de origem dos Ticuna retratanto a pescaria de Yoi.

De acordo com as narrativas colhidas em campo, Yoi ao ver o rio cheio de


peixes, quis pescar o seu povo; reordenar o mundo. Para isso, ele primeiro usou isca de
tucumã (Astrocaryum aculeatum) sem sucesso: tudo o que fisgava tornava-se animal ao tocar
a terra, não gente como ele desejava. “Depois do sexo malfeito, e da pescaria, tudo que
nascia novo, não era mais imortal”, ressaltava-me Pedro. Alternativamente, Yoi utiliza-se,
então, de isca de macaxeira cozida, com a qual pescou os “Magüta, os Ticuna verdadeiros”;
“a primeira geração dos mortais e a primeira que aprendeu a casar certo”. Ernesto
comenta:
“Yoi pesca também aos brancos, aos negros, aos colombianos, aos
gringos.49 O exagero de sexo malfeito de Ipi já mudou as águas do rio, já
não são mágicas, só para os ancestrais primeiros, que seguem jovens e
bonitos no canto do mundo onde foram morar. O suco do jenipapo feito do


48
Imagem de domínio público copiada do site do Museu Ticuna Magüta : http://museumaguta.com.br/
49
Os “gringos” formam uma nova categoria social integrada, de acordo com Goulard (1992), nas décadas mais
recentes, e agrupa pessoas estrangeiras ou ainda aquelas que apresentam traços muito diferenciados da
população regional, sem ter em conta necessariamente a nacionalidade. Assim, o que define a categoria gringo
entre os ticuna está relacionado aos traços físicos particulares, olhos e pele clara, e também o domínio de línguas
diferentes ao ticuna, ao espanhol ou português, e estarem usualmente sozinhos, distanciados de suas famílias.
Gringos e mestiços (tama) aparecem classificados na categoria genérica de awane aos meus colaboradores,
enquanto ao de Goulard (1998) estas gentes são inclusas no que consideram eles corigü, que de acordo com o
etnólogo associa-se aos não indígenas. Sobre o tema da presença, ações e o lugar que ocupam os gringos na
amazônia indígena, ver Peter Rivière (1991), Peter Gow (1993, 1995, 2001). E especificamente acerca da
presença, conceituação, origem e definições desses sujeitos entre os ticuna, ver Valdivieso (2005).
101

corpo de Ipi ralado poluiu essas águas do Solimões. Quem vinha do peixe,
já era outro tipo de gente”.
Já tendo pescado uma miríade de alteridades, sem, contudo, conseguir pescar seu
irmão, Yoi pede a Tetchi que o tente, mudando a isca para banana crua (“po'i”), quando ela
pesca, finalmente, Ipi. “De volta ao corpo de homem”, dizia-me Rosa, Ipi resistia, contudo,
em permanecer com sua gente, pois havia conhecido o “povo da abundância”. Estes, de
acordo com o que ouvia, “tinham panelas, facas, machados, espingardas, cadernos e canetas,
motores, barcos; milho, açúcar; sabiam ler e escrever numa língua diferente”. Ipi havia ido
ao mundo dos “awane”, em direção oposta a que estavam os “imortais”.
Porém, para que Ipi não retornasse sozinho ao mundo de “fartura, do ouro, dos
metais”, Yoi lhe pede que, antes, usando isca de banana crua, ele pesque seu próprio povo,
dizendo-lhe que gente sozinha no mundo é triste. Assim, dizia-me um neto de Ernesto,
jovenzinho, a quem dei aulas auxiliares de geografia e história:
“Ele, Ipi, pescou as gentes do outro lado do rio; pescou aos peruanos e os
outros tipos de gente, que começaram a viver naquele lado; esses que não
são os magüta, viram os awane. Aí pode ser os inimigos índios de outras
etnias: os Cocama, os Cambebas, os Caixana. Muito tempo atrás eram os
Omagua, diz nos livros sobre a história dos ticuna.50
A narrativa segue pelas “versões” conhecidas de meus interlocutores informando
que Yoi, sabendo que seus “parentes ancestrais” haviam seguido caminho para o leste, e
para evitar que Ipi e sua gente lá chegassem, ele “gira o mundo”. Gira a terra e inverte o
fluxo do rio, opondo os lados. Ipi segue com sua gente, para o “outro lado do rio, lugar dos
awane”.
A narrativa da pescaria insere motivos para ilustrar outra cisão e novos conjuntos
de diferenciações na cosmografia ticuna, simultaneamente pensada enquanto enredos que
distinguem espaço-temporal, ética e moralmente às “gentes pescadas do rio”. Cada germano
e suas gentes vão fazer sua morada nos “umbigos/cantos” do mundo, em cada extremo do
que hoje se atualiza cartograficamente, como o fluxo do rio Solimões, como explanava o
jovem neto dos narradores principais deste capítulo. Ele próprio comenta ainda que “vai
mudando, vai mudando, vem até os dias de hoje, isso que estamos falando a respeito da
pescaria, vai e vem gente nesse rio. Ai é outro mapa”.


50
Para versões variadas acerca deste evento que dá origem aos Magüta e os demais povos do cosmo, Cf. Oliveira
Filho (1988), López Garcés (2000), Camacho (2003), Goulard (2009: 394-394), Santos Angarita (2010), Gruber
& Organização dos Professores Ticuna Bilíngues (OGPTB) (1997). Aqui especificamente, o colaborador refere-
se a um livro com o qual conta ter tido contato numa escola na cidade onde estudou por dois anos.
102

Aberturas aos Outros I

Das pescarias e “gentes da na’ane”


A
U’ünegü
(imortais)

Yoi Ipi

Magüta Outros (awane)


(gentes do Yoi) (gentes de Ipi)
Ticuna “branco”, “civilizados”,
Colombianos, “gringos”, “missionários”
Negros outros povos indígenas


pescaria (“magü”) é, neste enredo narrativo, o evento que inaugura o surgimento dos
“mortais”, dos “yunatü, dos ticuna de hoje”. Evento este que é gerativo ainda de muitas
categorias de alteridade com quem estes últimos, separados do panteão dos demiurgos,
passarão, a partir de então, a interagirem no “mundo do meio”. Da pescaria dá-se origem ao
“povo Magüta, os primeiros seres que chegaram à na’ane sem a força da imortalidade”.
E, assim, o “sexo malfeito” é o vetor desencadeador de uma sorte de eventos
críticos formuladores de novos agentes e perspectivas sobre a cosmografia e dos modos
adequados ou não de estar-se aparentado com alguém. Por meio dele, nos aproximamos de
um conjunto de termos em progressiva transformação, desencadeada, entre outros motivos,
até aqui, ao menos, pelo sexo, ou falta dele, inicialmente. A sexualidade, como queremos
argumentar, passa a ser questão de parentesco ao ticuna, mesmo antes das “regras das nações
[clãs]” e seus dispositivos de controle, o par de metades exogâmicas e clãs patrilineares,
existirem. A sexualidade na chave do “sexo malfeito” tem sido elemento central às mudanças
da sociopolítica ticuna, como vimos, “marcadas” corporal, ética e moralmente sobre os
personagens primevos, mediadas por conjuntos de relações entre homens e mulheres, “bem ou
malfeitas”. Com efeito, é ela, a sexualidade, espaço criativo, ou vetor de alteridades, uma vez
que é através do seu exercício, retórico ou empírico, que constantemente geram-se novos
termos para os jogos de diferenciações, os quais tendem a alocar os espaços-temporais e os
agentes, no que se formula entre um “contínuo e o descontínuo relacional” (Lévi-Strauss,
2008).
103

A instabilidade, como propriedade geral das cosmologias ameríndias, seguindo a


perspectiva estruturalista, é o que atribui “valor negativo” ou “mesmo maléfico” à simetria e à
indiferenciação (Lévi-Strauss, idem). Dessa forma, a gestação masculina, provocada “sem
sexo”, o nascimento dos gêmeos, os desentendimentos e estados de entristecimento dos
“ancestrais” em relação ao episódio de violação de Mapana, conjugados às aventuras
ulteriores realizadas pelos gêmeos adultos compõem, no caso das cosmopolítica Ticuna, os
alicerces propulsores da presença do desequilíbrio perpétuo. Ou, nos termos nativos, das
instabilidades (“do'one”) relacionais nos tempos-espaços da “na’ane” primordial. E, por
conseguinte, sua reorganização em diferentes zonas cósmicas, das continuadas bipartições
entre os Ticuna e seus outros. Cabe-nos, pois, para encerrar o capítulo e dar continuidade a
essas questões de organização social e parentesco, conhecer sobre outro importante marcador
indígena de diferença social que parece alicerçar os cosmos, “o[s] sangues”. Vamos a eles e
retornamos com alguns outros alinhavos acerca da “na’ne” e da noção de pessoa como
conceitos semanticamente contíguos.

3. Sangues os “males do corpo”

“Assim é, O sangue (nagü) que têm hoje os mortais, os Ticuna e todos


que vieram depois da pescaria, é o que diz quem eles são [qualifica a
perspectiva]” (Rosa).

Os “imortais”, em oposição às mortais, não têm corpos constituídos por este


fluido, porém, como segue a explicação de Rosa, eles têm a água mágica da juventude que
alimenta o jeito deles pela neblina, pelos banhos no rio Éware. O primeiro tipo de fluido
possui atributos de vitalidade, “alegria, leveza”, enquanto o segundo tem estatuto “de vida
breve”, equivale, numa glosa ao português, a substâncias agentivas dotadas de “poluições”,
por isso, requerem, seja “sangue de mulher” seja “sangue de homem”, cuidados.
A analogia é pertinente à qualificação da distinção ontológica exercida entre os
fluidos corporais, os agentes e suas condições de humanidades, entendidas a partir de seus
corpos. Veremos a seguir algumas notas etnográficas sobre o sangue (“nagü”), em
continuidade com a noção de “poluição” (“puya”) e “sexo malfeito” (“womãtchi”). Para
algumas análises indígenas que conheci, “nagü” exprime em português “o jeito” que se
pensa.51 “Nagü” faz parte do pensamento, é um conhecimento que faz a perspectiva dos


51 Cf. apêndice do capítulo a conjugação verbo produzida por Elis, neta de Rosa.
104

mortais singulares, e com atributo de ser um sangue genérico, comum a todas as pessoas
mortais que habitam junto com os Ticuna o “mundo do meio”. Neste patamar
sociocosmológico, cada “tipo de gente”, homem ou mulher, animais e vegetais, tem o seu
próprio sangue-pensamento, os “fios de vida do mundo”.
Pedro comenta que este sangue dos “Ticuna de hoje” tem qualidades
diferenciadas daquele vertido por Mapana, quando de sua violação por Ngutapa, tendo em
vista que o “sangue tipo nagü” apenas acomete os corpos dos mortais, então, que este
“sangue de pensamento”, segundo ele, todos Ticuna, homens e mulheres, possuem. “O
sangue das mulheres”, contudo e do contrário, segue o xamã, “vem do sexo malfeito, das
tristezas dos ancestrais para o povo de agora se lembrar de comportar bem”. Se aquela
marca genericamente a distinção ontológica da qual falamos nas páginas precedentes, este
último contém “veneno, é puya”, e distingue entre os mortais, questões de gênero.
“Ter sangue de mulher [menstruação] não é ruim não, Pati. A gente
ganhou com ele, na dor daquelas ancestrais, poder que eles, os homens,
tinham de fazer mal; elas choraram e fora, furadas, nasceu a vagina de
mulher, e agora nosso sangue é que é perigoso para eles [risos]. Se a
gente não cuidar, dá doença neles, se a gente cozinhar nesses dias de
sangue, por isso pode ser veneno de mulher para vingar até hoje os
homens”.
Uma hipótese interpretativa a estes estados de “poluições” também fortemente
conectados às agências generizadas associadas à sexualidade, teriam sido efeitos de ações
empreendidas pelos homens, dando a emergência de qualitativos deletérios aos homens e não
às mulheres. Uma inversão no interior da qual Rosa identifica a distinção das agências nos
fluidos corporais e das relações de poder que delas podemos depreender: “nós temos o sangue
nagü, e temos o sangue gümata, só das mulheres. Eles têm o namũ [sêmen] e o nagü”.52
Se no espaço-temporal dos Ticuna atuais são as mulheres que são férteis, pois
passam a ter sangue menstrual, no espaço-temporal dos “imortais” eram os homens aqueles
que, com “sofrimento”, geraram o par de gêmeos, que sim, fundaram as lógicas de reprodução
sexuada. Uma inversão de agências passa a operar, portanto, mediada pela noção de
menstruação, fertilidade e poder.

52
Belaunde (2006: 205) comenta que “o sangrar põe a fertilidade em movimento, abrindo a comunicação entre o
tempo cotidiano e outros espaços-tempos cosmológicos, expondo ambos os gêneros ao perigo da multiplicidade
transformacional, à alienação e à morte”. E nesta relação a autora, retomando as leituras de Overing (1986) sobre
as concepções piaroa sobre a menstruação, entendida também como uma espécie de veneno, postula que o
sangue ocupa posição de catalisador das diferenças e semelhanças entre o gênero feminino e masculino. Tal
ideia baseia-se no que Belaunde sugere, posteriormente, ser o “sangue uma relação que tanto une quanto divide
os seres humanos em homens e mulheres” (Idem: 2010).
105

Certa vez, em companhia de Noêmia, parteira e esposa de Nonato, a ouvi


descrever, entre risos, que “gümata” é “sangue de mulheres, nosso veneno”. 53 Noêmia
ensinava-me que o sufixo -ma faria referência a materialidade corpórea, alto tangível, “essas
partes por onde ele [o sangue nagü] circula”. O “gümata”, diferentemente, não circula, está
sob resguardo, sendo manipulado por remédios, em momentos em que se deseja ter filhos, ou
deixá-lo, como dizem, “sair para ser trocado por outro novo”. Noêmia, ao qualificar o
sangue menstrual como algo venenoso, em português, claro, referia-se ao seu efeito de
“vingança”, dado que, se este emerge devido a violações empreendidas pelos demiurgos,
atualmente, dotado de “poder” (“pora”), este fluido, se não for bem manejo e seguido de
alguns resguardos, pode converter-se em “problemas aos maridos”. Isso ocorre, como já
sabemos, pelas inúmeras etnografias que descrevem o lugar social do sangue menstrual nas
filosofias políticas ameríndias. Pode “incomodar hoje nossos homens mortais”, a ponto de
poluí-los em decorrência do contágio de alimentos preparadas por mulheres menstruadas, por
exemplo.54
Pedro, então, estendendo a ideia de perigo e resguardo das quais se menciona,
postas pela presença de variedades deste fluido corporal, remete-se a outro mito, no qual o
Lua, um jovem do sexo masculino, vinha à terra para buscar mulheres jovens e bonitas para
namorar.
“Ele [Lua] morava com sua irmã, Sol, e ele mantinha relações sexuais com
ela durante a noite, mas ela, enganada não sabia que era ele. Ele ia
escondido, de mansinho, até a maqueira da irmã para que ela não soubesse
que era ele. Tinham dois problemas aí. Além de serem irmãos, ele enganava
ela e a fez chorar quando ela armou para o amante uma armadilha, depois
que ficou grávida. Ela pintou as mãos com jenipapo e de noite, quando ele
veio para rede dela, ela pintou a cara dele. Ele com vergonha, fugiu porque
não conseguiu limpar a cara. Nesse tempo parece que criaram o sangue de
mulher [menstrual], isso a gente diz gümata. Isso assim, como vingança das


53
E numa tradução com uma de suas noras, professora bilíngue, “boa falante de português”, cujo irmão é Agente
de Saúde e nos ajudou nessa conversa, angariei essa etimologia. Foi sugerido que gü- seria a raiz que indica o
fluido corporal (“o sangue”, por isso vovó tá dizendo que os imortais não têm). Ela dizia-me, ainda, para não
confundir este morfema com sufixo de “mesma letra[grafia]” que, “vai no finalzinho das palavras”, -gü,
indicativo de plural inclusivo; o que nesta situação, gümata, é indicado pela partícula -ta, pluralizador não
inclusivo.
54 Segundo aprendi, usa-se de remédios vegetais para conter o fluxo menstrual e para encobrir os olores.
Ademais, utiliza-se de sopros periódicos e, sobretudo, em momentos liminares (nascimento, menstruação, morte)
de fumaça de tabaco sobre o corpo e de pronunciamentos de palavras aconselhadoras do xamã, acompanhados
de banhos privados e curativos como ações que afastam os perigos de enfraquecimento e perda dos seus
pensamentos próprios, alimentos aos ngó’ogü. Noêmia dizia-me: “no meu tempo era bem assim, agora minhas
netas nem sabem disso daí, usa fralda” [absorvente].
106

mulheres que ganharam poder de fazer filhos, e também como aviso para as
lembrarem de ter esse cuidado de não dormir com irmão...”.
Notemos que neste mito as operações tomam “movimentos” correlatos ao que
fizera Ipi com suas germanas. Concorda-se ainda que tal “perigo” potencializa a pessoa a
tornar-se “ãnüpaá”: “pessoa que tem plantado no seu jeito o pensamento, palavra de seres
ngo'ogü”, que paulatinamente, apropriam-se, sugando-o, e ao alimentarem-se dele, dizem, “os
bichos vão deixando fraquinho o pensamento, vai levando embora a ã’ē [alma]”; culmina na
morte, restando apenas a parte tangível do corpo, “parte de carcaça, a carne, os ossos”, isto
é, leva-se o princípio vital, restando “o que não presta para virar ü’üne [corpo, perspectiva
imortal] no Éware”. Portanto, quando isso ocorre, a pessoa morre”.55

3.1. Sangues generizados

Em síntese, temos aos menos três tipos de “sangue” com qualidades e agências
diferenciadas. “Nagü”, “sangue vital”, que todos os mortais possuem, e pelo que eu entendi,
circula no corpo, é produzido no coração (“mã'ũne”), a sede dos pensamentos (“naẽ”) ticuna.
Neste caso, os interlocutores nos explicam que esta fisiologia remete à analogia entre
consumo de certos alimentos (“nawemugü”*). Nota-se aqui, nesta relação dialética entre os
domínios de socialidade feminino e masculino, algo já pontuado por Belaunde (2005; 2006)
versando sobre o que a autora aponta ser “equilíbrio do poder” e uma interdependência
criativa e produtiva entre homens e mulheres, e na mesma lógica de inversões propostas por
Rosa. A presença do sangue nas mulheres realoca situacionalmente os homens no domínio
feminino, à medida que durante os resguardos, quando cumpridos, eles é que precisam, por
exemplo, preparar alimentos para elas.
Destacam minhas interlocutoras deste capítulo que a mandioca em forma de
bebida fermentada (“pajuaru”) e farinha (“ui”) é que dá origem aos Magüta e segue gerando
mais ticuna no tempo de hoje. Associado com a mandioca, Noêmia elenca como alimentos
atribuídos com valores “fortificantes e amadurecedores do corpo e do bom pensamento”:
carnes de caça, especialmente de anta (“nã’cü”), e ensopado de peixe, sem muita gordura e
sangue, e mingau de banana. Estes alimentos estão relacionados à produção de capacidades e

55
Dizia-se também: “tem de viver bem para pessoa não virar comida dos ancestrais, depois de morta (yugù ta
üpetü). ” Tal expressão traduz “já morreu”, um modo de evitar o pronunciamento da palavra morte, yu, para não
condenar a “viagem da ã’ē, alma”. Ao descrever o que era naquele contexto viver bem, a jovem de não mais que
trinta anos, mãe de quatro filhos e casada “só no jeito dos antigos, sem pastor para abençoar”, referia-se ao
“cuidar bem de minha família, de produzir alimentos com pora [força] para eles ficarem fortes; como no jeito
dos antigos”.
107

afetos próprios a uma boa vida breve, a feitura de corpo leve (“meã na mã’ǖ”). Esses
alimentos têm contidos “ações positivas” (“naẽ”) – notar que é a mesma palavra usada pera
traduzir pensamento, alma – e generizadas, as quais são elaboradas pela inter-relação deles
com seus “pais” (“natü”), que os criam como filhos (“nayachigü”), disse Rosa.56 Entende-se,
pois, que para os interlocutores que mencionam estas relações, a exemplo do que Descola
(2006) descreve aos Achuar, no Equador, ou C. Hugh-Jones (1979), aos Tukano, na
Colômbia, ou P. Gow aos Piro, no Peru (1989, 1991), alimentos são considerados entidades
dotadas de agentividade porque contêm, em graus variados, de acordo com a espécie, “força
vital” (“pora”) transmitidas aos que os ingerem. Na mesma lógica, o consumo de certos
animais cujos corpos têm sangue são proibidos em momentos de resguardos, menstruais ou
quando do nascimento do filho, por parte de homens e mulheres considerados consanguíneos.
O “nagü”, enquanto propriedade agentiva que diferencia no plano dos mortais
ticuna a distinção de gênero, parece estar de um lado, como “namũ, sangue de homem”
[sêmen] e, de outro, como “gümata”, sangue menstrual, que parece traduzir também “o
sangue do parto”. Nesse caminho, do ponto de vista ticuna cabe às mulheres, sobretudo, o
bom controle do fluxo menstrual por meio da reclusão e afastamento das atividades rotineiras
e rituais,57 evitando-se com isso a proliferação do conteúdo poluidor nele contido, efetivado
por contágio e “convívio”, especialmente via alimentação, pois “vai passar cheiro de sangue
para os parentes”. Aprendi, ainda, a outra relação, retomada no próximo capítulo quando nos
acercarmos mais das teorias de concepção, aqui no plural, pois já conhecemos à essa altura
duas, “com e sem sexo [intercurso sexual]”. Ao final da tese, veremos outras possibilidades
atualizadas em relações de conjugalidades entre casais do mesmo sexo.
Nessa configuração corpórea, os cuidados femininos diante desses fluidos
corporais, segundo ouvi dizer, estendem-se à duração do período menstrual, quando em
situações de nascimentos, mulher nenhuma, jovem ou não, que esteja menstruada deve
acompanhar a parturiente. O motivo mais aparente é que se entende que a mulher esteja
fragilizada: “tá doente da vagina (dawe'îne)” e nestas condições ela está “do'aka'èmá” , algo
glosado como transmitindo cheiros fortes e perigosos. Esta última palavra literalmente traduz
o estado de “puya” periódico da mulher. O que equivale dizer que uma mulher menstruada
“tem cheiro de recém-nascido”. Isso ficou evidente quando Noêmia alertou-me num dia de


56
nayachigü é a expressão empregada pelas mulheres aos processos de criação de seus filhos, reais ou
classificatórios, onde na última categoria inserem-se também os seus xerimbabos (pássaros, sobretudo) a quem
chamam de “ina”.
57
Mulheres que estejam em período menstrual ativo são proibidas de tocar e olhar os instrumentos musicais, pois
estariam também os poluindo. Sobre o tema, ver Cf. Materezio (2014, 2015).
108

parto, que assisti à distância, pela janela, na lateral da casa da parturiente, indicando na
sequência, seus efeitos: “isso traz tristeza aqui, porque os bichos da floresta vão querer levar
a alma desse pequeno que chegou”.58
Deve-se notar, contudo, que em campo não vi nem soube notícias de resguardos
restritos e duradouros às púberes ou mulheres menstruadas. Aliás, muitas mulheres diziam-me
não menstruar. Notei que algumas “irmãs hospedeiras” deixavam de cozinhar quando
estavam “com sangue descendo”. Talvez evitar banhar-se diretamente no rio ou nos igapós e
igarapés de águas frias fosse o resguardo mais atendido. Muitas jovens com quem convivia,
nas aldeias ou nas cidades, usavam absorventes higiênicos e os descartavam no lixo comum
de suas casas, em muitas ocasiões, à vista de quem quisesse ver e nunca ouvi repreensão a
essas atitudes diretamente. Apenas disseram-me quando perguntei que os “tempos são
outros”, o que realoca os princípios dos resguardos. Uma das narrativas que mais escutava em
relação a esses domínios de socialidades femininos era o de que mulher em menstruação ou
em período de puerpério não deve manter relações sexuais, na medida em que, para além dela,
o efeito cumulativo de produção continuada da pessoa surtiria efeitos no parceiro conjugal ou
amantes: “vai poluir o homem, vai deixar ele confuso, bem doidinho, vem bicho para ele”.
O sangue menstrual aqui também está associado, portanto, à enfermidade, “que é
um jeito de tristeza”, e que evoca um “caminho do lado errado para chegar ao Éware”,
como pontuou Noêmia e muitas outras mulheres de sua geração, todas mais velhas. Desse
modo, enquanto mediador, tal fluido corporal específico aos corpos femininos, é um vetor
poluidor/poluído, por isso perigoso (“ãucümãǖ”) e controlado, como já haviam notado os
demiurgos ao isolarem, por certo tempo, Sol e Lua nas bordas “na'ane” primordial.
Nesse sentido, estas duas narrativas míticas [Lua/Sol; Ipi e Ngutapa] evocadas
pelos interlocutores nos apresentam uma parte da “história” fundante do universo ticuna,
fortemente marcada pela ruptura entre os “mortais” e os “imortais”. Um dualismo
estruturante, revelador do processo em que ciclos, contínuos e diferenciados, alicerçam a
cosmovisão indígena, pautada na ideia de deturpação do mundo. Nas palavras de Oliveira
Filho (1988: 145) situação que “escapa ao desígnio de seus criadores”.59
Nos tempos atuais, os “sangues” e os “males” a eles pertinentes são lembrados nas
“misturas de palavras e das histórias”, que de acordo com Rosa,


58
O parto é um momento entendido como proeminentemente feminino, no qual os homens devem estar afastados.
59
“Em função da conduta errada dos homens, foram surgindo os diferentes males e vícios, e os imortais se
afastaram do convívio dos demais” (Idem: 145).
109

“Vão ensinando alguns jeitos de fazer bem os parentes, de namorar. Não


assim como o manual [bula], desses que vêm com os remédios. É como um
mapa, cheio de rios, de entradas. Aí tem que ir navegando com a canoa,
devagar, escutando que se diz sobre o que tem nesses caminhos. Aí parente vê
o que é melhor para ele. Se toma ou não remédio. O de que tipo ele toma, do
pajé ou do branco”.
Nesse sentido, aclara-se, espero, o que acima foi mencionado sobre “nagü” ser o
que a pessoa “pensa” (“nagü”). Para encerrar esta seção, estes colaboradores, ao narrarem
seus pontos de vista intergeracionalmente elaborados sobre “os sangues” e dos “males do
mundo”, estão associando-os à distinção central na vida desses sujeitos, a saber, a condição de
mortalidade e imortalidade. Fenômeno este que buscam reverter através de um não acúmulo
de “sentimentos ruins”, como tristeza, raiva, inveja ou saudades; o que ainda inclui atos
“womãtchi”, fofocas, pecados. O complexo, ou “problemas dos sangues” e “das vontades do
sexo sem cuidado”, como expressam os colaboradores, exprimem que um “corpo pesado está
impuro para ir viver com os imortais”.
Assim, podemos entender que quando dizem que os “imortais não sangram”, é
porque seus corpos estão alheios às virtudes que denegrecem o ser (“na”), o corpo (“naüne”)
e o cosmos (“na’ane”). Ao contraste, “os mortais” sangram e sofrem; têm seus corpos
eivados, cujos fios que os configuram precisam periodicamente serem “tratados, alimentados
com boas comidas, pensamentos e afetos”, enquanto meio para se “ter corpos alegres. Viver
bem aqui, preparando-se para ser um imortal”.

4. “mã’ǖ, o corpo no tempo”

As narrativas apresentadas até aqui nos indicam uma ideia de pessoa ticuna na
qualidade de suas dualidades constitutivas, “imortal” ou “mortal”, contendo no interior de
cada uma delas uma sorte de variações, seja de atributos generizados materializados nos
fluidos e suas agências particulares, seja nos regimes de conhecimento que se “misturam” nos
tempo-espaços relacionais conformadores de sua cosmografia e agentes variados, homens,
mulheres, indígenas e não indígenas, humanos e não humanos. Neste rastro, como se vem
buscando focalizar, estes duplos das pessoas (Stolze, 2002; 2005; Lagrou, 2007; Strathern,
2006) remete a uma singularidade permanentemente partível e cumulativo entre Eu e Outro,
demonstrando, assim, que as divisões ontológicas ticuna seriam posicionais e temporais, mais
110

do que uma problemática de forma ou identidade, e que as diferenças, por fim, entre os “jeitos
de ser” não são situadas nesse universo em termos de oposição, mas de grau.
Se, como dissemos no início do capítulo, ser a ideia de corpo (“naüne”) o locus
distintivo dos entre os patamares ontológicos da “na'ane”, os “mortais”, distintamente de seus
“ex-parentes imortais”, os “mortais ticuna” precisam continuamente realizar suas
modelagens, conforme transformam e atualizam seus regimes de conhecimento e seus modos
de habitar o mundo. Como discorre Pedro, “os pensamentos, as palavras, saberes ajuntados
na pessoa, na nossa na’ane” é aquilo que molda, “marca”, o que elas são, pois, “assim se faz,
conforme seus conhecimentos ganham vida, jeitos de gente”.
Nos resta notar, pois, que o corpo (“naüne”) não estabelece essa linha de
continuidade entre esses sujeitos, senão a condição “trans-especifíca” daquilo que nominam
“ã'ẽ” (“alma”), alterada com o devir “imortal”. O que implica pensar em modos corporais de
ser e agir (agências) que distinguem esses tipos de agentes que conformam o cosmos ticuna
(“na’ane”) tem implicações diretas igualmente nos atributos sexuais e experiências de
sexualidade que exercem. Desse modo, a diferença entre os seres dotados de “personitude”
(Viveiros de Castro, 1996) não é da ordem da cultura, mas do corpo, da natureza. E, neste
registro, o corpo enquanto “marca” que difere tipos de agenciamentos não poderia ser lido
senão como “horizonte” (Taylor, 1996).
Como já sugerido, enquanto locus, um feixe afecções. Desse modo a proposição
indígena “mã’ǖ, o corpo no tempo”, em termos analíticos, se aproximaria do conceito de
“personitude”, cunhado por Viveiros de Castro (supra, cf. Nota 35), a partir do qual se a
entende associada com a ‘perspectividade’ — a capacidade de ocupar um ponto de vista —,
sendo, pois, uma questão de grau e de situação, mais que uma propriedade diacrítica fixa
desta ou daquela espécie. Cada tipo de corpo social, “ü’ünegü” (imortais) ou “yunatü”
(mortais ticuna), e neste último entre o que dizem ser componentes relevantes nas distinções
entre “jeitos de homens (na yatüã'ẽ)” e “jeitos de ser mulher (na nge'ã'ẽ)” é lido como sítio
de relações singulares, sobre o qual se situa o ponto de vista.
O “mundo de cima” e o “mundo de meio” apresentam-se, então, em relação de
afinidade e de devir potente e sempre insegura. Neste último, é onde vivem os “yunatü
ticuna”, os mortais, que vislumbram tornarem-se “ü’ünegü”, podendo com eles, no futuro
virtual, relacionarem-se em outro regime de troca e noutros códigos de relações, como
menciona Rosa: “sem ter casa juntos [conjugalidade], sem compromisso [casamento] e
obrigações [aliança]”. Entretanto, é preciso antes, reiterando as falas de Pedro mais acima:
111

“Cuidar-se muito. Deixar o pensamento bem, sem males; não usar eles no
modo desrespeitoso com os parentes daqui e daqueles que serão um dia; não
fazer parentes tristes com ofensa, inveja, feitiço, desaprendendo as palavras
bonitas deixadas para lembrar-se disso. Aí vai provocando males de outros
tipos também. Males assim, que só no mundo do meio surgiu. Ai já não é
mais só o nosso pajé que cuida; aí vem a palavra do capitão, a Polícia, o
enfermeiro, o Agente de Saúde, professor. Tudinho esses dai tem trabalho,
outro dom. Todos são assim, um tipo de conselheiros, que trabalham junto
com o xamã pra cuidar dos grupos de parentes. Por isso o mundo do meio é
diferente. Tem as regras essas autoridades. No jeito dos ü’ünegü não erra
assim. ”
Estes excertos de teorias ticuna de relações, ou de modos possíveis de se habitar o
mundo transformando-se mutuamente, dialogam com a etnografia de Goulard (1998, 2009),
que resume as propriedades e estatutos do ser (na) enquanto “corpo de afetos”. Como glosa
Goulard (infra) “mã’ǖ” corresponde ao que dá vida, materialidade à existência de todo ser.60
“Corpo de afetos”, a partir da etnografia aqui apresentada é, na minha interpretação deste
autor, a descrição de conjuntos de ações variadas, rituais e cotidianas, orientadas às produções
continuadas de pessoas. É, talvez, o conceito local, para concluir, de uma série de
conhecimentos encorporados. Leio tal proposta tendo em vista que o corpo ticuna (“naüne”)
é, portanto, uma materialidade singular, mas não individualizante (Lima, 2005; Simondon,
2003) enquanto participa dos outros e do mundo com o qual corresponde por meio de
experiências e percepções, sensível ao encontro que contribui ele mesmo para configurar a
pessoa como efeito destas relações (Pizzolato, 2007; Surrallès, 2003).
Temos, então, elementos para pensar os contornos analíticos dos componentes da
pessoa ticuna, sintetizados da seguinte forma:
“Mã’ǖ é o que faz o vivente; é o que anima ele no mundo: tudo aquilo que
afeta, no bom e no ruim da vivência dele com o mundo. Isso é o que faz a
pessoa como parente, como índio, como branco ou como gente de outra
cultura. Assim é [...] assim, dona moça, mã’ǖ é da pessoa ticuna, da gente
mortal. Isso dos ü’üne é outra coisa. Isso é mã’ǖ é assim, essa pessoa aqui,
eu, meus filhos, meus parentes de perto e de longe, parente de sangue
[consanguíneos] ou de convivência ticuna. Isso aí tudinho, como conta nas
histórias dos antigos, vem do sexo malfeito [afins]”.


60
Por enquanto a única etimologia da palavra que tenho é mã- [ou, numa variação encontrada em campo, mà’ǖ]
materialidade corpórea; ǖ designa ação continuada.
112

Neste caminho, em diálogo com a proposta de Goulard, eu diria que a ideia de


afetos, quando usada entre meus interlocutores, faz alusão às afecções (potencialidades de
transformações) que os movem e que nada mais são que a reação inevitável a tudo o que os
constitui; a tudo o que os “marcam”, como costuma mencionar os interlocutores desta tese. O
que retoma o argumento de Goulard, de que o “cosmos (na’ane) ticuna é corporificado”
(2009: 323).
Algo dito por Ernesto sintetiza tal proposição contígua entre corpo-pessoa-tempo-
espaço, na’ane:
“Todo corpo, de qualquer pessoa, de qualquer tipo de gente que tá na’ane é
feito com as mesmas marcas. (…) “assim, todo ser é na’ane e na’ane é gente,
de muitos tipos, de muitos jeitos. É tudo corpo, terreno com histórias, dona,
tá vendo? Ai a na’ane vai ganhando gente, vai se movimentando. Vai se
multiplicando. Vai se transformando, como diz no português".
O conceito de “na’ane”, muito embora não componha o objeto central do debate
desta tese, serve ao leitor, como a mim prestou-se em campo, como compreensão de que é a
partir das experiências no mundo, das relações e seu sentido inerentemente transformacional
que os Ticuna que eu conheço, tanto quanto aqueles colaboradores nesses diálogos com Abel
Santos Angarita e Jean-Pierre Goulard, apresentam suas possibilidades de descrição das
gêneses de suas “políticas de vivência”. Essas “palavras” e “histórias” ilustram seus modos
de vida contemporâneos que nos interessa analisar pela lente do casamento.
Desde aí, hipótese levantada sobre um conceito ticuna de pessoa encapsulado na
ideia de “mã’ǖ” ilustra mais explicitamente as relações que compõem os “tü de pensamentos”
sobre o qual se fala ser parte da ideia de “na’ane”, também ao longo do texto, da pessoa e os
“muitos jeitos de ser ticuna”. Por esta vereda, ao tomar conhecimento dos trabalhos do
linguista ticuna Santos Angarita e com ele ter conversado pessoalmente em poucas ocasiões
na universidade em Letícia (Colômbia), numa ocasião, propositalmente, ao regressar de visita
à casa de Pedro, levei-o um “presente” (amare). Tratava-se de imagens produzidas pelo autor
ticuna (ver apêndice do capítulo), na qual ele propunha graficamente esta relação entre “parte
e todo” que conecta a ideia de “na’ane” e de corpos “naüne” como produções coextensiva,
mediadas pelos “fios de pensamentos”. A partir deles, Pedro junto com Larissa, sua neta de
cinco anos, produziu seu próprio gráfico. E eu, que os escutava atenta, formulava sobre o
mesmo desenho por eles produzido a equação (na parte de cima da figura). Posteriormente,
sintetizei os componentes da “pessoa”, nesse quadro abaixo, relacionando noções
cosmográficas.
113

na’ane mã’ǖ
(“cosmos, território, terra, Componentes (“gente”, pessoa, agente,
mundo”) sujeito Ticuna)
“o chão”, “a terra”, “os mã’ï Materialidade corpórea;
beiradões”; “os terrenos da naüne carne, o que se vê; o que
na’ane que vão mudando”, “as difere a perspectiva.
paisagens”
“fios de cabelo”, “fios de tü “fios de pensamento”
pensamento” fornecedores de fornecedores de contornos.
contornos.
“pensamentos das gentes que naē “pensamentos”; “saberes”;
fazem o jeito do nosso mundo “modos de cada gente ir se
ser como é” fazendo como gente de um
jeitinho”
“a força dos pensamentos das pora “força”, “vitalidade”,
gentes que fazem e vivem na porã “energia”,”poder”; “potencia
terra” da vida da pessoa”
“conhecimentos”; “o que vai cüã “conhecimentos”, “clãs”
formando os pensamentos” küa
“o que dá ânimo para mundo” ã’ẽ “alma”, “espírito”

“isso tudo junto faz a na’ane, faz as gentes que moram nela”, “todas as gentes”,
os seres vivente, pessoa ou bicho, pessoa ou planta, gente Ticuna e não Ticuna,
os duü’ǖgü”
114






115

* * *
Observamos nos fragmentos míticos aqui apresentados como a sexualidade não é
mero subsídio aos ordenamentos maiores da cosmografia e “jeitos de ser” ontologicamente
diferenciados entre “gentes imortais” e “gentes mortais”, senão ela emerge nos discursos
indígenas como princípio ordenador do socius. E isso é tema do próximo capítulo quando
alargamos esse “mapa”, simultaneamente enfocando os “jeitos de ser dos yunatü ticuna”,
especialmente naquilo que passam a refletir e atuar por meio das “regras de boas
convivências”, que incluem “aprender a casar certo ou errado” e lidar com as diferenças
internas aos grupos de parentesco que criam entre si, a fim de estancar efeitos dos “males do
mundo” eventualmente relacionados à presença do “sexo malfeito”.
A centralidade do dispositivo da sexualidade aliado ao do parentesco, através da
aliança conjugal, vem sendo exposta até aqui pelas imagens de facetas de “desejos
descontrolados pelo sexo”, notadamente vinculados aos modos de atuar e produzir
agencialidades masculinas “perigosas”, não apenas para aqueles que o praticam, senão, de
modo fractalizado (Lima, 2005). Os “problemas de sexo malfeito” afetam aos demais
congêneres “imortais” e aos seus gradientes de afinidades. É a partir dessas articulações
iniciais que passaremos a compreender no capítulo seguinte as ressonâncias do “sexo
malfeito” naquilo que configura o regime de parentesco ticuna contemporâneo, embasado nas
trocas exogâmicas entre pessoas de clãs distintos para evitar, com efeito, o seu negativo, o
incesto, porque nesse tempo das “palavras dos antigos, Ipi exagerou”. O que nos permite
aludir alguns pontos para seguir pensando:
1) que sexualidade, enquanto formas empíricas e discursivas de tratar as práticas
sexuais e suas formas de senti-las, comunica as condições de possibilidade de gerar, atualizar
e transformar a “na’ane e suas gentes”61;
2) ela também operará, lado a lado, a outros aspectos (fluidos, nomes, estética,
“pensamentos”, classes de idade abordados no próximo capítulo) como marcador social da
diferença.
3) uma resposta positiva e incipiente à hipótese levantada ao iniciarmos este
capítulo de que a negativa da diferença e alteridade recai sobre as figuras dos homens,
especificamente quando focalizada em corpos cujos atributos e “desejos” manifestam-se
singulares e violentamente engendrados, parece fazer-me sentido.


61
Cf. Rodrigues (1993) acerca dos Javaé; Panet (2010) acerca dos Canelas (Timbira).
116

Assim, sexualidade, tanto quanto a alteridade, serão juntos os operadores de


socialidade e organização social da qual passa a fazer parte os “Magüta”, geração criada por
Yoi, dando origem aos “yunatü ticuna” e às demais “gentes da na’ane”, com quem passam a
coabitar. E isso é tema do próximo capítulo quando alargamos esse “mapa”, simultaneamente
enfocando “yunatü ticuna”, especialmente naquilo que passam a fazer “regras de boas
convivências” que inclui “aprender a casar certo ou errado”.
117

Capítulo II
Relações, parâmetros e aberturas
Aprendendo a casar.

Interlocutores

Roberto e Angélica: casal, ambos ticuna; ele pertencente ao clã do pássaro mutum, com setenta anos;
ela pertencente ao clã avai, com setenta e dois anos, ambos são “aposentados da roça”; ele também
“aposentado da seringa”. Eles estão casados há quarenta e dois anos, são pais de sete filhos e avós de
pelo menos dez netos. O casal fala fluentemente português, o compreende bem, sem, contudo,
conseguir expressar-se de igual modo escrevendo. Roberto é “ex- trabalhador” do Sistema de
Proteção ao Índio, com quem aprendi muitos sobre os contextos do “tempo dos patrões”.

Marcolino: de trinta e dois anos, clã de mutum, filho de Roberto e Angélica; professor bilíngue,
casado com Marisa, de trinta e quatro anos, do clã jenipapo e “agricultora”, não falante de português.
O casal tem duas meninas, uma de cinco outra de três anos;

José: setenta e oito anos, do clã de arara-vermelha, “aposentado da pesca, da caça e da roça”, casado
com Nicéia, de setenta anos e do clã de avai; José apresenta-se como “primo de nação de Roberto” e é
também bilíngue.

Graci e Luisa: são irmãs, ambas do clã de mutum, aquela tem vinte e um anos, esta tem dezoito anos;
ambas cursavam o ensino médio na escola da aldeia; Graci dizia não querer sair da aldeia,
manifestando ensejos de contrair matrimônio ali e trabalhar na rotina da roça, enquanto Luisa
apresentava disposição para seguir estudando, visando tornar-se enfermeira. Ambas manejam
razoavelmente o português.

Fantino e Fred: são irmãos, ambos do clã de avai; aquele com vinte anos e este com dezenove anos;
eles são filhos do irmão mais novo da mãe de Graci. Os dois estavam, no período de campo,
finalizando os estudos na escola da aldeia, e pretendiam segui-los na cidade, onde almejavam “ter
diploma e ser gente de profissão, não da pesca e roça” como eram seus pais. Ambos dominam bem o
português, ainda que Fred exprima bem menos fluência do que seu irmão mais velho.

Joaquim: tem dezenove anos, é do clã de garça. Ele é filho de uma das irmãs da mãe de Graci e Luisa;
apresenta-se também como “primo” de Fantino e Fred. Joaquim, diferentemente dos demais, não
estudou, trabalha no comércio de seu pai na aldeia, ocupação que lhe garantia sustento; maneja bem o
português e também, com melhor fluência, o espanhol.

Claudina e Antônio: casal ticuna, de media etária de sessenta e cinco anos; ele clã de garça, ela do clã
de avai. Claudina é germana de Angélica. Eles são, ambos, “aposentados de roça”, falantes de ticuna,
português e espanhol.
118

Da pescaria ao parentesco

“(...) A história conta que, antigamente, que Yoi fez a pescaria (magü),
pegou muita gente diferente, os brancos de todos os tipos, raças e
nacionalidades. Ele [Yoi] criou sua gente transformando os peixes do rio em
gente para fazer o seu povo, os Magüta. [Estes] já vieram assim no jeito
mortal, não mais imortal. Essas pessoas não tinham nomes, não tinham
sabor (âka), nem cheiro (è'má) e ninguém podia se casar, se não estariam
fazendo womãtchi, como fazia o Ipi. [...] não tinha regra ainda de
convivência. Era bagunça, brigas e descontentamentos. (...) Yoi ia ficando
triste de novo, porque sua gente ia se perdendo nos caminhos, poluindo o
mundo de novo. Yoi pensou, pensou. Tomou conselho com Ta’é, com
Mowichina. Antes dele deixar que seu irmão Ipi fosse embora pro mundo da
gente do ouro, no outro lado do rio, Yoi fez festa grande. Yoi com a carne
de um jacarerana fez um caldo bem gostoso. Aí foi assim que a tal festa do
caldo de jacarerana aconteceu. Cada cuia com caldo que Yoi servia aos
Magüta dava um gosto, um sabor diferente na boca da pessoa. Cada sabor
que um sentia virava o nome de uma nação (cüã), um clã. Surgiu os clãs de
pássaro, de frutinhas, de animal de muitos tipos. Yoi era esperto, e fez assim
para ordenar sua gente. Aí ficou assim: dois grupos de parentes (tanü): de
um lado os com pena [achi’igü] e, de outro, a gentes sem pena [ngechi’igü].
Pois assim foi que nós viemos no mundo, os Ticuna, os descendentes do
povo primeiro de Yoi, os Magüta. Yoi colocou ordem no mundo. Aí ele
criou nomes, ensinou a casar bem (meã cü ni'i), ensinou como diferenciar
parentes. (...) Ipi se foi e a gente dele não participou dessa festa, não virou
povo Magüta, virou awane, aquilo que os Ticuna, descendentes dos Magüta
não são! Daí vem os clãs, como diz antropólogo. A gente aqui chama isso de
nação também. Usa os dois juntos, porque é a mesma coisa. Daí veio a regra
das nações, para ensinar a fazer esposa e marido. Isso a gente diz regra das
nações. Nossa lei de casamento mais antiga” (Roberto).62

Nesse capítulo tomo “a história das regras das nações” e seus efeitos nas
micropolíticas atuais de parentesco ticuna como imagem etnográfica para apresentar
princípios gerais da linguagem pela qual os colaboradores comunicaram-me a respeito de sua
sociologia relacional, especialmente interessado em decompor alguns conteúdos de termos de
parentesco e relação. Observar-se, para tanto, narrativas sobre a organização social focalizada
nas conjunturas que produziram e seguem atualizando os parâmetros internos de diferenças e
semelhanças entre os ticuna, dimensionadas aqui ao modelo “mais antigo” de casamento

62
Esta conversa com Roberto foi realizada em sua casa, registrada em diário de campo e realizada em português,
com algumas partes em ticuna, depois traduzidas com a ajude dele mesmo. As demais transcrições e conversas
presentes neste capítulo também tiveram registros apenas em diário e foram realizadas ao longo do período de
campo, com interlocutores nos dois contextos de pesquisa.
119

considerado “certo”, “bem feito (meã cü ni'i) ”, conformado a partir de critérios e valores do
que se considera “parente” (“patcha”) e as “regras de convivências”. Estaremos aqui
conhecendo, então, como inicia-se aos interlocutores, “a história do sexo malfeito”.
Esta intersecção é o objeto de descrição e está colocada em operação quando o par
de metades exogâmicas (“achi’igü/ngechi’igü”) e os “clãs/nações” diferenciados que as
constituem passam a operar e significar outro relevante termo de relação interna: “tanü”. Este
é comumente glosado como “grupos de parentes” em diferentes escalas, que enquanto grupo
extenso, é ativado por um campo espaço-temporal da produção de socialidades generizadas
que abriga no seu interior unidades parciais (unidades residências, ĩ'pata), que o conforma
também como expressão política local e supra-aldeão do que nominam “petchica”. Por este
mesmo caminho de “agrupamento entre parentes”, “tanü” vem recebendo glosas de
“família”, cuja clara influência de novos estilos de vida propagados pelas políticas
diferenciadas, especialmente via arena da saúde e dos benefícios sociais, geram contextos a
esse alargamento semântico. São nestes espaços do “petchica” em que se observam processos
de produção e manutenção do parentesco e das “regras de convivência” – fortemente marcada
por conflitos intergeracionais – desdobrando-se nas “negociações” de conjugalidade que as
“histórias das nações” os fazem “lembrar” (“cuã’atchi”) enquanto imagens de métodos de
troca.
Descrevendo estes últimos conceitos relacionais, o intuito do capítulo é nos
aproximarmos das lógicas organizativas que se abrem às linhas de afinidade, descrevendo
relações que comunicam sentidos ao que classificam enquanto “parentes”, especificamente
aqueles a quem tratam de “tchaua’ta”, os afins virtuais, glosados como “primos certos de
casar”. Assim o são posicionado, posto que em relação “cruzam certo os clãs; não misturam
sangues-pensamentos (nagü) de mesmo tipo, de mesmo sabor”. São eles os cônjuges
preferenciais em contraste gradual com as linhas de consanguinidade, apresentadas pelos
“parentes pa’mai”, “os irmãos de nação/clã”, considerados pares “errados para casar”,
assemelhando-se aos que consideram graus de similaridades que os alocam como “irmãos”
(tchaueya/tchauene).63 Mostrarei, com efeito, a centralidade do jogo de troca fundado na
lógica na qual metades exogâmicas propõem, através dos clãs, “métodos de relação” (Lévi-
Strauss, 2011[1949]), mas passíveis de serem obliteradas pelo princípio da
consubstancialidade. A partir desta configuração, numa ordem intraétnica, a operacionalidade


63
Cf. apêndice do capítulo, Item I, a caixa terminológica correspondente.
120

dessas categorias sociocêntricas ativam gradientes de aparentamento que fundamentam as


“regras das nações” e posicionam os pares preferenciais para a aliança matrimonial.
Para refletir sobre essas configurações nas micropolíticas do parentesco ticuna,
tomo por ponto de partida as exegéticas palavras de Roberto em diálogo com a bibliografia
que trata do parentesco do grupo, especificamente naquilo que ela se intersecciona com as
versões de meus interlocutores concernentes às categorias supramencionadas, no que quero
atualizar e refletir sobre o emprego desses termos. Buscamos mostrar ainda de que modo os
clãs ticuna simbolizam marcadores de diferença social, lidas aqui dimensionadas no que
Santos-Granero (1998) sugere ser “escritura topográfica”. Isto é, uma ideia da socialidade
conectando paisagens, memória e historiografia, expresso no contexto ticuna sobre espaços e
corpos, simbologias e valores como consequências dos processos de transformações que
informam e comunicam-se por meio de “misturas de palavras e histórias”.
Começos por colocar em contexto as categorias sociocêntricas que orientam e
produzem estas lógicas entre os ticuna, apresentando o par de metades e seus clãs, explorando
menos uma análise terminológica do parentesco, senão privilegiando observar suas formas
performáticas, a partir das quais ganham vida, valores e critérios gerativos dos gradientes de
relação que mobilizam as dinâmicas entre os “binômios reguláveis”, afinidade e
consanguinidade (Viveiros De Castro, 1995, 2002).
Leremos os dados etnográficos a partir de tal referencial, quando o autor sintetiza,
grosso modo, um modelo analítico contendo um jogo hierárquico entre afinidade e
consanguinidade, os marcadores canônicos da alteridade e da identidade na amazônia
indígena. O autor descreve, neste caminho, que no nível do grupo local, a consanguinidade
em termos comportamentais, ideológicos e terminológicos, prevalece sobre a afinidade,
enquanto no nível supralocal esta hierarquia é invertida, e, no plano global, é a afinidade
mesma que se impõe pela relação com o exterior. Viveiros de Castro, neste modelo, distingue
três manifestações básicas das relações de afinidade: afinidade efetiva/atual (cunhados,
genros, sogros); afinidade virtual (primos cruzados); afinidade potencial/sociopolítica
(cognatos distantes e não cognatos). A presença dos "Outros”, como já indicado no capítulo
precedente, a despeito de perigosa, é necessária, condensando tanto a necessidade social de
afins (Lévi-Strauss, 1993), quanto a necessidade político-ritual de inimigos (Albert, 1985;
Overing, 1986; Fausto, 2001; Lagrou, 2007), encobertos em diferentes aspectos da produção
de pessoas e parentes.
121

Ilustração que remete ao evento mítico do caldo de jacaré produzido


por Yoi para atribuir clãs aos Magüta.
Domínio público.

1. Sabores e diferenças

Como ponto central de convergência na literatura etnológica a respeito do grupo,


os clãs patrilineares materializam o conceito ticuna de que provêm métricas de relações, a
exogamia entre o par de metades não nominadas, nada destoante no que se seguirá
argumentando nesta etnografia. Cabe, entretanto mencionar que, nela, clã será
recorrentemente mencionado pelo homólogo nativo “nação/nações”.64 O par de metades não
nominadas foi referido a mim em campo apenas como “ngechi'igü (sem pena)” e “achi'igü
(com penas)”, e em alguns momentos da pesquisa expressas como “cüã*” ou “nacüã”, em sua
forma reflexiva.
“Cüã” traduz, relembrando o capítulo anterior sobre os componentes da pessoa,
uma noção de “conhecimento”, cunhada pela mesma palavra. Este é constituído, como nos
dizia Santos Angarita (2014), endossando a fala de abertura do presente capítulo, “um bom
pensamento naē, é princípio de conhecimento; capacidade de captar e aprender, escutar, falar,
trabalhar; com esse princípio se aprende as regras clânicas”.
Roberto e Angélica, por exemplo, a esse respeito, complementam tal asserção,
informando que “cuã” é forma de fazer conhecimento “no jeito e sabor só dos Ticuna”,
remetendo-se à narrativa mítica do caldo de jacarerana da epígrafe. Conclui-se, assim, que um


64
Com os interlocutores ticuna peruanos e colombianos observei o emprego de “clanes” e “naciones” como
correspondentes ao que se lê aqui em português.
122

nome, enquanto extensão do pertencimento clânico é componente singularizador da pessoa e


do parentesco entre eles.
Seguindo com um entendimento possível sobre alocação da identidade, Roberto
dimensiona tal insígnia aos procedimentos das alianças matrimonias, situando os clãs nos
ambientes de negociações dos “jeitos certos” ou “errados de casar”:
“Nesse caso dos brancos, tem isso do nome de documento, têm não? Aquele
nome que diz quem é o seu pai. Aqui é a nação, o clã. Perguntar assim pelo
seu cüã tem a ver com o gosto que sentimos, como se a gente ao nascer
estivesse, de brincadeira, tomado do caldo do ancestral Yoi. Por isso
dizemos quando alguém pergunta tacü i cuega? [quem é você]. A resposta é
o nome (ga) ou a nação, assim: arücüã [clã de arü], barücüã [clã de mutum].
Até brincamos que se quando pergunta isso, a pessoa quer saber o jeito da
outra pessoa, vira convite para namoro [risos]. Com isso daí a pessoa ticuna
já sabe que tal pessoa é do clã tal, que pai dela é de tal tanü, dá até pra saber
de que parte do rio a pessoa é, pois tem clã que aparece mais aqui, outros
mais para lá no alto do rio, assim aí”.
Nesse caminho, a explicação de Roberto sobre a origem dos clãs narra que antes
do caldo preparado por Yoi, “as pessoas não tinham sabor”, metaforizando as condições
basilares de diferenciações internas, gerando as linhas de afinidade, cumprindo a função de
agrupá-los como “povo Ticuna”, conforme seus paladares indicavam seus pertencimentos a
um grupo de relação particular, a um “tanü daqueles com pena, um tanü daqueles sem pena”.
Ao perguntar a Roberto e Angélica, sua esposa, para que servia, afinal, as “nações”, a
resposta foi imediata: “para saber que tipo de gente, de parente a pessoa é. Ou não parente”.
A lógica Ticuna de organização dual do parentesco parece refletir, assim, uma
versão da “ontologia política do sensível” (Viveiros De Castro, 2012:157), na qual a
conjugação do verbo comer/beber/casar faz do ato de comer aquilo que predica a relação;
sustenta as respectivas distâncias de perspectiva entre “irmãos” e “primos”, entre “mortais” e
“imortais”, entre os Ticuna e seus outros. Uma linguagem do sangue, mencionada
anteriormente, justapõe-se à esta. Esse é, mais ou menos, o pano de fundo do nascimento da
afinidade subjacente nessas narrativas selecionadas, circunscrevendo o campo de produção
das teorias ticuna e seus parâmetros relacionais.

1.1. Nações
123

Nessa curta seção a seguir eu esboço, a partir das colocações de meus


interlocutores, alguns aportes visando contribuir etnograficamente com a discussão sobre a
tradução de clã/clãs como “nação/nações”, pensando os contextos de sua inserção e
“captura” nos contextos onde produzi a pesquisa, levando a sério os primeiros conselhos de
Luis e Adriano, expostos na introdução, remetendo à sociohistória de suas relações de
parentesco. Desde aí, seguimos com as proposições ao seu respeito em campo, alargando e
endossando parte dos argumentos encontrados na literatura, partindo para as extensões
práticas de sua presença e sua operacionalidade nos casamentos.
As “nações” e “sua chegada à história dos Ticuna” estão sugeridas como
resultado dos muitos processos de transformações da “na’ane” (do cosmos; territórios),
inclusive como metáfora dos eventos de tutela do Estado – algo recorrentemente mencionado
entre interlocutores da geração dos sessenta e cinco anos, testemunhas desses eventos. Para
Roberto, por exemplo, o emprego de tal termo estrangeiro era usado pelos agentes coloniais
como sinônimo do que hoje mencionamos ser etnia, citando na sequência, o lugar criativo que
a categoria “nação” internamente ganhou ao ser “capturado”:
“Era Nação Ticuna, Nação Cocama, Nação Cambeba, Nação Kanamari,
Nação Uitoto. Isso era como nome dos grupos, dos povos indígenas. Não
tinha naquele tempo os direitos dos índios, era antes disso. Naquele tempo,
não se gostava dos indígenas. Primeiro foi patrão, depois os fazendeiros,
Capitão do SPI. Passou tempo, parente aprendeu a conhecer a lei e a ordem
do Capitão, aí Ticuna ficou com a palavra para ele, virou nosso jeito de dizer
pro branco sobre nosso cüã. Os antigos capturaram e agora nação é o jeito
dos Ticuna se organizarem na vida, assim de dizer no português para todos
entenderem nossos clãs, pro antropólogo, pro professor de fora, pro médico,
pro dentista, pro curioso, né? ” 65
Ao discorrer sobre estes princípios organizativos, Roberto evoca, no plano
político de suas falas (Gallois, 2007, 2002), um espaço de análise indígena sobre os
relacionamentos e as tensas dialéticas com os “brancos”, do lugar que estes ocupam nas suas
próprias formas agentivas de conceituarem os seus universos sociais. Isso é provocado pelos
colaboradores ticuna quando no desenrolar da “história dos Ticuna e de seus clãs”, como
fizera Roberto, Pedro, Ernesto e Nonato, interlocutores do capítulo I, “tem que conhecer como


65
Tais intervenções de Roberto ocorreram durante uma participação sua na aula de História do Brasil que eu
ministrei em apoio a um filho seu, Marcolino, professor numa das escolas da aldeia, quando conversávamos com
alunos do 8º ano. Na semana em que ocorreu esta aula, eu estava hospedada na casa de Roberto a seu pedido,
para que juntos auxiliássemos seu Marcolino no preparo do conteúdo sobre a aula que versaria sobre “a chegada
do Rei no Brasil e o fim dos povos indígena”, como Roberto caracterizava o tema em foco.
124

ela se fiz nesse mundo com os brancos”. E ao fazer tal observação, Roberto aponta
interessantes percepções acerca deste conceito vinculado aos fluxos de ocupações coloniais,
dos “movimentos de feitura da na’ane e de suas gentes”, no caso particular destas “nações”
indígenas que habitam a região do Alto Solimões, e afeta aos Ticuna, como mencionado na
introdução, desde meados do século XVII.
Tal tema emerge na versão do mito, transcrita no início do capítulo, numa
passagem remetendo ao tempo virtual, antes dos eventos da pescaria (“magü”), no qual se
sublinha que eram todos do mesmo “tanü, da mesma raça”. “Raça”, enquanto um análogo de
etnia, assim como “nação”, situacionalmente enunciadas, designam uma fórmula englobante
correspondente às ideias contidas no termo de relação “tanü” como grupo étnico.66
O resultado dessas contextualizações nesta tese, de inspiração analítica e
metodológica também vinculadas ao modo produzido por Kopenawa & Albert (2003), ou
anteriormente na coletânea “Pacificando o Branco” (2002), é provocar no etnógrafo que a
escreve e naqueles que a lerão um lugar de reflexão sobre as imagens produzidas pelos
colaboradores sobre os universos que passam a conhecer nos processos dialógicos com as
esferas exteriores. Provoca, por fim, e em perspectiva, pensarmos essas contextualizações,
em termos de “misturas de palavras e histórias” enquanto uma “teoria etnográfica” ao modo
Ticuna (Kirsch, 2006).
Neste rastro, exponho um debate incipiente, antes de seguirmos. Goulard
(2009:90) comenta, no rastro do que me ensinavam Roberto e Angélica, que “a ausência de
referência clânica concerne a grupos étnicos inimigos aos quais os Ticuna consideram como
despossuídos de toda a humanidade”, assertiva com a qual tendo, por enquanto, a partir de
minha etnografia e entendimento dela, concordar em parte. Algo já aventado em passagens
acima apresentadas sobre o conceito de “duü'gü” fazem menção aos “seres viventes”, “todas
as gentes” que habitam o cosmos e que diferentemente apresentam-se como agente e pessoa.
O que quero chamar atenção nesse sucinto comentário, é que se esses Outros não tivessem o
mínimo de “humanidade”, em termos de capacidades agentivas reconhecíveis, no sentido já
explicado do uso do termo aqui, a ponto de moldá-las produtiva e criativamente no interior
das relações propostas, não se manteriam com eles relações de parentesco, tampouco de
outras modalidades de socialidades políticas. Do contrário, os aniquilaria, como faziam os
Ticuna em outros tempos, nas ações bélicas ou de caçaria, com seus inimigos (“awane”).

66
Cf. M. E. Ladeira (1982: 63 e passim) onde a etnóloga, a respeito dos Krahô menciona o uso de “raça” em
referência aos segmentos residenciais, dentro dos quais, diziam-lhe as mulheres timbira, “não é bom misturar
com raça só”, indicando que idealmente casar suas filhas com homens de outras casas era mais produtivo a partir
de suas lógicas de alianças e redes de trocas.
125

Estes últimos adotaram formas indígenas ou não, atualizadas em diferentes


nacionalidades, por exemplo, e características morais, como ditam as versões do mito. Em
nenhum momento, contudo, meus colaboradores informaram que as demais “gentes
pescadas” pelo Yoi despossuíssem “humanidade”. O que, evidentemente, não exclui a
existência, do ponto de vista Ticuna, de uma assimetria, posto que, como se afirma
recorrentemente em campo, eles são os “verdadeiros indígenas”, “as gentes verdadeiras”,
porque os Ticuna são, como nos contavam no capítulo I, “os pais dos mortais, a primeira
raça dos humanos que chegou na na’ane depois que Yoi transformou peixes em gente
magüta”. Vimos que aqueles que não receberam “nações viraram outro tipo de gente (awane)
”; alteraram-se nos demais povos indígenas que moram nas vizinhanças do rio, e aos
diferentes modos do “brancos”, a quem os meus interlocutores costumam referirem-se como
“duü'gü i tcho'ǖ*”, que traduz literalmente “gente de cor branca”. Aqui, especialmente ao
que se afirma sobre a atribuição de “nações” apenas às “gentes pescadas por Yoi”, enquanto
as demais, diferentemente, converteram-se em outros tipos de “gentes”, me ajuda a aclarar a
dissonância. Com efeito, não estariam então todos aqueles que não receberam clãs
despossuídos de capacidades agentivas (humanitude), pois, são tipos de “gentes”.

2. Aberturas e movimentos

“Tem tanto clã por aí, mais do que aqueles que contavam nossos avós,
nossos velhos. As palavras deles contam do clã de onça, do jenipapo, do
avaí.... Só que parente foi andando por esses beiradões, fugindo de guerra, de
traficante, dos patrões e foi aprendendo outras nações, foi abrindo o mundo.
Fizeram umas [nações], esqueceram de outras. É difícil achar por aí parente
que sabe de todas as nações. Estamos sempre mudando para ajeitar a na'ane,
nossa sociedade, para fechar um dia, quem sabe de novo, né?” (Angélica)

A menção feita por Angélica destaca a problemática da fluidez, da “abertura”, do


sistema classificatório indígena, o qual reside no campo de suas “nações” constitutivas, as
quais se apresentam situacionalmente diversificadas, e suas ocorrências datadas, a depender
das situações e universos sociais nos quais cada grupo de parentes tem seus trajetos
elaborados. “Dificilmente”, já nos dizia João Pacheco (1988) “o número total de nações ou a
ordem de enunciação irão coincidir”, ainda que o processo de produção de conhecimento
acerca desses elementos identitários” (ou relacionais, eu recolocaria) “seja bastante similar”
(109). Goulard (2009) menciona haver experienciado a mesma dificuldade em definir um
126

quadro totalizador destas unidades distintivas, enfatizando que uma sistematização, neste
caso, precisa considerar também as nuances relativas aos diferentes espaços, regimes
cognitivos e situações sociohistóricas que permeiam as vivências dos interlocutores. Vejamos
nas linhas a seguir, então, possibilidades de entendimento acerca desse fenômeno,
conhecendo versões sobre a “etnogenesis” das “nações” e como elas objetificam marcadores
sociais da diferença organizados a partir de uma filosofia político-moral da boa distância e
suas inflexões naquilo que se considera relevante na escolha de cônjuges.

2.1. “Gente de baixo, gente de cima: misturas de jeitos e saberes”



“Cada aldeia desses beiradões vai ter nações diferentes. Algumas aparecem
[repetem-se] aqui ou noutra aldeia do alto ou do baixo [do rio]. Outras nações
sumiram do mapa. E isso tem a ver com as histórias de formação desse rio,
das andanças que os Ticuna fizerem nesses beiradões. Os Ticuna ficaram
divididos nos lados das fronteiras. Aí hoje as nações também falam de como
o casamento leva e traz esses saberes de nações, desde o início da história”.

Claudina e Antônio, outro casal ticuna, moradores de uma aldeia à jusante do rio,
bem próxima à aldeia de Roberto e Angélica, contavam-me com essas explicações que os
clãs diferentes e os lugares onde eles manifestam-se tem a “ver com os jeitos de ser ticuna”,
dimensionadas às “políticas de convivências”. O que aprendi com estes casais era que as
“nações” enquanto emblemas identitários e marcadores ticuna de diferença social operam
sobrepondo-se a elementos de distinção político-morais caracterizados por orientações
espaciais, notadamente “gente de cima” e “gente de baixo do rio”.67 Tais locativos mais do
que situarem cenários de moradas, operavam como alegorias contextuais, ao que me indicam
diferenças sociais relevantes associadas aos estilos de vida dos Ticuna, denotando valores e
atributos comunicados em uma séria de adjetivos contrastivos.
Alguns deles expressam-se em termos de territorialidades, “aldeia
(naane)/comunidade (ǐ’ãne)”, cuja distinção central reside no tamanho e população que as
conformam. Yuatchawa, por exemplo, é descrita enquanto “aldeia” por seus moradores,
territorialidade na qual “se vive mais tranquilo”, “entre grupos de parentes que se
conhecem”. As “comunidades”, por sua vez, de maior porte, chegam a somar cinco mil

67
“natami” e “tawama” indicam respectivamente à jusante e à montante do rio Solimões. Estes dois locativos,
em algumas ocasiões, eram substituídos por “da'uü” ou “na'unãgü”, nesta ordem, fazendo referência à oposição
leste/oeste.
127

habitantes, e são apresentadas por seus moradores, a partir de características como “lá vive
parentes das religiões”; “parentes de bebedeiras”; “parentes dos forrós”; “parentes da
política [onde há uma maior relação com cargos de vereadores, por exemplo]”; locais nos
quais obras de infraestruturas também relacionadas “ao poder de fazer política no jeito dos
brancos” gera “comunidades” organizadas com associações e projetos, muitas vezes com
recursos e acessos diferenciados como, expressam alguns interlocutores: “posto de saúde,
água de poço, água de torneira, luz sem gerador e comércio”. Estes marcadores locativos
são, pois, mediados por ideias de status e relações de poder em relação aos capitais
mobilizados e diferentemente acessados, especificamente, ao que notei, nos setores de
educação e as organizações neste setor, de maior expressão em “comunidades” próximas a
Rio Bonito.
Os locativos mencionados circunscrevem outros, de igual relevância: “gente do
centro”[aldeias e comunidades de terra firme], “gente de aldeias/comunidades dos beiradões”
[várzea]; “gente misturada [unidades territoriais multiétnicas]”. Estes últimos evidenciam
ingredientes de distinções associados ao modo de falar e escrever “na gíria” [língua ticuna],
em português ou espanhol; igualmente dimensionando seus efeitos às teorias da boa distância
indígena, quando manifestam-se nas micropolíticas de parentesco como tais referentes
funcionam enquanto índices para contextualizar parceiros matrimoniais, informando, por
exemplo, que em “comunidades dos beiradões”, é “lugar de parente que casa errado, mistura
com civilizado, misturas os sangues, deixa aldeia cheia de gente do clã de woca (boi)”.
Woca68 é o clã que, sem dúvida, enfatiza uma faceta das “misturas de palavras e
histórias”. Tal clã, voltaremos doravante, “cruza”, como mencionam os interlocutores, os
eixos instáveis de afinidade e consanguinidade, descrevendo a eventualidade de casamentos
interétnicos, por isso, desestabiliza as constantes de endogamia étnica, “de cruzar ticuna com
ticuna”, como prevê a métrica da aliança preferencial entre eles. Como um jogo de espelhos,
portanto, estes últimos que experienciam ambientes de alteridades não indígenas com mais
afluência são descritos por aqueles ditos “menos civilizados” como os parentes da beirada,
mais para a cidade, para perto da fronteira; “lá no alto do rio, são tudo woca, misturados
também com não parente”. Nada distante do que estes pensavam em relação à presença da


68
Sánchez (2008), cujo trabalho orientado para a compreensão das concepções de Saúde Sexual e Reprodutiva
com indígenas Ticuna na comunidade de San Sebastian de los Lagos, localizada próximo ao município de
Leticia (Colômbia), relata ao descrever como intergeracionalmente os modos de casamento entre eles têm com
maior frequência sido conformado por uniões com o clã de vaca (woca), a qual, segundo suas interlocutoras
anciãs, pertencem aos Cocama e aos mestiços ‘ brancos’ (: 85).
128

“nação” de galinha (“ota”). Ambas são, desde suas posições nas redes de interação, “nações
de gente dos beiradões (populações ribeirinhas), “os que sofreram mais os patrões”. 69
Pensando nessa “escritura topográfica” dos clãs, ao perguntar a alguns
interlocutores Ticuna que no tempo do campo estavam vivendo no Brasil e casados com
Ticunas brasileiros nascidos, com parentes e/ou que passaram parte de suas vidas no Peru e na
Colômbia corroboraram a sugestão citada por seus parentes brasileiros, informando que o clã
de onça-pintada (ai) e a de avai (arü), tanto quanto o clã de boi (woca) “são nações dos
parentes brasileiros”. Tal variabilidade da ocorrência dos clãs explica-se, por exemplo, pelos
trânsitos motivados pelos arranjos maritais, responsáveis por “levar clã pelo rio”.70 Se é
sugerido que o clã do boi tem predominância no Brasil, o clã de jenipapo (e), com menor
ocorrência nos cenários em que fiz campo, tem presença marcante, segundo afirma-se, no
Peru.71
Os interlocutores nas unidades territoriais ou nos espaços citadinos no Brasil,
especialmente em “Rio Bonito”, “Santa Sofia”, Amaturá ou Tabatinga, por onde os
acompanhava, costumavam empregar expressões como “nações de gente do centro” para
caracterizar a ocorrência da “nação” de tucano (“ta'u”) ou mutum (“gunü”), recorrentes,
segundo diziam, em aldeias mais afastadas, “dentro do mato”, adentrando-se os igarapés.
Sobre “nações de gente do centro”, adicionava-se outros atributos com a tônica jocosa: “são
poucas. La é aldeia pequena, casam lá mesmo. Só mistura entre eles. Não pegam muita
nação de fora”.
Uma senhora, cuja rede de parentela “nasceu e se criou” em “comunidades”
próximas de Tabatinga e Rio Bonito, qualificou os “parentes de baixo do rio, do centro”, a
exemplo da aldeia Yuatchawa, como “mais selvagens”. Ela explicava-me tal assertiva
enquanto eu a acompanhava ao banco, na cidade, para ela sacar sua aposentadoria, afirmando
“esses parentes do centro, diz que vivem ainda em malocas, caçam e não têm benefícios”,
uma imagem de semi-isolamento se comparada ao lugar onde ela foi produzida: uma


69
Sobre o clã de galinha, pouco se sabe. Não cruzei com nenhum “otacüã”, ou alguém que conhecesse algum
Tiucna pertencente a tal clã. Era-me, contudo, descrita como “clã que veio com os brancos, talvez com o SPI”,
comentou um ex-funcionário de Posto Indígena Ticuna (PIT).
70
Soto (2009) tendo como objeto de análise os regimes produtivos e econômicos em Macedônia, comunidade
ticuna localizada a 57 km de Letícia (Colômbia), bastante conhecida na região por fazer parte da rota obrigatória
de comércio e turismo entre a capital e o Parque Nacional Amacayacu, apresenta-nos um panorama de
conformação do local, no qual grupos de famílias ticuna peruanas e algumas brasileiras, fugindo do sistema de
barracão no final da década de 1940, encontram à ribeira do rio Amazonas na Colômbia, um refúgio para darem
início a tal comunidade, marcadamente entre casais dessas duas nacionalidades. O que segundo sua etnografia,
mobiliza ainda atualmente trânsitos entre as redes matrimoniais.
71
Estas mesmas relações foram descritas por Oliveira Filho (1988:109) e Goulard (2009).
129

comunidade de quatro mil pessoas. Contudo, lamentava-me a mesma senhora, afirmando que
lá, “no centro, a vida devia der mais no sossego”.
Com efeito, o conceito de “nações”, enquanto um dos componentes da teoria
ticuna de relação, ganha materialidade heurística no tempo e nos espaços de interação e
“mistura” singular que propõem os “ritmos das políticas de convivência” dimensionadas aos
“mapas” e socialidades desses colaboradores indígenas no que conceituam ser a “na’ane”,
suas territorialidades e espaços de vida. Assim, passamos a entender empiricamente o valor
das “perguntas existenciais” expostas na introdução, quando no tempo de “negociação” de
uma aliança matrimonial, a pergunta acerca da procedência da pessoa visa cartografar
também estes aspectos do parentesco. Por esse rumo, alguns dispositivos acionados pelos
Ticuna para situar a flexibilidade de seus termos de relações encontram-se alinhados a essas
situações, cujas historicidades dos eventos que as criam são depositários de uma gramática
política constituída sob uma arena de linhas de forças, conjunturalmente conformadas. Desse
modo, afirmações de que “as nações vão viajando pelo rio, de lá para cá, de cá para lá”,
gerando as ideias locais de parente dimensionadas pelas topografias sociais, contextualizam,
simultaneamente, estas “viagens”, também motivadas por processos de migrações e
deslocamentos provocados pelas situações de contato continuadas. Entende-se, por fim, que
os clãs se distribuem no tempo e espaços das relações providos ainda por situações que os
fizerem desaparecer, seja pelos confrontos seja, como também se enfatiza, em decorrência
“dos parentes que não tinham muitos filhos, que não se casavam”.

3. Relações no espaço, relações no tempo

3.1. Patcha
“Patcha é aquele mais de mim, de muitos jeitos diferentes. É o parente,
aquele com quem eu faço a convivência, de perto, ou de longe; é o parente
com quem eu tenho respeito, que eu me faço na vida (...). Se coloca essa
palavrinha [pa] para falar com o parente é sinal de confiança; o resto da
palavra [-tcha, pronome pessoal] é o que está junto com qualquer coisa que
eu digo para alguém. Por isso a palavra patcha fala de parente, daquele que
eu reconheço. Patcha é parente, mas quando uso essa palavra para conversar
com alguém, isso não, diz se essa pessoa é um par certo ou não e casar”.

“Patcha”, a partir do exposto acima por Roberto, remete à glosa genérica a


“parente”. O emprego do termo de relação parece-me designar aqueles a quem se consideram
130

parente, podendo ser “parente de longe”, mas passível de virar “patcha de verdade”, no
sentido da proximidade real e do convívio, demarcando os limites conjunturais desses laços,
quando aqueles parentes que são Ticuna de outra aldeia, do outro país “ficam perto, comem e
riem juntos”. Neste enredo explicativo, “patcha” como a afinidade, no grau mínimo
reconhecível para implicar laço de aparentamento caracterizando, nos tempos e espaços das
relações uma sociologia intraticuna, no seio da qual a semelhança antes que a diferença
aparece, como se notou anteriormente, como esquema relacional mais básico.72
Ao empregar-se, então, o termo de relação de parentesco “patcha”, entende-se
que ao enunciador ticuna implica identificar em outrem traços, qualidades, atributos e valores
com os quais minimamente se possa interagir, produzindo-se a ambas formas de
aparentamento mediadas por laços consanguíneos ou de afinidade, sendo este mesmo
englobante do primeiro. E nos permite pensar que a afinidade é dada tanto quanto o “sangue”
que diferencia “as gentes na na’ane”, posto que, como explana Angélica: “todo o Ticuna ao
nascer é um patcha, que se vai fazendo na vida” em algum tipo específico de parente,
segundo coeficientes de socialidade e regimes de atitude que o aloca num circuito de
relacionamentos.
“Patcha é parente”, como sintetiza Angélica:
“Patcha é parente que pode ser qualquer ticuna. Pode ser pessoas não
indígenas, com quem nos aproximamos como aqueles que vão virando
amigos, parceiros de política, de igreja, ou de pesquisa, como foi a senhora,
que depois de vir aqui em casa e prosear com a gente, comer e ir à minha
roça, está virando também uma patcha. Uma patcha não ticuna, porque é de
fora, não fala bem a nossa gíria, não gosta de farinha [risos]. Mas lá na casa
da senhora, com a outra família aqui da aldeia, pode dizer que fulana é sua
patchau’eya (irmã), porque lá você vive com eles, aprende com eles, assim,
como filha deles, de brincadeira, mas vira do grupo deles. Para saber que
tipo de pacha o parente é, aí depende do sangue, do tanü, como a gente diz,
[ao qual que ele pertence], se ticuna, se não indígena. Tem gente ticuna, que
não é meu patcha, mora longe, está noutro grupo de parente aqui na aldeia. ”

“Patcha” como idioma relacional que materializa as inconstâncias entre as linhas


de consanguidade e afinidade gerando códigos diversos para orientarem esse parentesco
encorporado, fabricado “entre muitos tipos de gente”, vinculados aos seus trajetos de vida e

72
Cf. Peter Rivière, Anne-Christine Taylor, Bruce Albert, Joanna Overing, Tânia Stolze Lima, Philippe Descola,
Peter Gow, Viveiros de Castro.
131

cuja duração é mediada pelos valores plurais que no âmbito local destacam a proximidade,
mais do que o distanciamento. Passemos, então, a ver como descrevem os conteúdos que
conformam o “tanü” como conceito que dita, nas relações interna aos Ticuna, os parâmetros
de consanguinidade e afinidade.

3.2. Tanü
“Antes do assunto dos casamentos, nações já estão aí. Antes da pessoa saber
se vai ou não casar, as nações estão aí para ela saber que tipo de gente ela é,
se é parente de sangue ticuna, assim do mesmo grupo de nações [pa´mai],
ou, de mesmo pai, assim tipo irmão [tchaueya/tchauene]. Pode ser parente do
tipo primo de nação, que está no grupo contrário, mas é dos tanü dos ticuna,
vê? Aí esse primo de nação pode ser assim um tipo de parente de casar certo
[tchauta’a, cônjuge preferencial]” (Roberto).

Vimos que o emprego da metáfora do sangue, associada ao sabor e à sexualidade,


portanto, aos corpos e pontos de vistas particulares, entre os interlocutores é elaborada como
índice que remete pessoas aos emblemas identitários, acima apresentados, componentes e
definidores dos grupos de relações para os Ticuna. O “sangue” operando como um idioma
simbólico, “desde o início da história das nações”, fornece, então, parâmetros aos limites
locais de consanguinidade (proximidade e assemelhamento) e da afinidade (diferença e
distanciamento), em duas dimensões paralelas: uma que se conforma entre a escala mais
ampla de “humanidades”, os “duü'gü”; noutra, numa escala interna aos “grupos de parentes
ticuna”.
Na primeira, macrossociológica, de um lado do pêndulo relacional, situam-se os
“ü’ünegü” (os imortais) e, de outro, os “yunatü” (mortais, Ticuna e todas as demais “gentes”),
cada qual conformando, assim, um grupo distinto de “tanü”. Aquele, do ponto de vista dos
narradores das “palavras dos antigos” nos informa que os “imortais” estão no “mundo
celeste” marcado pela consanguinidade, efeito da presença da “água mágica” que torna as
gerações primeiras do “ü’ünegü” em uma gradação de germanos, pois todos esses ancestrais
eram filhos do Mowitchina, criador do cosmos, naquele tempo. O que parece corroborar o
lugar central da não presença de reprodução sexuada nas primeiras gerações de ancestrais e
tampouco do casamento.
Os “mortais”, noutra zona do cosmos indígena, “o mundo do meio”, são gerados
numa miríade de imagens de alteridades pelos irmãos Yoi e Ipi, aos quais, por sua vez e em
contraste, aprenderam a produzir linhas de afinidade internas variadas (nacionalidades,
132

línguas, etnias). Desses “movimentos” transformacionais do cosmo e dos corpos, em


“desequilíbrio perpétuo”, estrutura-se a armação dual do mito em suas multiplicidades
concretas e constitutivas das lógicas de socialidades que passaremos a ler daqui em diante.
Um diagrama inicial a respeito desses “movimentos” é reproduzido abaixo, como uma réplica
de um desenho esboçado por Angélica, no decurso de uma conversa.

Tanü e suas linhas de consanguinidades e afinidades.


Tanü Ticuna
Composto de
Tanü Metades Tanü
Ngechigü Achigü
“Metade com “Metade sem
pena” pena”
Consanguinidade

putativo

Clãs/nações Clãs/nações


Mutum
Jenipapo
Japó
Avai
Arara-azul
Saúva
Arara-vermelha Buriti

Tucano Onça
Garça
Boi
*
*
*
*
*
*


Pa’mai

“irmãos de nação/clã”
Pa’mai “irmãos de cuã”

“irmãos de nação/clã”

“irmãos de cuã”




“primos de clã/nações”

afins e possíveis cônjuges


133

Simultaneamente, a abertura ao outro comunicado pelo evento da pescaria


primordial resulta internamente ao “povo magüta”, de onde descendem os Ticuna atuais,
organizarem-se de modo que pudessem, entre si, dar continuidade às oposições binárias que
caracterizam seu pensamento social. Notemos, então, que a mesma metáfora é o operador
central na produção de índices de distinção, de identificação ou diferenciação, interna ao
grupo étnico, ao “tanü dos yunatü ticuna”, desde o qual, como nos expressam Roberto e
Angélica, derivam os “grupos de parentes” apenas “dos Ticuna”, os “irmãos” e os “primos
de sangue”.
Deste modo, “tanü”, numa escala macro, visto como uma fórmula englobante de
consanguinidade, considera como membro do “tanü dos ticuna” todos aqueles que se alocam
no sistema classificatório como “parente” – ainda que performaticamente, como eu mesma
fui, ao longo do campo, alocada como “parente de longe”, sob a forma “ticunada”,
encorporada por um processo de aparentamento fabricado no cotidiano da vida entre os meus
anfitriões, e também em aldeia. Isso porque eu não era considerada, do ponto de meus
anfitriões, “verdadeiramente descendente de Yoi”, ainda que ao me “fazerem parente”
atribuíam-me uma “nação”,73 como meio simbólico de pertencimento ao “tanü” indígena.
“Tanü”, nestas situações etnográficas, está funcionando como correlato, pois, de
‘identidade étnica’, abrigando no seu interior “parentes verdadeiros, os Ticuna”, englobando,
desse modo, diferenciações internas, manifestas pela presença dos clãs e a oposição entre o
par de metades. Nesse caminho interpretativo, o que vêm se referindo Roberto e os
interlocutores do capítulo anterior como “tanü”, glosado como “grupo de parente(s)”, traduz
um termo de relação que implica, por uma perspectiva étnica, cognatos próximos, no grau de
totalidade do sistema dual ticuna em tela. Ao usá-los, os interlocutores estão delimitando,
assim, as fronteiras internas de socialidades, colocando em movimento as possibilidades de
relações entre os “binômios graduáveis”, consanguinidade e afinidade.
Propõem-se, então, ler “tanü” como uma modalidade de consanguinidade
ideológica (étnica), que subsumi a afinidade contida nos clãs. “Tanü” é o termo em
transformação nestas relações de parentesco, em contraste constitutivo em relação aos
“imortais” e aos demais “mortais”. “Tanü” comunica, assim, relações de analogia entre partes
e todo, internas ou situadas no exterior de socialidade, mantendo, contudo, a constante do
significado de “grupo”, “agrupamento”, “grupos de parentes”. E como bem colocaram

73 Em Yuatchawa, inseriram-me no clã de avai (arü), tornando-me irmã classificatório dos filhos dos donos da
casa onde residi mais tempo. Em Rio Bonito, eu fazia parte, na mesma lógica, ao clã de mutum (gunü).
134

Angélica e Roberto, o seu significado permanece, mas sempre “em movimento”,


especificamente quando “tanü” conjuga-se ao parentesco, gerando modalidades de parentes
(patcha) aos locativos, “de perto e de longe”; ou aos índices de moralidades “parentes certos”
ou “errados de casar”.
Dentro desse quadro e dimensionado à lógica da mais pura endogamia ideal, por
outro lado, “tanü” comporta partes de alteridades internas ao grupo. Isso ocorre quando
aqueles que pertencem à mesma metade, “com” ou “sem pena”, são partícipes de um mesmo
‘sub’ “tanü”, digamos, porém, cada qual com suas particularidades distintivas. O que denota,
segundo aprendi, um parentesco virtualmente consanguíneo, na medida em que as pessoas
compartem naturezas similares, isto é, fazem parte de uma mesma metade, mas em grupos de
relações diferenciados. Assim, um ticuna do clã de jenipapo e outro do clã de avai; ou um
ticuna do clã de arara-vermelha e outro do clã de garça, quando relacionados entre si, são
considerados parentes mais próximos, “estão no mesmo grupo de matü (grafismo facial) ”, o
que impede o casamento entre eles, de acordo com a metáfora do “sangue”.


Motivos clânicos aplicados no rosto. Imagem minha feita desde um caderno
de um dos alunos de Marcolino.
135


A imagem acima mostra o grafismo facial do clã de japó, aplicado com jenipapo.
Todas as imagens são de Lucille Kanzawa.


A imagem mostra o grafismo facial do clã avai e japó, da esquerda para a direita.

3.3. Pa’mai
“Pa’mai são irmãos de tanü. (...) São parentes do mesmo grupo de nação,
mutum, mutum, como eu e meu irmão. Pa’mai é também como eu e a
sicrana, que tem outro pai, mora lá no outro lado da aldeia; pa’mai tem
mesmo tipo de sangue, mesmo tipo de sabor, mas não o mesmo nome74, e os
mesmos parentes” (Angélica).

Dessa relação de identificação simbólica entre os clãs de uma mesma metade,


aprendi a derivar um vocativo específico: “pa’mai”. Ele descreve aqueles cujo pertencimento
clânico é idêntico (japó/japó; buriti/buriti), “os irmãos de nação”, e caracteriza de modo


74
O sistema onomástico ticuna, de acordo com o que me foi ensinado a respeito, não possui um acervo de nomes
finito. Do contrário, afirmou-se que são “inventados, criados” (inanaüǖ) pelas nominadoras (ngu'i). Dificilmente
repetem-se e correspondem sempre a uma dualidade e distinção de gênero, havendo nomes para mulheres, cujo
prefixo é –cü, e nomes para homens, cujo prefixo é –ne. “Assim, igual na natureza, com os bichos, com as
árvores”.
136

distintivo aqueles que compartilham a mesma metade, não necessariamente sendo de clãs
iguais (mutum/japó; jenipapo/avai). Neste último caso, explicaram-me que a noção de
consanguinidade se altera em “primos de nação”. Em ambos os casos temos uma relação de
proximidade simbólica, portanto qualquer tipo de intenção marital entre pessoas que assim se
refiram reciprocamente está sancionado veementemente, justificada pela ameaça iminente do
“castigo do sexo malfeito”, o negativo da aliança, o incesto. Situação proibitiva ao
matrimônio, independente da posição genealógica.75
Numa brincadeira para explicar-me esses termos, certo dia, um jovem solteiro na
aldeia onde eu recebi o clã de avai (clã dos “sem pena”), disse-me que não poderíamos “casar
bem”, “mesmo se quiséssemos”, porque compartíamos do mesmo “tanü”, ainda que ele
pertencesse ao outro clã (saúva). O que configuraria, de acordo com ele, um tipo de “sexo
malfeito”: “womãtchi de tanü [grupo de pertencimento, metade]. Entre “os de minha casa”
nesta mesma aldeia, eu era tratada pelos meus irmãos classificatórios do mesmo modo, por
homens e mulheres.
“Tanü” (vínculo de pertencimento) e “pa’mai” (relação produzida) parecem, portanto,
estar comunicando, então, modos de produzirem-se enquanto tais: como Ticuna, numa escala
macro relacional, e, noutra intraétnica, como acabamos de ver, e no seu interior, como
“primos” ou “irmãos”, situando-se na linha de descendência agnática, o valor que emprega
significado aos gradientes entre estes últimos termos de parentesco. Nesse conjunto de
conceitos relacionais está exposta uma diferença de escala, não de natureza, portanto.

4. Aprendendo a casar bem

“Casar bem/certo” entre meus interlocutores manifesta-se sobretudo pelo


cumprimento dos quesitos básicos da exogamia traduzidos na linguagem nativa pela execução
do casamento “bem feito”. Aclarando estes princípios, sentia ainda pesar a lacuna sobre se
haveria entre os clãs alguma forma de preferência matrimonial. Sobre isso, numa certa
ocasião, seu José, de 78 anos, do clã de arara-vermelha, “aposentado da roça e primo de
nação” de seu Roberto, que é do clã mutum, explicava-me que todas os clãs são iguais. Ele
justificava tal assertiva reiterando que “todo clã tem o mesmo valor. Pode se casar com quem
quiser, não tem que ser uma pessoa arara-vermelha com um jenipapo, como foi eu e minha


75
Goulard explica esta composição da consanguinidade virtual entre os clãs, definindo o sangue que os
caracteriza como “substância que fundamenta o princípio de associação entre os clãs e o da oposição entre as
metades” (2009: 117).
137

senhora (tchorü tchiüra76). ” Nesse sentido, ele chama atenção para o princípio do método de
troca em questão, informando que cada um escolhe “com qual sabor fazer seu caldinho
[risos], sem que misture sangue de pa’mai. Essa é a regra, isso casa bem (meã cü ni’i) ”.
Assim, sabe-se que se casando com a pessoa de outro clã, “cruzando bem os conhecimentos
(cuã) ”, que não no seu de pertencimento, e, sobretudo, o pretendente esteja noutra metade
exogâmica, se “casa certo”.
Abaixo, segue uma ilustração produzida por alunos indígenas na aldeia em que
vivem Angélica e seu esposo, exprimindo a ideia da exogamia, “do cruzamento de nações”
entre um casal formado por um homem do clã de onça e de sua esposa do clã de mutum,
seguido de seus filhos e dos casamentos que cada qual realiza, demonstrando, então, a linha
de transmissão patrilinear destas insígnias.


76
Ouvi essa expressão recorrentemente para referir-se com respeito aos seus cônjuges empregada entre homens
mais velhos nas categorias de yacü/yakü (correlato de adulto, àqueles, homens e mulheres, que já adquiriram
conhecimento suficiente para ensinar e realizar atividades e rituais, procriar, aconselhar “para fazer um corpo/um
jeito ticuna com conhecimento”, tradução rápida para “maǚ rü naē”.
138

5. Petchica, “o lugar do casal, da família, de fazer parente”

Ao que entendo, “petchica” 77 corresponde ao espaço-temporal composto das


unidades residências (ĩ'pata), considerando aqui suas espacialidades constitutivas (roças,
jardins, porto à beira-rio/igapó/igarapé e os caminhos que os conectam) e também, em casos
de casas não plurifamiliares, seus segmentos (casas da parentela próxima). Também já
veremos aqui neste último campo, espacialidades de socialidades generizadas, política e
fortemente marcadas por conflitos parentais quando envolvem os códigos morais e éticos de
“fabricação” (Seeger, Da Matta, Viveiros De Castro, 1979) dos corpos de parentes, numa
aproximação com versões de conjugalidade atualizadas no casamento que as “histórias das
nações” fazem “lembrar”.

5.1. O casal

Os Ticuna que conheci no trajeto de pesquisa organizam-se em unidades
residenciais, muitas vezes, plurifamiliares – no sentido que eles entendem como o grupo de
parentela que orbita e correside no entorno da unidade mínima destacável no grupo local, o
casal. O ponto nevrálgico da sociabilidade doméstica (Gonçalves, 2001) é o casal, que, como
veremos entre algumas de minhas redes de interlocução, não é necessariamente realizado
entre duas pessoas de sexo oposto (“tügümucü”). Aprendi que a unidade doméstica,
econômica e simultaneamente política (“petchica”) pode tomar formatos muitos variados. A
despeito disso, ela costuma instituir-se pelo mesmo tipo de relação: “fazer compromisso de
casal [casamento]”. Relação que inicia com dois “e vai multiplicando”, “fazendo grupo de
parentes”, alguns próximos, com quem se convive com de “intensidade” (cotidiana) ou “de
lembrança” (esporadicamente).
Conheci alguns “petchica” conformados pelo “casal pais da casa”, o que parece ser
equivalente à expressão na língua indígena como “tanütü” ou “tanatü*”. A casa (“ĩ'pata”) do
casal raramente os abriga sozinhos, com exceção dos recém-casados, que optam, quando há
condições, por iniciarem o vínculo em casa independente. É muito comum encontrar nestes
contextos de pesquisa “petchica” conformados por pelos menos duas ou três casas, sendo uma
delas, necessariamente, do casal mais velho, “os formadores” do grupo extenso. Quando não


77
Cf. Goulard (2009: 208) quando o autor elabora hipótese bastante aproximada desta, informando que a raiz
chi- também está em chi’ã (ninho).
139

plurifamiliares, as demais unidades residenciais são componentes do “petchica”, usualmente


estando dispostas lado a lado, senão nas adjacências do casal “formador” do grupo.
Com bastante frequência também observei, como numa das famílias hospedeiras,
que o casal mais velho do grupo, “os pais (natü) da família (tanü) ”, mantinham corresidindo
entre eles neto (a)s solteiro(a)s para ajudarem-lhes nas tarefas rotineiras, quando seus filho(as)
casaram-se fora, seja noutra aldeia seja noutro agrupamento político, quando, por exemplo,
“casaram noutro lado da aldeia”. Uma senhora relatou-me o afastamento de um de seus
filhos, após contrair casamento em situação similar com uma jovem na família de uma
importante figura política. Segundo ela: “esse filho aí se foi para o lado de lá, porque o sogro
dele (cumatü*) tem influência. Por aqui já não traz peixe, mulher dele não visita nossa casa.
Ele só leva peixe e arroz ao sogro”. E complementa afirmando: “parece que vira mais
parente deles lá do que aqui”. O relato indica que a consistência dos vínculos consanguíneos,
tantos quantos aqueles realizados entre afins, é controlada, como sabemos na literatura da
etnologia americanista, entre outros mecanismos, pelo grau de consubstancialidade implícito
nos circuitos de intercâmbios e convivialidade, especialmente descrita pela produção,
consumo e distribuição de alimentos ou bens. O idioma simbólico mais uma vez entre
comer/beber é central.
Em outros casos, este casal pivô do grupo extenso mantinha na mesma lógica,
algum filho (a) casado (a) e seus netos com eles compartindo a casa. Nestes últimos, cada
casal e seus filhos formavam uma unidade familiar, “um pequeno petchica”. “Petchica”
corresponde na morfologia interna da casa (ĩ'pata) plurifamiliar (que melhor conheci), o lugar
onde se retira o casal; operando, desse modo, como um “microcosmo” (Goulard, 2009).78
Também de acordo com a Angélica e Roberto, e uma de suas filhas que reside na mesma
aldeia, num dia de roça, fui ensinada que “petchica” designava, na mesma lógica de
compartilhamento da casa, o espaço-tempo das relações de parentela, “o pedacinho de roça
de cada filha, de cada nora”. O que não corresponde, necessariamente, a uma unidade
produtiva isolada, visto que, em muitos casos, há roças coletivas dentro de um mesmo grupo
extenso, e ainda que se trabalhem separadamente nos cultivares, cada qual em seu “petchica”,
é previsto o compartilhamento de seus excedentes com os seus mais próximos.


Quando cheguei à casa de Angélica e Roberto para passar uns dias, minha rede foi alocada junto com duas de
suas netas, uma solteira, outra casada com filho, que os visitavam também. Ambas as filhas do casal eram vindas
de outra aldeia onde residiam. De acordo com os anfitriões, aí ficava o “petchica das visitas e dos sem
marido/esposa”. Não tardou muito, chegaram mais familiares de longe, de uma aldeia distante aproximadamente
quatro dias de viagem descendo o rio em canoa. Eram seis pessoas, dois casais jovens e cada qual com seu filho.
Acomodaram-se junto de nós, delimitando seu “petchica” com o mosquiteiro sobre o espaço onde deixavam à
noite o colchão. Haviam vindo para uma festa de aniversário de um dos netos de Angélica e Roberto.
140

“Petchica” designa assim, mais do que o lugar de residência, a casa, “ĩ'pata” ou


um conjunto delas. Ele sugere o tempo-espaço do “casal”, da “família”, do “casamento”.
Talvez por isso ele seja um signo bastante recorrido quando se trata sobre tema do casar e do
casal. Dizem que se sabe quando o casal e o casamento estão estabelecidos e estáveis quando
tem sua casa construída ou expandida ao corresidirem com alguém.
“Petchica” mantém no seu interior relacional conteúdos e socialidades pautadas
pela contiguidade espacial e engendradas por meio de laços de consanguinidade e afinidade
orquestrados conforme se criam laços. Sob forma intermitente, este espaço-temporal é
conformado e manejado como produto e produtor de vínculos conjugais e de alianças
elaboradas através do casamento.
À exemplo, enquanto convivia com um dos grupos extensos que me hospedavam,
observei sua casa ser modificada algumas vezes. A primeira mudança interna na casa, que ao
início de minha estadia apenas contava com um quarto, reservado aos donos da casa, que o
compartilhavam com seus netos infantes que com eles passavam a noite, ocorreu quando
passaram a edificar outros cômodos privados como este. O fizeram inicialmente para abirgar
um solteiro da casa, que estava por se casar. Numa forma de reclusão (“aure”), talvez, antes
de sair para a casa do sogro, soube por sua avó e por sua mãe (esta última residia na casa
vizinha) que tal atitude refletia “o jeito do solteiro que vai casar, que tá virando homem de
compromisso precisa se reservar, ela fica ai aprendendo com o avô o conselho”.
Outra, mudança ocorreu porque o filho mais novo do casal, em “compromisso”
havia dois anos, e que corresidia na casa começou a caminhar (“marü tarü ngaǖu”). Nesta
situação o “petchica” desse casal localizava-se numa lateral da casa, onde estava sua cama, e
a rede do casal e de seu filho. Ao tornar-se, então, mais independente dos pais denota “tempo
de fazer um cantinho, nosso quarto” disse-me meu irmão hospedeiro, filho dos donos da casa.
A sua esposa chegou a comentar que “é tempo de namorar”, algo que sugere o encerramento
do resguardo sexual entre eles. Ouvi muitas vezes reclamações deste irmão classificatório,
incentivando que a criança caminhasse logo, por exemplo, para voltar a ter “intimidade com a
mulher”. Tal situação foi anunciada pela sogra, jocosamente, “agora que esse neto caminha,
dá para ter outro, hora de começar a namorar”; “tempo de privacidade. Agora tem que dar
jeito em arrumar madeira para fazer quartinho, agora eles namoram mais em casa. Tem
visita, tem criança, faz parede para eles”.
“Minha irmã mais nova” (a quem eu tratava por “tchaueya rü bumee”*), casada
com um homem ticuna de outra aldeia, e cuja casa (vermelha) localizava-se cerca de uns 300
metros da casa de sua mãe (amarela), onde eu alojava-me, desenhou a ilustração abaixo. Nela
141

está expresso o que ela me disse ser o “petchica” do nexo extenso de seu pai, circunscrito
pelas linhas pontilhadas no desenho.
Esta ilustração, quando pronta, foi trocada comigo por uma caixinha de
maquiagem para sua filha mais velha de quatorze anos, solteira, que me tratava em português
por “ti’tia*”, uma linguagem cada vez mais usual entre meus interlocutores – para ela,
particularmente, pronunciar meu nome era algo difícil. Da situação inversa, com meus
“irmãos”, nunca os tratei por “tchauene”, apesar de terem assim me ensinado que “era um
jeito de dizer irmão, de mesmo pai ou de convivência [classificatório]”. O mais usual era
tratarmo-nos, como já dito, pelos nomes pessoais em português ou em ticuna, e como
tínhamos virtualmente o mesmo clã, também nos tratávamos, nos mais das vezes, por
“pa’mai” ou simplesmente “patcha”.

Petchica de Roberto e Angélica.


Imagem de Lucille Kanzawa

Desenho do petchica de meus “parentes”


142

5.2. Família

De acordo com o que observava no decorrer o campo, o uso de “família” era


bastante recorrente e, muitas vezes, associados à ideia de “tanü” e de casa, relacionado à ideia
de unidade familiar. Observei o seu emprego sempre na língua portuguesa em diferentes
situações cotidianas, especialmente em discursos proferidos pelos caciques, professores e em
conversas informais com outras categorias de “autoridades”, “lideranças”, como são os
pastores. Sem uma palavra que traduza a ideia de família como nós a pensamos, parece-me
que o conceito indígena de “tanü” (grupo de parentes, consanguíneos ou afins), adapta-se às
suas próprias lógicas de organização social.
Estendidas a essas experiências de campo juntos com os Agentes Indígenas de
Saúde (AIS), contexto em que os observava usar e contextualizar as transposições semânticas,
Matilde, uma AIS, situava-me a palavra “família” comumente como parte de um repertório de
“novas palavras” aprendidas em contextos de trabalho, a partir da metodologia repassada nos
“treinamentos” realizados no âmbito das ações da Secretaria de Saúde Indígena (SESAI),
quando os capacitavam para desenvolverem os censos de vacinação, tabelas de pesagem e
altura das crianças mensalmente, por exemplo. Estas ações compõem o que alguns AIS
ticuna, com quem convivia e de quem acompanhava as atividades, entendem por “fazer o
trabalho de família”.
A respeito do termo, de sua emergência e efeitos, Matilde explicou-me como eles,
os AIS, a usam, nesse processo de “novas palavras” no âmbito das políticas de atenção
diferenciada:
“Família é quando alguém casa e forma seu grupo familiar [marido, mulher e os
filhos]. Por exemplo, professora: lá em casa somos oito pessoas morando na
casa, certo? Lá somos duas famílias: uma que é eu, minha mulher e meus dois
filhos e a outra que é meu pai, minha mãe e meus dois irmãos mais novos
solteiros. No tempo dos bem antigos, vivia-se em malocas coletivas, não tinha
essa palavra de família, era tanü, o grupo de parentes. Não tinha aldeia, era só
uma casa dessas, as roças, o espaço de caça. Depois chegou os brancos e nos
organizamos como as vilas da cidade, com ruas, casas, bairros, igrejas. Faz
senso e as casas têm número na plaquinha ou na parede para o Agente de Saúde
saber onde ir pesar as crianças, levar remédios. Tem agora a energia do poste,
que tem nesse número do papel para pagar lá na cidade. (Matilde)”
143

Interessantemente, ao conversar com Matilde e com outros AIS durante uma


reunião nas dependências do Polo Base que os atendem, indaguei se família, tal qual eles
empregavam, circunscrevia “casal de homem e mulher” apenas, querendo sondar se, nestas
configurações, “família” também considerava, por exemplo, pessoas viúvas, pessoas solteiras
e casais de mesmo sexo, ou aqueles que por variadas situações residiam sozinhos, o que era,
cabe mencionar, bastante raro. Bastante espontaneamente, abriu-se um debate entre eles, que
culminou numa resposta coletiva, indicando que “família dos índio é parecida com família de
brancos”, restritamente no que entendiam conjugar os interesses e funcionalidades das
próprias políticas de atendimentos e assistência no âmbito em que a conheceram, ao que
afirmavam: “é feita de casal de pai e mãe e filho, mas se mulher tá solteira, ou viúva, ou se
homem tá viúvo, com filho que mulher dele deixou, também tem desse direito de benefício de
usar o postinho, de ter salário maternidade; bolsa família. Aí é família”.

5.3. Famílias e configurações político-espaciais

Um breve comentário se faz necessário, a partir do exposto acima, articulando


lógicas da morfologia, padrão de residência e as mudanças sociopolíticas provocadas,
inclusive pelo acesso a setores diferenciados de assistência (educação e saúde), que produzem
cargos empregatícios e geração de renda ademais daquela produzida pelo excedente da roça;
também, cabe notar, que a paisagem das aldeias e comunidades tem se modificado pelo
acesso mais recente a benefícios sociais de transmissão de renda.
As moradias atuais, cada vez mais edificadas no padrão regional “de madeira e
teto de zinco”, principalmente aquelas com mais fácil acesso à cidade pela facilidade de
transporte do material, estão situadas em “bairros” nominados – aparentemente sem referente
na língua indígena –, cujas lógicas de agrupamento, ainda que sigam regimes de alianças
matrimoniais, podem desvelar grupos de famílias extensas formados por aqueles que
partilham, por exemplo, de afiliações religiosas, formando, então, “bairros religiosos”. O que
muitas vezes se percebe pelo uso de pequenas placas indicativas, na parede frontal da casa,
nas quais há um número – que de acordo com um AIS, “fez casa virar família, não mais
assim só petchica grande, virou endereço” – servindo de índice ao censo da aldeia. Nesta
referência estética, além do nome do “chefe de família”, visualiza-se o nome da instituição
confessional frequentada pelo grupo doméstico, também o símbolo do time de futebol para
quem torcem, e fotos de seus residentes.
144

Mesmo em aldeias menores, afastadas do perímetro urbano, onde nem sequer há


ruas pavimentadas ou uma população expressiva, essa forma de expressar os agrupamentos
familiares, religiosos e políticos é recorrente. Há “bairros”, por exemplo, que se conformam
segundo as alianças políticas locais. Numa das aldeias próximas a Rio Bonito,
exemplificaram-me: “daquele lado estão os petchica dos fulanos, da família tal; lá petchica
dos sicranos”; algumas vezes, mencionava-se os sobrenomes distintivos, “fortes e políticos”
para distingui-las. Poucas vezes, contudo, ouvi associações diretamente feitas aos clãs, como
faz Oliveira Filho (1977, 1988).79


Fotos minhas

A inserção cada vez mais requerida pelos indígenas de acesso aos recursos
financeiros, especialmente os “benefícios”,80 acrescenta informações relevantes ao tema das
transformações e seus motivos relacionados ao casamento, pois tem contido valor
individualizante, algo de propriedade que, paulatinamente, vai redefinindo campos de
relações e situando status que, para alguns pontos de vista, podem configurar situações
propícias a uma aliança interessante, enquanto em outros gera sentimentos de inveja,
provocando, como ouvia dizer, “ciúmes de querer o que o outro tem”, ou, muitas acusações
de enfeitiçamento ditas serem provocadas por alguém que “quer ver o outro doente para ele
perder o que tem”. Este marco da comunicação com o exterior e as facetas capilares em que o
Estado infiltra-se nas cosmopolíticas ticuna também tem operado no cotidiano como
marcador social de diferença, representado com mais visibilidade discursiva, simbólica e
empiricamente, signos diversos de distinções, demarcando, com efeito, relações de poder e

79
Cf. Matarezio (2015: 70-75) onde o etnólogo, a partir de uma comunidade de pequeno porte, no leito do
igarapé Camatiã, considerada pelos meus interlocutores como “aldeia antiga, onde se faz ritual e não tem
igreja”, propõe um dado etnográfico interessante a propósito da relação política entre clã e chefia por mim não
atentado em campo. Ele comenta que haveria um dualismo operante nos regimes de chefia, sendo cada uma das
partes da relação (cacique e vice) de um clã diferente, notado uma eleição a tal cargo político.
80
Bolsa Família, aposentadorias, eventuais seguros falecimentos que recebem os pais do recém-nascido quando
atestado seu óbito, associado ao Registro Administrativo de Óbito Indígena (RAOI); há ainda recursos acessados,
por diferentes vias, pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF).
145

prestígio, também de disputas, revelando aspectos complementares aos princípios de “boa


convivência”, carente ainda de análise, à espera de retorno ao campo e melhor apreensão dos
pontos de vista indígenas acerca destas problemáticas.
Do ponto de vista de algumas mulheres, todas casadas, jovens e idosas, em
especial, a aquisição de “bons sabões de roupa”, “saias bonitas”, entram lado a lado desses
padrões de moradia na lista dos desejos bastante expandida: panelas, bacias, facções e
terçados; motores de barco para as gambiarras que fazem funcionar pequenas máquinas para
triturar mandioca; zinco, colheres, freezer, televisores, celulares, caixas d’água, dvd;
mosquiteiros; anel, brinco.
Como disse-me certa vez uma senhora, pedindo que com sua aposentadoria, quando
fôssemos à cidade, eu lhe ajudasse a comprar uns brincos bonitos, umas panelas novas e
algumas facas. “Tudo metal. Índio gosta”! Lhe indaguei se isso poderia estar relacionado a
ideias de beleza, ao que escutei: “sim, fico enfeitada, marido gosta, mas tem disso de ficar
bonita para parenta também, mostrar que tenho meu recurso, que minha roça dá
aposentadoria”. Ela, a exemplos de muitas outras mulheres na mesma aldeia, costumava
expor suas panelas brilhantemente limpas, dispostas nas paredes, ao estilo das casas caboclas
que conheci na região.
Em muitos momentos, eu ouvia de mulheres também algo sobre “poder que essas
coisas têm”. Poder aqui parece-me estar associado com estatutos, de mulheres cujos filhos,
roças ou outras articulações de variados capitais interseccionam configurando escalas de
prestígio, quando algumas dizem “tenho meu jeito de conseguir coisas; benefício
[aposentadorias por idade, invalidez; “salário maternidade”, “bolsa família”, são alguns].
Com efeito, isso as torna “mulheres maduras”. Sem contar o tempo da política partidária, que
em ano eleitoral, distribui facilidades e realiza pequenas obras em troca de votos. Guardo para
um artigo futuro os desdobramentos desse tema. Importante reter que, mediado por tais
contextos, as paisagens aldeãs e comunitárias tendem a manter-se em constantes
modificações, no “ritmo da política ticuna”, como costumava indicar Angélica.
Alguns breves exemplos que geram esses marcos distintivos e transformativos.
Casas com madeira de lei têm aqueles que “são dedicados [que sabe manejar cortes] na
floresta e sabem tirar” a matéria prima para construí-las, ou têm condições de pagar por ela;
casas em madeira e pintadas (verdes, azuis, vermelhas) ou de alvenaria chamam atenção nas
aldeias – em Yuatchawa, por exemplo, normalmente, estes últimos tipo de edificações
pertencem aos professores, cujas rendas mensais diferem-se bastante daquelas outras fontes
146

de renda, como AIS, aposentados, por exemplo, catraieiros (donos de canoas grandes e que
fazem traslados para as cidades). 81

A respeito do padrão de residência, mantenho minhas reticências em afirmar


haver algum. Especialistas (Nimuendajú (infra), Oliveira Filho (infra), Goulard (infra))
apontam a partir de seus contextos de pesquisa a presença de um padrão uxorilocal. Afirmo,
diferentemente, dado o complexo etnográfico que estamos conhecendo, que talvez seja mais
prudente afirmar uma tendência desse tipo. Não o observei em Yuatchawa, onde residi mais
tempo e onde pude com mais acuidade realizar censos e genealogias; tampouco, ao perguntar
em algumas comunidades do entorno de Rio Bonito, onde realizei pesquisa, havia alguma
“regra de moradia”, como me diziam. Em ambos os contextos, as respostas, respectivas,
agregavam o mesmo sentido elástico:
“Se filho/a quando arruma marido quiser ficar com pai ou com mãe, ele
decide”; “isso de filho ou filha ter de ir morar na casa da sogra/o vai de

81
Os salários dos professores em dezembro de 2014 giravam entre R$ 900,00 para contratos com o município e
R$ 1,200,00 para contratos com a secretaria estadual de educação; dos AIS e técnicos de enfermagem eram um
salário mínimo e o valor das viagens de catraia giravam entre R$ 10, 00 e R$ 20,00.
147

cada um, de cada grupo de parentes, de suas vivências e das políticas da


convivência”; “os filhos casam onde querem. E têm suas próprias casas,
onde querem, com os pais, com os sogros, sozinhos. Depende também do
tamanha da aldeia, se não dá mais, fica na mesma casa; “agora tem salário,
benefício para ajudar eles [sogro/as]. Ai os serviços de genro com sogro,
da nora com sogra vai mudando também. Hoje eles trazem peixes,
pesquisadores para ajudar, as filhas têm benefício”.82

A opção do casal em morar perto ou longe dos consogros foi variada. O que
evidentemente não invalida os informes dos autores mencionados.83 Isso também está sempre
fortemente conjugado, como estamos lendo, às particulares situações econômicas dos
cônjuges e de suas redes de parentes, também às lógicas de prestígio que faz com que alguns
jovens, homens ou mulheres, agreguem-se aos sogros que tenham mais destaque político,
melhor renda, acesso a certos bens e serviços; outros escolhem morarem sozinhos, sem
depender econômica ou produtivamente dos pais; também para esquivarem-se de certas
rotinas de “obrigações” com os pais ou sogros.
Conheci alguns casais mais jovens em que um dos cônjuges buscou abrigo na
aldeia de seus sogros prevendo escapar dos conflitos com seus pais, vinculados a agressões
morais ou físicas a ele e sua esposa ticuna, cujos irmãos haviam sido acusados de feitiçaria e
um tio (irmão da mãe), havia sido acusado “de outro crime”84: “beber e levar [traficar]
drogas em sua canoa”. Como veremos ao longo da tese, fofocas são formas de acusações as

82
Ofertas de casamentos não eram raras, algumas endereçadas a mim, por exemplo, feitas diretamente por
homens, outras agenciadas pelas mães e germanas. Sempre que eu soubera de alguma intenção, estas eram
mediadas por negociações de “interesses políticos” – trazê-los para estudar e morar em São Paulo”. Afinal,
como esclareceu um suposto pretendente: “olha dona, com respeito, assim, não vai ficar brava. O ajuntamento é
para ter aliado assim, também. Namorar eu namoro com parentes aqui. A dona é branquinha demais, assim,
cabelo é bonito, pretinho assim, como gosto eu a dona tem não. Têm todos os dentes, dona tem, isso, é bom. Se
fosse índia, a dona senhora ia ser boa para casar. [risos].”
83
Algumas etnografias produzidas nos últimos anos, sobretudo em contextos comunitários ticuna e multiétnicos
no perímetro rural de Letícia, na Colômbia, especialmente em nas aldeias (“resguardos”) de Arara e Macedônia,
indicam haver tal tendência de flexibilidade em relação à uxori/virilocalidade (Cf. Soto, 2009; Sánchez, 2008;
Moreno, 2011; Meza, 2013). Vasques (2011: 23), ticuna mestra em linguística, afirma em sua dissertação,
pensada a partir do contexto brasileiro, que “após o casamento, a moça passa a morar com a família do marido”
(...) “depois de um ano, o casal faz sua casa separado e passam a sustentarem-se sozinhos”. Algo que se passa
diferentemente também entre os interlocutores de Magalhães (2014) e Matarezio Filho (2015) ambos
descrevendo contextos brasileiros e que endossam minhas reticências.
84
Nimuendaju (1972) e, posteriormente, Cardoso de Oliveira (1964) e Oliveira Filho (1988) mencionam em seus
trabalhos a existência de “crimes” cujas sanções abrangem três tipos de condutas: o incesto, o infanticídio e a
morte por feitiçaria, citando este último autor (:141). Estes “crimes”, de acordo com estes referenciais e
corroborando com os dados por mim recolhidos em campo, não podem ser resolvidos exclusivamente pelas
“conversas, conselhos e acertos” entre os interessados, sendo assuntos que se referem aos princípios e valores do
coletivo. Veremos, ao longo da tese, menções a outras modalidades de crimes morais, muitos dos quais
sugeridos e articulados à ideia de sexo malfeito, a qual se amplia à ideia de incesto clânico, como é caso das
“mães solteiras”, “casamentos com homens peruanos”.
148

quais mesmo antes de serem fatos, isto é, verdades, comunicam “brigas entre parente, coisa
de política, de religião”, como ouvi, conjugado, claro, aos comentários envolvendo
conjugalidades mais explicitamente expostos: “isso é por causa de compromisso, ciúmes,
traição”.

5.4. Yora

Aprendi que aquele que constrói a primeira casa que agrega as demais se torna seu
“responsável, seu guardião, seu chefe” (“yora”), algo específico aos homens, e,
simultaneamente, quando nascem seus filhos, ele torna-se, ao lado da esposa, o “tanatü”
(pais) daquele grupo que ela agrega. Um “yora” explica que se tornou nessa relação de
casamento, descrita como “parceria” na qual está engajado há trinta e poucos anos, primeiro
um “natü” (pai), porque enquanto figura paterna ele “protege, ensina”. Ele mesmo chegou a
mencionar-me que “o casamento bem feito” resulta nestas possibilidades de alteração de
estatutos, posto que desde sua própria situação matrimonial e de alianças, reflete que tal
vínculo-aliança o ajudou a “virar um homem maduro”. Esse processo de coprodução conjugal
fora qualificado como um processo no qual, homens e mulheres, tornam-se alguém que é
“tchautanü’ü”, expressão glosada como “aquele que tem seu grupo de parentes crescido”.
Situação que parece-me estar denotando uma ideia de transações entre o casal e suas redes de
alianças que tornam visíveis as capacidades respectivas dos participantes, mostrando que eles
são compostos, cumulativos, de relações e de outras pessoas ao modelo analítico proposto por
M. Strathern (2006).
Nesse sentido, dizia-me o casal que quando seus filhos e filhas casaram-se,
passaram, então, a residir próximo, definindo pela configuração de seu grupo extenso, as
condições políticas para que ele se tornar “yora”, alargando seus campos de influência,
quando, enquanto sogro, também adquire outras relações para “cuidar”, “ensinar”. Estatuto e
status igualmente estendidos para sua esposa, tratada como “noé” (avó). Eles, enquanto
“parceiros” eram referidos como “yacü/yakü”, correlato de adulto, aqueles homens e
mulheres que já adquiriram conhecimento suficiente para ensinar e realizar atividades e
rituais, procriar, aconselhar para “fazer um corpo/um jeito ticuna com conhecimento”, glosa
para “maǚ rü naē”.
De acordo este senhor, seus genros, a quem trata por “aliados”, “outro tipo de
parente”, em diferentes esferas da convivialidade são assim descritos: “são aliados porque é
marido (nate) de minha filha. Ai aliado na política, na roça, na pescaria e na religião”. E
149

assim se alteram porque “se fazem como marido/esposa”, na medida em que parece ser entre
os “aliados” que se conforma, preferencialmente, o círculo primeiro de intercâmbios e redes
de “obrigação” e reciprocidade, especialmente. Não à toa, alguns casais preferem residir em
suas próprias casas, por vezes longe, evitando encarar as “obrigações” descritas; outra
alternativa é engajar-se em “trabalhos de salários” como esquiva “do trabalho de roça”,
“trabalho de pesca”. Ou também, como comenta o mesmo “yora”, que uma de suas noras
vivendo na mesma casa e outras na adjacência, onde também se situam a casa de outros dois
filhos, e alguns netos casados:
“Ter petchica grande é ser yora forte. É com os aliados que se briga,
discute e disputa, se discutem na minha gente, é no meu jeito. Assim faz,
assim ensina aos filhos e os aliados, aos netos tudinho de ser na vida de
casal”.
Pelo que entendo, nem todo “natü” é “yora”, nem todo “yora” é chefe político em
escala maior do que aquelas que arregimentam no seu “petchica”. As noras, não
diferentemente, ocupam posições de “aliadas” de suas sogras e cunhadas. Não há pelo que
notei, relações de evitação de qualquer tipo entre esses grupos de relação. Tratam-se pelos
nomes pessoais ou termos de parentesco, havendo tendência ao uso dos segundos sobre os
primeiros, “como respeito”; diferente do que ocorre para gerações G+2 e ascendentes, onde
prevalecem os termos de tratamento avó (no’é) e avô (oi).

5.5. Nigü, “compromisso”

“Assim, nigü, é estar de compromisso”.85


A ideia de “tanü”, dimensionado no espaço-temporal do “petchica” nos oferece


um complexo quadro de atualizações e sobreposições de significantes a um conjunto distinto
de significados interseccionados nos mesmos termos relacionais, o que também tem nos
mostrado que são peças chaves para as atualizações das micropolíticas de parentesco.
Voltando ao casal, da perspectiva do “petchica”, que comporta esta variedade de informações,
sua materialidade está evidenciada, numa escala, na relação conjugal. Isto é, entre o casal, que
é necessariamente sexual, posto que uma das expectativas mais ouvida durante o campo, em
todos os universos de diálogo, mencionam os filhos, “fazer família, “fazer parente”, “dar


85
“nigü porã'ãcü cü ni'i”, glosa à asserção acima exposta.
150

continuidade à comunidade”, como valor admirado aos que se casam e como resultado de que
o casamento está legitimado.
“Nigü” foi para mim traduzido como “um jeito de estar com as pessoas”. Algo
relacional, que entendo no sentido de cooperação, de muitos tipos e intensidades. Também foi
bastante usado para compor expressões que denotassem sentido às “obrigações”, como
componente da aliança e do vínculo conjugal, do “compromisso”, da “parceria”. Por tal
entendimento, este vínculo está atrelado ainda às socialidades generizadas, esculpidas no
cotidiano, que caracterizam “jeitos de homens” e “jeitos de ser mulher”, entre elas a de “fazer
parentes” [procriar]. Tais “jeitos”, pelo que sei, são inerentes às rotinas de “obrigações”
(“porã'ãcü”), claramente traduzido como “trabalho”, “das responsabilidades e atividades de
homens e mulheres para se fazer gente madura, no casamento”. Seu José havia-me contado
em algum momento algo sobre isso: "casamento, compromisso isso é casar (ni’í), estar junto
(nigü) 86.
A conjugalidade, como parte constituinte do casamento, estaria assim, intimamente
relacionado à produção de facetas da “boa convivência”. Esta última mobilizada em duas
escalas, correlacionadas. Numa escala do vínculo afetivo-sexual, entre “casal”, se produz
“bom viver”, que é glosado como “é estar feliz e longe de problemas com os parentes; é ir
fazendo o nosso tanü, nosso grupo, nossas coisas, casa, roça, filho”. Um “bom viver” que
emerge como sentido de efeitos esperados com o “arranjamento” dos casamentos, com as
“feituras das gentes dos parentes”.

6. Buscando cônjuge

Genealogia do petchica de um grupo anfitriões em exemplo.


86
“nigü rü tü'ü rika cü dawenü'u”, glosa à asserção acima exposta.
151

Graci (verde claro), de vinte e um anos, do clã do pássaro mutum [com pena]
estava interessada em seu “primo de nação”, Fantino (azul), vinte anos, pertencente ao clã de
avai [sem pena]. Este último é filho do irmão mais novo da mãe de Graci. Ele foi criado como
“um primo que podia casar”, e nesse sentido, ambos aprenderam a tratarem-se
reciprocamente como “tchauta’a”. Entre eles sempre houve distanciamentos e atitudes de
evitações, como exemplo, banharem-se juntos no rio sozinhos depois da puberdade, quando
se tornam desposáveis. Após um flagrante que desnudou os vínculos sexuais esporádicos
entre eles, “os namoros”, quando os dois foram pegos juntos na rede dele, na casa da avó
materna deles, onde Fantino residia, desencadeou-se os processos de negociações e
verificações das condições de matrimônios, desejados pelos dois.
Segundo a avó materna (no’é) de ambos, estes estariam cumprindo bem o princípio
de exogamia restando “verificar”, como diziam na situação, os princípios de distanciamentos
e proximidades entre aqueles que seriam por definição potenciais afins. Isso se fez necessário
uma vez que, ambos os pretendentes ao casamento, colocados em dimensão ao tempo-espaço
relacional do “petchica” de seus avós maternos, onde costumavam circular, e ele residir,
manter-se-iam, com efeito, relacionalidades diárias que, eventualmente, os poderiam alterar
em germanos classificatórios. A avó, a mãe de Graci e o pai de Fantino reuniram-se para
mensurar essas condições, concluindo que não haveria problemas, uma vez que Graci, apesar
de auxiliar com frequência a avó, principalmente nos afazeres culinários, não costuma
preparar e tampouco alimentar o seu primo cruzado, como usualmente fazia com outros
irmãos de seu pretendente. Assim, Graci e Fantino cumpririam positivamente a todas as
perguntas “sobre os jeitos de estar na vida”, na ordem mencionada pela avó de ambos, “do
clã” ao quesito de “convivência”, pois Graci não residia na mesma casa, parecendo residir aí
o eixo que definiria a interdição. Igualmente ambos mostravam-se aptos a manterem-se
minimamente independentes de seus pais, e dizia-se ainda terrem “juízo” [algo no sentido de
maturidade], posto que Fantino era um exímio pescador, Graci já havia, à época do episódio
narrado, iniciado junto com seu pai a abertura de um pequenino espaço de roça, de onde já
colhia suas primeiras provisões de mandioca e variadas frutas, e demonstrava interesse de
seguir estudando Situações, que entendo, atribuir-lhes “jeitos de gente responsável”, dizia-se
pelo grupo extenso em questão, no qual o matrimônio era bem quisto.
Com a situação entre Fantino e Graci resolvida, uns dois meses depois,
descobriram o “namoro” de Luisa (rosa), irmã mais nova de Graci, com seus dezoito anos,
também do clã do pássaro mutum, com Joaquim, (amarelo), de dezenove anos, do clã de
garça, ambos clãs “com pena”. Joaquim é filho de uma das irmãs da irmã da mãe de Luisa e
152

Graci. De acordo com o enredo, o que proibia que o segundo “namoro” se alterasse em
intensão de casamento, assumida entre eles, era a métrica de proximidade. Eram “pa’mai”, o
que deixava visivelmente preocupados os pais dos pretendentes devido a possível situação de
“womãtchi” [sexo malfeito, incesto clânico]. Nestas negociações, os pais de Luisa e Joaquim
lançavam a eles os exemplos do caso de Graci e Fantino, como “jeito de aprender a casar
bem/certo”. Fantino a tratava por “tchaueya” (Z=MZD), que designa situação de prima
paralela, e neste caso, de uma germana classificatória, ao passo que reciprocamente ao referir-
se a ele, ela empregava o vocativo “tchaue’ne” (B=MZS). A mãe de Joaquim, num
comentário jocoso, disse-me assim, ao explicar a situação de proibição: “o Joaquim, se levar
minha Luisa, leva a irmã”, o que se poderia interpretar que o se “leva a irmã” se seria uma
forma de se assumir virtualmente que a posição da mãe é equivalente à da irmã da mãe
(M=MZ), que o impediria de tratá-la como sogra.
Um último caso, ainda no mesmo grupo extenso que nos complexificará, também
reitera o que foi transcrito na frase acima, a respeito da preponderância dos locativos “irmão
ou primo de nação”. Fredi (laranja), de dezenove anos, germano real de Fantino, também clã
avai [sem pena], antes de conhecê-los, dizem que “tentou levar para casar a Isa”(vermelho),
com mais ou menos dezessete anos, do clã de arara-azul [com pena]. Foi impedido pelo avô
paterno (oi), ainda que Isa estivesse de acordo e buscava efetivar tal união marital. Ambos
são, como Graci e Fantino, que se casaram, “primos certo de casar”, “não são pa’mai”.
Terminologicamente todos os quatros em relação ocupavam a mesma posição de “tchauta’a”
um ao outro. Porém, como justificou a mãe e o avô de Fantino e Fredi, este não “combinava”
com Isa, porque manifestavam-se “parecidos”, no que se referia à corresidência e à
consubstancialidade, enunciada na seguinte tônica, pela mãe de Fredi:
“Eles não podem casar nem namorar por aí. São sim primos de nação,
sem sangue de womãtchi, mas já viraram tudo parecido, dona, não como
pa’mai, mas como irmão de vivência”.
Pelo que entendo, o que promove a alteração prática de suas posições de primos
cruzados, antes possíveis e desejáveis ao casamento, àquelas proibidas, de irmãos
classificatórios, é unicamente respondida pelo fato da convivência. Lia conviveu com os avós
maternos desde que se tornara púbere, quando adquiriu condições de ajudar sua avó na roça
de mandioca, apesar de não lhe agradar. Fredi, desde muita tenra idade passou a ter suas
refeições na casa dos avós paternos, a pescar para eles, diferentemente de seu irmão Fantino,
que optou por ser criado e alimentado, corresidindo com os pais e sua irmã, casada e com dois
filhos. Ele tornou-se um “meio-filho” do casal que me hospedava, seus avós paternos. O que
153

se segundo o avô de Fredi, o tratava muito mais pelo vocativo “pa’pa” do que “oi” (avô), “se
esses daí se ajuntasse seria como eu tá juntando filho, porque de tanto esse rapazinho ficar
aqui, virou filho meu, ai pega clã meu, deixa do pai apagado [risos]”.
Lia, apesar da convivência, não empregava o vocativo “patchau’ene” [germano] a
Fredi, o tratava pelo nome. E entre os jovens, ambos se tratavam por “patchore”, expressão
romântica que designa afeto, algo dito como “meu amor, meu querido”. Sigo sem notícias
sobre a realização do casamento até o momento, apenas sei que Lia, “bem triste”, pensou em
ir-se embora da aldeia.
Retomando o diálogo proposto com base nos exemplos apresentados, do ponto de
vista de meus interlocutores, homens e mulheres, que me ajudavam a compreender do que
consistem, afinal, as posições “primos/as e irmãs/os” e suas implicações de usá-los como
termos de tratamento, o conceito relacional “tanü” coloca em movimento, por outro caminho,
dá lugar ao termo referencial/vocativo usado por Jean-Pierre Goulard (1998) e Goulard &
Barry (1998/1999), por “tchauta’a”. Este, vimos, é traduzido aqui como “aquela que é minha
prima certa de casar”, do ponto de vista de um ego masculino, para diferenciar daquelas a
quem chamam de “minha irmã”, equivalente ao termo “tchau’eya” (Z, FBD, MZD). Isto é,
“aquelas que têm nação no mesmo grupo que meu pai”, explicou Lia. Da perspectiva do ego
feminino, sem distinção, como já aventado, “tchauta'a” descreve “primo certo para casar”.
Aqui retomando o que explanou Roberto, no início do texto, e que com estes exemplos
endossam a hipótese de que as metades, em primeiro plano, produzem as métricas, mais do
que o conhecimento de um modelo de troca:
“(...) assim se faz, assim, se organiza e assim vamos indo como parentes
de grupos diferentes, que muda sangue, pode misturar, assim cruzar para
casar bem. Assim casa um de pássaro mutum, como eu, outro de bicho
onça. Aí é casar certo no tempo dos yunatü ticuna. Isso a gente diz regra
das nações. Nossa lei de casamento mais antiga. ”
***
Estas últimas notas sobre os usos e conteúdos contidos no emprego das categorias
indígenas apresentadas ao longo do capítulo produzem significado às partes constituintes do
casal, do grupo doméstico, do grupo extenso, visam, no limite do cuidado possível, expô-las
como o são: dispositivos de aparentamento, situacionalmente manejados nos interiores das
socialidade intraétnica. Ora os temos evocados pelo debate sobre “tanü” operando como
valores formais, ditando posições graduáveis entre afins e consanguíneos (primos ou irmão) e
ora gerando termos que produzem valores nas relações possíveis (de sangue ou de casar).
154

Estes impingem e ganham sentidos mediados, portanto, por outras dimensões de socialidade,
não somente aquelas abarcadas pelas “histórias dos antigos”, que Roberto, ao abrir o capítulo,
nos diz serem para lembrar-se de “cruzar bem os clãs”. O que não necessariamente
implicaria, segundo ele, em “cuidar dos problemas das vontades, das vivências”.
Tal colocação ilustra, pois, o fenômeno transformacional das estruturas de
parentesco e aliança que, como se argumenta, se flexibilizam, de acordo com as conjunturas
de socialidade, dando ritmo também às definições sobre as possibilidades. Lança-se, neste
movimento, luz às “reclassificações” (Lévi-Strauss, 2011) dos gradientes de identificação e
diferenciação. Seus efeitos, que nos interessam aqui, reverberam, ainda, para além e aquém de
posições genealógicas preferenciais, expondo uma gama de critérios sociopolíticos à escolha,
aceite e legitimação do matrimônio intraétnico. Justamente neste ponto, os dispositivos
classificatórios abrem-se aos “movimentos”, “aos ritmos da política ticuna”, que redesenham
tais linhas e posições, na duração e nos contextos particulares das relações que as engendram.
155

Segunda Parte:
Alterando-se na mistura.

“Quando parente passa a viver mais perto dos brancos, está


fazendo isso do nosso jeito. (...) isso não ter a ver com deixar
de ser ticuna, é um jeito de mostrar como você, seu pai, sua
mãe se cruzaram, se misturam no casamento, nos namoros,
marca na pessoa, como já tinha marcado nos ancestrais”
(Lurdes).
156

Capítulo III
“Woca”.
Fazendo-se “ticuna legítimo ou ticunado”

Interlocutores

Lurdes: mulher ticuna, clã de onça, de setenta e oito anos, bilíngue, animada, e saudosa de seu
falecido esposo Plínio, fundador da aldeia onde mora com os filhos, todos do clã do woca,
transmitidos pelo seu “homem de fora”.

Mariano: é filho de Lurdes e Plínio, do clã de woca; casado com uma mulher de outra aldeia.
Ele tem quarenta anos, aproximadamente; dois filhos pequenos; falava precariamente o
português, ainda que o compreendesse bem.

Nazareno: é o filho mais velho vivo de Lurdes e Plínio, é, assim, do clã de boi; tem cinquenta e
oito anos. Ele foi um dos capitães de sua aldeia; com manejo razoável do português. Primeiro
expressava-se em ticuna, e nos entendíamos depois em português, traduzindo algumas
conversas; ele é casado com Noêmia, uma mulher de quarenta e seis anos, nascida como ele ali;
já estavam pelo quinto filho e dois netos. Ela era parteira.

Nonato: senhor ticuna de sessenta e poucos anos, clã de saúva; “aposentado da roça”, xamã e
“homem de muitos netos”. Sua esposa, Clarina, clã de mutum e de idade mais avançada, ali
nascida como ele, não falava nem entendia português. Nonato é um homem de prestígio
acumulado, já foi chefe de aldeia, professor. Homem bom de prosa, sem vínculo de parentesco
próximo com os demais, para além daquele dos limites da aldeia e de algumas curas aplicadas.
157

Abrindo-se ao Outro, “capturando jeitos”

“Toda a abertura tem o seu limite. São muitas nações, não acabam porque
não acaba a história dos Ticuna. Woca é disso, conta a história dos
casamentos com gente de fora, quando os aliados de compromisso não são
parentes legítimos, assim, filho de sangue de homem ticuna. (...). Fazemos
nossa história desse jeito, ela fica marcada no jeito de fazer parentes, assim
é. Casar é fazer um pouco dessas histórias da na’ane. Das diferenças e do
jeito que a gente pega dos outros para fazer a vida aqui de parente. ”
(Mariano).

***

“(...) o tempo vai passando e a gente foi se misturando. Misturando assim de


todo jeito, de casamento, de usar roupas, palavras, comer comida de
civilizado. O que faz a gente de fora pensar que estamos deixando a cultura,
o jeito de ser índio. Nisso veio esses bichos, a vaca, a galinha. Hoje até
parece vingança, né? A gente cuida desses bichos agora no jeito de parente.
Antes de chegaram os brancos aqui querendo fazer a gente vivar civilizado
com a escola, com igreja; teve outra peleia por conta da nossa seringa; esses
homens fizeram dinheiro deles, deixaram as marcas (ngo’ǔ) na vida da
gente, no pensamento dos ticuna. Não deu bem certo o golpe deles, como a
senhora vê. Eles estão aqui, mas dessa vez a terra é nossa. Fechamos no
nosso jeito, misturado com o que presta dessa gente. Assim foi que fizeram
com a gente. (...). Aí a gente capturou as coisas de vocês e fez delas coisas
nossas. É mais ou menos isso a história desse clã do boi (woca). Bem como
conta na tragédia, do Massacre.87 Bem isso, mataram parente ticuna por
causa de boi, disputa de terra; bem por isso que nação woca diz que parente
fez historias noutras gentes (Lurdes).88

O clã de boi ou vaca, como igualmente aparece na etnografia, é marcadamente


signo da “mistura de palavras e histórias”, tornando-se a insígnia identitária que evidencia o
exterior contido no interior. Ele insere-se no âmbito do sistema classificatório ticuna servindo
de índice ao qualitativo “gente/parente ticunado” e contrapõe-se criativamente ao grupo
daqueles de clã de “gente legítima”, descrevendo pessoas cujo pai é ticuna. Desta perspectiva,
argumenta-se que o clã de boi é um marcador étnico-político-moral comunicador de uma

87
Lurdes refere-se ao episódio do Massacre da Boca do Capacete, um ataque contra os índios ticuna, em 1988,
encomendado e executado por madeireiros. O ataque aconteceu durante uma reunião entre os índios ticuna das
comunidades de Bom Pastor, São Leopoldo, Porto Espiritual e Novo Porto Lima, na localidade conhecida como
Boca do Capacete, em Benjamin Constant. Foram assassinados quatro índios, 19 sofreram lesões corporais e
nove desapareceram. Apenas em 2006, a juíza da 1ª Vara Federal, Jaiza Maria Fraxe, condenou 13 dos 14
acusados a cumprir penas que variam de 15 a 25 anos de prisão. Trata-se da primeira sentença atingindo
acusados de praticar violência contra os povos indígenas no Amazonas. (ISA
http://pib.socioambiental.org/en/noticias?id=2977). Ver ao final do capítulo um excerto da publicação de mesmo
ano ao evento, “rü aü Ticunagü arü wuí”, A lágrima Ticuna é uma só, que apresenta os fatos.
88
As conversas aqui expostas foram todas registradas com o uso do diário de campo e realizadas em momentos
distintos do campo com cada grupo de interlocução mencionado, no intervalo entre julho de 2013 e fevereiro de
2014.
158

“filosofia da boa distância” (Overing, 1986), definida nas fronteiras ontológicas geradas entre
interior e exterior das socialidades constitutivas do parentesco em tela, quando tal clã
materializa relações de poder, descritas como espaços de saber (discursos-enunciados),
impressos na problemática do corpo, mais precisamente nos processos transformacionais do
“sexo malfeito”.
Neste capítulo, tal relação é apresentada produzida pela imagem da afinidade
potencial nas micropolíticas de parentesco, observando-se de que modo ela emerge nos
casamentos interétnicos, não como “womãtchi” (incesto), senão como efeito da interação
mediada pelo vínculo-aliança com outros não indígenas, que, para tornar-se potente,
desenvolvem-se no interior dos mecanismos de introjeção das diferenças, alocadas
produtivamente. Para entender essa proposição, acompanharemos a seguir as relações que
mediaram e constituíram a experiência conjugal de Lurdes, quem, bastante jovem, antes ainda
da menarca, casou-se com um ex-seringueiro, Plínio, já falecido. Como efeito, conta-se na
aldeia onde Lurdes vive, ser esse matrimônio o evento que desencadeia “a chegada do clã de
woca” ao local. Tomo sua narrativa conjugal, então, como imagem etnográfica para conhecer
os meios pelos quais tais socialidades com o exterior, marcadamente caracterizada pela feroz
predação contra os Ticuna, recebe significado desde suas próprias perspectivas, aqui
enfocadas desde pontos de vista femininos desse processo.
Os modos como a alteridade se introjeta e ganha significados nos cotidianos são
variadas, e, nessa polifonia, Lurdes e seu filho Mariano a associam com um afeto político:
“vingança”, “revanche” aos não indígenas, projetados como facetas de inimigos. Assim,
trasladando atributos do exterior mediados por casamentos, a alteridade masculina, neste caso,
evocada pelo emblema do clã de boi torna-se alvo de atenção, mobilizando movimentos de
duplas vias, à medida que, no âmbito da conjugalidade, ele altera status e estatutos entre as
partes do casal. Lurdes, por um lado, consegue com o casamento retornar “ao mato”, deixar a
cidade e refazer sua vida, ter seus filhos ao lado do esposo, quem, por outra via, é apontado
local e respeitosamente como o “ex-capataz” que se tornou “ticunado no casamento”.
O casamento de Lurdes mostra-se, desta ótica, em algo revés àqueles casos
descritos por etnografias voltadas à compreensão dos efeitos das migrações de mulheres
indígenas para cidade e suas relações conjugais com homens não indígenas (Lasmar, 2005,
2008; Galli, 2012). A relação de Lurdes e Plínio propõe-nos, nesse sentido, ver como os
exteriores desses vínculos são manejados, então, na aldeia, no universo da “segurança” e da
“intimidade” entre os cognatos (Overing, 1999; Mccallum, 2013a, 2015), não no campo social
onde os indígenas são, por definição dos “civilizados”, dizem os Ticuna, os Outros, isto é, a
159

cidade. Nesse quadro, se uma das hipóteses deste trabalho é a de que casamento, como
fórmula relacional aos Ticuna, é o operador que estabiliza as diferenças, o clã de boi,
portanto, “faz lembrar” modos possíveis de administração da alteridade e suas distinções
simbólicas, produzindo “jeitos de ser homens” e “jeitos de ser mulheres” diversificados.
Nos interessa neste capítulo, com especial ênfase, produzir a descrição de certas
lógicas desse aparentamento, transcritas a mim como “feituras de parentes”, envolvendo um
conjunto de transformações entre vínculos qualificados sobre o eixo “parentes legítimos” e
“parentes ticunados”. As perguntas que guiam o debate orbitam no interesse de saber quais
diferenças, afinal, são domesticáveis? De que modo meus interlocutores incorporam afetos e
memórias das relações com o exterior, as transformam e as atribuem significado ao
parentesco, às “políticas de convivência”, via casamento? Que parentesco produzem a partir
disso, mediados por que agências e atores? Que corpos e relações, pois, são válidas e
desejadas nestes contextos de pesquisa à produção de parentes, de um casamento dito “bem
feito/certo”?
Com efeito, estamos diante de um contexto de dupla dimensão, característica
mesmo do processo do parentesco ameríndio, que, como apontou Viveiros de Castro (2002),
funciona por meio da dinâmica entre a linha que se conforma à afinidade (como alteração) e a
linha desenhada em direção ao assemelhamento, à consanguinidade e ao aparentamento. Ao
transformar o outro em semelhante, transforma-se aquele que já o é em alguma medida
parente em novos tipos de “patcha”. Para tornar inteligível tal argumento, nos ocuparemos em
seguida em descrever alguns campos de ação desse processo de aparentamento, enfocando
fragmentos da historicidade dos afins potenciais, “os awane”, como protagonistas, como
esposos (nate), particularmente. Percorremos, na sequência, os contextos que promoveram a
alteração de Plínio de “ex-capataz”. Por meio da relação de conjugalidade com Lurdes
“inimigo virou parente ticunado”, agenciado em coextensão com ela, “com os sangues de
mulher”, “novos parentes”, atualizando e produzindo o parentesco e novos sentidos a ele e na
intersecção da sexualidade.

1. Awane
Patricia: Quem são os Ticuna?
Lurdes: “Nós somos os que os outros não são”.
P: E os Outros, para vocês, quem são, como são?
L: “Todas as gentes que vivem na na’ane são gentes como a gente. São duü’ǖgü
(seres viventes), só que de outro jeito. Os outros, que não somos nós, são awane.
160

Diz na gíria; assim inimigos dizia antigamente pros patrões; [awane] são gentes de
todos os jeitos, gente índio, gente branca. Os awane estão na na’ane desde aquele
tempo (yeguma), quando o sexo malfeito pelos ancestrais criou o mundo de hoje
(...) Palavras como woca, como inimigo, civilizado, que contam nossa história.
Histórias que contam sobre nosso povo, desde o seu início nesse mundo. Histórias
que se misturam com as histórias desse lugar e que dão nossos jeitos de feitura,
dona. De ser e existir como ticuna, agora misturado no sangue, que faz parente
ticunado”.

“O mundo do meio” é terreno de relações gerido pela chave da alteridade e da


diferença em toda a sua impulsão. Aí vive-se sensível às “políticas”, aos imponderáveis da
vida rotineira, sempre suscetíveis às transformações advindas das “misturas de palavras”.
Nesse rumo, os interlocutores aprenderam a construírem-se como parte de uma rede de
pessoas compósitas, que não refletem sobre si sem a presença necessariamente constituinte do
Outro, seja no nível interno, nas linhas de consanguíneos e afins, seja justaposto, também aos
seus Outros, os “awane”89, a alteridade em seus multimodos. Essa foi a “inspiração” do mito,
apresentada nos dois primeiros capítulos. Tal conceito de alteridade, parece-me corresponder
a uma gramática relacional informada pela temporalidade reticular própria aos Ticuna, a partir
da qual aprendi com Lurdes, Mariano, Nonato e Nazareno, designar, “inimigos de guerras
passadas e do tempo de hoje”, visto que atualmente, como evidencia a ilustração de abertura,
tais confrontos ganham outros contornos e conteúdos, englobando-se, assim, aos “brancos
(não indígenas) ” em diferentes hologramas. Em sua miríade de ocorrências, estes “awane”
tomam “jeitos” de brasileiros, colombianos, peruanos, gringos, missionários, seringueiros,
fazendeiros, agentes do Estado, pesquisadores...
Estes todos, não indígenas, nem ticuna, muitas vezes, são tratados como
“civilizados”, na perdura das relações assimétricas de contato, para quem os Ticuna, por
oposição e violência ontológica, seriam os “não civilizados”, falantes “de gíria” 90 — e
também, cada vez mais, das “línguas do civilizados” (português, espanhol). Numa categoria
ampla, “os brancos”, os “duü'ügü [gente] i [predicado] tcho'ǖ [cor branco]” são vistas, assim,
como “awane” situacionais, especificamente quando homens ou mulheres não ticuna passam

89
Awane é o termo apresentado por muitos colaboradores ticuna para expressar aqueles que, de modo genérico,
não são como eles, yunatü ticuna, o traduzem como aqueles a quem tememos. Goulard (1994, 1998, 2009) a
propósito sugere tradução muito similar, indicando ainda, tanto quanto os trabalhos de Montes (2004), que tal
termo fora tomado de empréstimo dos grupos tupi que coabitam a região do Alto Solimões (Omaga, Cocama).
Cf. Goulard (1994: 418): “los enemigos ancestrales, los Tupí”.
90
Modo como regionalmente, indígenas e não indígenas, referem-se ao idioma Ticuna. Cf. Cardoso de Oliveira
(1972).
161

a ter espaço como cônjuges, “aliados, maridos e esposas que chegam de fora”. Neste marco,
diferença e alteridade são “princípios constituintes” (Erikson, 1986: 189) dentro do qual
“awane” pode ser empregado como termo que denota uma “verdadeira alteridade” (Lagrou,
2007:159),91 em contraste com “yunatü ticuna”.
Awane, segundo Lurdes, derivam daquela gente que pescou Ipi, qualificando suas
posições na rede de socialidade enquanto aqueles em quem não se confia.92 “Awane”, de
acordo com Nazareno, filho mais velho de Lurdes e Plínio, é refletida no contraste com o
conceito de “alteridade verdadeira”, proposta por sua mãe:
“[Awane] são as gentes, os povos que tinham antes e com quem a gente do
Yoi lutava. Depois (yica), Ipi, pescou os outros povos do mundo. Virou isso
que a senhora vê agora. O rio que era pequeno, ficou grande, com a queda da
sumaúma. Agora ele vai até Manaus, São Paulo, Rio de Janeiro. Vai
conectando o povo daqui, desse canto do rio, com as gentes por aí. Essas
gentes, sim, de um jeito ou de outro, são nossos awane, de muitos jeitos de
fazer vivência, desde aquele tempo da pescaria; de jeito de parentes ou não”.
O clã de boi em relação à ideia de inimigos e alteridade nestas perspectivas
mencionadas, evidencia, desse modo, a afinidade estrangeira e a diferença que a elabora,
“disfarçada”, acomodada conceitualmente. E sob a forma de componente da pessoa
materializado no clã, tal afinidade se propaga eficazmente como locus de novas relações,
como todo outro clã ticuna nesse momento conjugal, à medida que o parentesco ganha
dinâmica, mencionadas, por exemplo, em enunciados como esse, segundo a contextualização
fornecida por Mariano a propósito da fluidez do sistema e a frágil condição da aliança.
Ao empregar o termo de “disfarce”, os interlocutores talvez estejam se remetendo
à relação de instabilidade e tensão que a afinidade implica (Cf. Rivière, 1969), reforçando a
ideia de que o casamento é o espaço relacional propício à domesticação desta diferença. Aqui
ela é travestida na figura do afim potencial, que se torna, um afim real, um marido, um genro,
um cunhado, quando parece, incipientemente, evocar um duplo e simultâneo jogo entre a
hierarquia dos “binômios gradáveis”. Esta mesma figura, quando domesticada, “pega no jeito
ticuna de ser”, a condição ticuna oblitera a perspectiva awane, que, posteriormente, projeta-se
nas posições de pai, tio, avó; e também chefe político, intra e alargado ao seu grupo


91
A autora emprega referência aludindo ao termo nawa (inimigos, brancos e os mitológicos Inka, deuses canibais;
pessoas ou animais de caça e também como denominação situacional para nomear distintos grupos pano
Yaminawa e os próprios Kaxinawá de outras áreas não congêneres) e, nesta intenção, -nawa compõe parte do
etnônimo atribuído aos Pano vizinhos, significando “povo”. Tal termo, pode, ainda, servir de referência a uma
das metades ou seções de doadores de nomes no interior do mesmo grupo.
92
A expressão em ticuna a mim ensinada referindo-se à condição de desconfiar foi: “tama tcha na õ”.
162

doméstico, fazendo-se “yora” (figura masculina política-afetiva responsável pelo grupo


extenso).
Se casar e ser generoso constitui um chefe, este apenas existe na
complementaridade, aqui não simétrica, onde a afinidade segue presente na memória daqueles
que hoje são do clã de boi, “parentes do antigo inimigo que virou parente”, produzindo o
outro lado do processo simultâneo, o englobamento da condição de “ticuna não legítimo”.
Tal condição é definida como efeito na primeira geração de descendentes do casamento entre
as mulheres e os homens não indígenas como “ticunados”, não sob a condição de Outro,
alocado numa posição menos valorizada, senão, ao que entendo, como uma diferença precisa
para justamente colocar em movimento às lógicas de identidades, que sem a sua presença não
podem durar.
Neste sentido, não soube durante o campo haver explicitamente uma relação
direta de valor entre gerações descendentes de ego masculino vindo do exterior,
especialmente “descendo” desde os filhos. Como já mencionado, explicita-se mais a respeito
da relação político-conjugal entre os genitores pelos efeitos, pelo afeto prospectivo, do “sexo
malfeito”, materializado nos enunciados morais e políticos que afirmam que tais
relacionamentos conjugais, “das misturas meio errada dos sangues dos pais” da pessoa.
Revelam-se, assim, como meio de tratar com a diferença, demarcando os limites de
socialidades mais apreciadas, dando espaço às articulações para que, nas gerações posteriores
os filhos misturados deem continuidade ao processo e alocamento progressivo da diferença,
ao que explicitava Lurdes, ao dizer: “(...) filho cresce, casa e passa o clã, fica normal; (...) faz
lembrar, como meus filhos e meus netos, que num dia o avô dele foi branco, civilizado”.
Um afim potencial na minha leitura do que contavam esses interlocutores, então,
materializa-se na relação de vínculo com alguém com quem se estabelece uma socialidade,
não necessariamente duradoura, na qual se troca, se gera dívidas, nomes, ganha-se prestígio,
bens; parentes e lugares sociais. Tudo isso, claro, só se realiza a depender dos interesses em
jogo, podendo ser, do revés, aniquilado, como exemplifica a ideia, Lurdes:
“Isso do meu homem ser homem de fora, do tempo da seringa, da sorva é
porque ele ficou. Porque deixou se fazer ticunado; eu domei esse homem
[risos], moça. Se homem de fora não passasse no teste da confiança, era de
novo inimigo. Do meu tempo moça, solteira, era assim. Aí tinha rapaz que
parente matava mesmo, era capataz disfarçado de marido, pega esposa para
se saber da política dos ticuna. Não rendia, esses daí, não. Os homens como
o meu, diferente foi, né. Papai me deu para ele, fez aliado bem forte; esse daí
163

não me roubou não, eu fiz dele parente ticunado; casei, fiz minha vida aqui;
agora estou yacü [velha, anciã], sei bem que eu fiz jeito dele parecido daqui.
Fala bem dele por aí, do Plinio, o que ajudou o Fulano a criar a aldeia.
Assim é. [...]. Meus filhos vieram tudo clã de woca. Peguei marido fora, um
inimigo, para alguns dos parentes, me falava assim naquele tempo. Foi eu
que mudou esse homem aí. Ficou”.
Pelo exposto, entende-se que um parente ticunado pode tomar forma de alguém
não ticuna alternado na relação de convivialidade e consubstancialidade em alguém cuja
semelhança deixa de ser deletéria, e seus efeitos, nesse caso os filhos, que adquirem a insígnia
paterna. Estes últimos, contudo, tornam-se “ticunados”, noutra escala, não pela via de
apropriação de atributos do exterior diretamente, mas pelo manejo dela já transformada no
interior de relações que o conformam. Do ponto de vista de meus interlocutores, estas
relações transformadas criativamente estimulam reflexões dos mais variados enfoques, aqui
visualizado pelo lugar social do casamento e suas articulações sociológicas.93 Se num ideal de
endogamia étnica, a exogamia interna entre as “nações” revela-se pivô dessas ferramentas de
produção do estar-se (bem) aparentado com alguém, porque se evita gerar na “mistura
errada”, “gente malfeita”, parentes em condição de poluição (puya), isso inverte-se quando
se casa com a diferença extrema. A consequência é que o conteúdo semântico do “sexo
malfeito” opera aqui enquanto “um jeito de namorar fora da cultura”, desestabilizando as
lógicas da endogamia, parecendo estar nessas relações de conjugalidades com a “gente de
fora” para criar distância equivalente à distância entre metades, evidenciada na própria
alocação do clã de boi no sistema classificatório.
Ainda nas dimensões de atualização da ideia de “sexo malfeito”, ademais dessas
conjunturas mencionadas, um detalhe intrigava-me: ambos, Plínio e Lurdes, pela lógica da
‘encorporação familiarizante’, pertenceriam a mesma metade, “dos sem pena”. Ela do clã de
onça, ele boi/vaca. O que ali oblitera a noção de “womãtchi” [incesto], tão relevante a outras
situações?
Demoramos muito para nos entendermos a respeito disso, por isso, por segurança
das informações, menciono algumas poucas coisas, deixando registrado o que vem por fazer.
Lurdes em várias situações retomava a expressão de “já entendeu, patcha?” womãtchi é
quando o sangue que mistura errado é ticuna com ticuna”, situando a distinção ontológica


93
As relações estabelecidas pelos Ticuna com os exteriores com os quais passam interagir e agenciar-se é tema
de trabalhos extensos e bem elaborados acerca desses processos de comunicação, notadamente exposto no
trabalho de Roberto Cardoso de Oliveira (infra), Oliveira Filho (infra); Lópes Garcés (2000, 2003); Oro (1977);
Macedo (1996); Nunes (2012), Soto (2009), Valdevieso (2005); Lima (2013); para citar alguns.
164

daquilo que mantêm algum resíduo de alteridade no marido “ticunado”, quando ela afirmava
que seu “homem era homem de fora, era mais diferente. Ganhou a onça [riso]”. Contudo,
alertava-me Lurdes se “se casar woca/woca é womãtchi igualzinho ava/avai/;
mutum/mutum”.
No plano interno, o clã de boi parece ser acolhido sem efeito de anular o excesso
de mistura igual. E a metáfora do sangue aqui é o que traduz um ponto de vista da “mistura
bem feita”, como leio as palavras de Lurdes. Gera-se, ao falar sobre o clã de “woca”,
“versões” do parentesco ticuna como “mundo vivido” (Gow, 1991, 1997), na medida em que
ele nos descreve a historicidade da substância, da memória que cria as linhas de
aparentamento; memórias contidas de afecções, dão vida e ritmo às aldeias; caracterizam
estilos e vida.
Para exemplificar, apresentaremos a seguir aspectos da teoria de concepção e
nominação conhecida por Lurdes e outros interlocutores, perpassando mais alguns conteúdos
relativos às substâncias generizadas para entender como o clã de boi produz um tipo de corpo-
parente,94 um “parente ticunado”. Em particular, entre estes interlocutores, o processo em que
consiste o parentesco não é absolutamente iniciado a partir do nascimento de alguém, ele tem
lugar antes, no casamento, “no jeito do casal se fazer como marido e mulher”.
Ele tem lugar antes, no “jeito de fazer sexo”, “no jeito de estar de barriga”, “no
jeito de trazer ao mundo”; “marcar nome e fazer o corpo virar parente”. Também extrapola
o vínculo conjugal, necessariamente precisando ser continuado em outras relações. Iniciamos,
então, pela ideia de “awane”, circunscrevendo contextualmente as linhas traçadas nesta
relação de conjugalidade que nos servirá de imagem etnográfica, e delas nos estendemos a
outras, para concluir atualizando um argumento exposto no capítulo precedente, de que não
haveria uma hierarquia entre as “nações”/clãs ticuna, ainda que elas simbolizem marcos
diferenciativos e de distinção ontológica.

2. “Casamentos com homem de fora para fazer aldeia”


2.1. Relações
(Casamentos arranjados)

“Era no tempo da seringa que ele me pegou, me trouxe aqui nessa aldeia,
quando ela tava bem formando ainda, duas maloca velha tinha aqui. Aí não
foi ruim eu pegar compromisso com esse homem de fora, foi nada. Foi bem


94
Cf. Rosa (2011).
165

assim, eu tava moça, não tinha sangrado [menarca] ainda quando me casei
com o Plínio. Minha vida não foi fácil, dona. Eu nasci lá pelo centro, no
igarapé do Ribeiro, quando era puro mato. Lá no mato mesmo. Minha mãe
era índia legítima, pura; dessas do mato, bem selvagem. Meu pai também,
era índio bravo, de lá de Vendaval. Viviam, no tempo deles, lá para dentro,
no mato mesmo. A casa era paxiúba (Socratea exorhiza), teto de palha. Era
grande, com rede só. Só dormia no estrado, forrado de esteira, desses tapetes
de palha. Hoje eu tenho idade; não sei, assim, de número. Sou velha já
(no’é). Já tenho meus filhos crescidos (marüma cuyaǖ tchitchã), netas já
mocinhas [púberes]. Estou viúva (yute) já; meu marido morreu faz uns
quatro anos. Morreu aí mesmo, de velho, nessa casa. Está enterrado lá no
cemitério, lá no fundo da roça, longe. É a minha história, dona. Vou contar.
Senta, come um pouco de banana; tem chá de folha de laranjeira aí na
panela. Pega que minha vida é longa [risos]”.
Era uma manhã quente, e eu estava na aldeia com Lurdes, que, sempre simpática,
me abrigava para uma “merenda” na sua “cozinha”, quando passava para vê-la e escutar ela
contar de sua “longa vida”, de seu “homem de coração”, seu Plinio, “civilizado”. Ela
costumava sentar-se ali, apoiada em seu cajado e passava horas matinais a conversar com
parentes; o lacrimejo insistente da catarata sempre era assunto, lhe “deixava saudade de ver
bem os netos”. Num desses dias, em particular, quando por lá passei, Lurdes estava à minha
espera com bananas, mingau doce, e um chá que aprendeu que me fazia bem, “deixa a branca
feliz”. Neste dia, ela estava à espera com seus documentos, que era para eu “pegar certinho o
nome, a idade dele”, seu esposo. “No documento”, ele teria, se vivo, em média uns oitenta e
cinco anos; ali também constava seu clã de “woca”.
Segundo o Registro Administrativo de Nascimento Indígena (RANI) de Lurdes,
lia-se que ela pertence à “nação” de onça e idade de setenta e oito anos; noutro documento
mostrado por ela, comprovava-se sua aposentadoria “da roça”. Nesta casa, além de Lurdes,
moravam com ela um de seus filhos, o terceiro por “ordem de nascença”, sua esposa e os dois
filhos do casal, um com sete anos, outra recém-nascida à época, que compartiam a casa para
auxiliá-la. Lurdes teve oito filhos com Plinio, o mais velho já falecido. Dos demais, apenas
dois deles homens, “o antes do último e o segundo”, moram fora da aldeia.
Lurdes, a exemplo de outros colaboradores, para situar os contextos de produção
de sua relação conjugal o fazia sempre dimensionados com os trajetos de vida, às suas
“histórias de jeitos de ser”. Lurdes notava que o matrimônio com Plínio, “homem civilizado”,
a proporcionou o retorno à zona de floresta, à aldeia onde vive, lugar no qual ela relata ter
166

“virado mulher de marido de fora” e nesta condição de casada, tornou-se mãe e “senhora de
respeito”, o que, de acordo com suas próprias análises, apenas ocorreu porque “encarou o
mundo de fora”, observando como o casamento com Plínio desencadeou transformações e
culminou em suas mobilidades sociais, não apenas espaciais, mas entre estatutos de pessoa;
entre referentes diferenciados que a constituem, como ela mesma se apresenta, “mulher de
história, de experiência”. Trajetória na qual fora, ainda em tenra idade, junto com seus três
irmãos mais velhos, deixada pela mãe, que após contrair um segundo matrimônio, desta vez
com homem não indígena, “um civilizado”, não aceitou os filhos, fazendo com que Lurdes,
fosse “criada” por um grupo de conhecidos dela, também ticuna, mas na cidade.
“(...) nesse tempo a cidade era bem diferente. Era pequena, tinha muita
floresta ainda. Para chegar das comunidades até os civilizados tinha que
caminhar grande [longa distância]; estradinha de terra, assim, como essas
pelas quais se vai pra roça aqui. Nesse tempo de cidade, não esqueci a gíria,
aprendi o português; aí aprendi o gosto do sal, do açúcar, desses quisuqui
[sucos artificiais em pó], bolacha; a conhecer o lado bem feio desse dinheiro
que saia do seringal; via parente triste, bebum, cheio de dívida, matavam os
índios nesse tempo; nesse tempo não tinha estudo, como agora. E as
mulheres nesse tempo não iam para escola, trabalhavam em casa, mesmo
que morassem na cidade. Eu aprendi a escrever só o meu nome [...]. Essa
família dos padrinhos tinha trabalho na fazenda de sorva, de seringa dos
patrões, quando chegava tempo de ir pro seringal, tinham uma casinha lá.
(...) tinha muito homem civilizado que nem era daqui, era arigó
[nordestinos], trabalhavam nessa mesma seringa que a família que me criou.
Muitos iam na casa, não faltava homem me querendo, mas eu não me fazia
fraca, me fazia de índia bem selvagem para eles não se achegarem. Não
queria pegar marido para ir para cidade, queria marido para me deixar viver
no mato, não queria fazer como mamãe”.
Ela conta que mesmo sendo por um período de poucos anos, a vivência na cidade
não lhe agradava, preferia a floresta. Contudo, “na floresta, no centro” de onde viera, era
“tempo do seringal”, “dos homens pegando mulheres ticuna para fazer serviços deles” [o
que inclui também relações sexuais]. Lurdes relata que, neste contexto, não queria
“compromisso” com homem civilizado, temia suas violações e acumulava já os afetos “tristes
de ser sozinha”, do desligamento da mãe e de seus irmãos, de quem ela perdeu-se, pois foram
criados cada qual por grupos de “padrinhos” distintos.
167

2.2. Negociações

“Eu pensava que ia casar como no jeito da mamãe de primeiro, com um parente,
no jeito dos Ticuna fazer aliado. Mas não. Casei com um civilizado. Conheci ele
na casa lá onde eu morava. No jeito ticuna, pergunta como está a pessoa na vida,
né? Aqui também, desse jeito é. Só que aqui ele [esposo] paga para me levar. Ele
disse pro dono da casa, pro meu pai de criação, que tinha gostado de mim. Mas
levou um tempinho. Esse moço que gostou de mim era assim seringueiro né, já
tinha mais idade do que eu, sabia das letras, caçava anta, paca, macaco, mutum
grande; e eu sabia que ele estava morando aí pelo mato. Por isso digo que ele já
era meio ticunado por isso daí, ficou mais fácil amansar ele. Aí ele foi falar com o
que me criava. Assim se fazia nesse tempo. Eles [os homens, pretendente e o pai
da noiva] é que negociavam, que arranjavam o casamento, no jeito do branco, no
jeito do ticuna, assim juntinho. [...] Mas ele me queria. De primeiro, eu não
queria. Depois, eu disse: “quero ir”. Eu gostava dele. Gostava assim: vi ele
bonito, homem trabalhador e já não queria mais ficar ali, queria minha roça,
minha casa. Até que ele conseguiu. Me levou e voltei pro mato, como eu queria”.
As “experiências” de Lurdes remetem-nos às memórias, cujos efeitos refletem-se
nos processos de elaboração de seus regimes de conhecimento, especialmente vinculados às
dinâmicas de transformações dos próprios lugares e modos de habitar o mundo sob influência
do sistema do seringal, um universo masculino e atroz. Nesse complexo fluxo de interações,
Lurdes aos poucos ia rascunhando as noções das linhas de força que mobilizam e significam o
casamento para ela, a partir dessa relação com um “homem de fora”.
“Deixou para a família um monte de presentes, bastante sorva e seringa. Pagou as
contas deles no barracão. (...) Ele dizia, dona, que me queria, que me confiava,
que me respeitaria, que eu tinha liberdade para ir com ele ou não. […] casamento
arranjado era assim: o homem que queria a mulher tinha que ir negociar; pedir ao
pai dela e provar que podia cuidar dela; mamãe foi assim também. […] arranjado,
desse jeito que a mulher nem sempre pode se meter. Eu já pude um pouco, né. Já
mudou nesse tempo o pensamento [...] assim era. Se eu tivesse na aldeia acho que
seria assim, igualzinho, mas se a moça não queria, era diferente e sem isso de
pagar, parece costume de branco, aqui no jeito ticuna, se mostra que é boa gente,
sem isso dai de fazer como no armazém de escolher e levar. Digo que foi bom
para os dois, ele me queria, eu queria ele e fiz ele voltar pro mato comigo, lacei
ele, como diziam que faziam com as mulheres”.
168

A relação predatória é de dupla via, mais ou menos essa é a questão enfatizada


nessa aliança. Ela nos deixa claro que as lógicas que orientam a negociação desta
conjugalidade perpassam referentes justapostos, a notar pelos critérios que envolvem sua
efetivação. Neste rumo, Lurdes contextualizava que seus campos de atuação nesse
matrimônio extrapolavam o vínculo de casal, potencializando suas alianças, tanto quanto
aquelas de interesse do esposo. Se o casamento de sua mãe com um desses “homens de fora”
a levou a outros cenários de vivências, a interações com um universo ríspido no qual mulheres
circulavam como moedas de trocas, também a fez “aprender a ser gente de poder”,
“Casar? Casar é ter isso aqui. É fazer compromisso; é fazer casa;
convivência de casal; é ter filhos como a gente fez, ter parente por aí. No
meu tempo, foi bom para aprender a se fazer forte nesse jeito de lidar com os
brancos. Meu ajuntamento deu aliado aqui para os que chegaram para formar
a aldeia, eu virei mulher madura; tenho as noras de meus filhos tudo aqui
para me ajudar. Os maridos de minhas filhas para ajudar também, faz crescer
a comunidade; faz alegria na gente. Essa casa aqui, era onde eu morava
quando cheguei. Era grande. Nesse tempo ninguém sabia o que era zinco,
tábua. Meu homem foi o primeiro capitão daqui. Fiz bem pegar marido fora.
Isso fez de nós parentes de respeito, daquele que dá conselho, que às vezes
proíbe outros casamentos assim aqui, com gente de fora. Hoje eu e as outras
velhas ensinamos para as mocinhas que casar com homem de fora não um
problema, mas depende de quem ele é. Contamos como no tempo da sorva,
na minha juventude nem todos eram ruins e como a gente laçava eles; e
[aconselhamos] que elas [mocinhas] pensem que elas não são como nesse
tempo, que casava só na força da negociação da seringa”.
Ao mencionar os desdobramentos de seu casamento, Lurdes expõe justamente
facetas que não a alocam passivamente nesse processo de predação gerativa de uma gramática
de violência mediada por relações de gênero que envolviam os casamentos de mulheres
indígenas com os seringueiros. Do contrário, ela nos chama a atenção, mais uma vez, para os
espaços de reflexão sobre as intersecções entre alianças conjugais, gênero, violência e
subjetividade, enquanto imagens de que as práticas coloniais autorizavam e acionavam.
Algo que se propõem aqui, para seguir pensando futuramente, é como seus
testemunhos aparecem também enquanto elementos que compõem as lógicas das alianças, e
que mediam pela memória de um parentesco pretérito meios de conformação de novos,
alocando as mulheres como atores dos “arranjamentos” das alianças, e emergem, ainda, como
“conselheiras” que manejam localmente as “negociações” e acrescem, desde suas
169

experiências conjugais, novos aspectos políticos aos jogos de poder com figuras masculinas e
estrangeiras, “gente de fora”.

2.3. Efeitos
(Virando ticunado, virando mulher madura)

Um dos efeitos de tal conjugalidade interseciconada aos “jeitos de fazer parentes”


quando se casa com homens inimigos ou gente de fora em outras posições menos carregadas
de atributos truculentos, é a retomada da prerrogativa da transmissão clãnica, evocando
facetas desses mecanismos de poderes femininos que atuam nas alterações do “inimigo em
parente”.
“Assim foi que chegou a nação de boi aqui, quando casei come ele, fiz ele
virar marido e ter clã de boi quando meu primeiro filho nasceu, assim dei
nome dos dois [risos]. Namorei [cópulas múltiplas] bastante para marcar o
jeito de nação nele [esposo], deixar meu jeito pegar nele [riso]. Não basta
assim se ajuntar, não. Tem que trabalhar bastante [risos] para virar
ticunado. Trabalhar no jeito homem ticuna, no jeito que também se faz ele
homem de respeito com a mulher”
“Trabalhar” refere-se aos empenhos de fabricação continuada da pessoa, do
parentesco, daquilo que os entrelaça enquanto produções coextensivas. A sexualidade opera
nesse sentido, como um dispositivo de poder que produz meios ao assemelhamento, pela
consubstancialidade dos fluídos e pelos efeitos que geram novas relações a ambos. Um modo,
na conjugalidade é praticá-la através ato sexual repetido, alterando conjuntamente não apenas
a ela, mas ao esposo “de fora” e aos filhos em “feitura”, como glosa a senhora tais relações.
Nestes atos, mediados aqui pela sexualidade, se está ainda produzindo meios para transmissão
da linha agnática, deslocado do campo de ações masculinos, quando ela nos ensina, em sua
linguagem própria que “nação é passada no namũ, no sangue do homem [sêmen]”, é
“plantado (to)” no útero” da mulher.95 O que suas ações impigem sobre o corpo e atributos
do esposo é justamente a imagem reversa dessa lógica patrilinear que conforma uma das
escalas da teoria de concepção indígena.


95
Goulard (2009: 135) menciona que entre seus interlocutores ticuna comenta-se que o “grão-semente,
produzido pelos testículos (pü-üchare)”, é plantado (to) pelo homem na vagina da mulher (nge-achare)”. O autor
adiciona que ao falarem de atos de intercurso sexual, seus colaboradores asseguravam-lhe tratar de “plantar seu
pênis na mulher”.
170

A propósito, eu escutava, sempre que surgia o assunto nessa rede de interlocução


mais velha, de que o ato sexual repetido (pai), era uma pratica sexual “bom para fazer o
corpo do filho e deixar ele bem forte” ao mesmo tempo em que se “vai moldando corpo de
mulher, de homem diz que também é”. Lurdes dizia-me que “namorar quando tá de barriga”
transmite “força, energia (pora)” aos corpos fabricados. Especialmente ao filho por vir, para
que quando nasça, possa ganhar nome. Tal ideia remete-se a uma analogia vegetal bastante
comum em campo, aludindo ao conjunto de ações generisadas que envolvem as atividades na
roça análogas à criação dos filhos e parentes, “porque os seres da roça e da floresta têm suas
almas e seus corpos feitos de pora (energia, força) junto com seus parentes”, comentava
nossa amiga parteira.96 O verbo “pai”, glosado como meter na terra, emprega-se aos atos de
plantar mandioca realizados pelas mulheres e aos homens no cultivo da banana (“po’í”). A
ideia de tal expressão, por fim, evoca as ações diferenciadas de fertilizar o solo e aloca sua
extensão semântica nos atos de reprodução.97
A partir disso, podemos pensar o intercurso sexual operando, assim, como veículo
transmissor deste atributo 'identitário'. O “namũ” [sêmen] se transformará em materialidade
corpórea, “o corpo com pensamento (mã’ī)”, durante a gestação, tendo como “casa”
temporária o útero (“nachimã'ũ”)98, lugar no qual a pessoa em fabrico ganhará forma e
conteúdo, operado por meio das cópulas múltiplas. Sobre esses atos sexuais cumulativos,
“namorar bastante” foi manifestado com certo pudor “apenas entre o casal”. Não saberia
dizer, apesar de confiantemente suspeitar, se entre os Ticuna a cópula múltipla restringida a
um único parceiro sexual tornou-se uma prática (e uma moral) de produção de parentesco
com o processo de conversão.
Em algumas conversas, cheguei a ser questionada se entre “nós”, os brancos da
cidade, o filho é feito do mesmo modo. Ao responder, provocativamente, sugeri que entre
“nós” um casal costuma manter-se monogâmico. “Quando mulher tá casada ela não tem
outro homem? Não se namora com ele ou com outros? ” A curiosa réplica instigou uma


96
Cf. Maizza, 2014; Rival, 2009; C. Hugh-Jones 1979.
97
Algo desenvolvido com mais acuidade na tese de Jean-Pierre Goulard, que aqui trago como suporte heurístico
(1998, 2009).
98
Goulard (2009:135) menciona que esta palavra contém a noção de “pequeno colar”, sem o qual o bebe não
pode nascer. A respeito, ouvi que a placenta (natchapa'a, minha casa/cama/rede) é que ocuparia esse lugar. Logo
que se nasce, a placenta é enterrada, costumando-se substituir esse colar do bebe por ornamentos similares
(colares e pulseiras) produzidos com variados elementos vegetais (dentes, peles, penas de animais) para protegê-
los dos espíritos das florestas, das almas vampirescas, dos ngó'ogü que rondam as casas. Isso é administrado até
que a criança (bu'é, indiferenciado para sexo) mantenha-se firme de pé e pronuncie suas primeiras palavras; o
que ocorre não muito antes dos dois anos de idade. Ai, havendo ritual de puberdade feminina, a criança, desde
que sendo da metade oposta à da púbere, ao final da Festa, tem seu nome confirmado pelo xamã. Ações descritas
a mim como uma atualização mais simples dos rituais descritos por Goulard (infra).
171

segunda proposição de Lurdes: “aqui tem outros sim, os amantes (yatumare)”. Mas o filho é
sempre de um único homem, a quem se atribui o estatuto de “pai de clã”, podendo haver, pais
sociais, “de criação”, como demonstra a trajetória dela. Ela mesma afirmava que o intercurso
sexual repetido era por alguns de seus parentes religiosos traduzido em ações de “pecado”.
Se o casamento é um momento de “fazer [se como] parente”, concretizado com a
“feitura” dos filhos e do marido, nesse caso, como “parentes de verdade”, e “no jeito
ticunado”, fora preciso que ela, com seus sangues de mulher, primeiro transformasse e
capacitasse as agências do marido, aqui o sêmen, especificamente, para que enquanto efeito,
este fluido se tornasse vetor de outra transformação, os filhos do casal.
E nessa lógica da transmissão agnática, não ter o genitor ticuna implica um tipo de
relação explicitada no casamento de Lurdes com Plínio, produção de parentes como “ser
misturado”, “um tipo de ticunado”, como explicam. Por isso, a relevância das metades e dos
clãs como marcadores sociais da diferença nativo, anteriormente descritos pelas orientações
políticas-espaciais que as “nações” mobilizam, conjugados às historicidades das próprias
relações que a geram, e aqui retomada no idioma das relações de substâncias, notadamente no
signo do sangue que cria formas de subjetividades. Clã de boi no sistema prático e na
estrutura simbólica, não afeta, não abala as lógicas, apenas, reatualiza-se com mediação do
exterior; gera, o que falam ser os Ticuna “os muitos jeitos de ser” diferentemente agenciados
entre domínios de ações masculinas e femininas, que os tornariam nestas inflexões sobre si
mesmos, singulares. Lurdes discorre a seguir sobre como se conformam desde seu ponto de
vista essas dinâmicas que envolvem as “feituras de parentes”.

3. Fazendo-se parentes

“Assim é: a pessoa não vem ao mundo porque simplesmente quer. Antes dela
tem muitas outras coisas que a criam. Parente se faz assim, de estar junto,
mesmo brigando, domando os homens de fora como era o meu homem. E
parente deixa de ser parente se vai para longe, é tipo um morto (yue), com o
tempo a gente esquece. Mas aí outros vêm pro mundo do meio, multiplica.
Faz mais gente, mais parente. Uns se vão embora, cruzam o rio, assim como
Ipi fez, no tempo bem antigo. Daí chega outras gentes, vai multiplicando de
novo, vem ticuna. Só que nunca fica igual um ao outro. Nem ticuna da mesma
casa (ǐ’tapa) é igual. São tudo filho (acü) de mesmo pai (pa´pa) mesma mãe
(ma´ma). Tudo diferente. Come (tachibué) tudo a mesma farinha (ui), mesmo
peixe, mas são, como se diz, diferentes, né: cada um deles tem uma carne
172

(mã), um coração (mã'ũne), um jeito, um pensamento, um conhecimento que


dizemos ser cultura (nacüma), um espírito (ã´ē) ou uma alma, como diz como
diz no livro (Bíblia) e que parente aprende a dizer assim. Mas isso não tem
que ver só com casamento, não. Tem outros jeitos de fazer parentes. Isso fala
dos nomes das pessoas, de como se passa nação para os outros. Como vai se
fazendo parente legítimo e parente ticunado”.
A fala de Lurdes nos reitera o complexo relacional que envolve o tema da
produção de parentesco, da pessoa e das formas de fazer-se enquanto ticuna multifacetadas e
cumulativas de afetos e afecções. Retemo-nos atenção a partir de agora precisamente nos
componentes mencionados por Lurdes, uma “parteira de longa jornada, de muitos filhos
trazidos ao mundo”. Ela nos introduzirá aos modos de transmissão das unidades adjetivas dos
ticuna, suas metades e suas “nações”, com base na teoria de concepção, aproximando-nos,
desde outro ângulo, aos critérios de assemelhamento e distinções que viemos lendo, entre
aspectos graduais do se “ser parente” entre “legítimo e ticunado”.
“Casar é uma das formas de fazer parente. Só que esse jeito de fazer
parente não é porque mulher e homem fazem filhos, mas é porque para
fazer os filhos eles precisaram, antes, ter outros parentes que os ajudam a
estarem fortes, bem, com os corpos maduro, como com bastante pora
[força, vitalidade, trabalho na pessoa, no corpo dela], isso fiz com meu
homem, preparei ele para isso daí. Aí sim o sexo faz filho; namorar faz os
sangues misturarem-se, bem ou malfeitos. Por isso daí meus parentes não
diziam que isso de casar com esse Plínio era sexo mal feito daqueles que
deixam parentes preocupados. Isso porque depende de quem é e como foi
feito a mistura: se é de sangues diferentes...e qual é a diferença entre eles,
né? Há mistura de sangues diferentes de ticuna com ticuna e de ticuna
com gente de fora. É isso que diz se pessoa é ticuna e de que jeito, se
legítimo ou ticunado, porque tem que ver quem mandou clã para ela;
depois foi jeito que ela se faz na vida”.
Leia-se que Lurdes nos está a contar acerca do que sabe das teorias sobre a
impossibilidade do UM, da unidade, sem que o seu duplo, alter, coexista constitutivamente.
Ela comunica questões motrizes no aparato etnológico, a saber, de que o parentesco é
processo de assemelhamento corporal, enquanto um ponto de vista. Como vimos não ser
diferente entre os Ticuna, na medida em que se revela em ações sociais diversificadas,
voltadas ao fabricar corpos, pensamentos, pessoas e “jeitos”, que coincidem, senão, às
figurações de consanguinidade e afinidade. Nem um nem outro são dados, nem corpos, nem
173

nomes, nem parentesco; são produções coextensivas (Coelho De Sousa, 2004) e o clã de boi
parece cumprir este papel de convergir pontos de vistas, naquilo que gera identificações ao
aparentamento possível.
Junto com ela e outros colaboradores passemos agora a observar parte desse
processo, buscando ver o lugar que ocupa o intercurso sexual na vida conjugal, com algumas
noções sobre a gestação e o nascimento, o nome e a nominação para apreendermos mais a
respeito da ideia de “mistura” e “cruzamento de gentes” e “cultura, saber, pensamento
(nacüma) ”.

3.1 “Marcando nações”, criando relações

Se a metade é transmitida na economia de substância do casal, o clã é confirmado


no momento do nascimento, quando se atribui um nome próprio (ga). Este, obrigatoriamente,
deve conter referências ao grupo social “do pai do bebê”,99 e marca o momento de início do
recém-nascido ser considerado um “parente de verdade, de gente viva”, comenta a parteira.
De acordo com seu ponto de vista, “no jeito de parteira”, nesse reconhecimento é
possibilitado alocar a pessoa num grupo e circuito possível de socialidade, reiterando a
relevância da pergunta sobre o nome como o mecanismo de “verificação” que se mencionou
no início do texto. Ela explica que saber o nome não apenas implica mapear cônjuges
potenciais, mas, antes disso, acresce, é “saber de onde vem [filiação] é para dar nome bonito
quando nasce filho de alguém”.
Esta sapiência, segundo ela, ilustra uma ideia mesma de parentesco como
processo coextensivo de produção de si como parte fractal de outros com os quais se interage,
no sentido da necessidade imprescindível da diferença, interna ou buscada no exterior, seja
para casar seja “para nascer e crescer, fazer gente”. Como diz Nazareno, seu filho,
“Só tenho cüã [conhecimento] porque pa’pa [pai] me passou um pouco de
seu jeito [clã] no mundo como parente. Isso vem de sangue. Assim, como
Yoi fez com a carne do jacarerana. Parece que mamãe casou com ele e deu
muito pajuaru [bebida fermentada de mandioca] para ele se fazer no
pensamento do índio. A isso daí me ajudou a ser gente de verdade. Isso tem
a ver com o de casar e fazer parentes, mais gentes no mundo”.
O interlocutor continua atualizando suas percepções, ao que expressa sobre as
relações de gênero e seus domínios constitutivos e complementares como fórmulas de ações

99
O termo bü'e traduz criança. Cf. Anexo das Classes Etárias do Capítulo II.
174

sociais produtoras de parentesco (Strathern; 2006; 2001; 2004/5).100 De acordo com ele, isso
significa que o nascimento marca a passagem de um parentesco virtual a um factível. O
processo de fabricação após o nascimento segue uma lógica que aloca a diferença no seu
lugar mais produtivo, a própria identidade:
“(...) porque ma’ma [mãe] que tem outra nação me fez corpo de parente
quando chamou ti’tia [tia] para dar nome [nominá-lo] e eu virei gente com
sabor, com nome [pessoal], com clã não delas, do pa’pa que ela fez casando
com ele ser do jeito de boi”.
O “mã’ǐ”101 é glosado como “o que nasce”; “o bebê”; “o corpinho”. Descrição
que ainda em forma virtual e potencial de devir gente, em forma de sêmen e sangue
menstrual, vai sendo produzido no interior do corpo da genitora, desde onde ganha fluxos de
relações. Em algumas situações o termo “naüne” fora empregado pelos interlocutores, e a
diferença quando especulada no que ambos são glosados como corpo, materialidade corpórea,
reside no que é o momento do nascimento: a transformação simbólica do “mã’ǐ” em
“na’üne”, aquele que passa a estar no mundo como agente e continuamente se faz enquanto
“mã’ǖ”, pessoa, “gente”. 102
A parteira afirma, ao final, que fora assim que aprendera, desde muito jovem,
frisando que isso é “jeito de velho pensar”. Se eu perguntasse aos mais jovens de seu netos,
talvez eles apresentassem outras versões, o que de fato ocorria, sobre essas o sentido e
significado dessas “feituras”, o que para ela estava associado ao que glosava “as mudanças
que a pessoa tem no tempo dela, no pensamento dela nesse mundo”, ao que disse estar
circunscrito no fato dela estar sempre “se fazendo no ajeito de ã’caitchi (transformar)”. O ato
sexual (“ngewaë”), neste sentido, além de transmissor da insígnia indenitária, é também
mediador entre as substâncias generizadas e gerativas de cada parte da relação (Rosa, 2011),
cada qual contendo em si suas próprias multiplicidades de associações relacionais, que


100
Em Parcial Connection, parece-me haver uma síntese do que a autora propõe em o Gênero da Dádiva, a
partir do modelo melanésio de parentesco e gênero, aqui menos mediados pela troca, estes dois domínios de
socialidades (entre mulheres-mulheres/homens-Homens; e mulheres-homens) dispõem-se simultaneamente no
sentido de que "cada relação só pode provir da outra [...] as relações conjugais e filiais são metáforas uma da
outra, e, portanto uma fonte interna [múltipla, duplicidade] de reflexão" (2004/2005: 73-76).
101
mã- evoca a imagem de materialidade relacional possível de ser moldada; ǐ- compõem casa (ǐ‘tapa); que
aprendi nessa comparação designar algo como suporte, “a base assim de cada gente”. Ver próxima nota.
102
Santos Angarita (2014:332), retomando alguns aportes já mencionados ao longo dos capítulos, diz,
empregando outra grafia: “ma'ū está associado à vida, às capacidades de habitar e agir no mundo. Como um
princípio vital, ele materializa os ciclos de vida de um sujeito (nascer, crescer, procriar, morrer). Com ma'ū
percebe-se os acontecimentos naturais, os fenômenos cosmogônicos e míticos, o ambiente natural e sociocultural
que são captados ou percebidos pelos sentidos corporais”. O autor reiterando argumentos de Goulard (2009:89),
indica que “ma'ū é a existência do ser e que funda e determina antes que nada a identidade pessoal”.
175

resultam, por fim, noutro corpo compósito também criativo, 103 como coextensão do
parentesco, da “memória incorporada” das relações que conformam o recém-chegado, nos
mostrando que,
“Cada pessoa tem um desse jeito mã’ǖ; feito assim, de convivências de
parentes com esse mundo aí. Por isso daí, tem que ganhar nome. E para isso
ser, ele tem que nascer, mostrar o corpinho feito, verificar se tá pora (força);
chora alto se tá bonzinho; chorar (au) é a voz do bebê, falando assim ele tá
dizendo que tá bom para parente. [...] se não fala, aí preocupa; diz que
nasceu, noutro jeito; pode ser de womãtchi; de feitiço; quando nasce para
ganhar clã de boi, não tem problema desse daí, tá bemzinho, dá nome do clã;
ai vira gente de verdade ticunado como meus filhos”.
Podemos, então, dizer que toda gestação (“ãpü’üe”), por definição, é gerativa de
um potencial de parente, “patcha”. Assim, um parente não pode ser integralmente “feito”
senão como resultado dos esforços conscientes, cujas relações que os tornam inteligíveis não
estão no filho, mas no pai, na mãe. E o nascimento é momento no qual, idealmente, identifica-
se o parente, atribui-lhe um lugar nas redes sociais, quando, a partir desse momento, será
nominado.
É neste evento que cabem aos familiares maternos, pelo que observei, a posição de
assistentes principais da parturiente, circunscritas, portanto, no grupo classificatório oposto ao
do recém-chegado ao mundo. São elas que “marcam” um nome. Lurdes comenta que no
casamento ela “mexeu, fez virar, marido em gente ticunada” cujo efeito foi nos três: “na
mulher ticuna, no homem de fora, no filho, nos netos...assim vai, como essas minhas histórias
aí, assim veio o clã desse do boi”.

3.2. Reconhecendo quem é parente

Para entender o lugar das “parceiras” que nominam os recém-nascidos e


acercarmo-nos incipientemente das questões onomásticas, também espaços à observação do
dualismo nós/eles; interior/exterior; diferença/alteridade; feminino/masculino; eu/outro, cito
seu Nonato.
“Não dá para dar nome para alguém que é igual a você. Tem que juntar as
forças (pora) e os conhecimentos de cultura (nacüma), e é com as


103
Cf. C. Hugh-Jones (1979); Tola (2012, 2014); Lea (2012) para ler como a mesma ideia apresenta-se noutros
contextos ameríndios.
176

mulheradas nessa hora. E chamar um diferente do que nasce para marcar


(ngu'ũ) os grupos. Aí tem as parceiras...”
Preferencialmente, como presenciei em poucas ocasiões, essas “parceiras” são a mãe ou
irmãs, reais ou classificatórias, da parturiente, a quem chamam de (ma'ma ou -é).104 Uma
dessas mulheres (“ngu'i”) quem irá cortar o cordão umbilical (“na'ã”), desfazendo
simbolicamente o vínculo do bebê com a mãe, confirmando o seu pertencimento ao grupo
paterno e denotando autonomia ao infante. As “ngu'i” são o que o recém-nascido não é por
definição (Carneiro Da Cunha, 1978). E nesta condição é que são requeridas a essa função,
visto que estas categorias de mulheres desempenham uma tarefa dupla.
Uma é atribuir identidade social, embasada em 1) dar à criança suas insígnias de
“ticuna verdadeiro/legítimo” e sendo o genitor um “homem de fora”, um “ticuna ticunado”,
como fora seu Plínio, a ideia que qualifica o laço afetivo-sexual dos genitores, expressa-se
explicitamente na nominação e, variando, antes ou depois do corte do cordão umbilical. A
partir daí, abrem-se “caminhos (mana)” às possibilidades atuais do recém-chegado ao mundo
ter e fazer-se como parente; como “yunatü ticuna” seja enquanto consanguíneos seja afins,
sempre numa incansável elaboração. E, na esteira desses momentos de transformação, essas
“parceiras”, ao mesmo tempo, geram alteridades demandadas para que o nominado se
relacione no tempo-espaço que durar sua condição ou ponto de vista “ticuna”. Nas palavras de
Lurdes:
“Cortamos o umbigo para ela virar gente, lá no mundo dos imortais, para
onde a alma (ã'ẽ) dela vai depois, só vira parente deles de verdade, quando
de tomar e comer do que eles oferecem. É como se fosse o leite da mãe (miĩ)
aqui. E ter essas mulheres de clã diferente ajudando a botar esse novo
parente no mundo tem a ver com isso aí: saber que só se é um yunatü e um
ticuna porque tem gente diferente dele105 ”.
Tornar humano significa, em suma, garantir a existência parcialmente
independente de um ser, e envolve ao mesmo tempo identificação e diferenciação (Gow,
2003; S. Hugh-Jones, 2002).106 As palavras de Lurdes, na mesma lógica do que disse linhas


104 Em um dos partos que assisti, realizado na casa da gestante, suas duas irmãs mais velhas e a sua sogra, na
ausência de sua mãe, a assistiram nos procedimentos. A sogra também tinha, assim, pertencimento ao grupo
contrário do recém-nascido. Contudo, não observei se há uma distinção ou preferência entre irmãs mais velhas e
irmãs mais nova.
105
Levamos aproximadamente um mês nessa transcrição, eu e Lurdes, precisando retomar e atualizar o material.
106
Em uma nota pós-escrita do capítulo, complementando o que se descreve, noto que assisti a três partos
completos, todos em casa, mais ou menos na mesma configuração. Em nenhum deles a presença de homens era
bem vista, especialmente ao nascer. Soube que não raro, já no momento da nominação, há a presença do pai, de
irmãos da parturiente e do pai da criança. Matarezio Filho (2015) comenta de sua experiência de campo, durante
a qual ele foi o nominador de uma criança, tornando-se “padrinho”. Ver nota seguinte.
177

acima seu Nonato, expressam os processos de distinção entre as fabricações de pontos de


vistas e suas graduações ontológicas distintivas, que ocorrem nos patamares do cosmos
indígena. No “mundo do meio”, marcado pelas diferenciações internas através dos clãs, é que
as mulheres, no caso do casamento de Lurdes e suas experiências como parteira e
nominadora, evidenciam-se como o terceiro necessário. Por fim, atualiza-se no momento do
nascimento uma etapa do longo processo de fabricação da pessoa como coextensão do
parentesco que permite visualizar o que entre os colaboradores diz-se ser “os muito jeitos de
ser ticuna”.

3.3. Tornando-se gente, parente

“Marü! Niĩ na'má! Ele vive, está vivo! ” Foi anunciado sua condição de “gente”,
verificada com a “respiração assustada” e com o choro (au). “Tem ar, respira, vai vingar,
veio com força”, explicou-me a parteira. O recém-nascido (“o'oiracü”) prova estar, assim,
dotada do mínimo “estado de ânimo” (Goulard, 1998; Santos-Angarita, 2014) para viver,
como todos os humanos, “duü'ügü”. É a partir desse momento que a nominadora é
responsável por atribuir, “marcar”, nome à criança, anunciando-o em voz alta. Após o corte
do cordão umbilical e da retirada da placenta, que foi enterrada próximo da casa, a sogra da
parturiente neste parto em questão pronunciou vários nomes, aleatoriamente, conforme sua
“imaginação”, até que a mãe do bebê elegeu um deles.
Em meio a infinitesimais e alegres risos femininos cheios de desvelo, o nome foi
dado à menina do clã avaí (aru), que chorava tentando sugar seus primeiros goles de leite. Ela
passou a chamar-se Detchitana rü püreü'ǖna, cujo significado é “cuatipuru de rabo enrolado”,
onde o primeiro termo refere-se ao nome pessoal feminino, indicando pertencer à nação/
metade sem pena e clã avaí (arü) (rü é o conectivo; e o terceiro termo indica rabo enrolado). A
relação dada do nome de avai, que é um fruto com o catipuru, um animal: “é que catipuru
come o coquinho avai” .107
O nome pessoal, simples ou composto (Goulard, 2009:91), se constitui,
usualmente, a partir dos atributos (partes do corpo como pata, rabo, penas, bico) ou
qualidades (cores, sonidos, compostura) ou características físicas (grande, pequeno) do


107
Cf. Goulard (2009: 90-92) um debate acerca dessas relações de aparentamento e para ler-se mais exemplos e
ricos detalhamentos etnográficos.
178

epônimo clânico, podendo haver a conjugação desses tipos de qualidades no mesmo nome.108
Todos os nomes ticuna são “nomes bonitos” e ri-se dos nomes das pessoas.
“Se nome é colocado na pessoa para ser só coisa séria, ai vira nome de
branco, de documento; por isso hoje temos dois nomes: o nosso verdadeiro
(īki), que diz quem me passou nação, e de quem sou parente, com quem
posso me casar, certo ou errado. E o nome de brasileiro, peruano,
colombiano para vocês saberem quem somos.109
Jocosidade aqui não é ofensa. É, do contrário, necessário, uma quase virtude
oposta: respeito. Ofensa, como aprendi, é não saber o nome de alguém, porque aí não se sabe
que tipo de gente é. Os sobrenomes, mais do que os nomes próprios, usados pelos Ticuna de
modo similar aos Kaingang, povo jê, por exemplo, ou aos Piro, aos grupos no noroeste
amazônico, são de origem exógenas, e parecem estar operando como índices do que chamam
de misturas de substâncias que conformam a pessoa. Os nomes não parecem estar nestes
contextos, correspondendo, assim, apenas às teorias de concepções nativas stricto sensu,
senão compondo-a, embasada nos contextos de socialidade datada. Um complexo exonímico
(Viveiros De Castro, 1986), contudo, sem necessariamente ser apreendido como um processo
de predação ao estilo Tupi, mas, naquilo que mantém sua função individualizante.
Não tratarei na tese sobre o tema especificamente, mas vale lembrar,
complementando o tópico da onomástica ticuna, e cumprindo os propósitos deste capítulo,
mencionar, como já suscitado no capítulo anterior, a distinção entre sobrenomes
“fortes/políticos e fracos”. Os primeiros estão associados às famílias de poder político
historicamente constituídas na região, seja porque foram protagonistas em eventos do
movimento indígena local e com reverberações nacional, sobretudo nos assuntos de
reivindicação fundiária; seja, como muitas vezes ouvi, porque foram personagens
proeminentes nos “livros dos antropólogos” que por lá passaram; seja, também, porque
tiveram, no passado, alguma associação com as elites fundiárias, sobretudo por meio de
alianças maritais – nos últimos dois casos estas relações de poder são identificadas, por


108 O nome bonito é atribuído de acordo com o sexo, usando-se o sufixo na para os nomes femininos e cü para
nomes masculinos. Não se repete os nomes entre membros de grupo de parentes próximos, tampouco costuma-se
reusar nomes de falecidos, ainda que os nomes Ticuna, pelo que pude conhecer, não são propriedades pessoais.
Eles circulam, inteiros ou em partes, segundo as etiquetas ditas, sendo possível na mesma aldeia encontrar
sujeitos com pelo menos uma parte do nome semelhante à de outros, sem com isso denotar qualquer tipo de
prescrição ou etiqueta de evitação entre os epônimos.
109 O tema das dos sobrenomes constitui um objeto de destaque na etnografia da região (Stocks 1981:140-141;

ver, também, Gow 1991 e Chibnik, 1994) e alhures, (S. Hugh-Jones, 2002; Rosa, 2011; Lea, 1986; Ladeira,
1982), mencionando aqui apenas algumas referências que foram lidas na composição do capítulo.
179

exemplo, em “sobrenomes fortes” como Mafra, Müller, Fernandes, Mendes; Otaviano;


Guedes; Quintino, Quirino.
Estes últimos, por contraste, são constituídos por sobrenomes “comuns, copiados
dos brancos”, dizem. De qualquer modo, aqui vale a relação descrita por Peter Gow acerca
das identidades em transformações na amazônia peruana, onde entre os Cocama e os
Cocamilla “a divisão entre sobrenomes “humildes” e “elevados” ou “apellidos de viracocha
[“sobrenomes de branco”] constitui uma importante forma de diferenciação de classe” (2003:
63), também relacionadas a ideia de “mistura de sangues” e relações interétnicas.
Os nomes ticuna, enquanto uma hipótese, são mais do que insígnias, eles refletem
o que descrevem: “o nome diz que lugar a pessoa vai ter com seus outros patcha, aqui e fora
da aldeia”, dizia a mãe de Detchitana, complementando as passagens acima: “todo nome na
gíria (ticuna) é um nome bonito, porque eles vêm das coisas que fazem e enfeitam a na'ane.
Ele deixa pessoa alegre. Sem nome não é gente”. Notícias estas que estão intimamente
associadas aos relatos iniciais do casal Roberto e Angélica, quando, páginas acima, nos
diziam que a carne que produz o caldo de jacarerana enviado por Ta'é do mundo celeste
forneceu aptidão gustativa e olfativa aos Magüta. Proporcionou-lhes, portanto, o que Goulard
(2009:97) indica ser o ga, “a palavra clânica”, “o nome pessoal”.110
“Ngu'i”, portanto, segundo aprendi, “é o jeito de chamar aquela mulher que
inventa (inanaüǖ) o nome pro filho da gente”. Nesse diálogo, buscando saber se há vocativo
recíproco pelo qual o nominado deve tratar sua “ngu'i”, a resposta foi:
“Fala com ela pelo nome dela (nome pessoal), se não for parenta assim de
vó, titia. E se for parenta assim, de perto, de casa e de família, aí chama de
ti’tia mesmo, ou de vovó (no'é). De parente está bom. Agora já tão dizendo
por aí que isso é comadre. Mas aí parece que comadre tem isso de ajudar a
criança. Como diz dos brancos, de dar presentes (amare) ”.
Isso nos permite também sugerir que não há, atualmente e entre os meus
colaboradores, implicações cerimoniais entre os genitores, a nominadora e o nominado,
apenas comparando com o que angariou o etnólogo francês entre redes de interlocução no
Peru, nos anos 1980, 1990 e início da segunda década do século XXI. Já tendo dimensionado

110 Como ocorre entre alguns grupos Jê, a exemplo dos Apinajé (Giraldin, 2000), Krahô (Melatti e Carneiro Da
Cunha e Ladeira, infra) ou os Mebengokre (Lea, 1992, 2012), para quem, assim como para os Ticuna, a
instituição onomástica presta-se a conferir noções de pertencimento, identidade e posições relacionais. Nota-se,
contudo, haver nas últimas diferenciações no que concerne aos desdobramentos sociológicos desta instituição. A
relação entre a nominadora ticuna (ngu'i) e seu nominado em nada se parece, atualmente, com aquelas levadas a
cabo entre os nominados Jê e seus “amigos formais”, por exemplo. Ao indagar se entre Detchitana e a sua
nominadora havia ligação em termos de obrigações e reciprocidade ou de evitação, tal qual ocorre alhures, recebi
negativas.
180

o que são, como se produzem e retroalimentam-se, o conceito de clã, nos conduziu a outros.
Mediados pelo “dualismo em perpétuo desequilíbrio” ticuna “as nações” instanciaram
“misturas” e “cruzamentos”, a partir dos quais os interlocutores esboçaram um panorama
“etno-antropológico” (Viveiros De Castro, 1986) e através dos quais poderemos seguir
buscando descrever as versões e teorias ticuna de relações, seus ingredientes e adjetivos,
inseridos nos “muitos jeitos de ser ticuna”. Mostramos como as misturas e problemas
ontológicos traçam juntos modos outros de conceituar a pessoa, seus tempos-espaços e teorias
de ação que a produzem como ticuna, casando-se bem ou não.111

4. Legítimos e ticunados

“Parente legítimo é aquele que tem pai ticuna, assim com clã e jeito magüta.
Parente ticunado é aquele que vem para o nosso lado, nosso jeito de
indígena, que vira assim o aparentado, meio parecido. É assim filho de pai
civilizado, quando casa, assim mulher ticuna com homem de fora. Ticunado
é quem, mesmo não pegando marido ou esposa aqui pode virar um, se ficar
no nosso jeitinho também. Disso que é ticunado. (Lurdes) ”.

Com efeito, antes de restringidas, as uniões 'interétnicas' são aceitas, o que não
apaga as tensões nelas incutidas, e que serão, na continuidade da tese, apresentadas em outros
pontos de vista relacionais. Estes laços conjugais e políticos atualizam de certo modo a
exogamia; criam um espaço de auto-identificação a partir de Outrem radicalmente diferente,
um “awane”. Este sob a figura masculina cujo estatuto de transmissor clânico lhe falta, no
caso de Plínio, gerando-se, então, para que seja introjetado, uma relação de dívida, na qual a
noção inicialmente referida como afeto em fluxo de “vingança” e “revanche” em relação aos
“brancos”, aqui especificamente expressos pelos ex-seringueiros, ganha lugar. Não basta
casar, há de tornar-se e render-se no processo, em “parente ticunado”, produtor “novos
parentes”, atualizando a diferença interna. O efeito é duplo. Se atribui identidade, isto é,
pertencimento ao clã de boi ao afim, para consanguinizá-lo, deixando-o propício a engajar-se
nas relações de parentesco criativamente.
Enquanto “homens de fora”, eventuais cônjuges não ticuna, ao tornarem-se pai de
alguém, independente do sexo do filho gerado, usualmente, transmitirão o clã de boi. Com
efeito, o “de fora” passa a ter lugar lembrado, portanto reconhecível como parente, na rede a


111
Não tenho muitas informações acerca dos processos de couvade.
181

qual passou a pertencer. Como elucidam as experiências de Lurdes, a pessoa estrangeira ao


alterar-se ticunado “ganha confiança”, redefinindo o estatuto definidor da condição de aliança
em jogo. O que ocorre no paralelismo das socialidades aqui descritas entre brancos e
indígenas, geradas nos domínios generizados, nas relações alternadas (Strathern, 1992) de
cada conjunto de capacidades agentivas. Tais relações de socialidade, como revelam as
etnografias competentes da antropologia do cotidiano, do convívio diário (Gow, 1991, 1997;
Overing, 1999; Mccallum, 2001; Naveira, 2007; Nunes, 2012; Prates, 2014; Santos, 2014)
produzem-se por vínculos de convivialidade e comensalidade.
Nazareno, filho do casal, por exemplo, concordando com sua mãe, comenta, de
onde estava, escorado no canto da cozinha, na escuta atenta à conversa que dá enredo ao
capítulo que casar com “gente de fora”, não é “o melhor jeito de casar e multiplicar”,
entretanto, é como se estivesse “trocando de nações”, diz. Ideia que reitera a hipótese de que
o clã é um dos eixos centrais de operação dos mecanismos de distinção social. Lurdes,
atentando a isso, comenta algo que me parece potente para pensar tais mecanismos, alocando
a sexualidade como campo de preocupação na produção do parentesco: “casar com gente de
fora não é womãtchi, é menos perigoso. É sexo de namoro perigoso. ” E justifica a natureza
política da distinção:
“Parente de longe, assim desse tipo de lonjura de sangue, de pensamento,
tem que cuidar. História deixa marca na gente; como no massacre do boi.
Assim, foi. Casar com gente de fora não é de todo ruim, o problema é a
mistura quando não vinga, o parente vira inimigo, não fica ticunado, só
engana”.

Nazareno, que à época do campo era um dos “capitães” da aldeia, descreve o


atributo e pronome “ticunado”, tecendo a asserção de “nem todo homem de fora vira mesmo
ticunado”, podendo ser “inimigo de situação”, referindo-se àqueles que eventualmente usam-
se do matrimônio com mulheres indígenas apenas como meio para usufruir dos recursos
natuaris, “para roubar madeira” e seguir pelos beiradões. A afinidade potencial torna-se
assim, possível de domar, casando bem quando “jeitinho ticuna ganha”, como dizia antes
Lurdes, acerca do processo de alteração de seu esposo e de si mesma, que via um “homem de
fora” resgata o que queria, a “vida de mato, de índia do centro”.
A discussão da aliança ticuna, remete a uma troca lévi-straussiana, cuja
consequência sociológica ensinada por Lurdes e seu filho, Nazareno, diz que via casamento e
captura, a alteridade mantém o grau mínimo, mas instável, de diferenças no interior, na
182

dinâmica fluida e homogeneizante, no que se refere aos signos que simbolizam o casamento
como forma de aliança. Entretanto, tais constâncias, transformam-se nos tempos-espaços das
relações que conjuga, contendo simultaneamente novos significados incidindo sob o sistema,
porque valores circulam e simbolizam distintamente pessoas, espaços e relações, da
experiência e referentes do enunciador.
Casar é, então, uma modalidade de troca, que não é sempre e obrigatoriamente
simétrica e igual no sentido de atuação, de agenciamentos das partes que o compõe. O termo
“negociação”, sem correspondente claro na língua ticuna, remete a isso, à “história do clã de
boi”, dos problemas inerentes ao intercâmbio. As “obrigações” nas quais deve-se engajar o
estrangeiro parecem também estar operando como meios de controle das formas de estabilizá-
lo enquanto outro. A ideia da “predação sexual” como análise do reflexo que os “problemas
da troca e da endogamia cumulativa e simétrica se emprenha em cancelá-la ‘dentro’” é porque
uma “suspeita”, uma “desconfiança” diriam os ticuna, sobrepõe-se ao jogo, tornando-o
instável, “desigual” (Viveiros De Castro, 2002:175-179).
E Lurdes, jocosamente, complementa a asserção, entrelaçando quesitos políticos-
morais que vêm à sombra da exogamia, também como efeitos das “misturas” descritas: “esses
casamentos com gente de fora, atraia a atenção é dos chefes, que deixam suas filhas, suas
parentas fazerem esses homens de fora [citando casos de sua aldeia] ficarem ticunados,
respeitar as leis daqui de dentro”. E contextualiza uma situação etnográfica que mobiliza
esse desvelo na gerência do parentesco e da micropolítica de gestão da alteridade: “já teve uns
casamentos desse tipo que homem foi embora depois de roubar madeira, fazer filho na
mulher e deixá-la aqui sozinha. Aí eu acho errado. Mas é problema de honra,112 não de
womãtchi. Isso tem conserto”.
Uma de minhas “tias” na aldeia onde reside a parteira, e de quem o filho, nascido
durante minha estadia, eu fui “nominadora emprestada”,113” relatava dias após dar à luz que:
“Ter filho de rua, assim sem pai conhecido e que seja não índio, não quer
dizer que não é parente. Tem só que fazer ele assim. Como qualquer um que
nasce, aqui (aldeia) ou na cidade, ele é parente, sim, mas diferente. A gente
por ai sabe que ele ou a família dele misturou. Aí depende de quem ouve
isso, né? Tem gente que é mais tradicional, vai só na cultura dos antigos;


112
Ao discutir com colaboradores a ideia de honra, bastante mencionada, não me pareceu haver um equivalente
na língua indígena, sendo mencionada sempre em português ou espanhol. Seu sentido está associado a valores
morais atrelados a certas condutas que indicam certa desvalorização do estatuto de alguém.
113
O referido nascimento ocorreu no posto de atendimento na aldeia, e no momento de nominar a criança para
que ela pudesse ser levada para pesar noutra sala, eu atuei como nominadora de Eduardo, um rapazinho chorão
que nasceu antes de sua avó chegar para assisti-lo.
183

mais aí, é como digo para senhora: depende de como cada tá no mundo.
Tivemos que ajustar as coisas, para não fazer caos, apocalipse como diz na
bíblia. Esse clã de boi vem nesse ritmo das nossas políticas de vivência.
Assim faz para seguir na mesclagem, multiplicando os Ticuna de muitos
jeitos. Casar fora e fazer para fazer filho ticunado é dar golpe na cultura, diz
o meu avô. Eu já não sei se é. Cada sujeito faz a vida do seu jeito. Assim diz
o conselho da Lurdes, senhora já bem vivida e que sabe pegar esses perigos
de fora e fazer bemzinho aqui na aldeia”.
Segundo essa narrativa, o processo de fabricação da pessoa como “ticuna
legítimo” ou “ticunado” envolve alguns valores relevantes para entendermos o que designa
parentesco entre os interlocutores e como falam que se torna um parente e de que tipo. Isso,
parece-me, retomar o argumento de Gow, desde os Piro, acerca do processo cíclico e reticular
de produção do parentesco: um “sistema que gera suas próprias condições de existência”
(1997), o que tem a ver com linguagens distintivas mostradas anteriormente, vinculadas à
“topografia moral” em termos de noção de pessoa e seus lugares/posições nas relações. A
inspiração que outorga lugar ampliando aqui aos relatos sobre a o clã de boi neste contexto de
reprodução instanciada pela parteira, e filho, algo que interessa justamente no ponto da
interlocução em que eles mencionam: “não basta ter tanü do pai, tem que ter nome para ser
gente e parente de verdade”.
A distinção entre estes estatutos de pessoa e parente reside, num plano, na
transmissão do clã, associando o parentesco mais estrutural, digamos, ao campo de
socialidade masculino. O que não significa dizer que seus reversos constituintes, socialidades
femininas, estejam subordinados a elas, agências contidas nas substâncias (fluidos,
pensamentos, palavras, alimentos) das genitoras as colocam em posições semântica e
politicamente situadas além do corpo-receptáculo (Rosa, 2013).
A metade, segundo nossa parteira, é transmitida quando sua passagem é feita pelo
“sangue” do marido. E a metade patrilinear só é verdadeira quando a criança nascer, chegar
nesse mundo em boas condições para marcar (“ngu'ũ”) 114 seu nome, fazer o sangue do pai ter
nome, “virar gente e parente”.


114
Com base na análise linguística proposta por Soares (1992:35), Goulard (2009:148, nota 21) afirma que ngu
traduz “observar, marcar”, sugerindo que ngu'ũ poderia qualificar a ação daqueles que nominam. O autor
descreve que a figura da ngu'i como algo análogo ao “padrinho” (idem), quem desde o parto, assume a função de
provir ao nominado, com ajuda de seu esposo. Este papel se repetiria nas celebrações rituais associados às
classes de idade. Em campo, como seguem as descrições, aprendi que ngu'i seriam figuras de mediação, cujas
perspectivas diferenciadas são mobilizadas na produção de um outro parente seu. Porém, não ouvi qualquer
menção à relação de compadrio entre os genitores, o filho e estas mulheres. Algo recorrente, que a mim ocorreu,
184

O “sangue do pai”, sobre o qual disserta Lurdes, nada mais é do que o sêmen
(“namũ”), o qual idealmente diz-se ser produzido pela bebida fermentada de mandioca
(“pajuaru”), cuja massa líquida, matéria-prima para a bebida, é designada pela mesma
palavra. O pajuaru é produzido pelas mulheres de “corpos maduros”, férteis,
preferencialmente casadas e com filhos, pois são estas as habilitadas “a passar saberes e
conhecimentos”, a “aconselhar”. Esse processo de coprodução dos genitores, também
estendido aos resguardos posteriores, parecem-me atitudes interessadas, no sentido de
sinalizarem, pelo reconhecimento da paternidade e maternidade, “aqueles da feitura do filho e
dos parentes”, escalas que individuam o casal. Por isso, o filho simboliza a estabilidade da
relação conjugal, comunica transcursos e amadurecimentos.
Questionei à Lurdes e a uma de suas filhas, casadas ali mesmo, “com parente de
perto”, como era a situação na aldeia, posto que ao que eu via, ouvia e discutia com meus
amigos, o “pajuaru” “era bebida proibida”, apesar “de ser a verdadeira bebida”, pois eram
evangélicos, as produziam e a consumiam com bastante moderação, notadamente em festejos
comunitários ou aniversários. Alternativas, como sempre, não faltam e não falham também
nessas capturas cotidianas, ao que Lurdes responde-me:
“Mas esse sangue é feito também de outros jeitinhos, noutras comidas, no
caldinho de peixe; é assim como o ritual das moças que não faz mais tanto
aqui, isso não diz que nossa roça está ruim, que mulher que menstrua não
tem poder de fazer filho. É só que o jeito dela, o corpo dela muda. Assim
com a bebida, aí já parece assim, nas palavras do mais velhos, como eu, que
parente vem mais noutro jeito, diz que fraco dos pensamentos, aí sou eu
pensando, né. Eles dizem que não. Minha filha diz noutro jeito, que vê, diz
ela que é assim, das mudanças. Filho que pesca tem corpo forte, sem doença,
forte como pajuaru, filho feito de calabresa, quisuki e macarrão já vem
diferente. Assim é na casa da senhora também, não? Assim também era feito
só nos sangues ticuna; aí, foi como eu, fazendo no sangue do branco”.
A performatividade do parentesco ticuna aloca as substâncias (as palavras,
sangues, pensamentos, alimentos, procriação) enquanto afetos que materializam a ideia de
abertura, e multiplicidades; as linhas que definem vêm de fora, pelo diferente, aquilo que não
se é; lógica que não rompe com a produção de identidade, mas a evoca diversificada, híbrida,
do contrário, não segue operativa; “assim é desde o início”.


foi o convite para ser madrinha, dito em português, porque seria “bom para ajudar quando precisar”,
notadamente sendo referido às expectativas de estudos futuros fora da aldeia ou a oportunidades de emprego.
185

Nesse caminho ramificado da ideia de identidade sociopolítica que o pronome


ticunado revela, como Lurdes nos conta de seu casamento, as relações que, na sua aldeia,
inseriu o clã de woca, posto que, não ter o genitor ticuna implica um tipo de relação geradora de parentes “misturado”, “um
tipo de ticunado”, como explicam. Desde essa perspectiva, a tendência estruturante a uma polarização
entre os colaboradores parece ser a força que impulsiona a criatividade do sistema de
organização social, do casamento, ao menos. Não há como falar sobre o que me era contado
sobre as “nações” e os “casamentos” sem atrelá-los ao que me instigava mais entender, a
“feitura de gente” e os processos políticos subjacentes a essa reivindicação que me faziam, ao
publicitar a pesquisa: “não esquece, dona moça, tem muitos jeitos de se contar as mesmas
coisas, porque somos parentes de muitos jeitos”, relembradas certa vez por Nazareno.
Nesse horizonte, o universo das “regras das nações”, como artifícios criativos e
em progressivas atualizações, nos revelou, a essa altura, “mapas e movimentos” iniciais de
uma longa e complexa “história ticuna”, suas implicações nos “muitos jeitos de ser” que
reivindicam através do emprego dos marcadores de diferença social nativo daí derivados, tal
como ganha lugar o estatuto pronominal: “parente ticunado” e “parente legítimo”. Mais uma
vez, trata-se de diferenças de escalas, não de naturezas. Se o fosse, não haveria tanta tônica
cotidiana ao diferenciamento, especificamente quando sua articulação é um caminho para um
devir-identidade imortal, estado em que sim, a diferença está fora.
“Os muitos jeitos” provoca pensar, e esse trabalho não é o único,115 na ideia de
“identidade”, que talvez, e não desvinculado ao de “cultura”, são paradigmas caros,
problemáticos e assim o são pelo desafio que carregam de lidar com a alteridade. Não farei
aqui um debate sobre o complexo tema. O que quero dizer é, basicamente, algo metodológico.
Não desperdiçar o caos, as incongruências dentro dos conceitos indígenas, a partir dos quais
eu falo a partir do que eles me falaram e ensinaram lá, nos “muitos jeitos” deles ser ticuna.
Essas operações não giram e se constituem entre eles, quase sempre, de impurezas; de
resquícios; de resíduos; “nada se perde, fica assim, noutro jeito, assim é a na’ane”. Essas
relações conjugais que desvelam serem elaboradas a partir de experiências e memórias de
aparentamento, de afetos que qualificam as posições de troca, e propõem formas de gestão da
diferença.
A ideia de boi, ainda que não enuncie explicitamente, ou não eu não tenha
percebido claramente, uma questão imediata de hierarquia, não ameaça, tanto que é
consanguinizada; é “ticunada”. Por aí, a ideia de “mistura” é aqui positivada naquilo que


115
Cf. Kelly (2005); Rosa (2011); Nunes (2012); Mejía (2012).
186

expressa sua potência relacional: em agenciamentos atuais, renovados, retomados, que


revelam senão caminhos pelos quais as relações conjugais colocam em movimento os
coeficientes de alteridade e aparentamento, jogam aos ritmos de suas micropolíticas com os
binômios graduáveis.

5. “Pegar no jeito do ticuna”

O vínculo de Lurdes com uma categoria de alteridade tensionada pelos


interlocutores possibilita-nos observar como, numa lógica do “consumo produtivo” (Fausto,
2001), o Outro torna-se parte relevante da insígnia identitária. Não pelo xamanismo,
tampouco pela guerra, talvez por uma lógica de predação travestida em matrimônio, quando
casar é uma modalidade simbólica de caçar e componente das “negociações” de casamentos.
Com a sua narrativa, conjugando-se às outras interlocuções, se queria neste capítulo lançar luz
sobre o diálogo acerca do “sexo malfeito”, quando ele aparece não como forma de incesto,
mas como evidência de que alguém se casou com “gente de fora”, marcado geracionalmente,
pela transmissão do clã, “o jeito das misturas e das feituras de parentes”. Chamamos atenção
para essas socialidades operadas pela criatividade das ações de mulheres, entretanto.
Ao casarem-se “capturando maridos”, agências femininas de algumas mulheres
ticuna, com trajetórias conjugais bastante similares à de Lurdes, reorganizam a transmissão
patrilinear, suspendendo-a numa geração, para com isso, gerarem prospectivamente espaços
de expansão para as “boas regras de convivência”, “virando” o clã de “gente de fora” (clã de
boi), uma marca de seus “jeitos de ser”, em que a consanguinidade engloba, pois, no plano do
local, a afinidade. A tornam, então, domesticada, socialmente reconhecida e valorizada,
estimulando o processo de mobilidade social, ao que tornam a aliança inicialmente
equivocada, carregada de afetos políticos, econômicos e éticos, “certa”, um casamento bem
avaliado.
Nessas malhas de afinidade e de relações de poder e de gênero, circulam valores e
experiências sobre os mundos vividos, e “pegar no jeito do ticuna”, como diz Lurdes, aferem
investimentos sobre afetos, cosmos e corpos, portanto, nos pontos de vista conectados nessas
interações. O modo de familiarizar, ao estilo ticuna de casar com os “homens de fora”, é um
meio de apropriação de potencialidades estrangeiras e perigosas para tranformá-las em
aspectos significativos para o modo de vida na aldeia e suas inflexões sobre as atualizações
das “regras de convivência”.
187

Tal alteração é desenvolvida no interior dos “petchica”, acionado por Lurdes


como uma estratégia vinculada ao que propõe ser o “jeito ticuna de laçar esses homens”,
claramente denotando certa inversão dos regimes de violações contra mulheres indígenas
praticadas pelos ditos “homens de fora”. Isso coloca em destaque suas capacidades agentivas
ao corolário das teorias de socialidades com o exterior, aqui exercidas por ações femininas, ao
que Lurdes nos explicou seus meios: “jeitos de ser mulher ticuna, que vai tudinho, do corpo,
da palavra, da comida nessa feitura do marido ticunado”; “no jeito de namorar”.
A sexualidade opera nesse conjunto relacional como dispositivo componente dos
critérios para alianças desse tipo. Ela atrai e transforma a afinidade em consanguinidade. Ela
atualiza-se na presença do terceiro elemento incluso, o afim potencial. Ele é trazido ao
interior, pelo casamento, na produção do marido “no jeitinho do parente ticuna legítimo”.
Isso é resultante na produção do parentesco orientada pelo mesmo idioma das “nações” e suas
metáforas, porém, aqui vista deste a ideia local “da mistura bem feita”, como explica Lurdes,
“mesmo sendo com homem de fora”.
Assim, o casamento, como um tipo de “compromisso”, abarca o espaço criativo
das “reclassificações” (Lévi-Strauss, 2009) dos gradientes de identificação e diferenciação.
Nessas conjunturas, abrem-se na multiplicidade interna aos outros, os “awane”, numa relação
diferencial, mas não em oposição privativa. As “histórias das nações” deixam lembranças,
modelam estilos de vida, inspiram códigos morais, regimes de atitudes e, a partir daí,
desencadeiam regimentos de troca e alianças. Este regime de socialidade sublinham que esta
abertura ao exterior e à alteridade masculina, instanciada no clã de boi, fornece novos
componentes simbólicos aos colaboradores e o fazem projetando os elementos estrangeiros
aos seus modos de “fazerem parentes”.
188

Reportagem que apresenta o “massacre do Capacete”, mencionado por Lurdes.





189

Capítulo IV

Casando-se com “gente de fora”

Interlocutores

Juan e Constância: casal; ele, “homem de fora”, não ticuna e de nacionalidade peruana,
cinquenta e dois anos; agricultor e carpinteiro. Ela, mulher ticuna de cinquenta e dois anos, clã
de mutum, agricultora. Juntos há mais de dezoito anos, o casal tem quatro filhos, três homens e
uma mulher, todos solteiros.

Pablo e Anita: casal; ele, homem não ticuna e de nacionalidade peruana, sessenta anos. Ela,
mulher ticuna, prima de Constância, trinta e dois anos, clã de onça. Sem conhecimentos
apurados dos “trabalhos de roça”, Anita depende, em certa medida, dos auxílios financeiros de
seu esposo para provir seus dois filhos. Tal prerrogativa econômica por ela agenciada opera
estrategicamente enquanto instrumento de inserção nas redes de intercâmbio entre suas
parentas. O casal está junto há aproximadamente cinco anos, tiveram uma filha. Anita, contudo,
é mãe também de um jovem menino, fruto de relacionamento efêmero anterior, cujo
desconhecimento do genitor, a alocou na posição “mulher solteira com filho de rua”.

Firmino e Lora: casal; ele, “ticuna brasileiro”, clã de mutum, setenta e cinco anos, pai de
Constância, e tio paterno de Anita. Ele é casado com Lora, clã de onça pintada, sessenta e dois
anos. Ela apresenta-se como “mulher ticuna parida e com papel de registro no Peru”. Ambos
são “aposentados da roça”. Não são figuras de poder “nem político, nem religioso. Só velhos
maduros”, como se apresentam.












190


“Gentes de fora”, gradientes e estatutos

“(...) Assim dizem, né! Casar com gente de fora não tem problemas, têm
negociações”.
“(...) depende de que tipo de gente é essa que chega de fora para casar. Se for,
assim, parente, ticuna de outras comunidades, até aqueles que já se criaram assim
na cidade, é uma negociação. É assim mais entre a família mesmo, né, no grupo de
parentes. Isso é dito aqui, na nossa camunidade, como um casamento certo. Acho
que é assim porque tá se ajuntando com parente de longe, mas parente, né? Assim,
parente do outro lado do rio, de lá de baixo ou do alto do rio, como diz. De lá e de
cá, mas tudo parente, tudo descendente legítimo de Yoi”.
“[...] Aí [nestes casos] o que se cuida mais nos ajuntamentos de casal é pra ver se o
homem e mulher cruza nações certinho, pra eles não chamarem os bichos da
floresta e se meterem em tristezas, porque estão fazendo o sexo malfeito. ”
“(...). Outra coisa, é a negociação com gente de fora que não é parente. Na nossa
cultura, a gente de fora pode ser parente e pode ser awane. (...). Pode ser gente de
muitos jeitos. (...) Sim, pode ser homem ou mulher que não é ticuna, nem dos
legítimos, nem dos ticunados” (Firminino).

***

“(...) Isso aí tem a ver com o caso do meu casamento, como a dona já sabe.
Arranjei compromisso com peruano, com gente lá do outro lado do rio, quando eu
era moça. (...) Tem gente aqui na aldeia que vê esse casamento meu errado,
malfeito, mal ajuntado. Assim igual a prima, Anita, [quem também] laçou um
peruano para esposo. ”
“(...) Papai contava [que] essa gente é perigosa. Ele dizia dessa gente do outro lado
do rio gente de desconfiança; assim, como gente do Ipi, que engana, mente, rouba.
O papai dizia, assim, nas palavras dos antigos, que essa gente já foi, um dia,
inimigo dos Ticuna, que o Ipi foi atrás deles, da gente das mercadorias, das letras. ”
“(...) o velho contou essa história quando o meu marido chegou aqui. Pa’pa [pai]
dizia que essas gentes, no tempo dele moço, lá no tempo da seringa, eram os
capatazes dos patrões. Esses aís, no pensamento do papai, vinham do Peru, de
outras partes desse rio; [eles “homens de fora”] chegavam para ganhar dinheiro na
seringa, nas mercadorias e se metiam com mulheres ticuna só para se misturar e
roubar terra da gente. Se metiam com drogas, guardava na canoa do índio e
passava nesse rio livre das polícias. Isso é o que ele contava, né, dona. Ele dizia
assim para ensinar que melhor mesmo era sempre casar com parente desse lado do
rio” (Constância).116

Os fragmentos acima descritos ilustram o problema central conhecido nesta rede


de parentela extensa como efeito dos casamentos interétnicos, especificamente de mulhers
ticuna em uniões com “homens peruanos”, alocados na categoria de “gente de fora”,

116
Excerto de uma conversa com Firmino e Constância realizada separadamente em 2013. Suas continuidades
seguiram-se em muitos momentos posteriores do campo e cujas notas foram organizadas em diário de campo e
aqui transcritas e editadas. O mesmo com as demais transcrições complementares.
191

“inimigos”. Nesta posição, os cônjuges são duplamente estrangeiros, “de nacionalidade e de


jeito”. Assim são qualificados por ocuparem nas redes de socialidades indígena posições
espaços-morais de “gente em quem não se confia”.
Tal situação de inimizade a priori é conjunturalmente definida no caminho da
socio-história ticuna em interlocução com a historiografia regional, situando os cônjuges
peruanos em pontos de vistas homólogos àquelas figuras de afinidades sociopolítica de
tempos idos, seja a “gente de Ipi” ou agentes coloniais, desvelando etnograficamente suas
formas de atualização e continuidade significativas aos modos de análise indígena da
alteridade e do exterior. Contemporaneamente, estes Outros incorporam-se nas imagens dos
“antigos inimigos”, em um mesmo registro de diferenciação daquele que tivemos notícias no
enredo do capítulo precedente a partir de algumas outras configurações informando as
posições de ambiguidade da figura dos estrangeiros, reaparecendo, desta vez, travestidos de
cônjuges peruanos também associados, similar e negativamente, a figuras como os “patrões
da borracha” e “capatazes”. Por vezes, são também referidos a partir da imagem de outras
figuras de poder, associados a redes de tráfico de drogas, exploração de madeira e outros
recursos naturais.
Como afirma a Constância, é neste ponto que se “casar com gente de fora”, “não
tem problemas”, porém, “têm negociações”. Nesse sentido, o objetivo deste capítulo é
discorrer sobre os modos possíveis de transformar esses pontos de vista outros, tensionados
no decorrer das intercomunicações matrimoniais cujas alterações são produzidas sob
possibilidades controladas e criativas às formas ticuna de socialidades “bem feitas”. Seguindo
na perspectiva da afinidade, se é verdade que o ponto de vista define o sujeito, porque a
atribuição de sujeito, enquanto aquele dotado de capacidades agentivas, define-se
precisamente pela faculdade de ocupar uma perspectiva, estes “homens de fora”, enquanto
afins potenciais, expõem a inimizade, ao modo como se formula em outras paisagens
amazônicas, na presença objetiva de relações sociais (Rivière, 1979; Albert, 1985; Lima,
1996; Viveiros De Castro, 1986, 1993, 2002).
A seguir examina-se, a partir desses matrimônios, o lugar produtivamente
problemático da diferença, interessando-me em descrever as relações e suas conjunturas para
conhecer os componentes constituintes das lógicas de “negociações” e seus efeitos nas
elaborações dos “muitos jeitos de ser ticuna”. Com efeito, os interlocutores preocupam-se em
recriar e transformar tais relações de diferenciações com estes sujeitos sociais em
modalidades de parentes por meio do “amansar”, do “fazer virar” um corpo reconhecível,
portanto, confiável, “um genro verdadeiro”.
192

O ponto de partida é uma afirmação de Firmino acerca deste processo que aloca
conjuntamente circuitos de ações generizadas traçadas nos modos de elaboração e apropriação
dos atributos simbólicos desses “homens de fora”. Este interlocutor incita a refletir sobre os
modos como em seus contextos de vivência estes Outros são alocados na posição de afins
reais, quando homens e mulheres ticuna administram juntos e alternativamente suas
potencialidades úteis à vida entre parentes e comunitários.
Não se trata, contudo, de uma alteração de única via, na medida em que ao
tornarem-se esposos, via vínculo-aliança, os atributos desses homens estrangeiros prestam-se
de vetores para transformações das mulheres ticuna com quem se casam, neste exemplo
expresso de um modo diferenciado daquele apresentado no capítulo precedente. As
interlocutoras casadas aqui com “homens de fora” encontravam-se em condições sociais
desfavoráveis ao adquirirem matrimônios, abrindo espaços às suas conversões a ponto de
reverter seus “jeitos de mulheres malfeitos”, provocando “inveja na mulherada”. De mulheres
solteiras, que refletiam valores de “vergonha” a suas redes de parentela, ao casarem-se, ainda
que com um tipo de inimigo, estas mulheres assumem estatutos de mulheres casadas, “bem na
vida”.
Essa dupla transformação da diferença e da alteridade realiza-se mediante o que
denominam estes interlocutores “tempos de prova” e o “casamento”, lidos analiticamente
como dois momentos de “predação familiarizante” (Fausto, 2001). Cada um desses
dispositivos de “amansar marido” funciona nas “negociações”, mobilizando interesses
diversos nas “políticas de vivência” locais. Argumenta-se, assim, que eles são conjuntos de
relações sociais conformadoras dos “jeitos de ser” aqui evidenciados, marcados por relações
de gênero e de poder.
Algumas perguntas guiam esse debate, que buscam descrever como os
interlocutores, homens e mulheres, experienciam esse tipo de relação com a alteridade (os
homens de fora peruanos), pela via do matrimônio. Quais os mecanismos de que se utilizam
para neutralizá-la, quando consumida, tornando-a um elemento domesticado, a ponto de
transformar o inimigo em “parente ticunado”, um “genro verdadeiro”, como caracterizam
Juan? Ou, como tecem as conjunturas para a geração de seu contraste, um afim “perigoso”,
não tratado (social e terminologicamente) como parente, como decorre com Pablo, esposo de
Anita? Se não aniquilam a afinidade, como a travestem?
Para responder a estas questões, faz-se preciso percorrer outras: quem são os
inimigos estrangeiros, quais são as mulheres a eles permitido vínculo marital e em que
condições, com quem a negociação se realiza? O que se negocia, troca ou preda-se nestes
193

relacionamentos tensionados não apenas nas redes de parentela, senão na aldeia? As


agencialidades femininas são centrais nessa análise, posto que elas “caçam os maridos de
fora”, como situa Constância, posto que na duração do casamento, é para ela “o tempo de
amansar para se fazer mulher e homem melhor”.
Para esboçar algumas respostas encontradas em campo, segue-se na primeira parte
do capítulo com algumas proposições de Firmino naquilo que, numa escala, propõe ser uma
arqueologia da categoria de afinidade que aqui nos interessa, os cônjuges “peruanos
perigosos”, quando, a partir de sua própria situação conjugal com Lora, este senhor nos
desvela os processos pelos quais, desde o seu ponto de vista, vêm configurando-se as
micropolíticas de parentesco dimensionadas nas histórias de contato que integram a
proposição cosmopolítica guia do texto, “se casa melhor deste lado do rio”, e as relações que
significam as posições sociais derivadas, “das gentes do outro lado do rio” como “inimigos
de situação”. Daí segue-se para os casos e negociações destes laços interétnicos, focalizando
as narrativas conjugais de Constância e Juan, Pablo e Anita.

1. “Casa-se melhor com gente deste lado do rio”117

“Ser parente é ser magüta, ter essa origem verdadeira. Assim diz as palavras
dos antigos, é ter herdado os bons costumes de nosso pai Yoi. Aqueles que
estão do outro lado do rio [Peru] são parentes, são os Ticuna de documento
[nacionalidade] mas podem ter pegado o jeito dos peruanos. Ai já são como
os parentes de longe, assim é minha esposa. Só que essa lonjura aí já tem a
ver com os jeitos que eles têm lá, no lado da gente de Ipi, dos inimigos que
também vivem por lá. Aí tem que fazer eles [parentes ticuna] igual que a
gente, como gente do lado do Yoi. É só uma questão de jeito, entende? ”
(Firmino).

Firmino, “ticuna brasileiro”, casado com Lora, “ticuna peruana” contava-me


esses informes acompanhado de sua filha Constância, em sua casa, quando me falava de
alguns aspectos cosmosociológicos instituintes das percepções que informam o lugar
reservado aos não indígenas de nacionalidade peruana. Estes afins estrangeiros masculinos
são tipos de “gente perigosa”, à margem das categorias de relacionamentos
preponderantemente desejáveis, por isso, alocam-se, então, nas escalas mais baixas de


117 Glosa oferecida à expressão original “narü meme'e nacü ante y dü'üngü y nhã'ãma y tatücã”.
194

interação indígenas, antes e atravessado ao parentesco. Como afirmara Firmino, a alteridade


necessária aqui está na fórmula do inimigo potencial antes mesmo de pensa-lo como cônjuge
e aliado. Não poderia sê-lo porque está “do outro lado do rio”. E, justo por isso, aí reside o
objeto da relação: poder torná-lo um. Nesses meandros, na posição inicial de duplos
estrangeiros, de “nacionalidade e de jeitos”, esses cônjuges estrangeiros são conhecidos são
“inimigos de situação”.
“Se eles não fazem o jeito deles meio parecido, no jeitinho ticunado de
parentes, vão embora. E se ficam, não viram parentes. Seguem como Pablo,
sem confiança. Senão, se fica no jeitinho nosso, vira parente, como fez Juan.
Isso tudo são inimigos de situação, dona. Assim, esses peruanos são desse
jeito porque depende deles e de nós querer fazer amizade e parente. Nada
nessa vida vem prontinho assim tem de fazer, moldar, como pensamento
certo. ”
“Inimigos de situação” é a expressão descritiva e relacional utilizada sempre em
português, e associada intimamente aos conjuntos de ambiguidade nelas contidas, que
comunicam, ao serem descritas, a preocupação rotineira em campo: casar-se de um modo
“bem feito”. Ao escutá-las, localizando aspectos da historicidade das categorias de “inimigos
de situação”, o paradoxo desvelado por Firmino intrigava-me num detalhe, especificamente.
Quando ao qualificar como equivocado tanto o casamento de sua filha
(Constância) quanto o de sua sobrinha (Anita), pela condição de “inimigos perigosos” de seus
respectivos cônjuges, ele comparava estes laços conjugais ao seu próprio. Este, por sua vez,
também efetivado “com gente de fora, do outro lado do rio”. Tal união conjugal era,
entretanto, diferentemente daquelas que ele avaliava, apresentada como “certa, bem feita”. A
respeito da distinção, ele advertia: “sou casado com uma parente, minha filha e sobrinha,
não. Seus esposos são homens de fora, são peruanos de desconfiança”.
Perguntei-lhe, ainda intrigada, sobre o avesso dessa mesma situação: e se fosse ele
o parente peruano e sua esposa a parenta ticuna brasileira, seria a mesma situação? De sua
resposta rápida, emitida mediante um olhar desconfiado, apenas, consegui guardar esses
trechos no diário:
“Não, nem seria. Diz que é outra coisa, outro problema, daí. Não é porque
são homens ou mulheres, é porque são gente não indígenas, não parentes
esses homens. Se fosse eu de lá do outro lado do rio, ela mulher daqui tudo
bem. De igual seria. É isso. É tudo parente, só que de jeito diferente; mas
Lei do branco que divide os povos, não divide assim os Ticuna, do mesmo
jeito. Não tem papel [documento] assim que proíbe de ir e voltar, né? Os
195

Ticuna falam a mesma língua, tem cultura igual, lá e cá. O que diferencia
são os lugares onde estamos e como isso tem a ver com nossos jeitos de ser
nessas histórias que fizeram dessa região um lugar de muito mais gente”.
A nacionalidade e consequente posição no eixo do rio, que materializa a
“topografia” relacional destas situações de distinção ontológica são claras, e interessava-me
nesta conversa, inicialmente, entender como nestas conjunturas ele e seus parentes
demarcavam as preferências matrimoniais com “gente magüta, deste lado do rio”, tratando-se
dos ticuna brasileiros ou colombianos, em detrimento (instável e reversível) aos seus parentes
ticuna peruanos. Estes últimos são tratados como seus parentes distantes, passíveis de
“misturar [casar-se com] sem ter muitos problemas”, posto que, pela sua explicação, são
parentes de longe, “de pensamento” e de aldeia, porém inseridos no grupo étnico, como
“gente verdadeira”. Assim, Lora e qualquer outro Ticuna peruano não são vetados à aliança
matrimonial, sendo preciso, desde o ponto de vista desses colaboradores, inseri-los em seus
cotidianos de maneira que se assemelhem, borrando vestígios depreciativos provenientes das
proximidades de convivência com a gente do “outro lado do rio”.
Para entender o que se passava e o que subsidiava os valores de distinção em
jogo, Firmino fala-nos suas próprias versões deste processo de atualizações da “escritura
topográfica” da região (Santos-Granero, 1998), informando que aqueles “parentes ticuna”
situados contemporaneamente no lado peruano, “do outro lado do rio”, passam, pelo
convívio, a tornarem-se “tudo meio parecido com esses inimigos”, ao que se refere
remontando às narrativas míticas justapostas às mudanças geopolíticas que delimitam as
fronteiras nacionais na região, aos antigos inimigos bélicos, também aos agentes das empresas
seringalistas, tendo assim, “que tomar cuidado”.
“Foi depois das guerras, da chegada dos missionários, dos brancos, dos
militares, do SPI, das igrejas. Foi nessas misturas de saberes sobre esse lugar,
que nos separam tudo assim: lá Leticia, as aldeias de Laranjal, Arara,
Macedônia; lá Tabatinga, Benjamin Constant, São Paulo de Olivença, as
comunidades de Umariaçu, Aldeia Grande, Campo Alegre, Nova Itália,
Yuatchawa, Betânia, Vendaval; e lá do outro lado, CaballoCocha [Peru] e as
aldeias dos parentes que ganharam nome de peruanos. Misturou tudo: índio,
gringo, colombiano, brasileiro e peruano nesse rio agora com lado e nome de
países. (…) e misturou para separar de novo os parentes, só que de outro jeito,
nesse tempo mais de agora”.
De acordo com seus conhecimentos da etnohistória, ele relata que “os ticuna
verdadeiros”, o que inclui “os Ticunas peruanos”, os quais se organizaram diferentemente,
196

espacial-politicamente, nas “situações históricas” (Oliveira Filho, 1977, 1988) e nas


perfomatividades contingencias de contato, enquanto um subgrupo menos valorado em
relação aos “ticuna brasileiros e colombiano” .118 Os “parentes peruanos” tinham boa feição,
“bom caráter”. Tinham, em síntese, “herdado do Yoi os bons costumes” que, parece, traduz a
expressão cunhada por Firmino, “nacüma i mengü'ü, expressando sentido à premissa
sociocultural de que se “casa melhor com gente deste lado do rio”. A expressão “mengü'ü”
designa valor positivo a pessoas, ações, estados, coisas; adjetiva ação como “bom”, “bem”,
“belo”, onde o morfema “me” cumpre essa adjetivação. Em termos de hipótese, talvez por
uma questão de diferentes grafias, ngü'ü corresponda ao que no capítulo anterior, desde outra
rede de interlocução, refiram-se à “ngu'ũ”, enquanto processo de incorporação de regimes de
conhecimentos, “jeitos de estar no mundo”, que glosam como “marcar na pessoa” certos
atributos.
Assim, a sentença de que “se casa melhor com gente deste lado do rio” emerge,
então, correlacionada aos marcadores de diferença sociais de interesse contextual, a variável
espacial e a nacionalidade, como lentes através das quais se pode observar a produção e as
dinâmicas preferenciais de alianças aquém e além do matrimônio. As duas variáveis nativas
que juntas empregam significados políticos às “gentes do outro lado do rio” vêm sendo
elaboradas e descritas, simbólica e empiricamente, com base nos diferentes processos de (i)
migrações e mobilidades realizados pelos Ticuna e as demais populações que coabitam[ram]
suas territorialidades, agora conhecidas também como região do Alto Solimões.119
O problema de casar-se com “gente de fora”, peruana, coloca-se, então, nesse
quadro, ao que entendo, no fato, como já exposto, da dupla identidade ambígua dos cônjuges:
ser um “homem de fora” peruano denota uma ordem de exogamia sem valor necessariamente
positivo agregado, ao menos neste contexto de interlocução. Talvez porque estes homens não
transmitem as insígnias identitárias (clã), porque seus “jeitos”, encapsulam ontologias
deletérias, remetendo às situações bélicas passadas, das quais os interlocutores buscam
“autonomias”. Tal hipótese, por fim, resume a chave do problema cosmopolítico em jogo:
conviver e habitar no “outro lado do rio”, ainda que se trate de “parentes ticuna”, produz
assemelhamento potenciais com aqueles concebidos como inimigos simbólicos, cujas


118
Cf. Vilaça (2006) sobre processos de subdivisão de grupos de cognatos Wari’, povo falante da língua da
família txapakura, situados no estado de Rondônia, quando estes, a partir de eventos que mudaram o percurso do
rio, acabaram isolando-se em uma de suas margens, configurando-se num dos subgrupos wari’, alterados em
meta-afins, que numa interlocução após o contato, engajam-se buscando estabelecer relações novamente de
consanguinidade.
119
Ver contextualizações desses marcadores em relação aos processos sociopolíticos de configuração da região e
as narrativas indígenas acerca nos capítulos iniciais, especialmente, II e III.
197

agências carecem ser bem administradas, a ponto de minimizá-las eficazmente. Esses


estatutos diferenciativos materializam relações, antigas e contemporâneas, que orbitam,
assim, entre eixos contínuos e oscilantes de inimizade e aliança. O atributo da confiança (ou
falta) reaparece aqui como vetor mediador entre eles.

1.1. Gradientes

Com base no exposto, angariamos alguns elementos que nos esclarecem aspectos
das “negociações” e dos dispositivos de afinização associados ao fato de Lora, no casamento
com Firmino e na convivência numa comunidade no Brasil, ter se tornado parenta ticuna
(mais) próxima enquanto cunhada, nora e esposa, simultaneamente, produzindo uma espécie
de reconsanguinização de seu “jeito” diferenciado, portanto, nos moldes desejados. Um
movimento pendular, feito nas próprias relações, como se argumenta aqui, nas palavras de
Firmino.
(...) fui numa festa na aldeia perto da antiga aldeia dela com meu falecido
pai. Isso foi depois de uma reunião, e eu conheci essa mulher. Foi assim. Fiz
proposta para o pai dela, fiz prova, pesquei para ele, e meu pai disse para o
pai dela que eu era bom também de política, por isso estava metido já desde
jovem nas reuniões de formação. E eu trouxe ela comigo, depois dessas
conversas. Aí ela aprendeu a ficar mais no jeito dos parentes daqui desse
lado, né, a comer com o nosso peixe, com nossa farinha, a falar com as
minhas irmãs; tivemos filhos e roça e, desde aquele tempo, ela é tratada
como cunhada por minhas irmãs; meus filhos aprenderam a dizer das filhas
da irmã de minha mulher como tchau’eya, nome que é igual a irmã de
sangue deles. E agora os filhos desses filhos, os meus netos, eles se vão, vez
ou outra, lá nessa aldeia no Peru visitar quem da família dela ainda está lá.
Um deles até se casou por lá. Ficou tempo no sogro e agora está aqui com a
esposa e os filhos, porque aqui ele tem emprego de salário. Eu aumentei a
família e os aliados. Agora faço negócio com o irmão da minha Lora, que
ainda vive lá no Peru. Ela [Lora] ganhou parentes aqui, que foi bom para o
pai dela também, né. Bom para ela, que tem as cunhadas para fazer roça,
para fofocar. Temos por onde ir viajar. Depois, [Lora] acabou se
convertendo para a Igreja aqui da comunidade, também agora usa roupas
como as minhas parentas. Assim ela foi virando parente de perto, um patcha
[parente] daqui. Aí é diferente dessa gente de fora não parente. Com os
198

parentes Magüta não é guerra, os problemas, como já disse para dona


senhora, é nossos jeitos de ser ticuna”.
Estas imagens etnográficas do trajeto conjugal desse casal contextualizam
nuances distintivas que caracterizam os “parentes verdadeiros”, ainda que distantes, daqueles
apontados como “não parentes e inimigos”. É com Firmino, para encerrar a seção e determo-
nos nos casos conjugais principais, que a intriga inicial se resolve situacionalmente, enquanto
aguardo a volta ao campo para seguir conhecendo-as.
(...) se fosse ticuna o marido de minha filha?... Eu deixava casar, sem
problemas. Aí com ele ia ser como minha mulher, ia virando parente, assim,
genro de verdade, que passa nação certa, que sabe nossa cultura. Ela
escolheu, né. Nos tempos de hoje é a mulher que busca marido. Aí eu
negocio para verificar se é bom partido. Mas esses homens ou mulheres de
fora são sempre assim um tipo de gente diferente, né. E esses que não são
parentes, são assim, inimigos de situação, eu digo: depende quem são esses
de fora. Depende da situação, eles viram parentes, deixam de ser inimigo”.
Seguiremos conhecendo, a partir de agora, por meio das narrativas conjugais de
Constância e Anita com seus respectivos esposos estrangeiros, “perigosos”, e portanto,
situacionais, a abrangência das relações de troca não simétricas, como parece ser o caso de
Firmino e Lora. Sublinhamos nesse enredo alguns aspectos dos trajetos pessoais dos cônjuges
“de fora”, percorrendo suas estratégias de chegada à aldeia, os desdobramentos matrimoniais
com eles efetivados, que os tornam inimigos corresidentes. Como os sujeitos objeto dessas
relações de transformações, “homens de fora” e “mulheres ticuna”, encaram ou negam o
processo de conversão de afins potenciais a afins efetivos, nos “jeitos” propostos pelos
cotidianos de suas “políticas de convivências”? O que implica, também para Constância e
Anita a contração desse “compromisso”?

2. “Marido transforma e é transformado”

Juan e Constância
(“o casal que virou junto bons parentes”)

2.1 Relações

Juan, homem não indígena, com cinquenta e dois anos, nascido no Peru, na região
da província de San Martín, chegou à comunidade por volta de 1995. Lá chegou, sozinho e
solteiro, em busca de trabalho, depois de já ter circulado por diferentes cidades peruanas e
colombianas. Trajeto este que teve seu início marcado, segundo sua narrativa, quando
199

completou dezessete anos de idade, momento em que deixou a casa de sua mãe para “seguir a
vida”. Desde então, “no tempo dessas andanças”, muito pouco soube de sua família. Dela
afastou-se a ponto de tornar-se “homem sozinho no mundo”, como também caracterizava sua
própria trajetória social.120 Como trabalhador autônomo, Juan acumulou experiências no trato
de madeira, tornando-se um exímio carpinteiro, inclusive no fabrico de canoas e casas.
Segundo ele conta, passou por muitas comunidades, andava sozinho. Trabalhava em fazendas
em Letícia; pela região do Putomayo [Colômbia] também. Cansado de ser explorado por
“patrões”, diz ele ter migrado “para essas bandas de cá”, referindo-se ao Brasil.
Passou por várias comunidades oferecendo trabalho em troca de comida, de lugar
para ficar. “Chegava nas aldeias e me deixavam aí na beira do rio, nem deixavam entrar
bem”, encontrando, muitas vezes, como relata, abrigo sob “um chapéu de palha” (algo similar
ao que em outros lugares é tapiri). “Desconfiavam muito”, diz o peruano, caracterizando o
ambiente como hostil. Juan destaca que ao chegar à comunidade onde hoje reside, diz ter sido
bem recebido a despeito da “vigilância” das figuras masculinas de “autoridade” local.
Deixaram-no “entrar” depois de um tempo acomodado numa casa velha de roça desativada.
Nessa comunidade já haviam moradores estrangeiros, porém ticuna, com quem Juan tratou de
alinhar-se, por afinidade linguística, ao que identificava a dificuldade de conversar com o
capitão, que não falava o castelhano, pedindo ajuda aos peruanos da família da Lora, que
falavam bem o idioma indígena e o espanhol. Não tardou muito e ele interessou-se por
Constância, “uma nativa”, àquela altura com seus quase trinta anos.
Constância, hoje com cinquenta e dois anos, quando da chegada de Juan à aldeia
encontrava-se em “situação difícil”, associado ao que ela dizia estar “passada da idade de
casar”, solteira e sem pretendentes locais para cônjuge. Ela conta ter enfrentado, à época,
“tempos de vergonha”. Isso porque, ainda que ela tivesse aprendido as qualidades esperadas
ao ofício de esposa, quais sejam, nesse contexto, atividades domésticas envolvendo os
manejos produtivos na roça e em outros espaços de provimento alimentar, perpassando as
éticas e etiquetas relativas ao preparo, consumo e distribuição de alimentos, bem como
cuidados outros atrelados à criação dos filhos e trato com seus parentes, não havia pretende do
qual ela se interessasse, afeto descrito por ela “assim de ter vontade de estar junto, fazer
parentes, a vida junto”. Haviam candidatos a marido, nenhum, porém, lhe detinha atenção.


120
Do ponto de vista Ticuna, alguém que vive solitário expressa-se pela sentença “nü'in catama ma'ü”; viver
sozinho, sem família, por sua vez, é designado pela expressão ngetanü’untchi e para expressar que alguém está
longe de seus parentes, mas mantendo-se relações esporádicas, aplica-se y natanü'güna yawa ma'üü.
200

Ela contou-me, em várias conversas que tecemos, que de modo distinto de


algumas de suas parentas mais próximas, foi ela que “buscou o marido”. Ela relata que
quando soube da presença do peruano logo foi atrás para ver quem era. E para sua surpresa,
“ele era homem bonito”, descrito como “diferente dos homens ticuna, mas também de pele
morena, não branco”, de quem diz não gostar, “tinha jeito de falar tranquilo, tinha respeito
pela gente daqui, não parecia ser má gente”. Ela o compara a “homens de fora” que por ali já
haviam passado, exprimindo seus critérios de preferência: “outros que passaram aqui antes,
eram velhos, malcuidados; queria homem feio não, nem que não soubesse trabalhar para me
ajudar na vida”.
“Os homens parentes que tinham aqui para casar eu não queria; eu namorava
por ai, só por aproveitar, não queria isso de fazer casa [coabitar] com eles.
Aí fui ficando para trás...nesse tempo aí, muitas parentas, até meus irmãos,
se foram para a cidade para estudar, porque aqui não tinha escola para
jovem, só de criança. Eu era a mais nova, fiquei com mamãe para lida na
roça. Fiquei sem esse muito saberes desse tipo, virei mulher ticuna das bem
tradicionais, da roça, das coisas daqui, de fazer farinha, comidinha de fogo
de chão, só falar ticuna. E os homens que ficaram aqui eu não queria, como
contei. E não podia sair para buscar marido noutra aldeia, tinha que ajudar
na lida com a mamãe”.

Constância, tece, assim, alguns outros elementos morais e estéticos sobre os seus
conterrâneos, justificando as micropolíticas constituintes desses afetos e de suas
próprias “vontades” dimensionadas em suas escolhas e trajetos de vida, configurando o
cenário de escolha de Juan como cônjuge, mesmo sabendo das negociações que
precisaria enfrentar com as “autoridades”. Nesse sentido, ela relata essas conjunturas
enfatizando seu agenciamento na “negociação”, desencadeada por ela, inicialmente
quando diz ter empreendido esforços para conquistá-lo, “fazendo comida e levando por
homem”, “deixava cabelo bonito, bem lavado, ajudava a limpar as roupas dele”.
No decorrer desses jogos de sedução, ela e Juan diziam terem reciprocamente se
afeiçoado, mantendo esporádicos encontros, quando ela diz que com estas estratégias
foi “trazendo o inimigo para casa; lacei esse aí”. E usando-se da mediação de uma das
irmãs de sua mãe, que se comunicava à época melhor do que ela em português,
“passava recado de namoro”. Ela comentava que atuou “como os homens que vão
buscar peixe para alimentar os seus parentes. Eu fui atrás de marido para ter aliado
201

para mim e meus parentes”. Algo que nos permite ler suas estratégias de matrimônio
desde uma atuação no domínio masculino, sem que, com isso, afetasse os seus mais
recorrentes repertórios de capacidades femininas, senão, ao contrário, “mostrava para
ele que mulher daqui não é boba, sabe o que quer [risos]”.

2.2. Negociações

Mediante a disposição e intensões de Constância em desposar Juan, iniciou-se


entre eles, “um começo de namoro”, publicitaram as intenções e Juan descreve que logo que a
viu pela aldeia, circulando “bonita ao lado das primas, quis ela”. Tinha-se aí também o início
do processo de “negociação” entre ambos, que culminou na decisão dela em “aceitar ele”, e
na posterior empreitada de Juan para com os pais de sua pretendente. O “namoro”, que aqui
não tem apenas conotação de intercursos sexuais, como parece ter para outros interlocutores,
segundo a descrição de Constância, “enrolou [durou] tempo de espera para colher as
mandiocas”.121 Num primeiro momento, o vínculo e a possibilidade potencial de casamento
intencionada foram rejeitados pela parentela próxima de Constância, justificado pelo fato dele
ser “gente de fora”, vindo do “outro lado do rio”. Juan relata que insistiu, sabia que ela era
boa mulher. Nesse ínterim, Constância comenta que Juan tinha concorrência, ademais das
problemáticas ontológicas:
“Já tinha namorado por aí...já tinha meus homens. Um [deles] veio aí pedir
para papai, mas eu não queria ele não. Queria ver se me ajuntava com o
peruano. Briguei com papai, dizendo assim: “papai espera mais um pouco,
porque não quero esse homem aí”. (...) com esse Juan foi assim, dona. Eu
gostei dele. Eu contava pro papai, para convencer ele, bem assim: “esse
homem aí não faz mal pra ninguém não. Já passou esse tempo aí na aldeia;
está trabalhando bem aí para comunidade; sabe pescar, fazer roça. Homem
bom de trabalho. Já não tem ninguém aí pra casar comigo. Tem esse homem
aí, já mais velho; quero não”. Assim, foi, dona, ganhei a opinião do papai.
Estamos juntos assim todo esse tempo”.

O vínculo marital entre Constância e Juan, “sem papel e sem ser na Igreja da
aldeia”, foi efetivado em meados de 1999. O casal narra que as lideranças locais, à época,
“debateram” sobre a presença dele na aldeia, indagando se ele não seria mais um estrangeiro
que chegara ali para “explorar os indígenas”, usufruindo de seus espaços de roça e das

121
Algo aproximado de dez meses.
202

vantagens de um relativo isolamento, que o protegeria de outros estrangeiros de quem,


eventualmente, poderia estar em fuga. Juan sempre fez muita questão em contar-me que a
“negociação foi feita pelos homens chefes da aldeia”, que incluía, além do sogro, os caciques
e o pastor.
Nesse tempo, também essas mediações políticas envolveram no caso o
administrador do antigo Posto Indígena da FUNAI, responsável por aquela comunidade e hoje
desativado. Entre eles, os “chefes” e “autoridades” (parentais, políticas e religiosas) e o
estrangeiro, ficou decidido, então, que antes de liberarem a “autorização do casamento”,
desejado por ambas as partes “porque se gostavam”, Juan deveria “provar suas boas
intenções”, de modo que aqueles lhe impuseram certas condicionantes: 1) converter-se à
Igreja Batista que tem lugar ali, 2) fazer uma roça e 3) prestar “serviços de madeira”
[preparar madeira para a construções de novas casas, ou para a manutenção de outras]
gratuitos à comunidade.
A respeito, Juan relata: “preparei muita madeira”. Para ele, “o tempo de prova”
configurou-se como atividades não extemporâneas, senão como uma espécie de atualização
das “obrigações” prestadas pelo “noivo indígena” ao sogro e à família da mulher, dizendo
que “assim pensei, né, porque já tinha escutado por aí dos outros homens que, quando índios
querem casar, tem isso aí”. O casal relata, nessa mesma circunstância de diálogo, que mesmo
se desejassem à época do matrimônio casarem na Igreja da aldeia, não seria permitido. O
pastor local, também ticuna, naquele tempo “proibiu” o evento. Constância, bastante
descontraída com a conversa, dizia-me que subjacente a essa retórica política acerca dos
inimigos peruanos, escondia-se um critério moral vinculado à sexualidade enunciados ali,
informando que para ela fazia mais “parte do mundo dos brancos que seguem firme na
palavra da Bíblia” do que a ela, “uma índia do mato”.
O pastor batista lhe havia recomendado que o sexo, ao modo do que
conheceremos no capítulo posterior sobre um caso recente noutra localidade, reservava-se aos
fins reprodutivos, o que segundo ela foi descrito como “a feitura de grupo de parente”. Por
isso, segue ela, “o pastor falava melhor era casar como antigamente, sem isso de igreja,
porque seria mentir, já tinha virado mulher por aí [risos]”. E sobretudo, do ponto de vista de
Juan, essa reticência estava associada ao contraponto empregado no aconselhamento referente
à situação de “vergonha” na qual se encontrava a Anita, “mãe solteira, deixada por homem de
fora”. Para Constância “família não é só filhos, mulheres e homens namoram porque querem
se divertir, não só fazer filhos”. Este comentário foi pronunciado aos risos.
203

Numa outra situação de diálogo, desenrolada no caminho de deslocamento entre


sua comunidade e outra, quando estava de carona de canoa com Juan e os dois filhos mais
velhos do casal, um deles “já de namoro por aí”, o peruano contou-me sua “trajetória de
negociação”, sua passagem de “inimigo à parente ticunado”:
“Virei um parente ticunado, como dizem aqui depois um tempo de boa
convivência. Para eu poder ficar foi preciso negociar minha condição de peruano;
foram precisos uns dois anos de muito trabalho e de vivência com a família da
minha esposa para eles entenderem que eu não estava fugindo de nenhuma
confusão e que eu não queria roubar terras nem as madeiras deles e nem levar
embora pessoas da aldeia para trabalhar no tráfico de drogas. Nessa época, passava
muita canoa por aqui com drogas [cocaína]”.
“(...) para ajudar, ia ao culto. Precisei mostrar que, mesmo não tendo família, eu
era um homem de honra, de palavra. Eles não veem bem isso de estar por aí sem
família. Para eles é importante ter o pai, a mãe, os filhos e irmãos por perto, a
gente toda, os patcha [parentes] deles. Chegam a dizer que gente sozinha no
mundo é meio adoentada; sem pora (força boa), eles dizem no idioma deles. Isso ai
dos saberes deles, né. Diz que esse tal pora (força boa) tem nome de força, de
coragem, sabedoria”.
“(...) passou um tempo e eu casei com minha mulher. Nesse tempo inicial, eu já
aprendia um pouco da língua deles, mas era homem que não participa das decisões
da aldeia; não era chamado para reuniões importantes, ia porque me interessava e
porque queria ter meus filhos aqui, que iam usar escola e não era meu pensamento
deixar as coisas complicadas.122 Vai que depois, iam dizer que meus filhos com a
Constância não iam de usar dos benefícios que chegam na comunidade. Ela [a
esposa] ia, falava e depois me contava. Agora já vou, dou até opinião...tímido
assim, mas falo”.
Juan com essas narrativas nos insere no processo de aparentamento, que
paulatinamente, pela sua convivência e disposição o alternou de posições, alocando-o, ao
modo dos interlocutores ticuna nesse enredo, como um “parente ticunado”. Situação que
demonstra pelos mecanismos usados pelas “autoridades” e por Constância justapostos, em
imagens etnográficas de uma “predação familiarizante”, onde se apropriaram de algumas de


122
“Complicado” foi o adjetivo empregado por Juan para traduzir uma expressão que sua esposa usou, ao ouvi-lo
falar, qual seja: “tchama rü tauema tchamū”. Constância, dias depois dessa conversa, explicou-me melhor a
expressão, traduzindo-a “assim, Pati: eu não quero brigar com ninguém. Isso daí é bemzinho essas palavras no
ticuna”.
204

suas qualidades não apenas laborais, mas de caráter e afetivas, alterando simultaneamente aos
dois envolvidos. Vejamos mais de perto.

2.2.1. Tempo de prova

“O tempo de prova”, nessas condições em que ocorreram com Juan, parece por
em movimento um mecanismo de afinização predatória que garante, por meio da utilização
de discursos e práticas disciplinatórios, o controle criativo da diferença. Para isso, foi preciso,
simultaneamente que ele deixasse fazer “virar”, alterar-se. Para tanto, para adquirir condições
agentivas que o tornassem um “homem de confiança” entre os seus “aliados de casamento”,
adotou pontos de vista de homens ticuna, assumindo formas de socialidade similares àquelas
que realizam seus novos parentes.
Ao casar-se com Constância, construiu para ela uma casa, a levou para com ele
morar, e logo tiveram o seu primeiro filho. Algo similar ao que ocorrera com Plínio, no
capítulo II. O nascimento deste filho demonstrou certa estabilidade na relação de
conjugalidade, e Juan recebeu um clã transmitido por sua sogra, alocando-se no sistema de
parentesco como um “ticunado”, fabricado no casamento.
Juan, diferentemente de outros homens estrangeiros, não teve atribuído o clã de
boi, como parece ditar a normativa da transmissão nesses casos, e recebeu o clã da sogra, clã
de onça, o que o torna um primo cruzado, propício a casar com Constância, e tanto quanto se
tivesse recebido o clã de boi, que segundo ele, o deixaria “ficar mais parecido com eles, para
não perder a regra de casar entre gente do grupo das nações com pena e gente do grupo das
nações sem pena; assim é a cultura deles, e eu respeitei”. Voltarei doravante à questão da
atribuição do clã. Tal inserção como parente apenas foi possível depois de Juan ter, então,
nesse momento, encerrado a “fase mais dura” do “tempo de prova”, e dizer não se sentir
“mais vigiado”. Daí em diante, enquanto um afim reconhecido, suas “obrigações” e
“parcerias” restringiam-se ao seu grupo extenso, não mais à comunidade.
Estes processos de alteração de pontos de vista realizam-se na rotina da “
vivência”, do partilhar de registros comuns, não necessariamente havendo um apagamento
total dos antigos traços que marcavam a alteridade de Juan, mas estes, como dizia
Constância, foram “se ajuntando no jeito dele ser como homem ticuna”. Ele mesmo nos dizia
que para tornar-se um bom esposo naquele contexto era necessário “ser um homem como seus
cunhados”, ao que descrevia: “ter filhos, casa, roça, canoa, saber pescar”. Com efeito, seus
205

novos parentes perceberam o “jeito de homem maduro”, como diz sua esposa, apesar de ser
peruano, de ser do outro lado do rio.
Manteve, contudo, certos graus de distanciamento, como quando afirma, por
exemplo, “não acreditar nos feitiços”, e busca desfazer algumas interrogativas de que ele não
era “mandado por nenhum bruxo para fazer essas coisas” na comunidade. De acordo com
ele, o processo iniciado com o relacionamento com Constância, do momento do tempo de
prova e no período inicial do laço conjugal culminou na mudança de seu tratamento. Seus
afins “de primeiro”, o tratavam de “paisano” 123, passando, então a tratar-lhe de parente, “assim
em português mesmo: “o parente, o peruano; depois, os irmãos da minha mulher
começaram a me chamar de cunhado, de titio pelas crianças ou de “o fulano, esposo da
Constância”; ou falava assim, “o peruano, lá dos fulanos” [referindo-se ao sobrenome do
sogro, como muitas vezes é situado o grupo extenso].
Ele mesmo, por fim, relata-nos algo sobre os propósitos de tais dispositivos de
controle e das estruturas de poder neles inseridos, como uma analogia ritual, quando afirma
que:
“Tempo de prova é como uma festa de Moça Nova, que fazem para preparar
a moça jovem para vida de mulher adulta. Isso de tempo de provas e
casamento bem feito no jeito deles indígena legítimo, é assim o nosso tempo
de virar homens maduro”.
“Tempo de prova” é exposto por ele, interessantemente, como um momento
“ritual” de captura e transformação de seus atributos para que suas potências criativas sirvam
à (re) produção do interior, ao modo do que julguem eficientes seus gestores e consumidores.
Neste caso, “tempo de prova” deriva como passagem após a “oficialização” da intensão de
engajar-se no “compromisso”, e é posto em operacionalidade através de ações de poder
distribuídas, diferentemente, entre categorias de pessoas sociais, marcadas por geração,
gênero, etnia.
“Um jeito de amansar o inimigo” foi uma definição deste dispositivo de
transformação amplo e familiarizante descrito, certa vez, pelo ex-cacique da aldeia, na época
frente à “negociação de Juan”, hoje “um senhor ainda de opinião forte”. Ainda de acordo
com esta ex-figura de poder local, “o tempo de prova” tem duração não especificada,


123
Geralmente "paisano" na Amazônia transfronteiriça alude a pessoa indígena, de qualquer etnia.
Diferentemente do que na Colômbia refere-se aos “paisas”, pessoas da região de Caldas, centro ocidental do
país, na zona conhecida como cafeteira.
206

correspondendo “ao tempo necessário para conseguirmos ver se esse homem de fora tem
caráter; responsabilidades; se é de palavra”.124
Firmino, desde uma perspectiva acerca das socialidades “dos serviços do noivo”,
referidas por ele como domínios de agenciamentos “dos homens entre homens”, propõe que
“é o momento do parceiro mostrar, firmar o compromisso dele com a filha e com os parentes
dela”. Algumas dessas obrigações pós-casamento seriam: “sair para pescar se o noivo é
desses que sabe ir pro mato pegar anta; se é marido com estudo ou emprego de salário, melhor
ainda. De acordo com este gestor do parentesco, nesse tempo inicial do casamento, estes
aliados vão fazer roça deles, pedem ajuri [trabalho coletivo para abrir uma roça, fazer uma
casa]”. Decorrido o primeiro ano da união marital, se o casal tem filhos, se vão para casa
deles, caso ainda não a tiverem. E o mesmo senhor dimensiona as transformações sociais
mais recentes nestas dinâmicas, informando que com o acesso às fontes de renda e aos
benefícios diversos “fica até mais fácil conseguir fazer casa logo”, acrescendo que a
obrigação do genro é estendida, de igual modo, à nora, porque é “respeito à política, ao jeito
de parente da pessoa com quem casou”.
Ao direcionar aos irmãos de Constância essas perguntas sobre como tratavam o
cunhado estrangeiro – se também o viam como ex-inimigo, os sentidos desta relação de
aliança e os termos dela derivado neste contexto – o enunciado do mais velho deles, atual
vice-capitão da aldeia, destaca que
“No início, diz[ia] para ele só assim o paisano. Aí ganhou confiança, e
falamos agora tcha’ané [cunhado, literalmente, esposo da minha irmã]. Assim
foi. O meu cunhado, o aliado que vem com minha irmã. Isso é o que significa
chamar ele de tcha’ané. Aí se ele fosse ticuna de verdade, e morasse aqui na
comunidade, e se fosse da mesma família [extensa], assim como diz que era
no tempo de maloca, ia dizer para ele amacü.125 Assim aliado de perto, que se
conhece bem. Esse aí, não, chegou sozinho. Esse homem não tinha nada além
do seu trabalho na madeira para negociar com o casamento de minha irmã.
Nem trouxe mulher para aldeia para casar com outros de minha família, nem
irmão, nem primo para se juntar aqui. Aí, o tempo de prova foi bem duro
mesmo”.


124 López Gárces (2000: 158) descreve e analisa casos similares ocorridos no seio de uma comunidade ticuna na
Colômbia de situações de negociações realizadas pelas autoridades locais com grupos não indígenas “recien
llegados”. Com base nisso, se pontua “como os Ticuna estabelecem e controlam as alianças” com pessoas de
fora “através de normas sociais tendentes à ‘ticunalização’ dos membros estrangeiros”.
125
Tal termo de tratamento, como já apresentado no capítulo II, cunha-se em casos de uniões maritais realizadas
dentro de um mesmo nexo endogâmico, sem distinção de sexo aos irmãos do cônjuge, onde, literalmente, o
termo de relação traduz aliado (a-), esposa (-mâ), nominalizador (cü/kü), a- raiz comum aos afins.
207

“Tempo de prova” e o “casamento” são aqui também momentos e operadores


estabilizantes da diferença e da alteridade. São, pois, relações que produzem outras relações.
Isto é, os jeitos assemelhados ou díspares de interagir-se manifesto nos modos como pessoas
se afetam umas às outras, o que talvez seja estendido ao entendimento deles a propósito do
parentesco.

2.3. Efeitos
(“ã'caítchi”, transformar-se em bons parentes)

Os quatro filhos são “sabedores de línguas”: dominam o idioma nativo, o
português e o espanhol. Fato que o casamento com Juan, segundo Constância, proporcionou a
eles, como um diferencial: “se precisarem sair daqui eles saberão se virar bem. Já tem assim
o diferente, né? Para ficar nesses dois mundos aí, de aldeia e civilizado”. Um exemplo de
apropriação política engajada pelo grupo doméstico das potencialidades do ex-inimigo.
Constância e Juan esforçam-se no estímulo para que os filhos, desde tenras
idades, os acompanhassem nas atividades de roça e pescaria, respeitando os domínios de
gênero ali concebidos. A pequena de oito anos, cuida das rotinas domésticas sem
complicação, da casa da mãe, das casas das tias bem como da roça, quando preciso. Seus
irmãos pescam, treinam tiros de espingardas, participam já das reuniões, dos trabalhos
coletivos. Ademais, todos na casa estudam ou estudaram, incluindo o casal, que no final do
tempo de campo ansiavam pela formatura no curso de alfabetização de jovens e adultos [EJA]
que frequentavam, em turnos alternados na escola local.
O cuidado, as práticas de convivialidade e comensalidade que envolvem essas
dinâmicas cotidianas que empreendem Juan e sua família, “mesclando”, como ele diz, “jeitos
de criar os filhos”, anunciam-se como técnicas de elaboração do próprio parentesco. Nesse
sentido, o casal se produz enquanto parente, enquanto esposo e esposa, pais, tios, cunhados e
assim por diante, através de práticas sobre o corpo com vistas a satisfazer certas expectativas
políticas, intercomunicando interior e exterior de socialidade por meio das “vontades de
estarem juntos”. E sobremaneira, nesse processo, afetos são objetos de manipulação
continuada (Pérez Gil, 2015126), que se moldam de acordo igualmente com as “vontades deles
[dos filhos] de crescerem na vida”. Essas modificações servem, a um só tempo, ao casal
enquanto signos de prestígios valorizados, revelando seus atributos de “bom esposo” e “boa

126
Refiro-me aqui à fala da etnóloga em 9 março de 2015, na ocasião de uma exposição feita no PPGAS/USP,
intitulada “Os cheiros que enamoram: sobre como os afetos são modelados entre os Yaminawa (Amazônia
peruana) ”.
208

esposa”. Não decepcionando, desse modo, as expectativas de seus parentes em relação aos
efeitos de tal laço conjugal.
Nessa equação, tornam-se nessa interseção de interesses e afetos, “bons parentes”.
Seus filhos, por sua vez, foram sempre a mim descritos por outros conterrâneos como “bons
partidos”, como me disse certa vez uma senhora, cuja filha de quinze anos estava buscando
“namoro” com o filho mais velho do casal: “esse moço não passa tempo de prova como o pai
fez”. Por isso, afirma Constância, mediante a informação que eu lhe transmitia: “me esforço
para [que] meus filhos sejam assim, saibam daqui da nossa cultura e como lidar com o que
tá lá fora, para que consigam bons parceiros e aliados no futuro”.

2.3.1. Fazendo inveja nas parentas

Juntos, o casal possui uma casa grande construída por Juan, “en madera de la
buena, con color bonita”. São três cômodos de dormir, um do casal, outro reservado aos dois
infantes e um outro separado para os mais dois filhos jovens e solteiros; uma cozinha ampla
onde se abriga o freezer, no qual Constância, por vezes, comparte espaço para armazenar
peixes com suas irmãs, ou por meio do qual ela pode lhes oferecer água fria quando passam
por sua casa; ali o casal tem ainda o “fogão para cozinhar a comida do peruano”; a sala, com
televisor, aparelho de DVD, é preenchida por redes tecidas de tucum e fios de plásticos
coloridos reciclados de sacolas trazidas da cidade. É o lugar preferido para os encontros da
rede de parentela extensa do casal, reunindo sete unidades residências. A família tem também
“caixas d´água grandes” para que não falte água no tempo de estiagem, diz Juan, orgulhoso.
O casal possui ainda duas canoas, “uma pequena de pesca outra de passeio e um motor de
15hp, motosserra”. E Constância não dispensa nesse relatório das feitorias familiar a
existência uma roça farta e “bons terçados”.
Tudo isso gera um capital social e econômico diferenciado, cujos aspectos
simbólicos e materiais despertam “sentimentos” de inveja (“ãŭatchi”) e ciúmes (“we’e”) em
outrem, ao mesmo tempo legitimam valores inerentes às expectativas dos parentes próximos e
da comunidade, no que tange ao desempenho do casal, como “bons parentes”. Constância,
certa vez, explicara-me que “bons parentes”, de seu ponto de vista, eram aqueles que
“trabalham para ter vida tranquila e manter a comunidade segura”. No rastro deste
pensamento, ela deixa escapar que um “bom parente é aquele que sabe dividir o que tem”,
sabe compartilhar as “coisas e sentimentos bons” com os seus. E exclama, já mais enfática e
segura, em seu “português ensinado pelo marido [como o castelhano, que ela também
209

maneja], motivos que poderiam desencadear “invejas nas parentas de comunidade”, atrelados
às boas condições de vida que possui, explicando as dinâmicas no que se alarga também ao
seu grupo extenso composto de outras mulheres que “eram fracas”, no sentido de estarem em
momentos antes do matrimônio, como ela, em situações de solteirices, e tornaram-se “gente
forte, que ajuda a família e não dependem das roças dos pais, como elas”.
Situa-se nesse enredo ao informar, especificamente, a intersecção entre afeto e
ajudas econômicas de seu esposo, quando diz ter tido “sorte” que o “tempo de prova trouxe
esse homem pro lado dos parentes”. O que além da independência econômica que apresenta
perante outras mulheres “que cassaram errado com parente que não é bom marido”, hoje ela
vive da roça, “com ajuda dos trabalhos do esposo” que “laçou” e que a “ajuda”.
Esse critério adicional associado aos “sentimentos ruins” acima referidos foi
descrito por Constância como estando associado às habilidades laborais de Juan, cujo mais
saliente efeito são as “melhorias de vida” por ela conquistadas em conjunto ao “esposo
perigoso”. Fenômeno que está atrelado às “fofocas”, que trazem a ela notícias versando sobre
rumores de “mulheres ciumentas, parentas de perto e de longe” que, por “inveja”, já
engendraram “feitiços” ou maquinavam fazê-los (ou melhor, “encomendá-los” aos agentes
competentes, os feiticeiros).127
Segundo Constância, essas ações contra ela e o marido, justificavam-se
produtivamente, à medida que a condição de ambiguidade inimiga transforma o casal em
campos de ação de agências de outrem, que simbolizam “sentimentos que têm a ver com eu
ter conseguido dar a volta [“virar”, alterar/transformar-se] ser boa esposa”, corroborando sua
posição e estatuto de “mulher madura” e os efeitos positivos de sua aliança. E, neste sentido,
ela aponta um relevante contexto para pensarmos o modo pelo qual se desenrolou as
passagens entre seu status e estatuto de “mulher fraca para casar e fazer vergonha na
família”, já que estava “passada” da idade, para o patamar de “mulher boa para casar e uma
boa esposa”.


127
Um dos capítulos inicialmente planejado ficou de fora da tese. Ele, em especial, era intitulado “Mulheres
ciumentas, feitiços e casamentos”. Ele visava tratar de algumas dessas notícias que engendram ideias de
feitiçaria provocadas por ciúmes de mulheres, casadas e solteiras, mencionadas por Constância e Anita. Nele
também visava-se esboçar análises incipientes das implicações da inserção da modalidade “casamento no papel”,
referindo-se ao documento de Certidão de Casamento, como estratégica empregada por mulheres para evitar as
afetações de feitiçarias, entendendo-se que tal objeto, sendo do mundo dos brancos, impede a ação deletéria. É
comum que entre os Ticuna, diga-se que “brancos” ou não indígenas não são vítimas potenciais de atos de
feitiçarias dado “os temperos” [condimentos como cebola, alho] por eles usados na alimentação.
210

3. “Morando com o inimigo”


Anita e Pablo
(“o casal que não vira bom parente junto”)

3.1. Relações

Conheci Pablo antes de Anita, a quem eu muito raramente via pela comunidade. A
casa do casal (ver foto anexo Item I) alojava-se numa extremidade da comunidade mais
afastada de onde eu residia. Sabia de sua localização, contudo, pela recorrente indicação, dada
enquanto eu exercitava as cartografias das redes das famílias extensas da aldeia, quando a
indicavam como “lá nesse grupo do falecido Fulano, lá está o paisano, casado com a ex
velha-solteira”.
Pablo, também peruano e não indígena, nascido na região de Loreto, chegou à
aldeia há cerca de 5 anos. Pablo conhecia Juan, a quem trata como “mi primo”, de alguns
trabalhos feitos, há muitos anos atrás, “na madeira”, em alguma cidade colombiana. De
passagem por Letícia, Juan o reencontra por acaso. Pablo, a convite de Juan, desce o rio e vai
passar um tempo na comunidade deste. Juan o apresenta como “visita” ao “capitão”,
responsabilizando-se por qualquer eventualidade. Pablo, de porte baixo, magro, feição calma,
cabelos bem curtos e já grisalhos, é regatão, “marreteiro”, rótulo local para um comerciante
itinerante fluvial. Ocupa-se com vendas de mercadorias diversas, artigos de vestuário, cama e
banho, calçados e utensílios domésticos. Tudo é trazido por ele de Iquitos, no Peru, adquirido
a baixo custo e revendido nas comunidades indígenas do “beiradão”. Como regatão ele faz
uma renda mensal de aproximadamente dois mil reais, um valor bastante alto se comparado
com a renda média das famílias da aldeia.
Ademais destas atividades laborais, Pablo é um notável “tratador de madeira”,
como descreveu-me o cacique da aldeia. Usando-se de tal habilidade, ele, como fora Juan no
tempo de sua chegada, angariou espaços de serviços de carpintaria para a comunidade.
Justamente por esse posto, eu o conheci por intermédio do cacique e de um professor, por
ocasião de uns reparos que iriámos fazer. Aprendia nesse momento, que tudo que fosse de uso
coletivo, reparos na escola ou na igreja, por exemplo, Pablo tinha como “obrigação” auxiliar
sem “cobrar”, palavras também da figura de chefia local. O que ele, passivamente ao escutar,
retruca: “así es, Patricia, está bien. Aquí yo trabajo para ellos, soy el carpintero sin sueldo.
Soy yo el esposo en el momento de la prueba. ¿No cierto, capitão?”
Numa das primeiras conversas que tecemos, Pablo explicou-me seu trajeto de
chegada, afirmando que “y así fue. Llegué a visitar Juan. Y pronto, una mujer me ha cazado
211

[risos]”. Com uma trajetória similar à de Pablo, desde muito cedo, saiu de casa para trabalhar
e segundo estes diálogos que tivemos, ele conta:
“Um homem tem seu trabalho, sua casa e sua família. Ai já é um homem
de honra. Minha família era muito pobre, numa região do Peru onde não
tem muito trabalho, lá vivia-se da terra. Minha mãe se foi cedo, deixou
eu e mais irmãos. Quando isso aconteceu, eu saí para mundo. Fui fazer
minha vida. Assim se deve fazer, buscar suas coisas, seu trabalho. Passei
por muitos lugares, trabalhando muito. Assim se passou comigo. Tive
muitas mulheres, uma depois da outra, quando jovem. Alimentava a
todas. Já tenho dez filhos, junto com esses dois que tenho aqui. Uns já
são homens feitos com as famílias deles por aí. Já faz um ano que não
escuto a voz de meu filho que mora em Iquitos. Perdi o telefone dele.
Antes, quando eu ia por lá, eu ia de visita nele, levava presentes para ele
e para meus netos. Agora não sei de ninguém. Família mesmo só essa
aqui. Aqui na aldeia, eles dizem que fazer filho por aí e fugir não é
família. Vai ver é por isso que a Anita foi mal falada aqui antes de eu
chegar, tava com filho de outro homem, que não quis mais ela. (...) andei
muito antes de chegar aqui. Passei por essas comunidades aqui nos
igarapés. Casei três anos nessa daí, atravessando o igarapé lá do outro
lado. Deixei três filhos lá. Saí para trabalhar por uns dez dias, fui buscar
mercadorias e vim baixando o rio vendendo para chegar lá com dinheiro.
A mulher era ciumenta, não entendia que eu saia por aí para vender e
trabalhar. Voltei e ela me mandou embora. (…) saí sem nada. Ela tinha
me trocado por um homem de lá, índio de lá. Deixei uma casa para ela,
casa grande, de madeira, cimento e teto de zinco. Ainda passo por lá para
deixar coisas para ela e para as crianças. (…) vou, sim. Porque senão o
pessoal de lá vem aqui me procurar. (…) eles não gostam de paisanos por
lá; é como aqui, desconfiam muito. Por isso ela me deixou, achou que
não voltava. (…) eu era mesmo de mulher. Agora já parei, já estou velho.
Quem vai querer um homem acabado como eu? Cheguei aqui e fiquei na
casa do meu compadre, mi primo, como estou te contando. Passou uns
meses e vieram falar comigo. (...) eu trabalhava aí no mato, tirando
madeira para o pessoal aqui e vendendo mercadorias. Aqui o pessoal
paga bem, não fica devendo. (...) é bom. Aqui é bom. Confio nesses
ticuna, daqui. Me deixam aí de lá, de olho, mas levo vida bem. É
tranquilo. Perto de outras comunidades e não tão longe da cidade”.
212

Aí estavam Anita e Pablo, cada qual nas suas situações e expectativas em relação
à conjugalidade. Usando-me do pretexto dos reparos numa casa de festa na comunidade,
passei a ir na casa de Pablo, sem que terceiros advertissem-me do contrário. Afinal, como
dizia um de meus amigos hospedeiros nesta comunidade: “não vai se meter com essa gente de
desconfiança, patcha”. A convite de Pablo, paulatinamente, ia de visita à casa para comer e
prosear, muitas vezes acompanhada de Juan e seus filhos menores. Nestas ocasiões, Anita,
que nos preparava sempre deliciosos ensopados de frango, com arroz e legumes, pouco ou
quase nada falava comigo, mesmo quando eu tentava conversar em ticuna. Ela disse-me,
numa dessas visitas, quando me perguntava se eu queria farinha e peixe como ela, que aprecia
mais desse caldo com farinha, ao contrário de seu esposo, que a qualifica como “comida de
índio”.
Eu sabia que ela havia passado um tempo fora morando em uma comunidade
ticuna um pouco mais próxima à cidade, quando mais jovem. Sabia ainda que ela aprendera o
português, “mas nada roça, ” como já me havia dito sua mãe, conhecida pelo exímio cuidado
que rende ao seu espaço de roça, o título de “roça das boas, grande e bonita”. Num dia, por
sorte mais do que por planejamento, passei na casa do casal para deixar uma melancia que
levava em agradecimento a ela por um almoço dias antes, e a encontrei sozinha com as
crianças.
Nessa ocasião, Anita pediu-me auxílio para o preparo de um “frango
guisado”,128 conseguindo com ela conversar um momento mais largo, sem a mediação de
Pablo. Apertadas na pequena cozinha improvisada na casa de madeira em construção,
tecíamos, no entorno do fogão a gás, diálogos sobre a vida e a rotina na aldeia, um pouco
em ticuna, um pouco em portunhol, que ela dizia estar aprendendo com o esposo, e em
português. Ela dizia que à época em que Pablo chegara na aldeia ela estava sozinha, já um
“pouco velha [vinte de sete anos] e com filho de rua”, entendido ali como um filho cujo pai,
ticuna ou não indígena, não o assume, conotando uma situação não muito bem qualificada à
mulher. Ela segue discorrendo que a chegada de Pablo foi “importante”, a “ajudou a
melhor de vida. ”
“Ele veio aí me procurar e casou e me ajudou a ter casa, essas coisas aqui.
Fez mais filho e cria essa maior [mais velha] (...) me cuida, me ajuda. É
bom. (…) mamãe diz que tá bom, que ele me cuida. Me fez mulher casável
de novo, limpou a honra da família. Cuida dos pequenos. (…) é bom, sim.
Antes não tinha marido aqui para ajuntar. Nadie me llevó. Estava sola, la

128
Algo similar a um ensopado de frango.
213

mujer. Essa filha maior é da cidade, de rua. (...) Não é de pai ticuna. Foi no
tempo em que fui estudar na cidade e morava na aldeia perto, na casa de uns
parentes. Só que yo ni estudie nada, nada. (...) com o Pablo agora já é vida
melhor que [minha] irmã. Ela vive só da roça, de trabalho duro, duro. Ela
diz que eu consegui me arrumar bem. Tem inveja essa daí. Essa é minha
história. Fui mulher sem marido e sem honra; de vergonha, ã’në, como diz
aqui, para família fiz isso. Virei dessas [mulheres/esposas] que têm vida
boa”.

Diferentemente de sua prima Constância, Anita teve, como muitas outras


mulheres e homens de sua comunidade e de sua geração, a oportunidade de ir à cidade
estudar, antes de ter escola por ali. Ela morou por quase dez anos numa cidade ali mesmo da
região, realizando quase que diariamente o trânsito entre a aldeia, na qual morava com seus
parentes hospedeiros, e o centro da cidade, onde se localizava a escola que pretendia
frequentar, mas depois do dia de matrícula, nunca mais regressou à instituição educacional.
Nesse ínterim, ela diz que não “aprendeu bem” tarefas da rotina cotidiana na comunidade,
tampouco a lidar com o “mundo dos civilizados”. Explica que passeava muito com seus
primos, e que por isso, não estudou quase nada, aprendeu um pouco do português e pensava
em “pegar marido branco para não voltar” à comunidade. Entretanto, diz que “gostou” de
homem que não a queria, “era só de namoro, bagunçou” com ela, e foi de quem “peguei
filho”.
Desprovida de certos atributos que lhe lançariam como uma pretendente potencial
ao voltar à comunidade, Anita, retorna na condição de mãe solteira, “com diploma”
(gestante), segundo comentário crítico e jocoso de seu irmão mais velho. Situação que se
constitui um dos possíveis “crimes” “contra a honra da família” neste contexto. Ela disse-me
que ao retornar, os homens desposáveis por quem se interessava ignoravam-na, exclamando
que “parece que tinha medo de mulher que vinha da cidade esses daí”. E situa-se na própria
rotina das socialidades local: “nem adiantava isso de saber de fora. Aqui é lugar de roça. Eu
bem fujo disso daí, queria vida não dura de mulher ticuna”. Essa configuração, segundo
relata ela e sua parentela consanguínea, alocaram-na como mulher “velha, solteira”. Era,
nestas circunstâncias, portanto, pouco provável que algum jovem “bom partido” a desejasse
como esposa.
O frango já estava pronto, à espera do retorno de Pablo, que havia ido à
comunidade ali perto vender mercadorias. Anita vai finalizando a conversa dizendo que ia
214

descer ao igarapé para banhar as crianças e preparar-se para esperar o esposo. Saindo da
casinha a caminho ao igarapé, ela ressalta, num portunhol tímido algo sobre o desfecho de
seu matrimônio: “Mi marido, es el hombre que me ayudó a ser mujer de respeito, esse é mi
Pablo”. Aconselha-me, na sequência, a usar das mesmas estratégias suas: “a senhora tem que
pegar marido bom assim na cidade, para cuidar da senhora”. E acresce sorrindo, com as
crianças a tiracolo e uma bacia na cabeça com louça suja: “foi melhor assim, dona. Melhor
que me ajuntar arranjada por papai. Esse homem eu escolhi”.

3.2. Negociações

Dias depois, visitei Anita, já menos tímida, quando ela me conta, um dos motivos,
“das vontades” de querer casar-se com Pablo e mobilizar-se para isso: “ele não é homem
bonito, já tá velho esse daí. Mas trabalha duro esse homem. Sabe das coisas de mulher da
cidade, de trabalho”. Essa colocação, nada fortuita, foi emitida após ouvirmos sua mãe dizer
que melhor era “casar com estes homens de fora, do que casar com primo errado”. Aquele,
ao menos, dizia-me a senhora no seu precário português, porém claro e propositivo: “vem
com mercadorias esses daí dona moça. Homem de fora é dessa gente do corpo fechado ao
feitiço, pega amante não [risos]”.
Na primeira opção, na convicção ainda desta sogra, abrandava-se os ataques dos
já referidos “bichos da floresta” (Yereu) que atormentam, causando “visões” e eventualmente
mortes. De acordo com Anita e outras mulheres dessa comunidade e das demais onde se
realizou a pesquisa, há um certo consenso de que os “homens de fora”, são menos “ciumentos
(nuwe’e)”, do que os homens ticuna. Por isso, Anita dizia que Pablo, ao entender dos
“namoros das mulheres da cidade”, tornava-se mais flexível às ocasionais relações
extraconjugais dela,
“Namoro de índio é assim, tem compromisso mas tem yetaï [intercursos
sexuais sem compromisso] por aí. Ele não faz briga de ciúmes, nem eu tenho
disso de feitiço pra esse homem. Ninguém aqui quer ele. É gente de fora”.
Contudo, mãe e filha apresentam outras características não bem qualificadas,
usualmente endereçadas aos cônjuges estrangeiros: “o gosto pela cachaça, e a não divisão
das coisas com os parentes, só com a mulher”. 129 Com efeito, segue Anita, “esses
casamentos errados, de um jeito ou de outro, faz perigo”. A mãe de Anita, por sua vez,


129
Em algum momento do campo, com outras interlocuções, aprendi que em ticuna o verbo equivalente a
sovinar seria “uaü”.
215

refletindo acerca destas mesmas proposições, nos diz que “os dois [tipos de uniões conjugais,
womãtchi e com “gente de fora”] fazem fofocas, deixam famílias com a honra e respeito
estragado, diz que”. Ainda assim, tudo tem seu “lado das vantagens”, prossegue a senhora,
que falava bem português:
“A mulherada como minha filha, que estava passada já do tempo de se
ajuntar, tinha filho já de pai de rua. Essa filha minha se virou bem com esse
peruano aí. Agora tem ele de mostrar que tem jeito de confiança. Num vai
deixar essa daí, assim, sozinha sem cuidado. Já fez, disse que, compromisso.
A prima dela, do outro lado da aldeia, não fez diferente. Aproveitou que
ninguém queria mulher velha e sozinha, se ajuntou o com o homem de fora
também. Arrumaram a vida. E os maridos perigosos ficaram na pressão, diz
que. (...) A gente faz dessas piadas, “filha casada com primo errado é triste,
filha velha casada com peruano das mercadorias é bom, mas é ruim, de perigo
do pensamento dele, isso daí [pensamento] é de outro jeito. Se essa daí fosse
de caça, tinha pego jacaré dos grandes essa daí, a minha filha. Pegou foi
homem errado, mas que tem mercadoria”.
Do ponto de vista de Pablo, as negociações de suas condições a pretendente de
cônjuge e aliado estrangeiro apenas foram oportunizadas porque Anita, a quem
carinhosamente trata por “sua Morena”, encontrava-se em situação que não se fariam muita
“negociação” e intervenções contra tal união, contando com a mediação de Juan e Constância
para tanto. Pablo a admira, e fala de Anita usando-se dos adjetivos como “mulher boa,
trabalhadeira e bonita, fala bem português”, e estava aprendendo com ele o castellano. Ele
do contrário, não aprendeu nada e tampouco parecia fazer questão de aprender a língua
indígena, justificando que ali naquela comunidade ele não tinha um circuito de relação muito
amplo, e que, quando não estava trabalhando, ficava na sua “casita”, na sua lida com as
madeiras, evitando-se “meter com a família da esposa”. Sobre tal distanciamento provocado,
ele comentava que bastava os “capitães cuidando. Mas pro amor a língua não atrapalha
[risos]”.
Nestas tramas contextuais foi que se iniciou o relacionamento conjugal entre
Pablo e Anita. Não destoante do que já vimos ter ocorrido com Juan, esse vínculo desde seu
início foi rejeitado pela família de Anita, tanto quanto pela ala das lideranças locais à época
desse evento, para seu desalento e expectativa de que escaparia aos “tempos de prova”. Pablo
conta que depois de alguns meses na comunidade, trabalhando de auxiliar de Juan, e já
sabendo das condições de sua atual esposa, das hostilidades direcionadas à sua presença, e de
216

acordo comum com ela, foi buscar a mãe da pretendida para tratar do casamento, posto que
seu pai havia falecido pouco tempo antes. Ele comenta que Anita já o havia “caçado”.
Ele conta que logo a relação entre eles estava publicitada, e que iam juntos ao
jogo de futebol, que passeavam na sua canoa, quando então, ele foi falar com a família dela
que a queria para casar. Depois de algumas negativas e dele estar já por desistir, foi ela quem
o procurou, dizendo que queria casar, pois lá já não havia marido para ela. Organizaram-se e
falaram com o cacique, que, após a “liberação” da família de Anita, o propôs o “tempo de
prova”, o “serviço do noivo”, dizia ele.
Neste caso, as tarefas delegadas consistiam em tirar madeira e ajudar na
construção de umas casas, sem ser pago. E ele, sem chance de recusa, pois se o fizesse teria
provavelmente que ir embora, o cumpriu por alguns meses, antes de levar Anita para morar
com ele, na casa que havia feito. Ademais das “obrigações” para com a comunidade, mediada
pelas “autoridades”, Pablo contou que o proibiram de beber, e que quando desejava fazê-lo
era precisa ir à cidade.
Bastante diferente do cotidiano de Juan em relação ao convívio com sua
parentela, Pablo não sucumbiu (totalmente) aos processos de transformação que lhe
impuseram os locais, “casei bem aqui, dona. La quiero mucho a mi mujer. Pero así ticuna,
no. No me voy a convertir indígena”.
Com intuito similar àquele de quando foram realizadas conversas com os irmãos
de Constância, entre a rede de Anita busquei alarga-las a outras relações nessa trama das
microspolíticas de vivência e gerência da alteridade. Intentava, assim, ver também neste
terreno de relações como mecanismos sociopolíticos imprimem, a partir de uma lógica ticuna,
sobre os corpos e relacionamentos “jeitos” de fazer-se casável, parentes ou inimigos. Um dos
três irmãos mais velhos de Anita comenta:
“Este paisano não é ainda parente de perto. Falta assim confiança ainda. Falta
tempo. Se isso for, posso dizer tcha’ané (cunhado, aliado) para ele. Esse aí
não se diz parente de verdade. Parece assim que ele resiste. Por isso o tempo
de prova desse daí é mais longo”.
Aqui, os cunhados simbólicos faziam menção à negativa de Pablo de inserir-se
nas dinâmicas rotineiras que envolvem a rede e parentela da esposa, especificamente ligado
aos momentos de alimentação, quando segundo eles “a gente faz ficar forte o corpo, o pora
da pessoa cresce. Se faz parente, vive junto. E [Pablo] só come a comida da gente dele, não
farinha. Não pesca, traz só frango. E panelas”. E o mesmo interlocutor encerra a proposição
mencionando os efeitos desses elementos no decorrer das “negociações” enquanto uma
217

estratégia de resultado para ambos os lados, qualificando Pablo como “esperto”, porque
“conquistava mansinho” sua irmã, potencializando suas mobilidades sociais no interior da
organização da comunidade, possibilitando a ela novas condições para tornar-se “mulher
madura, de respeito”.
Contudo o irmão de Anita aponta uma assimetria política importante,
explicitando as relações de poder entre os homens, marcando a condição delicada de Pablo
nas redes de aliança masculinas, dentro das quais, segue sendo “vigiado”:
“O paisano aí, dá presente, traz comida, faz filho nela para ela crescer,
virar madura. Com os cunhados, nada de nada. Esse paisano aí sabe que
estamos de olho. Aliado é para virar parente, se não nem fica. Se veio aqui
só pegar mulher, não dá. Está nesse de tempo de prova, trabalhando para
mostrar que sabe ser cunhado. (...) não diz ele que não quer virar ticuna. Aí
nós ficamos de olho nele. Vem sozinho no mundo e não quer ajudar, não,
aqui a lei do ticuna é outra. ”
Em relação às modalidades econômicas e de trabalho que permeiam as estruturas
simbólicas da aliança envoltas nas relações internas ao matrimônio, as dívidas e os
“presentes”, agrados e cortejos entre Pablo e Anita não me pareceram ser um problema
político. Contudo, torna-se um quando visto desde as redes paralelas de parentela,
notadamente com os irmãos de Anita, cujas trocas mínimas não são atualizadas: “não roça,
não trouxe parentas dele para casar aqui, não tem irmão para pescar com gente, nem não
empresta a motosserra.130”

3.3. Efeitos
(“bom marido, mas não parente”)

“Meu Pablo é bom marido, mas não parente de verdade”. Tal assertiva foi-me
dita por Anita, ao caracterizar a situação social de seu esposo peruano nas dinâmicas
internas das micropolíticas de parentesco em sua aldeia. Ela explica a primeira parte da
afirmativa, referindo-se a uma série de cuidados que Pablo dispensa para com ela e seus
filhos, material e afetivamente. O casal tem uma vida confortável. Uma casa de madeira
simples, pequena com poucos cômodos. Ainda em construção, a “casita” é edificada,
pouco a pouco, por Pablo, na labuta solitária, porque não possui prerrogativas de cunhado


130
Ver no apêndice uma nota de campo articulando a imagem da motosserra como atributo pejorativo da
desconfiança em relação aos peruanos.
218

ou parente para solicitar e merecer auxílio, de acordo com o que foi descrito acima. O
casal tem canoa e um motor 12hpm; fogão a gás, geladeira, conta de energia elétrica
sempre paga em dia. Desde o ponto de vista de Anita, “esse marido ajuda, dona. Marido
bom esse que cuida e ajuda”.
“Ajuda” indica aqui uma questão de “melhoria de vida”, operacionalizada pelo
vínculo matrimonial de Anita com o Pablo, o que o faz um “bom marido” e a ela uma
mulher que distingue-se das demais parentas pelos modos de vida afastados da rotina da
roça, que a ela não agrada, sem que com isso não lhe falte alimentos, pelo contrário, torna-
se consumidora junto com os filhos de outros produtos a que suas parentas têm acesso
mais restrito (frango, arroz, verduras, iogurtes, roupas, utensílios domésticos).
Anita, de forma similar às passagens realizadas por sua prima Constância,
também viabilizada pela união matrimonial com um estrangeiro “de não confiança”,
reverteu sua situação de baixo status na aldeia. Pablo assumiu o “filho de rua”. E mais um
está criando com Anita, cumprindo o seu ofício de “bom esposo”, rendendo-lhe o atributo
de cuidador. Esta condição entrelaça-se fortemente com o sentido de “vergonha” que tem
impresso na condição de “solteirice” desprivilegiada que Anita assumia na aldeia, antes da
contração desse laço conjugal. Isso, com efeito, resultou na superação de sua condição de
desamparo, que, desde a perspectiva das socialidades no interior do domínio das relações
entre as mulheres de sua rede consanguínea, culmina no que ela relata “ser a volta por
cima, a mudança na vida”; “agora mulherada está de ciúmes não dele, porque é homem
de fora, velho e feio; parenta tem vontade de minhas coisas tudo direitinho, eu não
preciso ir pra roça”. A ex-“velha solteira”, com o “casamento errado”, gerou, desse
modo, espaços de contra-afecções, que ao largo das opiniões masculinas, legitimam as
eficácias morais dessa união.
Para refletir futuramente acerca do efeito positivo e gerativo de mudança de
seus status e estatuto vinculados às “ajudas” econômicas provindas de Pablo, também por
Juan, na intersecção com as dimensões dos afetos envolvidos nessas relações de
parentesco e alianças matrimoniais, uma possibilidade de diálogos paralelo ao campo da
etnologia americanista coloca-se no horizonte das análises de Piscitelli (2011 a, b), ao
refletir sobra a dimensão política da “ajuda”, para pensar sobre as agências e os
instrumentos de poder que estas mulheres ticuna mobilizam na aquisição de seus vínculos
maritais com estes “homens de fora”. Neste sentido, o “amor provedor” vinculado à ideia
do casamento em Piscitelli aparece aqui, em outras dinâmicas relacionais e contextos
bastante diferenciados, como uma modalidade/estilo de afeto. Isso porque as imbricações
219

de relações pessoais e íntimas com a esfera da política local, através do fluxo de pessoas
que circulam nos espaços de vivência indígena (e de indígenas que circulam nos espaços
citadinos), têm sido produzidas na articulação entre demandas e repertórios culturais
distintos.

3.3.1. Provedor, mas não parente

Se no âmbito das relações entre as mulheres, Anita mobiliza seu estatuto de


pessoa, já notamos que há, no circuito de socialidades masculinas, contudo, dinâmicas
políticas que seguem por alocar Pablo como um não “parente ticunado”, o que gera à
Anita reações de rechaços por ela caracterizadas como “vergonha”, associadas aqui a
certas restrições de circulação, deixando sua casa afastada das demais, porque, de acordo
com seus irmãos e “autoridades” da comunidade, o tal peruano, já vimos, não é bem
quisto, devido às lacunas de confiança que gera ao negar-se a “virar um ticunado, entrar
no jeitos dos demais homens” do local, como fizera Juan. Pablo, enquanto coautor destas
relações de eficácia reconhecidas no âmbito das proximidades do casal, como bom
provedor, não mobiliza, entretanto, suficientes esforços para sua própria melhoria “como
um homem que quer virar parente”, complementava Anita.
O fato que mais explicita esse antimovimento de aparentar-se é evitar a
partilha, sobretudo aquelas que envolvem justamente atividades de cozinha e culinária,
que provocam, por consequência, distanciamentos em relação aos parentes de sua esposa,
ratificando a situação de dívida para com os cunhados, atrelado à sovina. Com efeito,
cotidianamente ele próprio se atualiza nesse movimento de distinção negativa,
estimulando o sentimento em outrem de desconfiança e perigo, especialmente nos
potenciais cunhados e “autoridades” locais. Por isso, entendo que Pablo, enquanto um
“homem de fora”, ainda não se tornou “parente de confiança” por burlar as lógicas de
socialidades para além daquelas conjugadas entre ele e Anita. Suas alianças, portanto,
estão instáveis, em pleno processo de construção.
Do ponto de vista dos “homens de chefia” local, Pablo, já vivendo na aldeia há
cinco anos, diferentemente de Juan, seguia sob “vigiamento”, sob o título de “genro
perigoso”. A liderança arremata sua posição pessoal e política, conotando sentido à ideia de
vigiamento mencionada acima por Pablo: “e também não fica assim livre, a gente fica de
olho nele”. Firmino comenta, neste rastro, que as ações de Anita colaboram no
“amansamento” da alteridade, sem que, todavia, ela se torne verdadeiramente domesticada,
220

quando diz: “Anita, minha sobrinha, faz a parte dela, assim é a parceria do casal, só que seu
homem é danado, não ajuda nela nisso daí de virar homem de confiança”. E menciona: “esse
ai, pelo jeito que vai, seguirá assim, inimigo a ser amansado”.

4. Das mulheres que “amansam” maridos

“Eu queria casar, busquei esse homem de fora. Ele chegou por trabalho,
virou marido. Virou gente ticunada. Mulher, como diz mamãe, também faz
caçaria, mas de marido, atrai e traz pra dentro. Morando assim com o
inimigo, eu virei uma mulher de respeito, madura, fiz minha parte nessa
política de amansar o inimigo e usar o que ele tem de bom para nosso grupo
de parente. A prima [Anita], fez isso também, caçou esse homem dela
[risos]. Tá amansando ele ainda, o paisano dela é mais difícil [risos] para
virar parente, ganhar nome de gente e de cunhado, de genro, como diz no
português, né? ”
Constância resume o que as imagens etnográficas acima descritas descortinam:
para os Ticuna a alteridade, afinidade e consanguinidade são ingredientes de socialidade que
se precisa compor e maquinar cotidiana e ritualmente nos tempos e espaços da relação. Nestas
narrativas conjugais, em particular, os contrastes entre interior e exterior, política e
parentesco, aldeia, cidade, por exemplo, deixa-nos espaços descritos a partir do ponto de vista
das mulheres e das suas agências criativas nas micropolíticas de familiarização do inimigo. O
que nos possibilita observar elas atuando nos processos de construção da pessoa, que
mobilizam amplamente as relações com a alteridade através da aliança por elas objetivada
com estes “homens de fora”. Para tanto, Constância e Anita os “laçaram forte, convenceram
as famílias”, como dizia-me aquela. “Esse homem meu, chorou, chorou, chorou para ficar.
Eu fiz ele vir bom esposo, para ficar bom parente”, complementa.
Anita, por sua vez, afirma que “é a mulherada laçando seus homens, não os
parentes”, ainda que estes últimos tenham papel complementar nessa apropriação e
domesticação, especificamente, via as ações do tempo de prova e vigiamentos empregados
aos “paisanos”. Anita, mesma, descreve, em particular, algumas técnicas empregadas para
“amansar” esses “homens de fora”, a partir de suas “vontades” e agências que os
converteriam em “parentes de verdade”, no seu gradiente mínimo e o valorizado nestas
circunstâncias, “um marido ticunizado”. O grau mínimo aqui é o vínculo conjugal. Nele e
simultaneamente no “tempo de prova” fabrica-se a alteridade controlada. “Eu quero, ajudo a
221

negociar o marido”, segue ela, “os homens fazem os tempos de prova. Isso é problema dos
parentes homens, que precisam ver o que tem aí para eles, para a comunidade”. Não
obstante, noutro domínio de relações de poder que envolve e legitima o campo de ação dos
homens, a participação “na caçada do marido” realiza-se nos “jeitos de fazer acontecer, no
casamento”, como dizia Anita.
“A gente pega eles. Faz passar nas provas, ensina assim para depois usar
deles, se eles ficarem. Ajuda nós esses homens, a dona bem já viu tudinho
isso daí. Eles vêm e a gente pega, deixa os homens ver se ele não vai correr,
e a gente laça como bicho, cuida e cria para ficar como a gente. Os parentes
homens ajudam nisso daí. Nas coisas dos homens. Eu e a prima queria casar.
Amansamos no sexo, na comida esses daí dona. No amor também, na igreja,
no vigiamento, nisso tudinho. Não é nem cacique, nem capitão nem meu
irmão que fica de verdade com ele. Aí dizer que isso aí dos homens de fora é
assunto só da política dos homens é bem mentira”.
Para serem, contudo, inseridos no regime de parentesco proposto pelos receptores
ticuna, estes maridos “amansados” precisam converter-se, nas escalas mínimas, “ao jeito dos
índios”. No que tange ao momento de “consumo” e “predação familiarizante”,
operacionalizado pelas agencialidades femininas, vejamos aqueles levados a cabo por
Constância e sua mãe em relação ao Juan.
Suas formas de mediar a “ticunização” do estrangeiro foi via a transmissão do clã,
de forma generizada e estruturalmente invertida (não patrilinear), o que possibilitou o
alocamento do exterior num grupo genérico de pertencimento, de acordo com as suas próprias
estratégias de domínio simbólico sobre o outro. Juan recebeu “nação” e o “direito” proscrito
de transmiti-la aos seus filhos, como o fez. Esta insígnia identitária central aos Ticuna foi a
ele transmitida pela sogra. O motivo alegado por ela é que este componente sociológico
atribui o caráter mínimo da relação positiva, isto é, se reconhece o aparentamento ao “de
fora”, e, por efeito, aos filhos do casal, sem que estes “guardem no jeito deles os problemas
de sexo malfeito por nossas filhas”, diz Lora, mencionando o caso de Anita e do primeiro
filho, que “de rua”, ganhou o clã de boi (woca).
De acordo com Lora, ao transmitir ao genro estrangeiro o seu mesmo grupo
classificatório, clã de onça, se estaria evitando, portanto, que seus netos recebessem a “nação
de misturados”, porque ali naquela aldeia, segundo ela, tal insígnia é altamente desvalorizada.
Além disso, ao fazê-lo, Lora também arbitrava nas relações de poder que administram os
“perigos das fofocas”, dos rumores e valores negativados que com eles circulam, “fazendo
222

triste minha filha, meus netos, eu, a aldeia. Aí nisso daí, mesmo se meu esposo fosse vivo
nesse tempo, eu passava a nação, assim chefia de mulher. A gente dá o nome, não o homem. ”
Ela explica-se:
“Fiz isso para também fazer políticas dos parentes. O certo nesses
casamentos com gente de fora é dar nação pros filhos de boi, porque o pai
não é ticuna. É a regra na cultura, desde que os brancos chegaram. Essa
minha filha e a nossa família já estavam nas fofocas na aldeia, né. Já
estavam na vergonha. E para melhorar, tem esse jeitinho de arrumar as
coisas, tem o tempo de prova para os homens ficarem domados no costume
da gente, e a mulherada entra assim com a nação desses genros”.
Ações políticas, então, claramente marcadas por relações entre mulheres, visando
dois objetivos: inserir o Outro domesticado no circuito de relações e intercâmbios, mitigando
memórias prospectivas de relações de parentesco consideradas equivocadas, sobretudo pelo
desvantajoso valor moral que oferecem. Com isso, e ao mesmo tempo em que Lora contribui
para que o marido estrangeiro seja transformado, ela afeta com seu ato a esterilidade prévia
de sua filha que não havia conseguido alguém que lhe transmitisse aos filhos qualidade
étnicas desejada.
Note-se, contudo, que tal estratégia não foi empregada com Pablo. O efeito mais
imediato que sei disso, é a ambiguidade em que ele permanece nesse complexo jogo de fazer-
se como parente. Neste caso, um “parente perigoso”; alguém que ainda não está alocado
seguramente no regime de alianças locais. Segundo Constância, “é pouco tempo de
casamento deles ainda, e vai da vontade dela querer que ele fique, se não faz como a outra
parenta que já mandou ele embora sem nada, lá na comunidade onde estava antes”. Efeitos
desse processo de produção e alteração da pessoa como parente são visualizados na
morfologia dos respectivos grupos de extensos. A casa de Pablo e Anita situa-se isolada,
diferentemente do que ocorre com Constância e Juan, cuja casa é quase contigua à dos
parentes compondo o que explicávamos no capítulo II ser o “petchica”. Situação que
Constância sintetiza nas seguintes palavras: “parente que sabe e gosta de compartir, dividir a
vida vive perto”.
Outra dimensão dessas capturas e “feituras” aplicadas aos “esposos inimigos”
para os tornarem parentes deu-se pela consubstancialização. A alimentação é, sem dúvida, um
dos meios mais privilegiados de produção de um corpo-parente, não apenas o que se
223

consome, mas sobretudo aqui, com quem e de que modo o faz.131 O fato de Juan, pouco a
pouco, ter passado a alimentar-se de modo similar ao de seus parentes coextensos (assumindo
a farinha e o peixe na dieta), colaborou na sua transformação de “parente ticunado”.
Ademais, outras condutas e ações por ele assumidas, “ensinadas por
Constância”, como frisava ele, envolviam não apenas o consumo apropriado, senão a ter
também aprendido a fazer-se próximo, compartindo os modos de produção dos alimentos
(roça, ajuri, pesca). Com isso, demonstrava saber dividir, entre suas redes de afins e
consanguíneos, o deslocando a uma posição de reciprocidade. Juan, com efeito, adquiriu um
“jeito” apropriado de ser cunhado e genro respeitável. Tornou-se, no interior do casamento,
um “bom esposo”, alcançou o estatuto de “homem maduro”, com esposa, filhos, roças,
canoas, dentre diferentes canais de interação com seus outros afins. Constância, certa vez,
qualificou esse processo “como bom resultado da caça ao marido”. O que reverberou, “no
meu jeito de ser mulher, parenta aqui na aldeia”.
Pablo, ao assumir conduta revés, segue afastado, não compartilha dos alimentos,
nem do apreço por “comida de índio”; come frango, afeiçoa-se, ademais, a uma “cervezita”.
Estes últimos gêneros alimentícios, neste cenário, são antialimentos à criação e manutenção
de um “corpo alegre”, ao que gera condições de impossibilidades de “virar no jeito bom de
ser pessoa e parente com bom pensamento”. São alimentos que, apesar de serem muito
apreciados entre muitos interlocutores, ainda que não consumidos rotineiramente, nunca ouvi
(e muito perguntei a respeito) sobre a existência de algum benefício em seu conteúdo. Pelo
contrário: “é caro”, “é carne branquinha, sem gosto”. 132 Cerveja, mas não o “pajuaru”
fermentado, note-se, “tem pora [força] fraquinho”, dizia-nos seu Pedro, nos capítulos iniciais.
Cerveja tanto quanto cachaça parecem carregar, além dos valores cristãos, o fardo
de terem sido bebidas associadas aos “males da seringa”. Ainda que alcoólicas e consumidas
em ocasiões similares (festejos, campeonatos de futebol, casamentos) o “pajuaru”, cerveja e
cachaça não simbolizam os mesmos valores. Pelo contrário, seus efeitos podem colocar o
parentesco em risco. O consumo desses antialimentos remete-o, assim, ao lugar da diferença
riscosa, à imagem do “civilizado” predador. O que, a exemplo dos Piro (Gow, 1989, 1991)


131
Não estamos desencontrados aqui com os legados americanistas referentes à fabricação do parentesco na
Amazônia, que, desde os anos 1990, têm proposto analiticamente pensá-lo pela chave do convívio, exposto no
universo da cozinha, dietas e resguardos, das formas de consumo e partilha alimentar (Overing, 1969; C. Hugh-
Jones, 1979; Viveiros de Castro, 1979, 1986; Vilaça, 1992; McCallum; 2001, 2013; Lasmar, 2005; Belaunde,
2001, 2005; Lea, 2012; Tola, 2012; Galli, 2012; apenas para citar alguns).
132
O consumo de carne de frango é associado entre outros interlocutores como vetor imaginado à transmissão de
atributos de gênero, particularmente “ao jeito de homem se fazer no jeito de mulher”. Tocaremos no assunto no
capítulo VI.
224

não consistiria numa comida verdadeira (“real food”). Por certo, consumi-las oblitera, assim,
elementos cruciais às relações de parentesco e aos conhecimentos éticos e estéticos locais.
Por outra via destas lógicas cosmopolíticas, também, o resultado desse embate
ontológico, manifesto nesses signos de alteridade negativa, parece derivar do método de
obtenção que, por meio do dinheiro, rearticula no interior das redes de troca e
relacionamentos com a família extensa às dinâmicas cotidianas, como manifestaram as
relações entre mulheres. As notícias de apreensão a respeito dos efeitos deletérios, retomando,
gerava sentimentos de “inveja”, “vingança”, “ciúmes” e avareza.
Um outro signo de distinção evidenciado nesses efeitos cotidianos do parentesco
em debate, articulado nas esferas de socialidade femininas, por fim, é uma maneira de agir
que afeta aos seus hospedeiros num sentido prejudicial similar ao da cerveja: o “idioma do
civilizado”, aqui fazendo as vezes pelo espanhol. Ao invés de aprender o idioma da esposa, no
pior nível que fosse, e comunicar-se de outro modo com o mundo da aldeia, Pablo, do
contrário, a incentiva a aprender o castelhano. Prática que serve à esposa, porque a municia
com outros saberes e possibilidades de mobilidades sociais, que apenas reiteram seu lugar
associado à figura perigosa desse “homem de fora”. Para Anita, como ela mesma apontou:
“cacei esse daí, mas ainda é inimigo. Eu me aproveito mais do que ele disso daí do
compromisso”.

4.1. Transformar

Nesse rumo, “moldar”, “caçar”, “laçar”, “fazer virar”, “deixar parecido” são
metáforas ao verbo transformar (“ã'caítchi”), que na tradução aprendida em campo, denota
justaposto a ideia de ser/estar em movimento, quando Constância e Anita, me diziam que:
“Isso de ã'caítchi ? Todo o ser está vivo, está se fazendo, e se fazendo como
gente, do jeito que a pessoa pense; é ir se transformando, se misturando, se
fazendo, nos clãs, nos pensamentos, nas comidas, nos casamentos, nas
palavras que dizem em cada tempo [geração] como pode ser fazer. Por isso,
ã'caítchi isso aí tudo que acontece desde que um nasce até morrer; é nesse
verbo ai que diz. Isso tem a ver assim, dona moça, com isso do casamento,
das passagens que os parentes, eu, a prima, a ma’ma por exemplo. ”
Como mostram as informações, para os interlocutores apenas se produzem porque
homens e mulheres, em seus campos de ações sociais, ao proporem via predação “fazer”
novos parentes (homens de fora), apenas o fazem porque concomitante conduzem aqueles já
225

parentes (mulheres solteiras, e seus filhos) a novas posições. A um só tempo se realizam


rituais de “passagem” que os transformam em outros tipos de pessoas sociais. “Casamento” e
o “tempo de provas”, operam, portanto, como tentamos mostrar, em momentos diferenciados
e complementares, sem denotar necessariamente simetrias, de um processo produtivo que visa
controlar sujeitos-outros para produzir novos sujeitos em casa.
Por aí, entende-se que os trânsitos entre posições são mobilizados nas relações de
poder, notadamente marcados aqui por gênero, geração, nacionalidade, política, moralidades,
afetos, recursos econômicos, que atravessam as próprias percepções e valores de matrimônio
ticuna. E nesses meandros entre valores coletivos e interesses interpessoais circulam
possibilidades de fazer-se casável. As “posições alternadas”, então, que resultam das ações
ora combinadas, ora separadas entre as partes dessas relações de transformações é que
permitem fabricar sujeitos enquanto ‘tipos’ diferenciados de mulheres (solteiras-casadas-boas
esposas; sogras, germanas, primas) e de homens (estrangeiros-afins, perigosos-genros e
parentes; homens de chefias; sogros, germanos).
Seguindo a proposta de Strathern (2006), onde os circuitos de troca e os
engajamentos dos domínios de socialidades geram complementaridade, mas não
necessariamente simetrias, como aponta a relação entre os homens; o que se entende por
masculino e feminino é instável e torna-se instanciado nas alternâncias entre os efeitos de
ações geradas nesses domínios, porque é fruto de relações que se formulam anteriores aos
termos. Figuras de chefias (homens) atuantes no contexto das relações nos “tempos de prova”
e as redes de pessoas a eles aparentadas e agentes de domesticação neste contexto via alianças
matrimoniais (mulheres) são juntas extensões semânticas da predação. A relação contínua
entre interior (casamento, pessoa e parente) e exterior (homens de fora, atributos capturáveis)
ativam concomitante, política e relacionalmente, igual valor entre os domínios de gênero, as
imagens das ‘mulheres caçadoras de maridos’, então, encapsularia nestas dinâmicas de
aparentamento e controle do inimigo.
Assim, se o casamento é o nosso operador chave para visualizar modos ticuna de
estabilizar a diferença e a alteridade interna, onde interioridade e exterioridade e os campos de
socialidades que as comunicam definem-se, nestes pontos de vistas, são como polos de um
mesmo movimento, aqui retratados pela simultaneidade constitutivas, ainda que realizadas em
regimes de relações diferenciada nos tempos e espaços de convivência dos locais com os
estrangeiros. Ecoa-se dessas situações etnográficas espaços para seguir pensando em
socialidades femininas e masculinas, no que versa a respeito da articulação com o exterior,
princípios relacionais simétricos, como afirmara Firmino:
226

“É sobre isso aí que essas fofocas e histórias de casamentos com gente fora tá
dizendo. Das autonomias dos Ticuna. Das mulheres e dos homens, dos jovens
e das crianças, dos jeitos de ser dessa nossa gente; dos jeitos dos parentes
casar, dos jeitos que vai mudando esses jeitos. É tempo que vai, tempo que
volta nos pensamentos das misturas dos aprendizados. Antes a gente era o
problema para essa gente de fora, agora, a gente refaz a guerra, faz deles
nossos trabalhadores e nossas filhas fazem deles gente tudo amansada”.
Parece-me possível, então, que a presença das práticas de predação (casamento,
especificamente) e da comensalidade e convívio (corresidir), como formas encadeadas de
gerar pessoas, parentes e socialidade, entre esses interlocutores ticuna, ao menos, favorecem o
entremear não dicotomizado e antagonizado dos ciclos diferentes de apropriação dos atributos
que interessam consumir e manter controlados do estrangeiro. Desde aí, retomamos a hipótese
inicial, qual seja, de que estes conjuntos de ações se desdobram em relações sociais
hierarquizadas entre os ticuna e seus “awane peruanos”. Tal assimetrização é projetada com
base nos eventos de mobilidades sócio-territoriais e dinâmicas identitárias, a partir dos quais
os casamentos e dispositivos de gerenciamento da diferença, que articulam o local ao global,
são, lado a lado, processos da mesma natureza política: a produção de pessoas vindas do
exterior enquanto parentes.
227

CAPÍTULO V

Sobre casar na igreja


Dos “parentes pecadores” e “parentes womãtchi”

Interlocutores

Alberto: homem ticuna, quarenta anos, clã de onça, pastor e professor, casado ao “modo antigo”, isto
é, apenas “ajuntando as redes de dormir”; “sem festejo”, “sem igreja”, “negociado só entre os
parentes”.

Félix: homem ticuna, clã de onça, pai de Alberto, de aproximadamente setenta e cinco anos, pastor e
ex-cacique; também casado ao “modo antigo”.

Isara e Fernando: casal ticuna recém-casados na igreja Batista em sua aldeia; ela com dezoito anos,
clã de avai, evangélica, sobrinha de Alberto, um dos atuais pastores da aldeia, neta de Félix;
agricultora e tem o ensino médio completo realizado na escola local. Fernando tem vinte e cinco anos,
clã de mutum; ele é agricultor e auxiliar de serviços gerais na escola local, ensino médio completo;
evangélico; Isara e Fernando são filhos de famílias fundadoras da aldeia.

Luis e Juraci: casal ticuna, ele de quarenta e dois anos e do clã de japó e professor. Ela de trinta e
cinco anos, clã de garça, agricultora e com ensino médio completo. A relação conjugal deste casal,
como veremos, é malquista devido a posição de interdito que ocupam por pertencerem a grupos
classificatórios semelhantes. Estão, como dizem na aldeia, “poluídos”, “com sangues ruins”. Atributos
decorrente de estarem ambos em condição de “womãtchi” (incesto). Mesmo assim, insistem em seguir
com o casamento, e têm juntos três filhos.
228

Do casar na igreja, versões do “sexo malfeito”

“(...) isso de casar na Igreja? É jeito de casamento chegou por esses beiradões de cá
com os pastores gringos (...) aí parente virou parente pastor, depois, virou
autoridade. Antes era como agora só que de outro jeito. Eu mesmo nasci assim, já
com a Igreja na aldeia e os parentes já eram tudinho convertido na Palavra de
Deus, nesse tempo. Convertido assim, como é melhor pra cada um, né? ”
“(...) Nisso é que sai essas conversas que a senhora vem escutando por aí sobre a
junção dos pensamentos da palavra do womãtchi, do sexo malfeito, como a gente
diz; Parente womãtchi e pecado é disso, é perigoso, poluído, cada um de um
jeitinho”.
“(...) tem sexo malfeito de womãtchi, dos que casam errado na mistura do clã; tem
sexo malfeito, do pecado, que de outro jeito, parece que é quando sexo é [feito]
antes do casamento, de ficar bagunçando por aí, disso o pastor nos repassa as
palavras dos missionários antigos, que é o tal pecado da virgindade. “(...) isso é
longa história de mistura dos saberes da gente. O resumo dela é que as igrejas
chegaram e colocaram outros jeitos nas palavras, por isso digo do pecado para
senhora aprender. Foi nesse tempo da chegada dos pastores gringos que a gente
aprendeu sobre o pecado. (…) Antes não tinha essa palavra”.
“ (...) O que importa disso, para senhora saber dessa curiosidade de casar na Igreja,
é que eles [os missionários] diziam que casar na igreja é bonito, é sinal de respeito,
de honra. De pureza dos pensamentos, como diz no culto; que casar é jeito de fazer
família e entrar bem no céu. Aí parente casa na igreja por muitas coisas [motivos]:
pra honrar, tentar despoluir pensamento e sangue dos womãtchi; tem parente que
casa na igreja porque é crente mesmo; tem outros que casa aí é limpar as poluições
dos parentes que mentem, fazem sexo errado, cai na cachaça. Cada um desses
jeitos de ser ticuna faz parente de um jeito, né. Aí as palavras dos antigos e os
pastores ajudam a controlar os males do mundo, as poluições de pensamentos, as
safadezas dos parentes. Bem assim é”. (Alberto).133

Como ilustra a breve arqueologia de Adalberto, numa versão possível da


historicidade da “chegada do pecado” e sua interface justaposta ao conceito de incesto
clânico e consanguíneo, há modos de se estar em relações que produzem “parentes womãtchi”
[incestuosos] e “parentes pecadores”. Tais qualificações dependem sempre dos valores aos
quais cada corpo relacional se alinha no decorrer das interações e também da natureza dos
vínculos afetivos-sexuais em que este se entrelaça, matrimonialmente ou não. O que articula a
ideia de “parentes incestuosos” e “parentes pecadores” nas experiências de “negociações”
aqui tratadas, veremos, é a problematização moral dos modos e temporalidades que envolvem


133
Esta conversa de abertura foi realizada na casa de Alberto e registrada em áudio, em meados de outubro de
2013 e utilizo excertos dela para ilustrar o contexto do debate deste capítulo. Em particular, nesta mesma
ocasião, o pai de Alberto, Félix, participou de parte deste diálogo, parcialmente também transcrito neste capítulo.
As demais conversas com eles e com os demais interlocutores que aqui utilizo variam entre períodos de campos,
de abril de 2013 a dezembro de 2014.
229

atos sexuais, num contexto em que não estar na condição social de “pessoa poluída” opera
como critério para a produção de cônjuges desejáveis e para as qualificações do parentesco
produzido.
Interessa-me, a partir disso, observar e pensar como dois casais em particular,
Isara e Fernando e Luis e Juraci, congregam situações sociais que requerem uma sorte de
cuidados pessoais e alargados em diferentes dimensões de socialidades, naquilo que os
circunscrevem em situações de “casamentos errados”. Suas condições de possibilidades de
gerarem-se enquanto “parentes poluídos”, os alocam em posições precárias de manterem-se
enquanto “bons parentes”. O primeiro casal assim se encontra pelos efeitos da “impureza”
associada à “nova palavra”, “virgindade”, correspondente às “versões” de “pecado”,
particularmente articuladas nas “palavras de Deus”, expondo para alguns pontos de vista
motivos inadequados a certos modos de ser. Para o segundo casal, por sua vez, a prática do
“sexo malfeito” como dispositivo de aliança gera condição de poluição a eles, por relações de
naturezas distintas, mas cujos efeitos são também deletérios; aqui essas “poluições da alma”,
como caracteriza Alberto, derivam do incesto clânico, inserindo interrupções produtivas à
fabricação dos parentes, gerando espaços para morte e para o “perigo das tristezas” e a
anulação do devir imortalidade.
Argumenta-se a partir desse pano de fundo que “casar na igreja” mobiliza e
atualiza as dinâmicas da apropriação das “palavras dos antigos” e “das palavras dos
missionários gringos”, agora em campo de domínio se saber-poder dos “pastores parentes”,
das “autoridades” morais ticuna. Isso resulta noutras formas de “convivências”, lançando luz
às técnicas e tecnologias de controle das diferenças internas, gerando espaços criativos às
“microbiopolíticas” de parentesco ticuna, quando o “sexo malfeito”, numa expressiva
população indígena em que a conversão é um evento antigo, questiona valores como “honra,
vergonha”.
Problematiza-se estas cenas tangenciando-as nas questões centrais da tese, no seio
das quais queremos mostrar como os dispositivos variados da sexualidade ticuna compõem
suas teorias de relações e parentesco no âmbito do sistema de aliança. Com isso, o objetivo
central deste capítulo é refletir de que modos a presença dos aparatos das instituições
confessionais justapõem-se articuladas nas transformações epistemológicas das noções de
incesto e pecado como veículos que produzem tipos de pessoas e parentes, quais sejam,
“parentes poluídos”, ora como “parentes womãtchi”, ora como “parentes pecadores”.
Para conduzir essa reflexão, visualiza-se nos trajetos destes relacionamentos
elementos que os fizessem equivocados, entendendo as conjunturas de produção dos sentidos
230

que expressam tais conjugalidades enquanto relações não produtivas para a fabricação da
pessoa, do contrário, são perigosas; inconstantes. Pergunta-se, para seguir, a quais debates as
técnicas locais de se falar sobre as condutas sexuais nos guiam, dentro do registro de
“misturas de palavras”, aos jeitos e percepções de si, dos desejos e expectativas em relação?
Começo o capítulo situando a exegese das relações em tela, conhecendo um
conjunto de trajetórias e perspectivas indígenas sobre os processos e ambientes nos quais
tornaram-se convertidos. A partir da conjuntura passa-se a conhecer eles como compõem
versões sobre “casar na igreja”, esboçando imagens das relações que geraram a “chegada do
pecado” e lógicas de produção de um tipo de parente particular, um gestor moral do
parentesco, o “parente pastor” e seus lugares de enunciação e produção de saberes sobre os
sexos.

1. Dos missionários gringos aos “pastores parentes”

“As versões dos casamentos dos parentes têm a ver com isso também, dos
missionários Batistas, da chegada da palavra do pecado entre nós. (...) isso é
na língua portuguesa, não tem pecado na nossa [língua] não. A gente usa
como aprendemos, para ajudar o parente. Isso é do tempo chegou os
missionários gringos, aqui a gente trata eles como corigü*. O povo Ticuna
carecia de ajuda, nesse tempo nós precisávamos mudar de vida. Esses
missionários nos ensinaram outros jeitos de ser índio, pro bem e pro
mal134 (Alberto). ”

Alberto e seu pai Félix expõem “versões” dos engajamentos indígenas nas facetas
da religiosidade macrorregional, situando-nos algo similar ao que uma leitura mais atenta da
bibliografia voltada ao tema entre os Ticuna (Nimuendajú, 1989; Oro, 1977, 1989; 1989;


134
A Association of Baptists for World Evangelism (daqui em diante EBWE) foi fundada nos anos finais da
década de 1920 nos Estados Unidos, e se define como uma “agência independente, não afiliada a outras missões
confessionais”, que envia missionários comprometidos com o princípio do Novo Testamento e prática do
evangelismo para diversas localidades no mundo. Buscam, com efeito, evangelizar e estabelecer igrejas,
apoiando a formação de líderes religiosos locais. Nesse sentido, os missionários da EBWE engajam-se em ações
educacionais, médicas, humanitárias, de literatura e nos desenvolvimentos de projetos em apoio às necessidades
encontradas nas localidades onde chegam (Cf. http://www.abwe.org/). De acordo com os levantamentos da
historicidade das ações das instituições confessionais fornecidas pelo projeto organizado por Robin Wright
(1999), a Igreja protestante ganha espaço em território nacional no século XX. Neste marco, é mais
especificamente a partir dos anos 1940, no pós-guerra, que suas ações se voltavam para buscar a conversão entre
as “classes educadas”, com a montagem de uma ampla rede educacional, seja para finalidades explicitamente
conversoras dos povos “não alcançados” pela palavra de Deus (cf. Kahn, 1999:21). Imbuídos de tais propósitos,
é no final dos anos 1950 que a ABWE chega à região do Alto Solimões, incluindo os Ticuna em seus planos de
evangelização e conversão, fator que “marcaria o destino deste povo, modificando o relacionamento entre eles os
brancos” (Oliveira Filho, 1988: 49-49).
231

Macedo, 1996, 1999; Lima, 2013) informa. Diferentemente de outros movimentos religiosos
aos quais aderiram seus parentes, como foi e segue sendo a Irmandade da Santa Cruz, de
características messiânicas, que prega a modificação do comportamento dos fiéis, propondo
normas rígidas, circunscrevendo vestuário, regras de matrimônios, cultos, regimes
alimentícios, proibição dos rituais, entre outros, a proposta de evangelização Batista não
previa mudanças radicais nos modos de vida indígena. E fora justamente por estar distanciada
de propósitos de “mudança radical do índio” que a missão evangélica se estabeleceu entre os
Ticuna no Brasil, num contexto particular descrito por eles de que “era preciso mudar o jeito
do parente viver”.135
Ao que se referem, especificamente ao envolvimento no trabalho das empresas
seringalistas igualmente nos posteriores engajamentos nas atividade dos Postos Indígenas,
servindo, noutra situação, de “empregados” aos chefes de posto, no que contextualiza Félix,
nas seguintes assertivas: “o trabalho na seringa chegou junto com desrespeito ao povo
Ticuna, e era sair da seringa e da sorva, para fugir para mãos da roça do chefe de Posto
[Indígena da FUNAI].
Do ponto de vista deste senhor, a igreja apresentou-se como alternativa eficaz na
medida em que “ensinou a fazer conta, a pagar dívida do barracão e a fugir do controle do
patrão; ajudou a fundar aldeia, a fazer escola, professor, parente pastor para ajudar nisso
daí que virou nosso tempo de autonomia”.136
O “jeito” que “carecia” cuidados, neste sentido, está claramente associado aos
“males” sociais dessas situações históricas mais recentes, rememoradas pelos efeitos positivos
que a interlocução com os pastores evangélicos oportunizou, e sintetizado por Felix, numa
categórica característica desse regime de “convivência” ao mencionar que “patrão tirava
dignidade, a igreja devolvia”. Dando visibilidade aos recrudescentes conflitos entre “índios”

135
Cf. Lima (2013), Goulard (1998), Garcés López (2000, 2003) o panorama desses processos de conversão e as
distinções entre as vertentes religiosas atuantes entre os Ticuna bem como aspectos complementares sobre os
efeitos desses diálogos. No trabalho de Lima, especificamente, voltado ao tema dos “Ticuna repensando a
evangelização Ticuna”, lê-se uma etnografia bastante interessante da perspectiva da criação da Igreja Indígena,
perpassando a discussão êmica, realizada há pelos menos dez anos, em torno da reflexão do que foi e do que é o
processo de evangelização proposto pela Igreja Católica e as variedades de instituições evangélicas, bem como
os movimentos messiânicos que fazem parte da história do povo Ticuna.
136
Roberto Cardoso de Oliveira (1996), numa síntese de tal situação, que para efeitos contextuais, podemos
descrever que a população do Solimões, até meados do século XX, esteve organizada por três “categorias de
papéis” na economia regional: os proprietários de terras, que dominavam a política e estavam no topo da
pirâmide social; a população das cidades, composta por prestadores de serviço, funcionários públicos e privados
e por comerciantes; aos Ticuna, era relegado ao lugar mais à base da estrutura, espaço reconhecido pela mão de
obra barata, e pela docialização dos corpos. Com efeito, para que seguissem alienados aos projetos de ocupação
de seus territórios, relata o autor que os Ticuna foram fadados como se previa na política nacional, a
incorporarem-se “aos mundos dos brancos”.
232

e “brancos” Felix justifica, assim, a potencialidade do diálogo e conversão cristã, num


contexto de violências coloniais, no qual mediante a disponibilidade dos missionários
protestantes de propiciar recursos escassos, a “palavra de Deus” assumiu conotação de
“melhorias de vida”, bastante correlacionada à retomada, pela resiliência política, “de tempos
de força e autonomia”.
Talvez a mais significativa dessas “mudanças” tenha sido acabar ou “controlar”
as dívidas e o “mal da cachaça”, que sem dúvida era um mecanismo aliado dos proprietários
de terra para manter sob controle a mão de obra dos indígenas.137 De acordo ainda com Félix,
“os anos mais forte da conversão” seguiram-se entre os anos inicias da década de 1960 a
meados dos anos 1980.
Nesse cenário de conversão estratégica, destacam-se não apenas os processos que
geraram os espaços sociais para as instituições confessionais e versões de casamentos
atravessadas por referentes calcados nas éticas cristãs, fazendo reflexo “no jeito do ticuna
pensar as poluições do sexo malfeito”, mas sobretudo, meios de adquirirem letramento e
organizarem-se, como destacam os colaboradores, perante as retomadas de seus territórios,
quando muitos dos aldeamentos à ribeira do rio Solimões, passam a assentarem-se, com a
fundação de igrejas e escolas.
Macedo (1996, 1999), que se dedicou a uma análise política do fenômeno de
conversão entre os Ticuna, nos sugere que as transformações ocorridas na religião, na
organização social e política indígena a partir da inserção dos movimentos religiosos,
sobretudo, protestantes norte-americanos, é gerada pelo ensejo dos próprios Ticuna. Entre
outras razões, o autor pontua que os seus interlocutores, no mesmo sentido do que aprendi em
campo, quinze anos depois de sua leitura desses fenômenos, viam nesta aliança um cenário
positivo de troca. Uma conjuntura bastante atraente, como vimos, se comparada aos contextos
de convivência com os “patrões” e regionais. E desta aproximação, nada fortuita por parte dos
indígenas, às missões protestantes culmina, a partir dos anos 1980, a consolidação de várias
iniciativas locais que mobilizam a “autonomia indígena”, englobando demandas
educacionais, com a primeira geração de pastores indígenas e os professores como novas
categorias de autoridade representativa e política.


137
Magalhães (2014:06) menciona na sua etnografia sobre os conflitos geracionais e conjugais que engendram as
narrativas sobre morte e suicídios entre os Ticuna, que “o álcool deixa as pessoas vulneráveis à raiva e aos
espíritos” [ngo’ó]. A autora afirma, no mesmo caminho que meus interlocutores, que “a comunidade que possui
o maior índice de suicídios é também conhecida pelo alto consumo de álcool, estimulado pelos patrões nos
tempos dos seringais” (idem).
233

Faulhaber (2007) discorre detalhadamente, apresentando-nos uma série de


contextos cujos efeitos políticos geram a formação das organizações representativas dos
Ticuna, que passam a protagonizarem na cena a política indigenista nacional como “sujeitos
de ação jurídica” (2002), indo ao encontro do que se menciona claramente na epígrafe de
abertura do capítulo, atualizando e corroborando os aportes das etnografias que abarcam o
tema dos impactos das práticas missionárias e tutelares entre esse povo. Deste modo, entende-
se que à época, fora através destes “aliados religiosos” (entre outros, como os próprios
antropólogos e linguistas engajados em suas pesquisas na região) que os Ticuna conheceram e
ganharam apoio para emanciparem-se dos regimes violentos de socialidade impressos em
seus corpos e territórios. Receberam, com efeito, apoio político para as instalações das
primeiras escolas, impulsionando os “conhecimentos os papéis” e das tecnologias
burocráticas para melhor lidar com as lógicas do Estado tutelar.
Félix, sobre essas relações comenta que no âmbito das práticas religiosas foi-se
aprendendo “a lidar com esse jeito de viver fora do seringal. Foram chegando mais palavras
sobre nossos direitos, novas aldeias e jeitos de viver. ” Dois sistemas de valores morais de
implicações diretas nas formas de organização dos modos de vida, lançando luz à positividade
do encontro especificamente nos espaços de governabilidade e parentesco indígena. Como
resultante do que ele mesmo considera “misturas de palavras”, o pastor assume lugar de
“liderança” correlata àquelas assumidas e legitimadas pelo “xamã” e “os pais”, atuando
como “conselheiro”, salvaguardando as distinções e eficácias, quando ele explica que “pajé
cuida da doença de índio, o pastor não sabe disso”, dimensionando estes campos de
conhecimento no que, contemporaneamente, tornaram-se, em algumas circunstâncias, arenas
de disputas envolvendo sentidos de doença e itinerários terapêuticos simultâneos: “tem pastor
que não deixa pajé trabalhar; diz que é coisa do demônio. Mas tem aqueles que são diferentes, que
são até pastor e xamã, mas são conhecimentos diferentes”.
Condições que se estendem às micropolíticas que circunscrevem os jogos de
alianças matrimoniais, sugerindo-se que os repertórios morais cristãos alteram-se em saberes
e orientações ao dispositivo da sexualidade que envolve os sentidos de “sexo malfeito”.
Dentre muitas das novas formas de produção de conhecimento sobre a pessoa, corpo e
sexualidade, dizem que nas “palavras” desses “pastores parentes” foi-se aprendendo a
relacionarem-se como “parente womãtchi” e “parente pecador”. Para alguns interlocutores, é
o efeito dessa intercomunicabilidade de referentes morais que fomenta a alteração do sentido
de sexo malfeito, alargando-o à ideia de “pecado”, relacionado particularmente às condutas
234

sexuais, quando, ao exemplo do que veremos, “namorar antes do casamento, virou problema
de virgindade e desonra”.
É, então nesta conjuntura, que a presença dos “parentes pastores” é marcada pela
ambiguidade. Tais figuras de poder traçam os estabelecimentos de dimensões de ordenações
da vida cotidiana: disciplinas, palavras, tempos e espaços apropriados às relações íntimas.
Neste caminho, a presença das “palavras de Deus”, na presença da igreja protestante,
introduziu uma ideia de “salvação” conectada, desde a análise indígena, com aspectos de suas
filosofias políticas orientadas às noções de “sexo malfeito”, especificamente no que diz operar
conjuntamente, mas “só no jeito do pecado, não do womãtchi”.
Discernem-se, contudo, claramente os dois sistemas de produção de regimes de
saberes sobre a constituição da pessoa e de seu devir imortal, afirmando-se haver dois céus:
“um para onde vão os parente mais no jeito crente, junto com Tupanã, com quem acertam
suas contas dos pecados”, aqui apontados como “crimes de roubo, mentida, traição conjugal,
feitiços, usura, entre outros, e, um outro céu, “o Éware, ao lado dos imortais”, reservado
àqueles que praticaram a sexualidade adequada, evitando situações incestuosas e escapando
do canibalismo celeste praticado pela demiurga Ta’é e seus “bichos” sugadores de sangue.
Neste enredo, haveria a “alma pecadora” e a “alma” incestuosa, cada qual contidas por suas
“poluições” morais:
“É duplo assim, esses saberes que chegam com as novas palavras e histórias
desses pastores que viram parentes têm dois lados. Só que a gente não
mistura as coisas tanto assim, não. Yoi é nosso pai, nosso ancestral legítimo;
Tupanã é o Deus da Bíblia, das crenças dos brancos que a gente usa aqui
para ajudar nos parentes que fazem crimes”.
É nesse jogo de disputa de poder no âmbito daquilo que Wright pontuou ser
“campos inter-religiosos de identidade” (1999:07), que a relação entre os Ticuna e os
“missionários gringos” e, mais recentemente, dos “pastores parentes”, “suas palavras e jeitos
cristãos”, torna-se, portanto, ambígua e paradoxal. A ideia de “salvação da alma” agencia
conjuntamente os dois sistemas de valores. “Salva” como fator individual, quando os casais
estrategicamente ao “casar na igreja” preocupam-se em “ajustar” seus estatutos pessoais,
suas situações “poluidoras”, mobilizando, com efeito, lógicas de prestígios local, quando “ser
da igreja” nos ambientes crentes denota respeito e pode reverter situações de
desmoralizações. “Salva” também num registro relacional ‘holístico’, quando ações
“despoluidoras” agenciadas pelo “parente pastor” e as “palavras de Deus” atuam sobre
“corpos e vontades dos parentes, da comunidade”, com isso visando conter efeitos de
235

isolamento que situações de “poluição” derivadas de incestos, quando casais nestas


condições, buscam essas práticas religiosas para realocarem-se socialmente, mesmo sabendo
da impossibilidade de viver junto aos “imortais”.
Contudo, esse paralelo sobre moralidades e condutas sexuais opera num trânsito
igualmente de relações de poder, residindo justamente neste campo relacional da passagem
dos “conselhos dos missionários” às “palavras dos parentes pastores”, questões centrais para
compreendermos os laços conjugais objeto deste capítulo. Nesse sentido, Alberto menciona
que os missionários eram aos olhos dos parentes uma categoria de inimigo, empregando o
termo “awane”, ao refletir que:
“[Es]tão assim de dois jeitos: de ajudar e mudar a gente. Aí, cuidado. Esses
missionários, que agora muitos parentes falam mal, naquele tempo parece
que ajudaram a fazer nossas aldeias e povoados longe do patrão. Isso é uma
história. Tem muitos tipos de missionário e de igreja. E agora, eles já não
estão morando tão junto com a gente, são nossos parentes que são os
pastores já ajudam na hora de fazer as perguntas para saber verificar dos
jeitos dos que querem casar, aí vem isso dos problemas de sexo malfeito
virar pecado”.
Os “parentes pastores”, veremos em detalhes das negociações e classificações
valorativas que certos laços maritais recebem, tornam-se figuras de poder, “autoridades”,
muitas vezes, descritos “fazedores de ensinamentos, negociações e despoluições” vinculados
aos atos de “sexo malfeito”. Talvez por isso, em algumas situações etnográficas, não se
hesitou tratá-los de “awane de perto”, nesse caso interno, porque suas palavras são ambíguas.
Passemos, então, a conhecer através das narrativas conjugais de Fernando e Isara,
Luis e Juraci, facetas das micropolíticas de parentesco que constituíram suas negociações
matrimoniais e fragmentos de seus desfechos, tendo como pano de fundo o contexto de
conversão, não isolada de outras correlações de poder-saber, as quais vêm abrindo espaços às
“novas palavras” e critérios relacionais para a realização da aliança conjugal e política.
Partindo de suas conjugalidades, nos interessa especialmente, daqui em diante, visualizar
modos pelos quais os interlocutores refletem sobre os efeitos produzidos pela presença das
instituições confessionais, a atuação dos gestores morais (“pastores parentes”), enquanto uma
modalidade de “autoridade”. Se quer com isso conhecer as conjunturas em que suas práticas
discursivas e pedagógicas (“palavras de Deus”) correlacionam-se aos “jeitos de ser ticuna”, à
produção continuada de pessoas e parentes, e às transformações do “sexo malfeito”.
236

2. “Das vontades do sexo” e a virgindade

Fernando e Isara
(“para casar na Igreja tem que ser saber namorar”)

2.1. Relações

Isara, durante os períodos iniciais em que eu frequentava a aldeia onde ela e


Fernando, seu atual esposo (a quem trata por “tchaute”, literalmente “meu marido”), e suas
respectivas redes de parentela bilaterais residem, poucas vezes direcionou-me palavras.
Bastante tímida (“aneweîtchi'e”), ela dizia ter vergonha de conversar por não falar bem o meu
idioma. A conheci logo que cheguei à aldeia. Era ocasião de uma reunião e de dentro da sala
de aula onde nos reuníamos, a via escorada à janela, pelo lado de fora. Isara mirava quase que
ininterruptamente para Fernando, que, sentado dentro da sala junto de seu pai e seus irmãos
mais velhos, retribuía à Isara os olhares, com um pequeno sorriso, escondido no canto da
boca.
Era notável que as demais pessoas ali presentes percebiam os flertes entre os
jovens, especialmente os irmãos de Fernando e duas de suas tias maternas, as quais, uma ao
lado da outra, sentadas atrás de Fernando, com os lábios em formato de bico, apontavam-se
reciprocamente notando os gestos de cortejo discretos entre os jovens. Um dos irmãos de
Fernando menos discreto, ao término da reunião, num momento em que já não restavam
muitas pessoas e especialmente as “autoridades” (os pais deles, o pastor, os professores, e os
caciques) em nosso entorno, não hesitou em anunciar: “nügüma na ãra'ãgü”, glosado como
“eles estão namorando”. A enunciação, em tom jocoso, resultou no imediato ruborizar das
faces de Isara e Fernando, já inseridos lado a lado numa roda de conversa entre jovens
solteiros, como vim a saber depois.
Isara é uma jovem ticuna, nascida e crescida na mesma aldeia que seu futuro
cônjuge, Fernando, que como ela, pouco circulava pela cidade. Ele, melhor falante de
português do que sua pretendente, em vários momentos desses diálogos, auxiliou-me
pacientemente a traduzir expressões e percepções que Isara não sabia expressar em português.
E também foi fundamental sua parceria no sentido inverso das traduções. Isara era muito
próxima de uma de minhas ‘irmãs hospedeiras’, alguns anos mais velha do que ela e cujo
domínio da língua portuguesa “era mais avançado” do que o seu, como argumentavam entre
elas. Por seu intermédio conheci Isara e com elas costumava dispender bastante tempo, quase
sempre ao final da tarde, quando acabávamos nossos afazeres e íamos nos banhar no igarapé.
237

Não mais do que uns dois finais de semanas após a ocasião da reunião e da cena
mencionada de flerte entre os jovens, foi que eu e Isara dialogamos pela primeira vez
sozinhas, numa mescla de ticuna “pobre” e mal articulado, de minha parte, e do português “de
poucas palavras certas”, de outro.138 Era um dia de passeio em que juntas acompanhávamos o
seu tio paterno, Alberto (a quem trata de “o’é” ou seu correlato “ti’tio”), a uma aldeia
vizinha, na qual ele era pastor atuante.

2.1.1. “Virgindade”

No barco em que íamos conversando, enquanto eu tentava relembrar a cena do


flerte, Isara empenhava-se em fazer as perguntas e seus próprios mapeamentos, lançando mão
das questões acerca do meu estado civil e estatuto de pessoa e parente, ligado diretamente aos
ciclos de vida, às “questões existenciais”. Como as minhas respostas, as dela também foram
ambas negativas: éramos “nge'e ngetee”, “nge'e ngeacüe”, traduzindo respectivamente,
“mulher solteira” e “mulher sem filhos”. Ela, notando que seu tio nos entremirava pelo
minúsculo retrovisor de sua lancha, ria feliz, dizendo: “vou fazer compromisso com esse tal
homem”, referindo-se a Fernando, concluindo, em também português, “vou deixar de ser
solteira, sem marido”.
Na aldeia vizinha, mais à vontade, quando estávamos a caminhar sozinhas,
enquanto seu tio ministrava um curso de formação religiosa aos jovens dali, Isara expressara
que “isso de não namorar, como diz no culto antes do casamento não é igual para todo
mundo”. Nesse sentido, ela mencionara que não lhe parecia “muito certo” a ideia do “pecado
do sexo”, como se referiu à questão da “virgindade”. Tudo dito em português.
Retribuo a ela a indagação sobre as operacionalidades dessas “palavras”, no que
vínhamos dialogando sobres suas intenções de casar com Fernando, recebendo de volta a
seguinte afirmação:
“Virgindade, é a palavra que eu aprendi nas palavras do pastor, nas palavras
da Bíblia. Deve ser disso que ele [o tio pastor] está ensinando lá agora. Nas
palavras dos antigos, o sexo malfeito não diz quando é mais ou menos certo
de fazer, tá mais no pensamento de ser pessoa certa ou não, não é? ”
Ao contextualizar a origem de tal conhecimento alocando a ideia de virgindade e
seus efeitos nas éticas e moralidades das condutas locais, Isara a situava, como “palavra da
Bíblia”, frisando não concordar com o modo pelo qual “pecado” e “virgindade” atuavam,

138
Caracterizações empregadas por Isara, aos “nossos jeitos de falar”.
238

naquele contexto, contra-afetando a si mesma: “até queria casar com Fernando na Igreja.
Acho que não posso”. Com isso ela fazia menção ao que qualificou “fazer errado os
conselhos” quando suas reflexões politico-epistemológicas esclareciam que havia aprendido
que o significado de “virgindade” estava associado a “isso de não namorar; não fazer sexo
antes de ter compromisso”, e cujo efeito dizia situar-se na correspondência de outras duas
“palavras: vergonha e desonra”.
Uma cena curiosa, por mim duas vezes testemunhadas em companhia de Isara e
minha irmã hospedeira, faz alusão a uma situação cujos sentidos de ter intercursos sexuais
preliminares ao casamento indicava outros caminhos. Quando voltávamos da roça, onde
havíamos passado tempo conversando, em direção ao igarapé, uma de minhas “tias
hospedeiras” e sua mãe, aparentada da mãe de Isara, seguiram-nos e, antes de juntarem-se a
nós na água, posicionaram-se em cima da pequena plataforma de madeira à beira d’água,
onde estas mulheres, com aproximadamente quarenta e poucos anos, ambas casadas,
conversavam e dispunham calmamente seus cestos sujos para limparem, enquanto riam
observando se os peixinhos vinham até nós, que estávamos na água fazendo nossas higienes
pessoais e lavando roupas. Minha surpresa foi saber, numa dessas ocasiões, que ambas as
mulheres mais velhas estavam com tal atitude, como discorreu uma delas: “vendo se os
peixinhos vinham limpar [comer] a sujeira de vocês”, indicando que tal forma de
comensalidade evocada, em suma, referia-se ao conteúdo das tais “sujeiras” (fluídos
corporais).
Especificamente, ensinou-me uma das senhoras, que tal “sujeira” poderia ser
vestígio de intercurso sexual. Não raramente jovens aproveitam os momentos de lida na roça,
mais afastadas da aldeia, para eventuais encontros, “os namoros”. As senhoras, com isso,
jocosamente indicavam rindo ao conversar comigo e com suas parentas, que era
“brincadeira” o que estavam a observar, não conotando sentido de “proibir” os namoros,
senão para “aconselhar”.
E dizia-se que esses atos sexuais eventuais eram “yetai”, uma expressão em
língua ticuna que corresponde a ação de intercurso sexual, “sem compromisso” conjugal
efetivado pelo casamento. “Yetaï”, nesta circunstância, foi-me glosado da seguinte forma:
“quer dizer que uma mulher está abrindo as pernas para um homem; assim de transar com
ele, sem compromisso; assim, do jeito que aparece as vontades”. A tradução, em resumo,
associava a ideia sobre a “virgindade” ao “pecado”, segundo os conhecimentos que Isara
havia adquirido nos cursos e nos cultos religiosos, comandados por seu tio paterno Alberto.
239

Uma das senhoras nos dizia, complementando estas assertivas, que “yetaï é
namoro sem tá querendo pegar marido”, advertindo que aos olhos do pastor, talvez não fosse
bem avaliado, quando uma das senhoras, rindo, comenta em português: “eu sou do tempo de
namorar sem preocupação de honra essa aí”. Com isso, a senhora argumenta seu desvelo
simultaneamente contextualizando a condição de desposáveis e as condições ativas de
fertilidade, alertando para o evento da gestação e a condição de mãe solteira ser algo não
muito valorizado para algumas perspectivas:
“Essas netas são de pouca idade, melhor cuidar nesses namoros, pega filho,
aí pastor faz casar. Por isso eu cuido, não para elas deixarem de namorar.
Elas já são mulheres, faz é tempo, já são de sangue de fazer filho”.
Em ticuna essas mulheres reunidas explicaram (e similar ao modo como se
replicou em outros momentos do campo e com outras interlocutoras) ter pelos menos duas
expressões nativas para comunicar o estado de “virgindade”. Uma delas descrita como
“wova”, “isso é quando uma moça está no caminho de sangrar [preparando-se para
puberdade] e ainda não namorou [manteve intercurso sexual], não foi furada [penetrada]
ainda”. Outa designação, também elaborada a partir da corporalidade em produção é
“paütchi´é”, descrita na sentença: “assim, quando moça já sangrou e não namorou”.139 Aos
homens, tal condição seria “nguetü'ütchicü”, o que Fernando apenas comentou “é quando o
moço vai ficando preparado para casar, o corpo dele já tá amadurecendo e ele ainda não
provou de mulher”.
Isara em outras ocasiões frisou, fazendo-me compreender certas cautelas de
invisibilidade em relação aos seus “namoros” com Fernando, justificando o cuidado perante
seu tio pastor, acima mencionado no dia de passeio, que sua intenção de casamento não era
segredo, que entre sua rede de parentela já sabiam, mas que ainda não se havia “feito as
negociações”, e que preocupava-se que notícias sobre esses “namoros” pudessem prejudicar
não tanto a aliança, mas seu “jeito”, referindo-se ao que ali costumava-se associar à
“desonra”, especialmente entre os mais afeitos à religião, culminando nas “fofocas”, que tanto
a incomodavam, quando mencionava que ser “um tipo de jeito de saber do sexo malfeito”.
Isara expressava algo potente acerca das relações sociais nas quais ela se engajara,
em diferentes momentos e circuitos relacionais e afetivos, e cujos efeitos manifestavam-se em
seus “pensamentos sobre o sexo malfeito”, que, pouco a pouco, tornavam inteligíveis facetas
do que lhe deixava apreensiva a respeito da presença das “palavras de Deus”. Segundo ela, o


139 Infelizmenteo exercício de tradução não está resolvido. Apresento no glossário o que consegui realizar
preliminarmente.
240

casal havia “namorado”, isto é, mantido relações de intercurso sexual. Queriam casar,
“gostavam-se”. E que Fernando preparava-se há meses para ir até sua casa e pedir
“autorização” para “levá-la” com ele para a casa de seus pais, onde residia.140 Fernando, a
respeito, disse que, ao pedir ao pai de Isara e sendo “liberado” ao casamento, poderia então
tratá-la como “tchamã, minha esposa”.

2.2. Negociações

Passou-se não mais que uns vinte dias desse último diálogo, e eu recebi de
Fernando a notícia do casamento de ambos, quando Fernando passara de visita à casa de Luis
onde eu estava. Luis, estava recém-chegado de volta à aldeia com a esposa e os filhos, sendo
este, o filho mais novo da irmã da mãe de Fernando, cuja relação entre eles manifesta-se pelo
emprego do termo “tchau’ené”, designando-os enquanto primos paralelos, ao que afirmam ser
“irmãos de criação”. De acordo com eles, tal relação implica ainda uma etiqueta própria de
respeito e, aqui, especialmente de estima, afinal, como diziam ambos: “a gente se viu crescer,
em casa separada, mas sempre juntos, comendo e pescando, repartindo farinha feita por
nossas ma’ma”. Ao exporem suas afinidades, Fernando direcionava o convite do casamento
ao Luis, fazendo questão de aprazá-lo em ser seu “padrinho de igreja”, dizendo-lhe:
“Irmão, isso pode ajudar [você] a deixar as coisas melhores para sua vida
(...) quem sabe é o jeito de voltar a estar junto com a gente, sem tanto ficar
por ai sozinho com a sua esposa. Participar na igreja, assim de padrinho
pode ser bom, pessoal vai ver isso bem”.
Com isso, Fernando tentava, por fim, convencer Luis de que ele e a esposa
poderiam reverter a situação de estarem parcialmente à margem das redes de socialidade local
dada a condição de incestuosos, ao assumirem esta posição de padrinhos, ao que Fernando
projetava efeitos de seu convite: “quem sabe você ganha salvação nas palavras de Deus
Tupanã”. Desse modo, entendia-se a oportunidade estratégica de demonstrar, ao menos para
“limpar um pouco os jeitos womãtchi na palavra de Deus”.


140 Nimuendajú a propósito, menciona: “Tenho razões para supor que hoje em dia a selva e as águas silenciosas
do igapó, sobre a qual as pequenas canoas de pesca deslizam rapidamente sem deixar qualquer evidência trair,
escondem os segredos de muitos amantes, cujos pais não suspeitam de nada. Os Tukuna, no entanto, por causa
das poucas barreiras para casamento para além de regras de incesto, vigorosamente ressentem qualquer engano a
esse respeito, o que pode resultar em conflitos muito sérios. Os pais consideram as relações secretas entre um
homem e sua filha uma falta grave; eles exigem uma explicação do homem imprudente que não respeitar a "sua
casa" e o aconselham que melhor seja que se case com a menina. Se ele se recusar, o que quase nunca acontece,
seu único recurso é fugir” (1959: 93 traduções minha).
241

2.2.1. Honra, documentos e conselhos

Remeto-nos a um comentário de Fernando sobre a espera dele para que Isara


completasse os dezoito anos para oficializar a intenção de casarem-se, quando ele, perante
Luis dizia-lhe que já era “tempo bom de negociação”, que Isara estava “no tempo de idade
para casar”, fazendo alusão à maioridade dela e aos contextos nos quais tais referentes foram
introjetados em “seus jeitos de ser e pensar no casamento”.
“Isso tem a ver com os saberes que a gente vai ganhando com a vivência nos
jeitos dos brancos. Assim é. A gente soube uma vez que com dezoito anos, o
jovem está adulto na lei dos brancos. Não é certo? Aí tira documento de
casamento. Tá de maior, não é? ”.141
Contextualizo essa situação como parte dos enredos que tecem pontes com a ideia
de “biopolítica”,142 como fruto dessas interlocuções com os exteriores constitutivos sobre
formas de governabilidades cotidianas entre os colaboradores, as entrecruzando com as
“políticas de convivências”. A associação proposta pelo casal, diz respeito ainda ao fato deles
terem aprendido na escola, durante algumas oficinas com “o pessoal da igreja que trabalha
com o pessoal da saúde [especificamente membros da equipe multidisciplinar de atendimento
à saúde]”, que, a partir de dezoitos anos, os noivos podem se casar sem necessidade de
consentimento dos pais. Isara comentava que tal “saber” “juntava-se” a outros que
expressavam seu “jeito maduro para casar”, como saber lidar com a roça e os “compromissos
com os parentes”. Algo que chama a atenção quando as “idades de documento” são
justapostas pelas categorias de ciclos de vida.
Fernando comenta então, “já estamos no tempo certo, da lei do branco, da lei dos
Ticuna. Cada ticuna, tem um jeito de ver esse tempo de ficar maduro, adulto. O nosso já

141
O casal refere-se à normativa, Estatuto Criança e do Adolescente (ECA, 1990), a partir do qual se entendeu
que a condição de menoridade e consequente necessidade de tutela legal de pessoas que não tenham tal idade,
justifica-se. Isso ocorre porque tal registro convergem-se produtivamente aos modos ticuna de conhecimentos e
aprendizados, no âmbito dos quais, os interlocutores são considerados “sujeitos imaturos”, numa escala.
Expressão cujo conteúdo semântico muito se aproxima, na lógica do casal ticuna, daquilo que descrevem ser a
classe de idade de quem ainda não se casou, tampouco teve filhos. Nada de inexplicável, portanto, na
justaposição desses conceitos. No ECA, de acordo com o art. 2º, a convenção de “menor idade” está desdobrada
em dois estágios de desenvolvimento: crianças, até doze anos incompletos, e adolescentes, entre doze e dezoito
anos. Deixo a lacuna de análise para futuros exames, sendo ainda necessário mais dados etnográficos para pensá-
las. Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm
142
Biopolítica aqui é usado inspirado na ideia de Foucault [2006; 1988] quando, especificamente, evoca
tecnologias de poder voltadas menos a “deixar viver” ou “deixar morrer” como no poder soberano, mas em
produzir meios de controlar não a um corpo individual, senão naquilo que combina às formulações ticuna de
diferenças. Isto é, a um conjunto de relações sociais que produz tipos de pessoas, de corpos relacionais; técnicas
e tecnologias e agentes encarregados da preservação da vida, eliminando tudo aquilo que ameaça a manutenção e
o bem-estar dos seus mais próximos. A figura que media aqui são os “pastores parentes”, “as palavras que
combinam” pecado como escalas morais, pelo efeito gerado, de atos de “womãtchi”.
242

chegou também no tempo das vontades de namorar”. Isara então, mais temerosa das reações
de seu tio-pastor, endossa: “é tempo mesmo certo para casar, antes que ti’tio pegue a gente
namorando e não deixem casar na igreja [risos]. Aí a lei do parente pastor é diferente
[risos]”.
O conteúdo exposto nos deixa espaço para refletir sobre a dinâmica das
micropolíticas de parentesco ticuna, em suas capilares linhas de força, de saber e de poder,
mobilizando as “negociações” de casamento do jovem futuro casal. Sobre tais liames Isara
nos diz que
“O titio [Alberto] ficou sabendo que a gente casaria e foi conversar com a
gente para aconselhar. Ele chamou a gente e nossos pais lá na casa dele.
Fomos lá. Escutamos o que ele nos disse com atenção. Assim se faz, antes
de casar. Chama os noivos e suas famílias para conselho; para dizer como
que deve ser a vida de casado, assim, das obrigações, o que a mulher tem
que fazer, o que os homens têm que fazer. Antes, isso era feito só entre os
parentes de perto, cada tio, cada tia que casava, falava conselho para os
noivos. Agora tem disso, Igreja, a gente tem o pastor que aconselha
também”.
Desde esta posição, de sobrinha do pastor, Isara coloca em cena a ambiguidade
em relação aos enunciados e de figuras de “autoridade” que utilizam as “novas palavras”
[virgindade associada ao casamento correto] como pivô de sua condição de possibilidade de
negociar sua aliança conjugal por meios de seus dispositivos como gestor moral.
“Virgindade”, “desonra” e “pecado” significam, no referente crente, componentes
equivalentes, a despeito de evidenciarem efeitos relacionais distintos. O que parece estar em
jogo nessa cena é que, do ponto de vista do pastor, “o sexo malfeito”, ao que ele vem
aconselhando, corresponderia a um estado da pessoa “impura”, enquanto critério moral e
político de efetivação de alianças, implicando negativamente em maneiras possíveis de fazê-
la, “na igreja”. Se não cumprida, isto é, casar-se não virgem, pode-se gerar vetores de
propagação de ações desmoralizantes: gera vergonha, porque “yetaï”, como viemos lendo,
transformou-se para alguns pontos de vista, em um tipo de “pecado”.
Argumento a partir daí, que estas perspectivas têm se alterado conforme os “jeitos
de ser”, atualizam-se em novas relações, sobretudo quando as “novas palavras”, inserindo-se
nos contextos de negociações matrimoniais, manifestam-se sobre diferentes dispositivos de
poder: permissões, interdições, classificações qualificadas como bem ou mal feitas. O que é
percebido, aqui também, em conjunturas de dissensos geracionais intrafamiliares, nas “brigas
243

de vontades 143”, abrindo espaços analíticos para futuramente, refletir sobre as ideias de
individualização que permeiam estas relações intergeracionais, ao contrabalançar o casal e
suas parentelas nestas tramas de alianças e dispositivos morais calcados nos usos da
sexualidade, mediadas por diferentes perspectivas e valores.
Nesse sentido, por enquanto, centramos atenção no que salienta o casal a respeito
das diferenciações entre os modos e os métodos de “negociar” casamentos que sua relação
permite visibilizar neste âmbito, quando o “parente pastor” em questão conduzia os trâmites
com base no que lhe parecia ser mais conveniente nesta posição justaposta de tio paterno e
aconselhador – como se alocavam seus demais irmãos e os irmãos da mãe do casal – dada as
experiência de conjugalidades contraída, e ainda seu capital religioso.
Do ponto de vista do casal, casar na igreja tornou-se uma opção, quando depois de
“muita conversa”, o pastor os “convenceu”. O que, entretanto, mostrou-se a eles como
oportuno para que, apesar de não necessariamente tê-lo assim planejado, tendo inicialmente
pensando em realizá-lo, como dizem, no “jeito antigo”, sem festa e Igreja. Mediante os
dissensos entre o lugar social da igreja, de seus dispositivos de controle ético-moral que estas
figuras de poder evocam, indaguei ao casal, porque, afinal, passaram a organizarem-se para
casarem-se na igreja, ao que Fernando discorre:
“Por que casar na igreja? É sinal de respeito, de honra. É bonito. Ela [a
esposa] quer vestido bonito; (...) queremos fazer festa para família e para o
pessoal da aldeia, com pajuaru (bebida de mandioca), arroz, macarrão,
frango e refrigerante. Vão ver que sou bom, porque faço festa grande,
depois, quem sabe, isso faz a gente ter mais pessoas para ajudar a gente a
abrir roça. Vai ser assim, casar meio de um jeito, meio de outro. E tem outra
coisa. Temos que casar porque já nos pegaram por aí, sabem que estamos


143 Cardozo (2014) e Magalhães (2014) em suas pesquisas recentes em contextos ticuna bastante avizinhados
aos quais trato aqui, apontam para a centralidade dos “sentimentos, apegos” (idem e passim 21-26), das
“economias das emoções” (Idem: 2013:192), como descrevem, respectivamente, as autoras. Eu mesma já havia
apontado, em ensaio breve (Rosa, 2013), o lugar que ocupam os afetos como categoria nativa na descrição ticuna
de suas relações conjugais, em pretensão, negociação, efetivada ou desfeita. O ponto em comum nesta discussão
está no relevo dado aos desencadeamentos perigosos e temidos sobre os “estados de ânimo” (Cf. Surrallés, 2003,
2006) da pessoa que uma disjunção, indiferente da razão e do momento do relacionamento, pode implicar. As
autoras referidas, em especial, nos ajudam a pensar aqui também os jogos de poder que estruturam tais
negociações, que confrontam autoridades parentais às liberdades próprias de seus filhos. Nesse sentido, minha
etnografia contribui ao diálogo, quando, além das falas supracitadas de Félix, Isara e Alberto, uma amiga ticuna,
de aproximadamente trinta e cinco anos, que tentava divorcia-se de seu esposo “arranjado” pelo pai para casar-
se com outro sujeito de quem “gostava”. O problema, segundo ela, resida na questão da rede de parentela do
pretendido não estar afiliada à nenhuma instituição religiosa, fazendo com que seus pais não vissem nessa
relação algo produtivo. Não eram contra a separação, contudo. Apenas, como me disse a mesma: “eles preferem
um marido para mim que seja mais da igreja, pra não beber. E isso de brigar e discutir com os pais tem a ver
com os afetos, aquilo que a gente sente, pensa, vê, o que se faz; os desejos e vontades de cada pessoa. Aí lá na
minha família, a gente diz que isso é briga de vontades”.
244

enrolados. Nos viram namorando no igarapé, lá perto da estrada da roça. Se


pastor sabe, pode não deixa mais”.
Nota-se assim, que o casal mobilizava valores e certos componentes favoráveis
localmente para suas alianças futuras e, igualmente, “casar na igreja” acionava estratégias de
manipularem possíveis “pensamentos do pastor”, que corria nas bocas pequenas, querer
saber, dizia Isara, sobre se a o casal estava “puro de sexo”.
Na final tarde, nas vésperas do casamento realizar-se, como talvez temesse Isara,
ouvia-se dizer que ocorrera algum tipo de “confusão com casal”, e os rumores afirmaram que
já não havia entre eles inexperiência sexual, e que a noiva já perdera sua virgindade, sua
“pureza”, como exatamente foi expresso, gerando em muitos apenas risos, em outros olhares
repreensivos. Em minha casa hospedeira, onde também já se comentava a respeito do
episódio, eu, buscava entender ali, outra rede de relações menos afeita às “palavras de Deus”.
Comentava-se que aquilo ali “era coisa da igreja, daquele pastor mais jovem [Alberto]”,
afirmando-se que seu ponto de vista era mais “radical” do que o antigo pastar, seu pai.
Essa situação que vai ao encontro da proposta analítica sugerida por Rival (2007),
pensando a respeito do lugar lúdico e criativo que os prazeres corporais designam no mundo
ameríndio. Baseando-se na realidade Huaorani, na Amazônia equatoriana, a autora menciona
que a razão de copular não necessariamente está atrelada a uma razão para além daquela de
bem-estar e prazer sexual,144 conjugando, deste modo, à perspectiva de Isara, que afirma que
“Depois veio essa palavra que ensina que moça e moço tem que ser puros,
que sexo é para [para reproduzir] filhos, fez nosso pensamento de outros
jeitos, e cada um vai se fazendo nesses jeitinhos. Isso de namorar também é
bom para rir, para divertir, como a gente faz. Filhos, é melhor fazer depois
do casamento, para fazer família e cuidar dele com mais juízo, como
ensinam. Aí a gente cuida toma conselho das tias, avós, dos tios e dessa
gente da religião, tudo meio junto”.
Retomando argumentos já expostos linhas acima de que as transformações desses
valores em relação às pratica sexuais derivavam da “confusão” que alguns faziam, no sentido
de “fazer virar regra um jeito de conhecer o sexo malfeito”, Isara nos apresenta uma chave
possível para compreender o que se entendia nesse circuito como contextos que produzem
essas relações de saber-poder que culminam na ideia de que alguns, “para casar na igreja tem


144
Cf. Rival (idem: 02), onde a autora cunha e desenvolve a noção de sexo lúdico, tradução minha à expressão
“laughing sex”.


245

que aprender a namorar”, sempre dimensionados “no tempo desses saberes misturados entre
os parentes”. Eis o dilema moral que [e que me interessa focalizar aqui] evidencia a
pluralidade de referentes, e efeitos deles sobre as relações que os envolvem em noções de
produção de pessoa, do parentesco, projetando novas possibilidades de observar as relações
entre saber-poder contidos nos mecanismos de “negociações” entre o casal e suas redes de
parentela, na qual se justapõem posições de “autoridades” diversas. Mais do que isso, torna a
etnografia um espaço de reflexão para repesarmos modos de abordagens desses eventos pelos
instrumentos analíticos por eles propostos enquanto chaves das transformações.

2.3. Efeitos
(Entre vergonhas e desonras)

Soube que o casal havia procurado o pastor, bastante envergonhados após a


circulação dos rumores citados. De acordo com eles, “pesou a consciência”, e decidiram
“contar a verdade” sobre eles não serem mais “puros”. Fernando observa que conversaram
mais entre eles, e optaram por realizar o casamento, mobilizando a rede de parentes e
comunidade. Decisão tomada, “pecado confessado e honra no jeito certo para não brigar
com parentes”, dizia Fernando, o convite foi distribuído e anunciado na “boca de ferro” da
comunidade. Passava-se, com isso, a saber da “nova família” .145
Do ponto de vista do pastor, que o realizou, o casamento de sua sobrinha com
Fernando, “foi quase certo”. Este foi um dos poucos comentários que ouvi dele, ao que seguia
“minha sobrinha pecou nas palavras de Deus, nisso do pecado, de luxúria, como diz no jeito
do branco religioso, não no sexo malfeito dos antigos”. E o que é luxúria, digo-lhe perguntei,
bastante intrigada. Como resposta obtive os seguintes dizeres: “é assim, o desejo de sexo
malfeito, o descontrole da carne, das vontades. Perde-se a cabeça pela vontade do sexo”. Lhe
retruquei, já encerrando o diálogo: “então, isso é o que tem a ver com a não pureza dela,
pastor? ” “É, é isso. Não que sexo seja ruim, não, moça. É bom, sim [risos]. Só que tem que
cuidar”.
Seus efeitos interseccionam-se nas eficácias de sua atuação, ao aconselhar aos
jovens nos princípios filosóficos do devir imortal: “um dia o mundo dos Ticuna ficou
perigoso por isso daí desejo de sexo malfeito. E agora palavra de Deus ajuda”, disse-me
Alberto, já notavelmente sem graça e sem gosto de seguir a conversa.


145
Ver descrição deste evento nos apêndices do capítulo, item I.
246

A “pureza”, aqui conectada à “virgindade”, demonstrando, em última análise,


também questões alinhadas aos processos de elaboração de regimes de conhecimentos e,
portanto, de aprendizagens sobre o lugar social do matrimônio e seus efeitos na produção de
socialidades, marcadas aqui intergeracionalmente e por referentes religiosos naqueles
derivados de outros processos de aprendizados. Com efeito, a ideia de virgindade, honra e
pureza, são também critérios de uma produção específica de parentesco: gera parentes
impuros, pecadores, caso sejam negligenciadas, criando noções de corpos que precisam de
algum modo eficaz, serem “purificados”. Nesse sentido, o pastor justificava o método da
confissão que empreendera aos jovens, “para saber como estavam e se podia ajudá-los a
limpar a honra”.
A um só tempo, ainda, “casar na Igreja”, reverte-se aqui, ainda que na descrença,
em uma estratégia e meio de mobilidade social para os jovens, e alternância de estatutos
quando as condutas do casal ao aceitar as atuações do pastor revelaram-se correlacionando a
um outro efeito, a virtude para ser uma “boa mulher de alguém”. Algo análogo e com inflexão
de gênero foi-me dita como “um rapaz namorar bastante, e nunca querer casar é desonra
também”. O que não é o caso aqui, mas culmina em implicações similares: “palavras feias”;
relações que abalam qualificações não apenas à díade conjugal, senão aos que em coextensão,
também se envolvem nas alianças. A mãe de Isara, a respeito, disse-me: “sexo malfeito deles
vem da preocupação com os problemas de vergonha na família, de outra filha [também
residente na aldeia, e mais jovem] não arrumar marido por isso daí”.
Se aos olhos do pastor aquele era um casamento “quase certo”, do ponto de vista
dos noivos, e de outros membros da rede extensa de parentela, com quem sondei a respeito,
em geral, o que havia “errado”, parecia residir também na insistência de realizar a cerimônia
nos padrões religiosos. A mãe e a sogra de Isara, rindo, alocavam a presença da igreja e dos
gestores de conduta (“parentes pastores”), no que exclamavam na ambiguidade do dispositivo
da sexualidade e dos critérios morais que a envolvem, neste contexto particular: “se faz sexo
malfeito, não é a igreja que faz salvar a alma, só disfarça. Chegou o pecado e a regra dos
antigo agora vê, cuida disso do namoro [sexualidade]”.

***
Vejamos, então, uma segunda narrativa conjugal, com Luis e Juraci, para com ela
visualizar como se entrelaçam, autoconstituindo-se, numa mesma aldeia, os dispositivos da
sexualidade, desta vez evidenciando um caso particular de “womãtchi”. Isto implica pensar a
partir de um “jeito de casar errado”, de fazer-se também, em conexão com outros
247

componentes cosmopolíticos, enquanto pessoa e “parente poluído” e “pecador”. Se a ideia


mais genérica do tabu do incesto entre os interlocutores revela-se nas disposições dos pares
preferencias que tenham determinadas posições genealógicas e de “convivências” similares,
produzindo proximidades riscosa ao socius, o que permanece e refaz-se nesses critérios com a
presença das “palavras Deus”? Como se visualiza aqui jogos de poder vinculados aos saberes
diversificados que circunscrevem noções de “casar certo ou errado” mediante “versões”
variadas dos efeitos do “sexo malfeito”?

3. “Das vontades do sexo” e o womãtchi

Luis e Juraci
(Casar na igreja para honrar e dar o golpe no Yereu146)

3.1. Relações

Luis fora, em sua juventude, um rapaz bastante cogitado para o casamento,


segundo ouvi murmurinhos na aldeia, a respeito de sua dedicação aos estudos, à pesca e por
apresentar-se solícito. Juraci, sua esposa, não diferentemente havia, no seu tempo de
solteirice, recebido algumas propostas de casamento, porém, ela escolhera ao Luis, de quem
dizia gostar muito, e que, por isso, enfrentou os desafios da aliança proibida, pois casando-se,
estariam cometendo incesto. Sobre o interdito entre eles, ela menciona que ao saber da
intenção de casar, seu pai “chorava”, a dizendo para não seguir adiante com o laço conjugal,
tampouco envolver-se sexualmente com o rapaz. Para evitar “problemas” ela fala, desolada,
que havia tentado contrair matrimônio com outros pretendentes, mas, que em vão, voltava a
aproximar-se de Luis, ao que dizia: “não adiantava, queria esse homem aí mesmo, daqui de
dentro vinha a vontade dele [com a mão sobre o peito]”.
Juraci, falando a respeito do percurso contextual de sua situação conjugal situa-se
na morfologia relacional da aldeia, associada intimamente com os processos de atualização e
coexistência das “versões” de “casar certo ou errado” também, atreladas à ideia de “sexo
malfeito”, ao mencionar que a casa do casal ao estar afastada, indica o lugarzinho para gente
dos poluídos”. Justifica seu parcial isolamento do restante da aldeia junto com marido e os
filhos, como parte da “política de vivência”, evitando-se assim, “olhares feios”.


146
Entidade não humana, habitante da floresta, conhecida como um dos “bichos” enviados pela demiurga Ta’é
responsável por ataques fatais a pessoas incestuosas.
248

Ela e Luis comentam que quando decidiram assumir o casamento, a aldeia, em


grande parte, foi contra. Buscaram mediar a situação por meio de conselhos, de exemplos de
outros que em comunidades bastante próximas dali haviam falecido em decorrência do que
diziam ser ataques fulminantes dos “bichos de Ta’é”; chegou-se a recomendar que, se
insistissem na união, melhor seria mudarem-se dali para escapar dos eventuais ataques e não
colocar a aldeia em estado de alerta. Logo tiverem seus primeiros filhos, nascidos de partos
naturais bastante complicados, fora de posição e sem chorar ao serem paridos. Estes sintomas,
dizia-se indicar duas situações possíveis: efeitos de feitiços ou incesto.
Com isso, ela produzia condições de possibilidades de mostrar-me como se
constituía, enquanto pessoa e parente, em relação aos seus, afins e consanguíneos,
dimensionando, desse modo, sua situação conjugal nas micropolíticas de parentesco,
sexualidade e aliança.147

3.1.1. Dos “consertos” e fugas possíveis

Conheci o casal, que compreende bem o português, e que se encontravam em


relativo isolamento cotidiano, notadamente, não empreendido por seus parentes mais
próximos e pelo espaço de socialidade que a igreja veicula, quando eu estava acompanhando
uma equipe multidisciplinar de saúde que atendia aquela área indígena. Junto estava um
enfermeiro não indígena que acompanhava um médico ortopedista de Manaus, que ali estava
não pela primeira vez. O tal médico voltava para fazer encaminhamentos de consultas a um
dos filhos de Luis e Juraci, na capital, para, com alguns procedimentos cirúrgicos, intervir e
“consertar”, como descreveu a situação Amaury, o Agente Indígena de Saúde (AIS) local que
nos acompanhava a propósito da presença do médico.
148
Amaury, contudo, colocava-se descrente de tal possibilidade. Isso
materializava-se para o AIS, de trinta e dois anos, “casado certo”, como dizia-me, na sua


147
A concretude do ato de incesto é estendida sobre os agentes que o efetivam diretamente assim como às
pessoas geradas por seus “sangues poluídos”. Os três filhos de Luis e Juraci possuem, como todos os demais
filhos de pais incestuosos que tomei conhecimento, deficiências físicas e/ou intelectuais, em diferentes níveis.
Neste caso em particular, todos os filhos nascidos do casal até agora apresentam problemas nas articulações dos
joelhos e dos braços. Eles mantêm-se afastados da escola, das amplas redes de amizades na aldeia. Não serão
cônjuges potenciais de ninguém. Há relatos de abandono dos filhos gerados nestes casos e comumente, nas
poucas ocasiões em que consegui dialogar sobre o tema, os interlocutores afirmam que estas pessoas “não são
completas, nascem sem força e sem alma, sem pensamento”. E afirmam ainda que seu tempo de vida precária é
bastante curto.
148
Foi com Amaury, nesta situação, que primeiramente aprendi que entre nesses grupos de interlocução é a mãe
quem decide sobre o que fazer com os filhos, até eles ficaram independentes dela. Por isso, ele acompanhava-nos
nessa visita, não apenas para indicar a casa e as pessoas, mas para mediar, traduzindo especificamente os dilemas
em relação a este caso particular, uma vez que, por melhor que se fale a língua portuguesa, nestas situações de
249

visível hesitação em acompanhar-nos na visita à casa do casal em questão, cujo casamento


qualificava como equivocado e cuja casa estava próxima da área de roça. Reticente, ele
desabafou, num momento de impaciência com o médico, que insistia com a mãe em levar o
filho à capital manauara e de lá, se necessário, seguiriam juntos a “São Paulo do Sul” para
procedimentos cirúrgicos:
“Dona moça, diz aí pro médico que esse problema dos filhos desse casal é
de womãtchi. Adianta nada levar para cidade, só vai fazer pior. Deixa eles
aqui, no jeito deles. Isso aí, para ele entender, diz que é doença de índio,
não de médico. Luis e Juraci estão womãtchi. Remédio para isso é outra
coisa. Diz que é coisa do sangue misturado igual. É melhor ficar, a mulher
tá dizendo, é um tipo de castigo, mas ele [o médico] não vai saber. ”149
Quatro meses passaram-se desde esse evento, quando, então, retornei à aldeia, já
ciente de que nem a Juraci tampouco seu filho “doente e desajeitado do corpo” haviam
partido para o tratamento alhures. Retornava à aldeia de visita, e perguntava pelo casal e seus
três filhos. Poucos na aldeia atreviam-se a me responder sobre eles, entretanto. Parecia-me
que ao fazê-lo, teriam de falar (mais uma vez) a um estranho sobre algo que lhes “preocupa”,
disse-me uma interlocutora, dias depois de minha chagada.150”
Paulatinamente, depois de sondar com outros moradores nas semanas seguintes,
deles apenas soube que Juraci e Luis se haviam ido para a cidade, neste intervalo de minhas
idas e vindas. Compreendi, tempos depois, que o drama desse casal e, com efeito, todo o
desvelo para não se comentar muito sobre os motivos de sua viagem, manifestavam-se,
claramente, não estar associado à enfermidade do filho. Residia nos “perigos”, disse-me Luis,
caracterizando sua condição de interdito marital.


diálogos, as mulheres, tímidas e por suas próprias razões também usadas inteligentemente como dispositivos
bélicos, solicitam o auxílio dos parentes. Bélicos, porque, sabemos, o silêncio, quanto o riso, dizem muito.
149
A situação de incesto remete, como conhecemos na abertura da tese, aos atos de agentes masculinos ancestrais
(Ipi e Lua), cujos desejos incontroláveis por sexo violaram certas etiquetas de convivência. Desde tais episódios,
“castigos” foram materializados em diferentes formatos. Uma das formas manifesta-se nas aparências e variados
tipos de sangues, especificamente perigosos como o sangue menstrual e sangue do parto. E, se não bem
administrado, também o “sangue de homem”, o sêmen. Estar em condição de incesto clânico, corresponde ao
conceito ticuna de “corpo pesado”, com “pensamentos e sangues poluídos” e também “pecaminoso”, o que nos
evidencia uma evidente justaposição dos referentes que definem o sexo malfeito. Encapsulam-se na imagem
negativa e estéril que recusa o “acúmulo do idêntico” (Héritier, 1989:99 passim). Tudo isso, segundo aprendi
nesse particular enredo etnográfico, está circunscrito na ideia de “nacüma i tchié”, glosado como “pensamentos,
formas de comportamentos malfeitos; não de acordo com a cultura ticuna”. Ações/pensamentos negativados,
portanto.
150
A situação de incesto (womãtchi) não é um tema do qual facilmente se fala nos lugares onde estive entre os
Ticuna. Assuntos que tangenciam o evento, indiferente de suas circunstâncias, não são falados, senão entre os
considerados mais íntimos. O que formula tal silêncio, gira no entorno do temor da morte que cedo ou tarde
acomete estes sujeitos “poluídos”. Isso está vinculado aos rumores acerca do que teria causado a perda de um
parente, que é um vetor poderoso de “fofocas feias”, “das palavras ruins”.
250

Seguia, assim, praticamente alimentando o diário com notícias de terceiros sobre a


situação, e já não insistia no tema. Nem mesmo com Amaury, com quem tecia diálogos
frequentemente. Ele escapava do tema, sempre que possível. Ele contava-me sobre casos em
outras aldeias, nunca ali. A situação mudou, quando num certo momento da estadia, eu
preparava-me para uma ida rápida à cidade, e a mãe de Juraci enviou-me, através Amaury,
talvez para seu desgosto, um recado para que fosse a casa dela. Amaury, reticente ao me
repassar a mensagem, comentou: “ela tá nervosa”. Ela queria, enfim, que eu levasse à filha,
na cidade, quando eu fosse, um pouco de farinha. Sem falar português, pedi ao Amaury que
me acompanhasse, ao que ele respondeu que o faria apenas “na escondida, não quero parente
meu falando que eu estou andando com gente desse jeito. Se perguntarem, é trabalho do Polo
[Base]”.
Antes, porém, de entregar-me um cesto com uns dois quilos de farinha, a senhora
ofereceu-me sua tão bem elogiada receita de suco de pupunha. A mãe de Juraci, que pensava
que eu era médica, sem domínio do português, pedia ao mesmo sujeito do recado, “parente de
confiança”, que traduzisse suas palavras. Depois de uma longa fala, com paciência e cuidado
por ela enunciada, Amaury, disse-me para atentar, mesmo com dificuldade de entender
qualquer coisa “[d]esse ticuna que falam os velhos”.
“A filha dela viu bicho, começou a ter visão feia. Pensou em ir embora
desse mundo para não sofrer e nos trazer tristeza. Mas não deu certo,
acharam ela na corda em tempo.151 Estava na casa dela. Ai ela, com mais
vergonha ainda, foi embora com os filhos desajeitados. E o Luis, por honra e
por amor a essa mulher, se foi embora junto dela. Desceram o rio, foram


151
Aprendi que o termo em ticuna para o ato de suicídio é “we’ena’ã”, podendo também ser apenas referido
como “na’ã”. Ao acompanhar as atividades de agentes de saúde ticuna em parcerias a profissionais do campo da
saúde mental não indígena, aprendi que para saber algo sobre um evento desse tipo empregava-se na língua
ticuna a expressão “nhǖãcü”, glosado “como foi que aconteceu? ” A resposta vinha quase sempre por dois
métodos. Um deles é napana’ã, traduzido como “pessoa na corda”, sinônimo de enforcamento. Um segundo
“jeito de ir embora” é pelo uso de “ǖ’ǚ”, traduzido como “veneno que para a pessoa”. Seu efeito é análogo ao
ato de sufocamento dos peixes causado pelo veneno de cipó venenoso. Não aprofundei saberes sobre isso, pelas
razões já mencionadas na introdução. Interessantemente, we’e aparece como prefixo que conforma também
“we’e” traduzido como “ciúmes”. Sobre o tema da morte e suicídio sugiro a leitura de Erthal (1998, 2001) e a
respeito da conexão destes eventos com os relacionamentos conjugais e as dimensões dos afetos, ver Cardozo
(2014) e Magalhães (2014). Segundo relataram-me, e indo ao encontro do que também mencionam as
etnografias citadas, há os temidos “bichos da floresta”, sobretudo os Tchatchacuna, “os demônios que têm as
cordas”; tipos de entidades maléficas (ngo’ogü), com quem encontros podem ser fatais. São, como dizem, “os
ng’ó do suicídio” cujo estado de entristecimento os atrai. Estes entes maléficos, de acordo com Amaury,
“atormentam” aqueles que “entristecem o pensamento por causa do marido, das invejas das mulheres” ou
celeumas com os parentes próximos. Não à toa, Magalhães (infra) associa estes eventos às causas de conflitos
conjugais. Havendo como a etnógrafa informa “paixões suicidas” (op.cit: 12-13). Ao nosso caso,
particularmente, a figura do “Yereu”, é o protagonista que alicia a morte dos incestuosos.

251

para cidade fugir dos bichos, das fofocas, dos preconceitos dos próprios
parentes”.
Passei alguns dias na cidade buscando contato com Juraci e Luis. O único meio
para isso era o contato por celular, cujo número me havia passado a mãe de Juraci. No final
do segundo dia de tentativas, o sinal acusou a chamada. Combinei com Luis que os
encontraria na frente da igreja, no centrinho da cidade. Nos encontramos, e completamente
sem proximidade para puxar qualquer tipo de conversa inicial, eu apenas lhes transmiti
notícias enviadas pela mãe de Juraci, em português. O casal, por levar a sério a etiqueta de
reciprocidade ticuna, propôs continuidade à conversa, oferecendo pagar um lanche em
agradecimento pela farinha, pelas notícias e os presentes. Aceitei o convite deles para um
churrasquinho numa cantina próxima dali.
Ao perceber minha inevitável indiscrição, ao fitar o filho mais novo do casal, com
três anos, irmão do mais velho cujo médico queria “curar”, Luis retruca-me: “lá de onde a
senhora vem não tem gente assim? (...) assim, malfeita? Ela [Juraci] tá dizendo que já viu na
novela”.

3.2. Negociações

Nestas conversas longe da aldeia, Juraci mencionava, em português “aprendido


na escola”, os meandros que definem a situação deles como “parentes no jeito womãtchi”, e
eventos que engendraram as negociações de suas alianças, em decorrência de serem ambos
filhos de “pais no mesmo grupo de nações”. Ele é japó, ela garça, seguindo com a descrição e
qualificação a conjugalidades em tela como “mistura feita errada, sem conserto depois do
casamento, do compromisso arranjado”. Luis, qualificava ainda tal “mistura igual” como
meio de provocar em suas redes de parentela afetos tristes relacionados aos efeitos dos
“ataques dos bichos de Ta’é”, revelando que as negociações iniciais não passaram ao largo de
tensões
“Assim, foi. Quando gente começou assim a se gostar, logo chegaram para falar
com a gente, dizer, assim, alertar dos perigos, como se diz. Papai dela ficou
furioso. Ameaçou me deixar preso na prisão que tinha aí no antigo posto da
FUNAI, na aldeia logo ali. Aí ela foi que ela fugiu comigo para casa de outra
gente, de primeiro. Foram muitas vezes isso daí. Castigo, fuga, conselho. Tudo
fizemos, até que papai e o pai dela e mais as famílias juntas, acho que se cansaram
assim de falar, de desperdiçar palavras boas, e já nos deixaram quietos. Disseram
“vai faz womãtchi que bicho vem. Ai nem pastor te salva”. Aí viramos parentes
252

poluídos, deixados de lado assim. Eu me fiz, me formei professor pra ver se


ganhava respeito. Aí foi que sobrou bem pouquinho aluno lá na aldeia para eu
ensinar. Aí fui embora, de primeiro, dar aula na outra aldeia. Lá não sabiam bem
assim dessas histórias aí do nosso casamento errado e dos desentendimentos, como
diz, com os parentes. Só que esse bicho feio foi lá também chamar e o pessoal de lá
achou melhor eu não ficar. Certo eles, se fosse aqui, não comigo, eu ia aconselhar
assim também. ”
Em resposta à Juraci, eu comentei que não me surpreendia, em primeiro lugar, o
fato do fenômeno do “womãtchi”. Diferentemente, porém, expressava curiosidade em saber
da existência alternativa dos aparatos e técnicas de gerenciar essas situações, como ela dizia,
“da prisão”, “do pastor”. A resposta veio de Luis, que comenta que a prisão indígena como
uma modalidade de ação pedagógica tem origem nas relações com o tempo do SPI e que fora
incorporado a estas situações como um “castigo dos parentes para ajudar aqui a melhorar de
vida. Deixa pessoa lá sozinha pensando, quem sabe ela muda de ideia”, o que não ocorrera
com ele. Juraci ri, e diz em seu tímido português:
“Mistura o jeito do índio resolver problemas com os jeitos da gente de fora.
Assim, das palavras que ensinam dos primos certos de casar. Se pessoa casa
errado e se faz como nós no womãtchi. Isso pastor não cura, tem o bicho
Yereu. O pastor, a igreja, o médico, tudinho se mete nisso, para ajudar ou
152
não os parentes. ”
3.2.1. Yereu

“Tish, tish, tish...é assim o barulho que o Yereu faz. São os passos dele,
devagarinho no mato, mansinho, assim. [Ele] chega sem a pessoa perceber bem, aparece
assim, fuuumm na tua frente e te leva o sangue”. Essa foi uma descrição de Luis sobre uma
das maneiras de manifestação do Yereu, “o ngo’ó que cuida dos casais em womãtchi”, como
ele caracterizou, ocorrida num dia qualquer em que ele estava voltando da roça. Luis diz que
voltava sozinho, com a cabeça voltada ao solo, pelo peso do cesto de carga, farto de abacaxis,
batatas e bananas, “pensando, assim, na vida, né, nas tarefas”. Já quando estava


152
“Prisão” é um instrumento de controle social usado pelos Ticuna, a exemplos de outros contextos ameríndios.
A prisão, ou “cadeia ticuna”, é uma casa de madeira, bastante pequena, usualmente abrigando dois cômodos,
sem água nem energia, dentro dos quais se mantém os “infratores de castigo”. Sabe-se pela literatura que estes
mecanismos de força e poder foram instaurados inicialmente pelo regime tutelar estatal exercido pelo SPI, por
meio dos Postos Indígenas. E depois seguido pela FUNAI, como meios para coibir o consumo de álcool nas
aldeias. Técnicas estas com clara evidência de influências de um regime militar. Ao contexto Ticuna, em
particular, tais técnicas remetem ao período anterior à instalação desses órgãos tutelares, tendo sido conhecido
no “tempo da seringa” (cf. Oliveira Filho, 1977, 1988, 2000 a, 2000 b).
253

aproximando-se dos limites da roça de uma de suas tias (irmãs de seu pai), “já assim perto da
estradinha que leva de volta para a aldeia”, ele narra que avistou o “bicho”.
Ele diz que este lhe mirava “bravo, respirando forte, cheiro forte também ele
tinha”. Luis, com voz baixa, quase em sussurros inaudíveis, segura minha mão, solta o prato
com seu churrasquinho e afirma: “dona, pensa numa cara feia. A cara mais feia que já vi na
vida. Nesse dia pensei que me ia”.
Juraci relatou-me uma das ocasiões em que teve a “visão”, o encontro com o
Yereu, dimensionando-o no universo do controle social derivativa de sua condição: “esse
bicho chega assim mesmo. Passo por passo. E sempre que a pessoa tá sozinha. Só ela de
womãtchi que vê. Ninguém mais, nem pastor, nem pajé. Por isso não tem muito remédio pra
isso”. Ela conta, corroborando que o “bicho”, apesar de ter visão precário, tem um olfato
apurado, podendo perseguir a pessoa pelo rastro de seu “cheiro forte, de sangue sujo”. Ela
conta que estava sozinha também no caminho da roça, onde a estavam esperando para fazer
farinha, quando o encontro ocorreu. Ela conta que ouviu um assobio e alguém puxando seu
cesto, e ao que virou deparou-se o Yereu, descrito de como “grande, feio, dentes de
vampiro”. Conta que desmaiou, em decorrência dele estar “sugando seu sangue que é o
pensamento bom da pessoa” e que ao despertar, estava já sendo acolhida por uma sobrinha,
que estava também indo pra roça, que disse não ter visto tampouco ter escutado alguma coisa.
Juraci após o incidente, ficou adoentada, sem que o xamã lhe pudesse ajudar, “ficou
fraquinha”, “poluída”. Foi nesse momento que seus parentes proibiram seu casamento com
Luis, inicialmente.
Luis, então, discorre sobre a presença dessa entidade no que envolve suas
narrativas de “negociações” e configuração conjugal ilícita.
“Casar errado chama o barbudo, o bicho ruim lá da floresta; não pode, por
isso é carne mal trançada, como diz na nossa língua. Nosso jeito de ver esse
casamento é assim, de mistura de sangue igual que deixa cheiro forte,
marca a gente. Esse cheiro forte ai é que chama esse Yereu. Ele vem, mata.
Tenho já essas visões, esses encontros com ele. Juraci [esposa do narrador],
ela também tem isso. Isso é assim, um tipo de castigo dos imortais, não tem
a ver com pastor e essas coisas de pecado e sexo malfeito, de honra e
virgindade, não. Agora, a gente quer é casar lá igreja da aldeia. Voltar a
morar lá sem mais problemas pros parentes da gente e para gente, porque
esse pessoal de lá fala mal, bem mal da gente por causa disso ai. Dizem que
somos impuros por casar errado, com parente errado. Ai minha família e a
dela [da esposa] ficam assim, tudo meio triste, né, porque eles também têm
254

medo assim desse bicho feio aparecer e nos levar daqui para sempre, como
castigo né. Só que também chamam a gente de pecadores, porque desonrou
família”.
Com efeito, ao indagar Luis sobre a viagem à cidade como estratégia de
esquivarem-se dos mal-entendidos mencionados e das “visões” e encontros com o Yereu, ele
ensinava-me, sempre muito pacientemente, suas “versões” do “womãtchi” e as implicações
nas micropolíticas de parentesco e alianças, colocando a experiência da sexualidade como
marco possível para pensar a atualização, ou ainda de transformações dos registros e
contextos de produção de conhecimentos sobre o problema do “sexo malfeito”, que
caracteriza sua conjugalidade e o lugar à margem na aldeia.

Desenho de Ribamar Guilherme


255

3.3. Efeitos
(“casar na igreja”, procedimento de descontaminação)

Luis, Juraci e os três filhos retornaram para a aldeia semanas antes do casamento
de Fernando e Isara. Quando soube, não tão imediatamente, tratei de ir visitá-los, o que
culminou com a ocasião em que Fernando, por coincidência, passara para convidar o primo
para ser seu padrinho de casamento junto com Juraci. Passado o evento do matrimônio já
descrito, Luis, noutra situação de visita à sua casa, menciona-me que a opção mais recente
para “se salvarem do pecado do womãtchi” era a de casarem-se na igreja Batista da aldeia, o
que, segundo eles entendiam, oferecia um resguardo estratégico para suas situações
poluidoras, pois, por um lado, promoveria uma imagem de respeito, ao que associavam pela
afiliação a instituição religiosa, que os tornariam, “ali debaixo da palavra do senhor, gente
igual aos parentes”.
De outro lado, ficariam “protegidos na palavra de Deus”, cujo efeito desejado era
de “quem sabe com isso não ajuda a espantar o Yereu, a enganar, a dar o golpe no Yereu? ”
E mediante a situação de Fernando e Isara que reverteram a de “desonra” que eventualmente
poderia ser desenvolvida se eles não tivessem sido “abençoados”, Luis e Juraci, elaboram sua
própria estratégia:
“Esse casamento deles limpou honra dela, não foi? Quem sabe me ajuda, eu
minha senhorita, a limpar também. Vê se a parentada ai para de ver a gente
assim com vista triste; (...) já que falam que a gente é pecador também,
porque não ia funcionar isso ai da igreja, né? (...) se a gente vai virar alma de
mau morto, as natchi’í, sem ir pro céu dos imortais porque tá desse jeito
womãtchi, quem sabe, pelo menos, nesse tempo que a gente tá aqui, a vida
entre parentes melhora, né. A gente ganha assim, mais confiança, mais
respeito. A palavra do senhor perdoa, diz ele [o pastor]. Assim é nossa
negociação. ”
E parece ser neste espaço de ameaça às diferentes formas de socialidade que o
plano de se casar sob “as palavras de Deus” aparece ao casal incestuoso e também “pecador”
como alternativa paliativa de “salvação” e “melhoria de vida”. Um tipo de procedimento
moral de descontaminação, digamos assim. O que parece estar diretamente relacionado aqui à
asserção feita por Fernando ao Luis, páginas anteriores quando lhe dizia dos efeitos benéficos
de ser padrinho e engajar-se, ainda que “no jeito crente de ser sem virar radical”, como
qualificavam ambos os planejamentos referidos. A igreja, a conversão situacional e
256

estrategicamente inconstante (Viveiros De Castro, 2002: 183-264; Vilaça, 2007) emerge,


respondendo as nossas perguntas iniciais, a um espaço de aceitação social mínima. Isto é,
“aceita”, porque “conserta” o “jeito de ser malfeito”.
Uma conversão “só para a vida de aldeia, não de pensamento de crente”,
explicava Luis. Esta estratégia possibilita alterações dos estatutos de pessoa e parentes a
posições possíveis de controlar suas diferenças “perigosas”, portanto, “poluidoras”. Nesse
sentido, as instituições confessionais, seus aparatos todos, na lógica do “consumo produtivo”
(Fausto, 2001), ganham lugar social enquanto instrumento de uma ‘microbiopolítica’ ticuna.
O fato de Juraci e Luis irem à igreja local, já havia sido “ensaiado” no período na
cidade, para o qual eu servi de testemunha, de acordo com Luis, ao ter marcado o encontro em
frente a ela. Juraci informou, ademais, já interessada tanto quanto o proponente ao casamento
na igreja, “que isso de voltar para casa e casar na igreja ajudava a melhorar de vida”.
Quando lhe perguntei se havia algum momento em que as tensas interelações familiares e
com a comunidade permitia ao casal e seus filhos conviverem sem “preconceitos”, a
mensagem emitida fora justamente dimensionadas a essa conversão inconstante, quando
Juraci passara a ir na igreja, mesmo alojando-se ao fundo, com “vergonha” seguindo
conselhos de sua mãe, que havia conversado com o pastor, que incentivou a presença de
ambos entre os fiéis locais, pois ali, na igreja, ao menos, diziam-se “todos irmãos”, e que se
empenhariam para “ajudar as pessoas a consertarem seus erros”.
Como detalhava sua expectativa, Juraci mostrava que tal engajamento seria, por fim, “um
jeitinho da gente, cada um, tentar a salvação, do jeito dos imortais ou do pessoal da Bíblia,
noutro céu, né, não com Yoi mas lá na casa do Tupanã (Desu)! ”. Isso ao lugar das
ambiguidades e da fragilidade das atuações e enunciados do parente pastor como gestor moral
do parentesco, “ele nos ajuda ali, no lugar onde as palavras dele tem poder”.

4. “Parentes poluídos, palavras que combinam”

(…) “é, acho que é isso, o pecado e o womãtchi são palavras que combinam.
Faz parente poluído, cada desses saberes fala de um tipo de sexo malfeito.
Ai isso de casar na igreja faz combinar”.

Alberto emprestou suas palavras para abrirmos o debate do objeto do capítulo, e


com elas o encerramos. Se sua memória nos auxiliou a conhecer uma possível cartografia da
interlocução entre as “misturas de palavras sobre o sexo malfeito”, elas também nos
conduziram, assim, a pensar nas conjunturas dentro das quais discursos sobre “autonomia”,
257

“melhorias de vida” e “salvação” como componentes que produzem e mediam o parentesco.


Isto porque, como outras tantas, tal instituição confessional, como já exposto, foi gerativa de
espaços sociais de inserção e reavaliação funcional das categorias locais (Sahlins, 1985;
Robbins, 2004). Nesse sentido, ela no uso estratégico via “consumo produtivo” (Fausto,
infra), através da presença das “novas palavras”, cria modos de significá-las, desenvolve
mecanismos para controlar (pureza, pecado, palavra de Deus, castigo, salvação) decorrentes
de afecções sobre as relações e seus agentes. Desse modo, a apropriação das “palavras dos
antigos” e das “palavras dos missionários gringos”, agora em domínio dos “pastores
parentes”, das “autoridades” morais, resulta noutras formas de “convivências”, dá lugar às
técnicas de controle das diferenças internas, postas em movimentos pelos agenciamentos e
engajamentos particulares, colocam os interlocutores em embates entre si.
Nessas configurações no âmbito de suas micropolíticas constituintes, estas
relações conflitivas dão lugares sociais às categorias de parentesco, “parentes poluídos”
ambígua e simultaneamente expressas em conexão com o “sexo malfeito” com “pecado” e
incesto, e nessas dimensões cosmopolíticas, “as palavras que combinam” tornam-se potentes
chaves analíticas para entender, nos contextos que envolviam a rede de parentela de Alberto, a
problematização dos códigos de “convivências” [socialidades]. Sobretudo naquilo que tange
as moralidades sexuais na rotina indígena como se lê na epígrafe do capítulo.
Nesse marco, os interlocutores encontrem elementos para refletirem acerca das
transformações sociais que lhes acometem, incluindo aí percepções sobre o casar e o
casamento, “bem ou malfeito”, marcando as ambiguidades ontológicas que os constituem
enquanto parentes “com jeitos poluídos”, por isso, gerativos de “parentes pecadores” e
“parentes womãtchi”, também expostos pelas dinâmicas das “brigas de vontades” que
envolvem justamente essas “combinações de palavras”.
Assim, no âmbito da interface proposta entre incesto e pecado, essa série de
“cuidados com o mundo e com os parentes” ocorre diferentemente, ainda que pareça
convergir para o mesmo tipo de finalidade: a “salvação da alma poluída”. Vejamos alguns
pontos destas conexões epistemológicas, suas micropolíticas de produção de pessoas e
parentes e, neste registro, como, então, nesses cenários de “misturas” de referenciais que
viemos conhecendo, os interlocutores vêm se reconhecendo como sujeitos de sexualidades a
serem moldadas. Dito de outro modo, como suas práticas sexuais passam a ser objeto de uma
preocupação moral, a ponto de suscitarem mecanismos discursivos, regras e agentes para
conhecê-las, vigiá-las e contê-las, quando entendidas improdutivas a certos regimes de
socialidade.
258

“Cuidados com o mundo e com os parentes”, ora, é possível via intervenção das
entidades do panteão dos “imortais” e seus aliados, os “bichos” Yereu, que através do
canibalismo simbólico através da ingestão do “sangue-pensamento”, atuam sobre os corpos
para “limpar as poluições das misturas malfeitas”. Ora, as poluições provocadas pelo mal
exercício do sexo, em situações não incestuosas, são operacionalizados através das figuras de
poder já conhecidas dos pais e tios bilaterais através das “palavras bonitas” e também
sanções, “os castigos”.
No cenário de conversão, destacamos ainda os “pastores parentes” e seus
“conselhos”, cujas “autoridades” morais, angariadas num processo de construção de si
enquanto ticuna, atravessado por referentes calcados nas éticas cristãs, lançam luz ao
instrumento da “confissão” e entendimentos outros sobre a sexualidade. Esta artimanha é
gerada por situações ilícitas variadas, que ganham espaço no sentido amplo de “pecado”.
A centralidade da pessoa social do pastor, indicada como melhor qualificada nesta
rede de interlocução para ouvi-los falar e confessar o duplo “pecado”: a mentira gerada pelo
“medo da fofoca”, que eventualmente denunciaria a falta de “pureza”, associada aqui, mais
especificamente à não virgindade de Isara. “Mentira” que foi por ela e Fernando empreendida
em decorrência “das vontades” do casal em casar-se na igreja. Ainda que este tenha sido um
ensejo secundário, talvez pelo potencial de sedução que adquiriram seus signos de prestígio
(festa e toda suas alegorias materiais e simbólicas) no decorrer das “negociações”, é mediante
o “medo da fofoca” espraiar-se e suas relações e relacionamentos passarem a estar à mercê de
comentários e valores negativos a eles agregados, que o jovem casal se engaja no “casar na
igreja”.
O problema, neste rastro, colocado pela conjugalidade poluidora de Isara e
Fernando recai, numa escala, na temporalidade produtiva de suas práticas sexuais. Praticar
intercursos sexuais anteriores ao casamento, desde um ponto de vista do debate das
“autoridades crentes”, gera estatutos desprestigiados ao jovem casal, que já “pecou”,
desviando-se do objeto central da copulação, que parece ser aí, a reprodução de filhos e novos
parentes. Formar uma “nova família”. Ou o mesmo dito por outro caminho “fazer grupo de
parentes (tanü)”. Com efeito, nesta escala de significados (entre muitas outras possíveis) a
temporalidade do ato sexual concerne a questões de prestígio que orbitam na valoração do
casar-se, certo ou errado, que a imagem da igreja introduz.
A “impureza” de Isara, enquanto componente político-moral do dispositivo da
aliança aqui em jogo, é acionada pela chegada da Igreja, como descrevem os interlocutores,
que traveste o “namorar” antes de qualquer tipo de “compromisso”, em uma relação ilícita. O
259

casal, desde suas “vontades” individuais não manifestou, pelo contrário, nenhum tipo de
pudor. A confissão, o exame da consciência, foi o modo de colocar a sexualidade em
evidência, falar-se sobre, não para censurá-la ou reprimi-la, sublinha Fernando nas palavras a
seguir:
“Parece, Patricia, que é problema para o pensamento do pastor e dos
parentes crentes não o namoro assim, de fazer isso, é mais o tempo, o
adiantamento que a gente teve com o desejo de fazer, de aproveitar, assim,
como diz os jovens aqui. Mas se dá o jeitinho, a senhora viu”.
Falar sobre a sexualidade e o ato sexual nesse cenário bastante específico, remete
à ideia de saber para vigiar, uma técnica não punitiva, tampouco de censura, mas de
advertência a respeito dos bons usos. Assim, a chegada das “novas palavras” está situada e
significada enquanto focos de saberes locais, plurais e heterogêneos, que orientam práticas
sociais, discriminam corpos e relações, geram tipos de pessoas sociais, “parentes pecadores”,
como é Isara e Fernando.
A narrativa conjugal de Luis e Juraci, por sua vez, nos permitiu, concomitante e
brevemente, conhecer como a ideia de casar-se na igreja articula as versões do “sexo
malfeito”, aqui pelo viés do tabu do incesto que caracteriza o vínculo marital desse casal. Tal
vínculo conjugal é também considerado equivocado e “perigoso” por alguns. E, neste enredo,
o lugar de “aceitação” referido talvez emerja como suspensão temporária do afastamento
punitivo que envolve o relacionamento conjugal de Luis e Juraci em relação aos parentes e
conterrâneos. O punir aqui é manifesto e associado também aos usos das difamações variadas,
que ratificam os “perigos” das “poluições” de certos tipos de práticas sexuais e também de
afetos negativados e pouco valorados ao regime de produção de pessoas e parentes. Se
punem, é para ensinar, contudo, como foi afirmado páginas acima.
Conhecemos a partir deste exemplo conjugal efeitos das condições sociais e
ontológicas do estado “womãtchi”, quando, por contágio moral, político e afetivo, casais
incestuosos trazem risco não apenas a si, mas aos envolvidos diretamente, como é o que
ocorre com seus filhos e parentes próximos. E a potência nociva da condição desta condição,
como evidencia Luis e Juraci, também provoca riscos ao coletivo próximo (família extensa).
Na conjugalidade equivocada, ao alterarem-se de solteiros à “casal poluído”, produzem-se
através “das vontades do sexo e do gostar” em “parentes pecadores no jeito womãtchi”. Suas
relações provocam noutras escalas a mesma lógica de contágio das “palavras feias”, que além
de os isolarem de certos circuitos de convivência, “entristecem”, e alimentam, assim,
diariamente com a possibilidade de se perder alguém.
260

Os pronomes relacionais, através dos espaços de atuação das interdições do ato


sexual, são dimensionados nos efeitos negociados de com quem, quando e com quais
intensões pessoas se interacionam afetivo-sexualmente. E nessa trama diferenciam, no que
tange às possibilidades de “salvação”, de reconversão de “estados de ânimo da alma”
(Pizzolato, 2007; Surrallès, 2003) que melhor os fazem felizes, mesmos “poluídos”, enquanto
pecadores ou incestuosos, se não em conjunto. É a problematização moral que os articula
como objeto de debate.
Este, por sua vez, não “proíbe” explicitamente com quem se deva ou não manter
intercursos sexuais, mas regulamenta, nestes casos lidos no capítulo, os momentos de realizá-
lo adequadamente, visando a manutenção da “boa convivência”, de corpos produtivos à
continuidade das relações de parentesco. Se ambas as condições de “poluição” se articulam
nos fatores que problematizam as moralidades que as conformam como despontencializadas,
o tom da diferenciação política entre um e outro reside, argumentamos, na seguinte
proposição: de que o estatuto de pecador pode ser reversível a partir das “palavras de
confissão” ao pastor e afiliaçãoa ainda que no estilo murta, à fé cristã. Esta perspectiva,
propõe a “salvação da alma”, da reconquista da “honra” e do “respeito” que o “casar na
igreja” promove e simboliza. Enquanto o outro, incesto, irreversível, pode ser, entretanto,
amenizado pelo travestimento da conversão situacional. Performances políticas, que
“ajuda[m] o parente” a realocar-se moral e eticamente entre os seus, mas não entre os
“ü’ünegü (imortais) ”.
Estes “casamentos errados” também são reflexos, um fragmento desses conjuntos
de relações. Vemos na “história” de cada laço conjugal descrito, facetas das dimensões de
poder, simétrica e também desigualmente posta em movimento, em interseção com os muitos
“mundos vividos” (Gow, 2001), a partir das quais os valores e classificações sociais se
constituem nas teorias ticuna de parentesco e suas micropolíticas integrantes. Nesse sentido,
as narrativas expõem os lugares sociais que os enunciados sobre incesto e pecado se assentam
nos jogos de força (poder) nas correlações com outros fenômenos (conversão, política e
autoridade, prestígio) e relações que os afetam. Isto é, nas experiências nas quais as pessoas
sociais “problematizam” o que são, e o mundo no qual atuam, diria Foucault (1988).
Talvez por aí, também possamos ler a presença dos reguladores morais sobre os
corpos e seus prazeres (pastores parentes) na posição de ambiguidade. Parece-me, assim, que
os dispositivos da sexualidade enquanto componente da aliança, entrelaça-se nos intervalos
em que, adotados do exterior, certos aparatos de uma “regulamentação” sobre as populações
deixados pelos atores coloniais (prisões, castigos, pecados, crimes), e instituições religiosas,
261

nesse caso notadamente relevante, transformam-se nos ambientes etnografados em técnicas


disciplinares locais dedicadas a relação indivíduo-corpo, pessoa-parentesco, e cujas
reverberações atingem também uma certa escala do coletivo. Sobrepõem-se e superpõem-se
constante e incessantemente na produção de seus muitos modos de ser/estar ticuna, portanto,
nos tempo e espaços de relações que os compõem enquanto “parentes poluídos”, em duas
dimensões distintas, “pecadores” e “womãtchi”.
262

Parte III
Antíteses de si mesmos.

(...) se produziram outros jeitos de pensar o casar, o sexo


nesse tempo todo. É tudo junto, palavras de muitos
tempos. Cada qual pega os pensamentos, as palavras de
saberes que vai aprendendo e usa do seu jeito, aí
discorda do outro, dá alguns problemas de política de
vivência...” (D. Dezembro 2014).
263

Capítulo VI

Sobre ser solteiro ou “parente vazio”


Quando casar não é intenção
e o casamento uma não possibilidade



Interlocutores

Nguyaecü, ou Don Juan: jovem ticuna, vinte e cinco anos, clã de mutum, “ngemã” (solteiro,
sem esposa), evangélico; no período de campo ele estava cursando o ensino médio na escola da
aldeia onde mora e, nesse contexto, ele é conhecido como “aãrüã'ẽtchaé”, glosado como “o
namorador”; declara-se estudante e pescador.

Yiatchiĩna: irmã de Nguyaecü, clã de mutum, com vinte e oito anos, também solteira,
“negociando” seu casamento; evangélica, trabalhava como auxiliar geral numa escola da aldeia.

Neiva: avó de Nguyaecü , sessenta e cinco anos, clã de mutum; casada há mais de trinta anos
com Aristides, sessenta e cinco anos; clã de avai; ambos são “aposentados da roça”; “da igreja
[evangélica] sem isso de adoração”, como são seus netos, filhos e demais parentes próximos,
componentes de seu grupo extenso.

Ezaquia: jovem ticuna, catorze anos, clã de buriti, também solteiro, mas na posição de
“caigüwaecü” glosado como “aquele que faz filho em homem”; “homem que faz sexo com o
ânus”; não frequenta a igreja da aldeia; e, durante o campo, ele estava cursando o quarto ano na
escola local; dizia-se de si mesmo: “homem com jeito de mulher”; “estudante e agricultor”.

Rosalina: quarenta e dois anos, mãe de Ezaquia, clã de mutum, casada com Juremar, de
cinquenta e oito anos, clã de onça, seu segundo esposo, primeiro após a viuvez do pai de
Ezaquia.
264

Sobre modos de ser solteiro, “jeitos” de estar no mundo

“ngemã? É assim, sem esposa. Isso ai é o que quer dizer ngemã na língua
ticuna. Solteiro, como a senhora diz no português, né? Escuta, dona, eu
cresci ouvindo disso que a vontade de casa[r] tem a ver com isso da pessoa
se fazer no mundo. (...) ir assim criando juízo. Assim diz que é. Isso de casar
é da vontade de se fazer, assim, de outros jeitos, né? Sai de solteiro, vira
parente casado, de família. Dessas coisas ai de parente, casal, aliados. Dessa
vontade de se faze[r] marido com esposa? Quero isso não. (...) quero não.
Quero, nada. É como deixar de namorar por aí [risos]. Quero ser assim,
homem solteiro, sem esposa para fazer os aliados; já tenho meus parceiros
por aí
…me viro, dona, casa é compromisso forte”. (Nguyaecü).

***

“É como ter vontade [de casar] e não poder, sabe? Assim é meu pensamento,
meu jeito. Pode não. Aí viro solteiro. Assim é. (...) quero casar sim, só que
nesse jeito: yatücü rü nügürü'u yatücüma na ni'i. Na nossa gíria isso quer
dizer assim casar no jeito homem casado com homem. (...) quem sabe
quando eu ficar mais velho, assim, as coisas mudam. Aí me arranjo com um
homem, como eu gosto, viro eu a esposa dele. Aí caso, me ajunto no
compromisso. Aí faço casa. Grupo de parente. (...) pessoal por ai diz que
mamãe teve filha, para falar de mim. Estou bem virando mulher”.
(Ezaquia).153

No rastro dos capítulos precedentes, aqui aproxima-se das teorias ticuna de


relação que conformam os “muito jeitos” de estar no mundo, desde a problemática do
matrimônio, ou a sua ausência. O caso de Nguyaecü e Ezaquia, ambos residentes na mesma
aldeia, subsidiam aqui o objeto deste capítulo, qual seja, conhecer e refletir acerca da
elaboração local da categoria de relação “parentes vazios”, a partir de suas situações de
“solteirices” diferenciadas.
Nesse sentido, as socialidades produzidas por estes jovens solteiros são
consideradas deficitárias, tornando-se problema etnográfico por dupla curiosidade. De
conhecer, por um lado, as relações e conjunturas que fazem de Nguyaecü um “parente vazio”,
pelo desejo de não querer se casar. Nesta posição de solteirice desejada, ele é ambígua e
jocosamente tratado como “namorador”, “aquele que dá golpe na cultura”; “aquele que não
faz cunhados (ngemâcü) ”. De outro, por entender como para Ezaquia configura-se a posição

153 As conversas aqui expostas foram todas registradas com o uso do diário de campo e aquelas aqui transcritas
foram realizadas em momentos distintos do campo com cada grupo de interlocução mencionado, no intervalo
entre abril e dezembro de 2013; alguns dessas conversas foram parcialmente realizadas em língua indígena,
sempre contando com as traduções dos próprios interlocutores, faltando-me conhecer melhor adequadamente as
decomposições semânticas de muitos termos e expressões empregadas pelos colaboradores.
265

e estatuto análogo, porém produzido porque e inversamente a Nguyaecü, este ao desejar


casar-se é coagido na intenção de realiza-lo. Ele é conhecido pelos da aldeia enquanto
“parente com jeito de mulher”, no que se referem “àquele que quer casar e não pode”, pois
assume-se enquanto “caigüwaecü: “àquele homem que faz do uso de seu ânus como vagina de
mulher”. A questão da proibição dele casar expressa-se num ponto particular, qual seja, o
modo do manejo de seus órgãos sexuais, desvelando-se conjugado com outras questões de
condutas moriais e políticas um modo não aceitável pelas “autoridades” de conjugalidades.
As problemáticas anunciadas a partir do “seu jeito de ser” nesseas conjunturas localizam as
negociações no que se assumir “caigüwaecü” ativa nele a perspectiva feminina e sua
“vontade” de casar-se na fórmula homoafetiva, sendo ele a “esposa” de alguém.
As diferenças manifestadas de sexualidade e identidades de gênero destas duas
modalidades de solteirices, ou “jeitos de ser”, articulam-se pela semelhança que as relações
cotidianas desses jovens indígenas produzem: status e estatuto de “parentes vazio”. Juntas, as
duas experiências não matrimoniais nos incitam a pensar que tipo de intercurso sexual e
corpos fazem feliz aos ticuna.
Para tanto, o objetivo do capítulo assenta-se na provocação elucidada pelas
interlocuções com estes indígenas, em diálogo com os pontos de vistas de seus parentes e
conterrâneos: quais as implicações de ser solteiro, por vontade ou proibição? Com efeito,
apresenta-se as dinâmicas das micropolíticas de parentesco local que articulam discursos,
práticas e instituições de controle social, especialmente orquestrados nas figuras dos gestores
morais do parentesco, aqui englobando, além dos pais e parentes mais próximos de Nguyaecü
e Ezaquia, também figuras de “autoridade”, “cacique/capitão”, “capataz” e “policiais
indígenas” e também Agentes de Saúde.
Para visualizar modos pelos quais se articulam estas diferenciações de solteirices
e suas aproximações que são modalidades de “sexo malfeito”, descreve-se a seguir relações
produzidas por estes jovens indígenas para conhecer os processos transformacionais dos
termos em relação, das implicações sobre a fabricação da pessoa, em contraposição semântica
e política ao corolário daquela enunciada até aqui como “gente madura”. Isto é, classe de
pessoas e parentes fabricadas enquanto tipos (“jeitos”) de homens e mulheres, no casamento
como socialidade prototípica a uma boa convivialidade, quando se casa adequadamente. A
partir desses casos argumento ser relevante saber para a efetivação ou não do matrimônio,
além das posições prescritivas de uniões maritais assentadas na exogamia clânica e critérios
políticos-morais, “dos jeitos que a pessoa tá na vida”, também importa o sexo biológico e a
sexualidade e a identidade de gênero do afim potencial. Ao focalizar estes casos, quero
266

debater a ideia êmica dos “muitos jeitos de ser” também contidos de metáforas de modos de
ser generizados, expressos em campo como “jeitos de ser homem” e “jeitos de ser mulher”.
1. “Ngemã154”: quando casar não é a intenção

Nguyaecü
(O namorador)

1.1. Relações

Nguyaecü é um alegre e despojado jovem ticuna, de vinte e cinco anos, “solteiro”


por opção, ou “ por vontade”, como ele mesmo cunha. Nguyaecü apresentou-se a mim, desde
a primeiro encontro, como “ngemã (sem esposa), estudante e pescador”. Ele correside com
seus avós maternos, “donos da casa” e “responsáveis pela gente que ali vive”. Neste mesmo
grupo residencial, moram ainda uma de suas irmãs mais velhas Yiatchiĩna, (a quem ele trata
de “patcha” ou “tchau’eya”), também solteira, à espera de terminar os estudos para “assumir
um compromisso” com um jovem ticuna conterrâneo seu, com quem ela vinha se
relacionando há poucos meses. Ali mora também o irmão mais velho de Nguyaecü, (a quem
trata de “patcha” ou “patchau’ené”), o qual está na mesma condição de “solteirice”. Este,
porém, tal qual sua germana, estava “esperando para casar”, “negociando” um casamento
com uma moça da aldeia.155
Diferentemente de seus outros três germanos, Nguyaecü foi criado noutra aldeia,
na qual passou a morar com o pai, após o falecimento de sua mãe, quando ainda era criança.
Depois de viver por longo tempo com a rede de parentela de seu pai, nos rincões de um
igarapé, à jusante do rio, Nguyaecü havia retornado à aldeia natal, “lugar onde foi parido”.
Ele chegou havia não mais do que três anos à casa de seus avós maternos alegando querer
estudar, fixou residência com estes últimos, e matriculou-se na escola local, iniciando os
estudos no período noturno.
Nguyaecü, inicialmente, pareceu-me bastante reservado. Pouco conversávamos
durante a minha primeira estadia na casa de seus avós.156 No meu retorno à aldeia, Nguyaecü,
como muitos desses jovens, tinha obtido um aparelho celular, o qual me parecia como uma


154
Cf. Glossário e anexo capítulo II sobre classes etárias.
155
Há uma irmã mais nova de Nguyaecü, cujo termo de relação empregado é “tchaue’ya rü bumee”, a qual está
casada, compondo uma “nova família” com seu esposo “chegado de outra aldeia”. Ambos residem noutra casa,
localizada nas adjacências da morada de Nguyaecü.
156
Entendia que seu domínio aparentemente parco da língua portuguesa era o que sugeria uma certa timidez e
distanciamento – também similar a condutas de outros jovens da aldeia, os quais, mesmo sendo filhos/as de
interlocutores muito próximos de quem eu frequentava a casa, apenas alimentavam a curiosidade sobre mim e,
eu sobre eles, de longe, entre cruzamentos de olhares e as potentes fofocas.
267

extensão de si. Na aldeia não havia sinal telefônico, mas o aparelho estava sempre ligado,
guardado no bolso de sua calça jeans, vestida justa ao corpo esguio, de baixa estatura, moreno
e ornando ainda com cabelo ao estilo Neymar. O aparato era mantido “alegrando a vida”, ao
ritmo de forrós na “língua do civilizado”. Músicas acerca das quais o jovem demonstrava
saber o conteúdo das letras, revezando-as com melodias em ticuna, entoadas por um famoso
Dj indígena, “o parente bom de ritmo”, dizia-me ele.
Observando seu fascínio pelo universo musical, passei a perceber que seu
conhecimento da língua portuguesa não era tão “fraco”, como ele caracterizava. Foi a partir
desses momentos de “escutar músicas” que iniciamos nossos diálogos, também junto de suas
germanas, menos acanhadas, que me ajudavam e incentivavam nessas interações. Sabia-se,
enfim, quando Nguyaecü estava desperto ou em casa, pelo sonar alegre do celular ou pelo
aroma de seus perfumes.157
Desde a primeira chegada à casa de seus consanguíneos, com quem residi alguns
meses durante o campo, minha rede foi armada ao lado da sua, pelo irmão mais novo da mãe
de Nguyaecü, que também residia na casa, conformando outra unidade doméstica e
econômica (“petchica”), esta composta por sua esposa, vinda de outra aldeia, e seu filho de
dois anos. Nessa ocasião de chegada, nossas redes, dispostas lado a lado, acomodavam-se no
cômodo da casa onde à noite se reuniam os demais familiares para assistir televisão, ou
conversar.158 Foi o mesmo tio paterno de Nguyaecü (a quem aquele trata por “o’e”) quem me
explicou a morfologia da casa, dizendo-me “aqui é a parte dos solteiros”, apontando para as
nossas maqueiras, e para cama de sua sobrinha, irmão de Nguyaecü, alocada ali próximo.159


157
Chamava-me a atenção no “jeito de ser” de Nguyaecü o seu desvelo com a imagem. Próximo de sua rede de
dormir, suspenso na parede, ao lado dos artefatos de seu avô (paneiros, ferramentas de roçado, motor rabetas,
remos, arpões de pesca) e de um pequeno móvel usado por sua irmã para guardar roupas, ele havia erguido na
madeira uma modesta prateleira onde acomodava suas coisas: potes de cremes para o cabelo, desodorantes,
perfumes, pentes e escovas de pentear cabelo, carregador do celular, DVDs de música, seu material didático e
seus bonés; algumas poucas mudas de roupa que acumulava. Sempre bem trajado, com suas calças jeans bem
lavadas, sapatos de plástico branco – estilo “crocs, ” moda entre os jovens na aldeia e na cidade - camisas de
manga curta e, a sobre ela, sua camisa de manga longa em xadrez ajustada ao corpo.
158
Ademais dos solteiros já adultos que residiam na casa, as crianças, netas dos donos desta, passavam muitas
noites em companhia dos avós, e com eles dormiam em outro cômodo. Neste cômodo bastante amplo onde
estavam nossas redes, alojava-se a televisão, as outras redes de cada membro da casa eram usadas como “sofá de
índio”, como aprendi. Ali os donos da casa também guardavam o freezer da família e acomodavam uma mesa de
madeira grande, com algumas cadeiras, ao redor da qual se reuniam, vez ou outra, especialmente quando
recebiam visitas “de fora”, e as convidavam a “merendarem”.
159
Seu irmão mais velho, cuja rede ali também se alocava, passou a dormir noutro cômodo da casa depois de
minha chegada. Não soube bem o motivo, apenas registrei o comentário de que daquele modo, eu teria mais
espaço. Ainda que suspeito, inspirado por comentários de terceiros, que esse era “o jeito de ser” assumido por
jovens à espera de “firmar compromisso”. Ou seja, manterem-se distantes daquelas mulheres solteiras
corresidentes, que não sejam suas irmãs. Algo sobre o qual, já no período final de minha primeira estadia entre
eles, ouvi de sua avó em ticuna, ela mesma traduzindo, na seguinte fórmula: “assim é, patcha. Homem que tá de
casamento firmado, deve ficar longe de mulher que pode ser esposa dele. (...) A senhora, já que vive aqui agora,
268

Na casa onde mora, Nguyaecü é responsável pela provisão de peixes. Seu irmão
mais velho com ele compartilhava tal tarefa, porém com menos gosto e com menos
frequência. Situação que quando por mim averiguada, se disse a respeito: “trabalha sim, esse
moço [o irmão de Nguyaecü]. A dona não vê ele aqui, porque peixe dele vai pra casa do
sogro, vai para filha desse homem”. Logo aprendi denotar que era um sinal de que o “moço”
ainda aguardava “a liberação final” do pai de sua pretendente, para quem tais peixes eram
“presentes (amare) ”. Tal atitude servia a ele para “conquistar confiança do sogro, agradar a
moça”, dizia Neiva, avó dos germanos. O tio materno corresidente de Nguyaecü tampouco
provia a casa com peixes, pois era professor, tinha “trabalho de salário”, auxiliando seus
pais, de outro modo, ocupando-se da troca de madeiras da casa onde vivíamos.
Segundo este último, mantendo-se na casa dos pais, para ele “sobrava mais
dinheirinho” do que se vivesse com o sogro, também professor, na aldeia ao lado. Com isso,
o que quase diariamente ouvia-se pela casa sobre a presença do seu sobrinho solteiro,
dimensiona o “seu jeito de ser” do jovem solteiro em contraponto a seu próprio “jeito de
casado” e às alianças feitas por seu irmão mais velho, como exemplo reverso das
“obrigações” as quais Nguyaecü buscavam esquivar-se.
A rotina de Nguyaecü resumia-se em ir à escola de noite, chegar tarde, depois que
todos já estávamos recolhidos ao sono. Ele despertava depois de todos, ligava o celular,
descia ao rio para banhar-se e lavar suas coisas, posto que “sem esposa”, lhe tocava “fazer o
serviço”. Tal foi como me explicara sua avó quando, numa certa manhã, ao me preparar para
descer pelos fundos da casa em direção ao igarapé para lavar as louças, ela avisara-me:
“espera. Deixa o solteiro ir antes fazer o serviço dele, depois a senhora baixa”.160
Feito o “serviço”, o jovem saía de pescaria na canoa de seu avô, voltando quando
“sol está bem no alto, quente de queimar”. Ele chegava e anunciava, à beira da cozinha,
erguida em madeira, sob teto de palha de juçara, à sua irmã: “aí está o peixe, limpa pra
comer, irmã”. Nesse turno, seus avós costumavam estar na roça ou já a caminho de casa; os
netos que por ali circulavam estavam na escola ou acompanhando seus pais na roça. No
ínterim das “obrigações” para com seus avós maternos e a irmã, Nguyaecü passava o dia pela
casa, na rede, onde se alojava para estudar e passar o tempo escutando músicas, usualmente,


e não é irmã de verdade dele, podia bem virar esposa, num é não? [Risos]. Aí a mulher que ele arranjou fica é
bem brava, espia que não. Aí melhor ele ficar mesmo na rede dele, mais pra lá, fica aquietado ele”.
160
Ela alertava-me para não infringir a conduta de “andar por aí sozinha” (sobretudo à beira-rio ou do igarapé e
na roça) “com homem solteiro”. Justificando a advertência, ela comentara que, se seguisse com seu neto, “vão
dizer que a senhora tá de namoro por aí” [risos].
269

em companhia de uma prima (filha do irmão de sua mãe) de quinze anos, “recém moça nova”
(a quem trata por “patcha”, cuja mãe, esposa de seu tio materno, ele trata por “ti’tia”).161

1.1.2. “O namorador”

Nos finais de semana, pouco se via Nguyaecü pela casa e pela aldeia. Muitas
vezes, eu o via sair ainda na sexta-feira, quando não ia à escola, com sua mochila à tiracolo e
a espingarda do avô, retornando apenas no domingo à noite ou na segunda-feira bem cedo, já
com peixes para o café e o almoço. Alguns diziam que ele ia visitar o pai. Outros, gracejando,
diziam-me que ele ia “namorar”.
Durante os primeiros dois meses e meio em que convivi com a família de
Nguyaecü, foram noticiados cinco eventos de “castigos do tronco” envolvendo o rapaz.162
Dois desses “castigos” foram seguidos de “prisão”.163 Nenhuma dessas ocorrências foi na
aldeia onde vivíamos e todas elas foram geradas por motivos similares: “namorar errado”.
Tudo se passou quando Nguyaecü, ao viajar para outras comunidades para
participar dos festejos religiosos organizados pelas Igrejas Batistas Ticuna, uma opção de
lazer muito apreciada pelos jovens indígenas, tanto quanto o futebol dominical, o rapaz foi
visto “passeando pelas comunidades com as garotas”; foi flagrado “banhando no rio com
moça solteira, sozinho sem parentes dela e depois foi embora”. E, num dos casos,


161 Diziam-me quando sondei, se quisessem, eles não poderiam entre si casarem-se: “mesmo com nações
diferentes e eram como irmãos”. Ao perguntar se o fato dele ter estado afastado não o tornaria um ‘consanguíneo
afinizado’, a ponto de poderem casarem-se, a resposta foi de que “eram bem parecidos, já foi tempo [suficiente]
de peixe e farinha junto”. Ademais, como dizia-me seu mesmo tio corresidente, outro traço de diferenciação que
visivelmente também o vetava à filha do irmão de sua mãe era caracterizado, negativamente, “pela má fama que
leva”. Característica que Neiva, sua avó, explica de tal modo: “sim, são primos certos de casar esses dois, só
que, dona, esse meu neto já tá com fama ruim por aqui, nem mesmo parente de perto quer ele de marido da
esposa”.
162
“Castigo do/no tronco” é o termo usado por Nguyaecü, seus parentes e outros interlocutores ticuna para
nominar a técnica indígena de amarrar um sujeito a uma árvore ou tronco, deixando-o a vista de todos, por um
período que pode variar entre algumas horas ou, em caso de imprudência julgada mais séria, dias. Tal ato de
constrangimento público é um método bastante comum e usado como medida repreensiva a casos de condutas
consideradas moralmente incorretas, quais sejam: “namoros errados” – que circunscreve, além das relações
incestuosas, relacionamentos “às escondidas” – como costumavam fazer muitos jovens que conhecia, com a
intenção de evitar casamentos precoces e indesejados. Estes castigos corporais eram aplicados também em casos
“amores proibidos” – casos extraconjugais descobertos e que geravam conflitos entre os envolvidos e, ainda,
incluíam-se nesta categoria, relacionamentos homossexuais. Esse mesmo mecanismo de regulação das relações e
dos corpos estendia-se aos casos de consumo abusivo de bebidas alcoólicas, violências de outros tipos, incluindo
de gênero (“brigas feias de marido e mulher, por cachaça ou ciúmes”); atos truculentos contra parentes, roubos
e usura, por exemplo.
163
Na aldeia onde mora Nguyaecü e sua parentela materna não há Polícia Indígena, nem prisão, mas na aldeia
ao lado sim, inclusive contando com a figura de poder do “delegado” e uma “ex-cadeia”, localizada nas antigas
dependências que alojaram o Posto Indígena, desativado em 2009.

270

considerado o mais grave, o jovem “passou a noite junto de uma moça, no mesmo
mosquiteiro”, na casa dos pais dela. Todas essas formas de relações sexuais-afetivas
costumam denotar interesse, como já sabemos, de iniciar as “negociações” de “compromisso”
por parte dos envolvidos, sendo por isso, publicitadas. O que Neiva ensinava-me sobre as
etiquetas e regimes de atitudes, seu neto parecia ignorar. De acordo com o tio corresidente de
Nguyaecü, ao atuar de tal forma, mantendo múltiplas e simultâneas relações, o jovem
“desonrou mulheres e suas famílias”, aqui incluindo sua própria rede de parentela.
Segundo um dos “capitães” que deu voz de prisão ao jovem, com quem
brevemente conversei durante uma “reunião política” na cidade, disse-me que tal
comportamento “é jeito vergonhoso”. Para a “autoridade”, assim como muitos outros
interlocutores, jovens ou não, o emprego do julgamento moral acerca das responsabilidades
vinculadas aos “namoros errados”, justificava-se porque
“É vergonhoso namorar com a filha dos outros, todos verem e o rapaz sumir.
É enganar; é fazer namoro e não querer casar; é dar o golpe na cultura, por
que, então, mentir que quer casar, e fugir? Tão sério, que prendemos parente
sem vergonha, igualzinho quem é bebum, que faz feitiçaria. (...) Isso de dar
o golpe na filha dos outros é crime. Tem que dar castigo, punir assim para
ver se esses jovens aí param de desonrar as moças e a suas famílias. Isso
deixa marca feia neles, dona. Depois esses moços aí não arranjam mulheres
para virar esposas deles. Ajuntam assim a fama de bagunceiros de mulheres,
perdem confiança. Esse sujeito bem mereceu isso, de castigo de vergonha,
pra sentir, marcar no pensamento, no corpo dele o problema. É estar nacüma
i tchié, a gente diz na gíria. É assim, de estar fazendo comportamento
errado”.

Todas estas contextualizações dos usos dos “castigos” como pedagogias


moralizantes aclaram motivos pelos quais o jovem foi repreendido. Todas as “visitas”
realizadas por Nguyaecü aos festejos foram realizadas no intervalo de um mês e meio, em
diferentes aldeias na mesma Terra Indígena a qual pertence aquela onde estávamos. Todos os
seus passeios ocorreram no momento em que seus avós estavam ausentes.164


164
Estes últimos haviam saído a visitar um dos irmãos de sua avó materna (no’é”), “que sofria de ataques de
feitiços”, numa comunidade longe dali pertencente à outra unidade territorial, que tardava pelo menos uns dois
dias de viagem em canoa. Em parte desse período, a escola local ficou fechada devido aos festejos e devido a um
curso para os professores na cidade, o que fez com que seu tio corresidente também se ausentasse da casa, e sua
esposa com o filho pequeno foi para uma aldeia ao lado, acomodar-se na casa de seus pais.
271

Restaram na casa apenas os solteiros, cabendo a mim, juntamente com Yiatchiĩna,


a “irmã sem esposo” de Nguyaecü, “fazer as coisas da casa, as obrigações das mulheres”,
explanava-me ela, também sob tônica de protesto. O que, em poucas palavras, remetia às
tarefas da roça, claramente advertido pelos donos da casa antes de saírem de viagem: “vocês
duas cuidam para não roubarem as melancias e carás, limpa roça de mandioca”. Além
disso, nos tocava manter o terreno envolta da casa limpo, “tratar os peixes”, cozinhá-los para
alimentar os homens que estavam na casa e todas as crianças (netos dos donos da casa) que
diariamente ali circulavam. Yiatchiĩna, falava, em diferentes momentos, ao germano:
“Vai irmão, vai arrumar mulher para cozinhar para você, tratar os peixes que
traz aqui. Eu não tenho obrigação disso daí não. Para de bagunçar por aí e
traz mulher logo para casar. Já tá é velho, homem passado, não vai ter
mulher para você mais um pouco. (...) você vai por ai de namoro e esposa
que é bom nada (...) vai fazer aliados para te ajudar. [...] vou sim, vou bem
dizer isso no português para dona Patrícia saber como é [risos]. (...) na aldeia
homem passado da idade de casar e sem vergonha fica por aí sem
compromisso, fica sozinho; a ti’tia disse que não vai te alimentar mais; nem
leva peixe, ela disse que obrigação dela não é essa. Tu não é filho dela, é? É
feio levar peixe pra mulher casada. É convite para namorar de “yatümare”
[amantes]. Vai bagunçar com ti’tia também, é? Espia, vai pro tronco aqui
mesmo na casa [risos]! Ou vai ver tá querendo casar com as primas, então?
É nada. (...) e já tem gente sabendo das fofocas dos namoros por aí. Tai
ficando feio. Ri que é sério, irmão”.
As fofocas ali, como em outros cenários da pesquisa, também operavam como
dispositivos de comunicação dos delitos, bem como, por consequência ética e moral,
enquanto controles das condutas. As fofocas, já nessa altura da tese, parecem-me operar como
gênero de narrativa, dada a natureza com que os colaboradores a expressam dessa forma, e
usam instrumentos diferentes a cada tipo de mensagem que se quer comunicar, seja pelo uso
do “boca de ferro”, seja estas veiculadas pelos “agentes da ordem”, pelas mulheres entre elas
e de homens entre eles. Pois aqui não fora de outro modo. Notícias de “bagunças” de
Nguyaecü alastraram-se rapidamente, inclusive para fora das aldeias onde os “castigos” e
“prisões” dele ocorreram, onde já se ouvia anúncios à boca pequena sobre a circulação de um
“cucümarünatchié”, “pessoa sem caráter”, também glosado, noutra versão, como “pessoa de
maus pensamentos, intenções”.165

165
A circulação de pessoas nestes festejos é muito intensa. Seu contingente abundante facilita a mobilidade das
fofocas. Nas duas em que participei, cada festa mobilizou aproximadamente mil pessoas vindas de fora da aldeia
272

Durante os festejos, os “capatazes”, homens que realizam a “ronda policial” com


a finalidade de “garantir a ordem”, já o estavam “vigiando”. Alguns, como ouvi, “cuidando
de Nguyaecü para não poluir mais as festas com seu jeito de namorador sem compromisso”.
Estes “agentes da ordem trabalhavam para manter os jovens no caminho certo, sem
bagunças e problemas”, explicava o mesmo “capitão” de linhas a cima, também informando
de casos de medidas similares feitas a jovens.
Em três das cinco comunidades/aldeias por onde passara, Nguyaecü “namorou na
surdina”, “no escuro”, “na beira do rio enquanto os parentes dançavam”, como ele próprio
descreveu as situações ilícitas de que fora acusado e julgado. Alguns moradores dessas
localidades não gostaram de tais condutas, e apontando a razão, informaram, quando por duas
delas passei, que o rapaz já tinha sido visto “passeando com outras meninas”. Com efeito,
dizia o mesmo gestor moral, “não estava certo ele ficar por aí no escuro com filhas dos
outros, sem querer compromisso; enganando as moças e as famílias que confiavam na
palavra dele”.
Ao retornar de cada festejo, Nguyaecü contava-nos de forma discreta, mas com
riqueza de detalhes a respeito das punições recebidas por suas aventuras alhures. Chegava
contente, exclamando, com largos sorrisos: “tcha taacü”, “estou feliz”. Não tardava, a
notícias de seus “romances” efêmeros alcançavam a comunidade onde estávamos. E a timidez
que lhe era marcante inicialmente, desaparecia, dava lugar a uma alegria temerária.166

1.1.3. “O procurado”


que patrocinava a festa. Havia inclusive gente não indígenas parentes ou não dos locais, que haviam descido ou
subido o rio em suas canoas para visitar aos parentes e festejar. Haviam nestas duas festas, em particular,
representantes de algumas instituições indígenas, “Polícias”, “políticos”[vereadores ticuna], “pastores”, “chefes
de aldeia, da FUNAI”. Também figuravam agentes não indígenas atuantes no Estado, no poder municipal e
federal, como a FUNAI, SESAI, Secretárias de Educação. A duração de tais festas era de não mais do que um
final de semana extendido, ainda que as estadias dos parentes e amigos se delongavam até um mês após a
realização do festejo.
166 Menos associado a um enredo discursivo sobre “panema” nos moldes Guayaki (ver clássico texto de P.
Clastres, 2003), rir, falar, cantar e alegrar-se demais nesse contexto pareceu-me estar mais próximo da
intensidade comunicativa que expressa a real posição do rapaz namorador, marcada pelas atitudes sexuais
indevidas. Como aponta o mesmo Clastres, porém noutro texto (2003: 159) e sobre os Chulupi também no
Paraguai, “longe de ser figura cômica”, Nguyaecü, ao contrário, manifestava perigo, inspirava medos,
desconfortos. Aberturas à diferença metaforizada em escalas de manejo das sexualidades, acompanhadas de
posturas e “jeitos” não adequados aos modelos de seus avós maternos. Sobre o lugar social do riso na literatura
americanista, sugiro ver ainda, Carneiro da Cunha (1978); Lévi-Strauss (1991); Surralés (2003); Lagrou (2006)
que também auxiliam nessas reflexões.

273

Pois foi numa segunda-feira atípica naqueles dias em que os donos da casa
estavam de viagem que logo cedo ela povoou-se de gente. Era o dia após o último festejo,
Nguyaecü chegou à casa munido de peixe e carne de jacaré, reunindo-se a mim e a seus
irmãos e alguns filhos de seus tios e tias bilaterais e tias maternas para comer. Ele ouviu de
uma de suas tias maternas, que preparava um mingau, a pergunta: “foi preso é? ” Outra tia
materna, aquela que passara e lhe abdicar alimento, perguntou como havia ido de festa. Ele,
rindo nervoso, sem perder a compostura, confirma que o festejo esteve animado, com muita
gente, e chega a comentar que encontrou com alguns parentes do marido desta última,
originário de outra aldeia. Ela não hesita, e com certa sisudez, lhe retruca a notícia: “eles te
viram no tronco? ” Um riso coletivo espalhou-se pelo estrado sobre o qual se abrigava a
cozinha.
Todos ríamos muitos. Nguyaecü, então, visivelmente envergonhado, diz sim, e
pergunta pela avó. Ele temia que ela descobrisse seus feitos, pedindo ao jovem namorador que
ele “negocie a solteirice” com os pais das jovens com que havia “bagunçado”. Nguyaecü
contaminou-se pelo riso temeroso e assumiu que não queria se casar com nenhuma das moças
com quem havia sido visto. Audaz, ele dizia não temer os “capatazes”, apesar de sentir-se
preocupado. Disse a uma de suas tias e ao tio materno corresidente que chegara à véspera:
“(...) não tem em mim vontade de trabalhar, assim, de cuidar os filhos, ir
para roça fazer farinha, como faz[em] vocês minhas irmãs, vocês meus
primos, no dia de sábado. E vocês, meus o’e [tios], que têm dessas
obrigações aí com as esposas, com as gentes delas. Quero nada disso aí não.
Casar é bom para algumas pessoas aí da aldeia. Não é errado, não. Não sinto
assim dessa vontade, só não quero. Não é ruim ser assim, sem esposa. Eu
penso assim, quero ser solteiro, homem sem esposa”.
Ao mostrar o que caracterizava suas vontades de ser solteiro, ao menos nesses
momentos de campo, na sequência, ele também comentou com todos em ticuna que estivera
apenas desfrutando, terminando a frase com a seguinte expressão em português: “estava só
curtindo”. Ele relatava, ademais, que para se esquivar de uma das “prisões” prometeu à
algumas das moças que retornaria à suas aldeias para acertar a data do casamento. O que
nunca ocorreu. E sobre tais situações, ele comentava, já em momento posterior, quando a casa
voltava a esvaziar-se:
“Não quero mesmo casar. Por isso faço isso de namorar, passear aí com as
parentes e depois fugir. Se ficar, me pegam para casar. Viu como não é fácil
vida de solteiro? Um dia, nesses festejos aí, eu disse que morava noutra
274

aldeia, não aqui; disse que era lá pra cima [próximo Rio Bonito], se não eles
vêm atrás, viu! ”
Mediante essas situações de sedução e aventuras, aprendi com uma filha da irmã
da mãe de Nguyaecü, com quatorze anos, que a melhor forma de me referir a ele na língua
ticuna seria “aãrüã'ẽtchaé”, “namorador”.167 Não resisti, e lhe chamei, na ocasião de uma
dessas conversas acerca das condutas “perigosas”, de Don Juan da aldeia. Por algum motivo
que desconheço, suas irmãs e a tia materna, a mesma que lhe criticava as atitudes “sem
vergonha”, compreendiam claramente a alusão que eu propunha, jocosamente. O apelido
acabou por incorporar-se nos termos de tratamento entre os membros mais próximos da
família.

1. 2. Negociações
“Estava namorando, meu neto? Já sei das fofocas! Colocaram você tronco,
não foi? Castigo merecido pro jovem feitor de bagunça. [...] conheceu a
cadeia? Tempo da seringa e do SPI foi muito duro, você sabe disso, não é?
Aprendemos com eles [patrões] esse truque de castigar no tronco, de deixar
vergonha marcada no corpo. Não tem mais o patrão, não, mas tem os
capatazes parente, polícia nossa. A polícia de parente. Tu vais escapar dessa
vez ou vem moça te pegar para casar? (...) Espera, não acabou, castigo pode
chegar de novo. ”168

Assim exclamara Neiva, a avó materna de Nguyaecü, quando retornava à casa,


apenas poucos dias após a cena descrita acima, quando sua tia materna o alertava dos efeitos
de seus “namoros descontrolados”. Ao admoestar o neto, expressando preocupação com as
retaliações contra ele, Neiva, simultaneamente nos situa sobre a incorporação das técnicas de
constrangimentos que foram utilizadas sobre o corpo-pensamento do neto. Em um sentido
bastante aproximado, as falas de Neiva ressoam fragmentos de um regime de “consumo
produtivo”, agenciado aqui no uso dos “castigos do tronco” ao controle interno das
alteridades cotidianas perniciosas ao idioma de relacionalidades consideradas “bem feitas”
projetadas pelos ponto de vista gestores morais do parentesco.
E, no embalo, eu lhe perguntei: vai casar ele, no’é [avó]? Ela, em “português
ticunado”, disse-me, rindo, enchendo a boca de farinha:


167
Para mulher usa-se o adjetivo “aãrüã'ẽtcha.
168
Esta fala foi originalmente dita em ticuna por Neiva, posteriormente traduzida com sua ajuda e também de
seu filho corresidente.
275

“Vamos ver o que passa, patcha. Diz que esse neto meu é muito namorador
(...) deixa fugir do juízo. Faz namoro errado, aí os perigos das bagunças por
aí são grandes. (...) juízo como diz no português, né? Assim de pensamento
certo, maduro. Esse neto aí não tem. Esse neto já não está mais na worena ya
nguetü'ücü.169 [Ele] fica por aí bagunçando trazendo vergonha para nossa
casa, fico triste. Isso pode ter revanche. Revanche assim de muito tipos. Isso
me faz triste, quando vou passear, não quero ouvir piadas, palavras feias de
meus parentes”.
Por “revanche”, Neiva queria informar que ao neto poderiam ainda surgir mais
medidas repreensivas, ademais dos castigos precedentes. Estas ações propagam sobre ela e
seus parentes um afeto político associado ao sentimento de “tristeza”, gerado pelas fofocas,
que mais do que fazer circular notícias, desencadeavam as qualificações morais. Nesta mesma
espiral, “ofensas” foi como, certa vez, Neiva descreveu o que entendia como o “problema da
fofoca” provocada pelos atos de seu neto, cujo efeito despertava eventualmente “vontades de
feitiços”, contra-afecções direcionadas “para vingar vergonha de desonra das moças [que] ele
[Nguyaecü] enganou por aí”.

1.2.1. Em busca de marido

Todas as cinco garotas com quem Nguyaecü se envolveu nessas relações ilícitas
eram solteiras e sem filhos (“nge'e ngetee”, “nge'e ngeacüe”) e pertencentes à categoria
casável, “worecü”. Conheci duas delas, quando, mais ou menos dez dias depois dessa
conversa com Neiva, elas cruzaram o igarapé que circunda a aldeia em companhia de suas
respectivas mães, e foram em busca do rapaz. Nas duas ocasiões Nguyaecü estava pescando.
As duas visitas ocorreram na mesma semana, com intervalo de dois ou três dias, e
tinham em comum a mesma finalidade: “dar/entregar a filha” ao rapaz. Segundo relatos das
esposas potenciais, com quem consegui conversar na ocasião das referidas visitas, e que
falavam um “pobre” e tímido português, disseram-me claramente que estavam ali “para ficar
com ele. Pra casar”. Uma delas, a primeira a chegar atrás do marido prometido, relata,


169
Expressão descritiva, correlato de worecü, jovem púbere, aplicada aos jovens homens púberes. Assim
ensinaram-me seu significado: “o homem quando engrossa a voz nós o chamamos assim. Isso quer dizer, que ele
já não é criança, que pode casar, já está na fase de arrumar esposa”; “isso é logo que rapaz vira adulto, fica de
voz grossa”.
276

inicialmente contente, mostrando-me uma “carta de amor” por ela escrita ao jovem (ver
anexo capítulo Item I).170
“Eu vim morar aqui com ele [mostrando a mochila]. Ele foi lá, namorou
comigo, falou com pa’pa. Falou bem assim, dona, eu vou voltar (tchama rü
ngematcha ŭ). Disse isso, ia voltar assim para negociar o casamento, o nosso
compromisso. Ele disse, dona, que ia viver na casa do pa’pa ajuntado de
mim. (...). Vim aqui com ma’ma não quero ficar na minha comunidade, vim
pra casar. Aqui é mais sossego. Não quero ser nge no´é mareü rüngeyamareü
[expressão que descreve mulher que já passa do tempo de casar; “fica velha
sem marido]”.
(...) ngure ya cürü taumecü? [Pergunta por mim feita a ela para saber
idade/ciclo etário]. Resposta emitida: “marü manaya [“já no tempo de
casar”]. E assim de documento, dezesseis anos”.
A outra pretendente, desconhecendo a visita desta última, disse-me, enquanto
aguardava a conversa em decurso entre sua mãe e a avó de Nguyaecü, que o Don Juan tinha
também a ela “dado palavra” e não voltou na data marcada à sua casa para “ajeitar” o
casamento, “falar com [seu] pa’pa”. “Fugiu da palavra”, escutei a mãe da pretendente
mencionar à avó de Nguyaecü. A pretendente contou-me a sua estratégia de busca mesclando-
se ticuna e português:
“Cheguei de canoa com ma´ma pegar esse homem. [Ele] tá demorando
muito para voltar lá na aldeia Ele não voltou, eu vim buscar, negociar com a
família dele. (...) nem sabia da ma´ma dele, já se foi a mulher [faleceu]. Ele
não falou nada disso. Sem a ma´ma dele, eu e ma´ma negocia com a no’é
dele. Oi [avô] dele se foi [faleceu], é? ”
[Patricia: “está na roça”].
“A gente veio pelo beiradão buscando, perguntando assim onde era casa
dele. Minha aldeia é no outro lado do igarapé, descendo aí...parece que ele tá
assim, como diz na gíria “ninha’ã [verbo fugir]. Se for desse pensamento,
fico bem assim triste, dona. Tão é sabendo lá na comunidade que ele dormiu
no mosquiteiro comigo. Foi assim. Eu penso assim, quero me ajuntar com
esse moço (...) tchanawaé na cucüwawa tchangenaǖ [quero muito estar ao
seu lado] que diz no nosso idioma. Eu bem estudei, formei nas letras, não é
de minha vontade ficar ruim, falada sem marido, não”.


170
No momento que a jovem me mostrava a carta, a germana de Nguyaecü, acompanhando a conversa pela
janela, comenta em ticuna, depois traduzido: “Carta de amor? Mas do que adianta: homem não sente
saudades”.
277

Para a sua própria sorte, Nguyaecü livrou-se das duas alianças pretendidas. A
primeira a buscá-lo não cumpria com requisito basilar de negociação das alianças, a “regra
das nações”, o que não permitia a efetivação do laço marital. Se ocorresse seria “womãtchi”.
Soube-se do equívoco, quando a pretendente respondeu à avó de Nguyaecü, responsável por
mediar a situação na ausência do rapaz e de seu avô e de seu pai, as duas perguntas cabíveis
nessa “negociação”, repetidas também à segunda a chegar, dias depois. A primeira questão
dizia respeito ao clã de pertencimento; a segunda, na sequência versava “sobre o jeito da
moça estar na vida”.171 A respeito deste último atributo, a dúvida pairava sobre uma possível
gestação (“ããcü”), que pelo enredo, não obrigaria a fazer-se o vínculo, mas certamente
implicaria ao “namorador” assumir algumas providências, como imputar-se a paternidade.
“Não só de nação, de documento também”, disse a avó.172
A resposta à primeira questão bastou para abolir os planos do laço marital. E ao
responder que sua “nação” era mutum, a jovem descobriu-se “irmã de nação” Nguyaecü,
passando a ser alocada na posição “pa’mai”, nas palavras das mediadoras. “A confusão”,
segundo a avó do “namorador”, ocorreu porque na ocasião do festejo o rapaz tinha dito à
moça que sua “nação” era avai, caso possível de um virtual arranjo conjugal. Estratégia que
lhe permitia, naquela situação, já mediante a “palavra de honra dele”, segundo descreveu a
mãe da garota, visivelmente decepcionada com a “grave mentira”, “namorar” com sua filha.
O artifício funcionou bem, temporária e situacionalmente. Abortou-se a possibilidade de
casamento de modo pragmático, ainda que para a tristeza da garota, que deixou a casa aos
prantos, rasgando a carta de amor confeccionada.
A jovem retornou com a mãe para a aldeia de origem, mas deixou de presente o
temor de retaliação através de feitiço (“tchutá”). De acordo com a Neiva, avó de Nguyaecü,
ainda que ela tivesse “negociado bem a confusão”, temia que elas, mãe e filha, enviassem
feitiços, “porque lá, na aldeia delas”, dizia a avó, “tem muito pajé do mal (yuǖcü ya mecü*)
”. E não é raro que nessas situações as moças “desonradas mandarem esses bruxos fazerem
isso aí [enviar feitiços] de vingança de amor”, como explicava a senhora; “tem puçanga para
tudinho, ciúmes, pegar marido, deixar dele, de vingar, de revanche”.
Semanas passaram-se e várias pessoas na casa adoeceram. Porém, não Nguyaecü.
O feitiço, neste caso, “pega [atinge] a família, não ele”, de acordo com a parentela


171
Retomando dados da introdução, a primeira pergunta corresponderia à “tacü i cuega? ”, enquanto a segunda
seria tradução de “nünã'ü nã'ã pacu aru mã'ü”.
172
Aqui Neiva refere-se ao Registro de Nascimento.
278

corresidente. Para eles a eficácia do “feitiço de revanche” estar em “faz[er] ele [Nguyaecü]
ficar triste, adoentado. Ver parente ruim, deixa ele triste; é outro castigo”.
Na terceira situação em que a moça “enganada” buscara Nguyaecü, após aguardá-
lo por duas semanas, a “negociação” da aliança foi mais direta, entretanto, mais dramática
para o jovem. Neste caso, diferentemente do primeiro, a avó Nguyaecü sequer convidou a
moça e sua mãe para entrar à casa, tampouco ofereceu-lhes de comer e beber, como a etiqueta
recomenda. A moça era de uma aldeia bem próxima a de Nguyaecü. E ele esteve
frequentando a casa da garota, sem que soubéssemos, por alguns finais de semana após o
retorno do festejo, mesmo tendo sido advertido e já “preso”. Acontece que nessa situação,
Nguyaecü, que chegou de repente da pescaria, sem chance de esquiva, e na presença de seus
avós e de outros parentes que vieram acompanhar as “negociações”, e de outros curiosos
como eu, assumiu que havia agido errado e dispensou moça, bastante encabulado e sem
sorrisos. Neste caso, não havia preocupações em relação a uma eventual gestação, tampouco
empecilho “estrutural” que proibisse a união deles por pertencerem a grupos classificatórios
similares, posto ainda que eram considerados “parentes, só de ser ticuna, índio, não de
convivência”.
Ficou acertado, então, que ele deveria prestar serviços à família da garota (ajudar
o pai da moça a roçar um novo terreno e auxiliá-lo na instalação de uma caixa d'água para
algum parente deste grupo extenso). Esses serviços perdurariam até que o jovem “aprendesse
como se faz”. Nesse caso, foi necessário a presença do “capitão” da aldeia, quem mediante a
situação, outorga que terminado o “serviço ao não sogro”, Nguyaecü estava proibido de
frequentar os festejos naquele lugar. Sua avó comenta algo similar ao que o “capitão”
enunciara anteriormente sobre o “mau comportamento”: “assim é, ta’a [neto]. Isso é porque
você está nacugü”. Tal expressão traduz uma condição deletéria, no sentido de estar num
estado em que a pessoa produz “sentimentos ruins, negativos, poluídos”. Por isso, a
necessidade de regular sua presença, seus desejos por “namoro sem casamento”.

1.3. Efeitos
(De solteiro a “parente vazio”)

“Com isso aí, diz que eu sou homem desrespeitado, dona. Oi [avô] falou que
sou parente vazio. (...) é, assim gente que não tem preocupação no
pensamento de fazer grupo de tanü, família com se diz; (...)ser solteiro é
feio, prendem a gente porque namora errado; casar para mim não é uma
ideia. Quero seguir assim, solito, sem esposa. Só que não é assim no
279

pensamento de meus parentes que não gostam disso aí de eu ser o Don Juan
namorador, como a senhora diz e a gente ri. Ri só que é sério, assim. Vai
vendo como funciona. Viu isso da prisão, do vigiamento; das mulheres aí
atrás de mim. Agora isso do feitiço, parente doente, aldeia preocupada. Se
for assim, vou até ficar com os peruanos lá do outro lado da aldeia. Eles
também são vigiados, fazem esse tempo de prova; eu faço tempo de cadeia,
de capinar a roça dos homens não sogros. Por isso não quero casar, aí de
castigo, tenho que ir lá fazer aquilo [do] que [eu] fujo” (Nguyaecü).

“Casamento é compromisso" 173 , resume Nguyaecü e aqui também implica


“obrigação".174 Por tal entendimento, tal vínculo está intimamente atrelado às socialidades
generizadas, esculpidas no cotidiano e inerentes às rotinas de “porã'ãcü”, traduzido como
“trabalho”, “das responsabilidades e atividades”. São os engajamentos entre o casal e seus
efeitos nas extensões relacionais que imprimem e enfatizam o sentido de cooperação (nigü),
não apenas econômica e laboral, mas afetiva, política, sexual, material, ritual, entre o casal, e
deles com seus parentes maternos conterrâneos de aldeia.
Embasado nessas premissas e mantendo interesses divergentes, Nguyaecü não
incorpora conhecimentos a respeito, apesar de sabidos. A partir dessa relação, alterar-se em
outro tipo de pessoa e parente, casado certo ou errado. Para tanto, o jovem mobiliza
estratégias de fugas a esse “caminho”, as quais, ambiguamente, também lhe jogam numa
arena de armadilhas, de agressões morais, “castigos” e sanções, posto que, como me elucidou
certa vez Neiva: “meu neto vai no outro caminho de ser pessoa madura”, fazendo alusão
comparativa a outro tipo de parente que requer cuidados, “esse jeito de solteiro, parece de
bruxo [feiticeiro], que autoridades cuida[m]”. Nguyaecü ao não casar parece estar, a exemplo
de outros “jeitos de ser” considerados avessos, fazendo-se na contramão do parentesco,
quando associado à figura de feiticeiros (Figueiredo, 2010).
Nesse sentido, as colocações feitas por suas tias e pelo tio materno, pela avó, por
sua germana, tanto quanto as fofocas, os castigos corporais e “prisões”, a feitiçaria e
constrangimentos que lhe afligem, aparecem aqui, como fora em outras situações sociais as
“palavras de Deus”, “a confissão”, “tempo de provas”, “conselhos”, instrumentos ticuna de
ensinamentos moralizantes (McCallum, 2001:61). Estes dispositivos, muitas vezes
“copiados” das tensas e violentas comunicações com o exterior, adaptam-se às circunstâncias


173 “nîgü rü tü'ü rika cü dawenü'u”, glosa à asserção acima exposta.
174
“nîgü porã'ãcü cü nî'î”, glosa à asserção acima exposta.
280

interiores, operando como mecanismos modeladores “do pensamento”, “dos corpos”, “do
juízo”, que se esquivam aos fluxos relacionais desejados, ou propostos pelas convenções
culturais, para configurar-se um “viver bem, no jeito mais no caminho de ficar gente madura,
de respeito, confiança”.

1.3.1. “Parente Vazio”


Nesse movimento transformacional da pessoa e do parentesco, seus corpos
alteram-se ao fabricarem-se como amantes, pais, tio/as, cunhado/as, engendrando a um só
tempo saberes e conhecimentos adequados a tornarem-se, paulatinamente, “homens/mulheres
maduros”, cada qual produzindo-se a partir de seus próprios referentes. Como evidencia o
caso particular de Nguyaecü, as sanções quando aplicadas sob o corpo-pensamentos de
“namorador” reforçam a equação entre a sexualidade como item da aliança e do casamento.
Diante dessa situação, em descontinuidade com tal idioma de parentesco
performatizado entre seus consanguíneos afeitos ao casamento, ele propõe aos seus “patcha”
(parentes) possibilidades outras de tornar-se “pessoa madura”, chamando atenção para a
reconfiguração de significados em relação à “família” e o “jeito de estar com os parentes”
(parentesco). Para tanto, o jovem ticuna, em alternativa, nos relata que seu “jeito de ser
homem”
“Não é feito no casamento; vou fazendo esse jeito de juízo diferente. Eu
estudo, eu quero ser alguém na vida. Um dia termino as letras e vou fazer
curso de enfermeiro. Aí vou ganhar salário. Desse jeito ajudo a alimentar a
gente de casa, no’é [avó], oi [avó] que já tão ficando sem força de roçado.
Espia, dona, eu vou fazendo tudo igual aos parentes homens, só que sem
esposa. Diz que isso aí de homem maduro tem a ver com a família, com a
feitura dela; mas eu crio meus sobrinhos. No’é tem a razão dela, né. Assim é.
Quero ser do meu jeito, ficar longe dessas confusões de parente que casa,
que tem sogro e sogra dizendo o que temos que fazer. Por isso já me fui com
pa’pa. Aí lá começou essa história dele querer que eu me ajuntasse lá, me
vim embora. ”
Cabe perguntar-se, então, se assumir formas similares de ações sociais, porém em
posições e estatutos outros, resulta no mesmo? A ideia de “parentes vazio” aplicada à
condição de solteirice de Nguyaecü enuncia que não. Estes ensinamentos acerca de como
fazer-se pessoa e parentes são forjados situacionalmente como meios de socialidade
circunscritos por um conjunto específico de valores morais e políticos, os quais descrevem,
por diferentes ordens simbólicas assumidas, que o “compromisso” matrimonial é
281

especialmente uma relação produtiva na qual o casal está preocupado com a criação do
parentesco, o que se pode entender fazerem-se como parentes, tornando-se membros de uma
rede de inter-relações criativas e não perigosas. Estas conexões emergem e fabricam-se na
convenção sócio-cosmológica que sugere, desde “o início da história dos ticuna”, que a
reprodução “bem feita”, respeitando as normas e prescrições a respeito da concepção de “sexo
malfeito”, seria o meio principal para essas ações interessadas, quando vistas desde o prisma
do “compromisso”.
Quando os parentes de Nguyaecü o acusam de ser “sem juízo” estão a comunicar
que o parentesco aqui funciona porque sem casar, mesmo tendo filhos, em sua situação, ele
torna-se um “cucümarünatchié” (pessoa sem caráter; pessoa de maus pensamentos,
intenções), posição desprivilegiada duplamente. A ele, numa escala, pois, reduz, quando não
aniquila, possibilidades de laços e alianças de alguns tipos, restringindo campos de produção
de trocas reciprocas. Tais qualificações direcionadas a Nguyaecü derivam de dois contextos
justapostos: seja por não ter uma unidade doméstica que produz gêneros alimentícios que
impulsione gradientes de consubstancialidades, seja porque não gera filha/os para tornarem-
se, futuramente, novos veículos de alianças, que um dia o tornariam uma figura de autoridade
política e afetiva (yora*) ao seu grupo extenso.
Este exemplo que tomou forma empírica quando soube por sua irmã, cujo
casamento estava sendo negociado, que seu futuro esposo, assim como os germanos destes, já
haviam expresso reticências quanto a união em tramitação. Pelo que soube, isso motivou-se
quando tais afins perceberam no “jeito cucümarünatchié” (pessoa sem caráter; pessoa de
maus pensamentos, intenções) do futuro cunhado alguns atributos problemáticos. Segundo a
germana em questão de Nguyaecü, assim foi dito pelo seu futuro cônjuge, a propósito da
condição de seu germano namorador: “ele disse bem assim, Pati: “- estamos de olho nesse
rapaz aí, cunhado assim não serve”; “porque era homem sem força para fazer aliado e
compromisso”.
A categoria enunciada pelos afins potenciais de Nguyaecü para caracterizá-lo
designa, tanto quanto aquela de “parente vazio”, um conjunto de relações e um circuito de
afetos e afecções contraditórias aos laços pretendidos de aliança, como me explica Yiatchiĩna,
a advertência de seu futuro esposo dirigida à condição de seu germano:
“Um homem sem mulher, é homem sem aliados, um pouco sozinho no
mundo, não tem jeito de manter bem sua pora, [sua força*], que mantém o
pensamento bom (...) força que a senhora já aprendeu que é feita na vivência
com parente, não é? É assim”.
282

O efeito central desta condição e desejo de solteirice almejada por Nguyaecü, por
fim, para além de desestabilizar as “estruturas de parentesco”, promove rupturas concernentes
ao idioma de pessoa ticuna, quando “seu pensamento e corpo ficam enfraquecidos, poluídos
de sentimentos de solidão”, como me dizia Neiva, com certa preocupação. Ideia similar
àquela apresentada mediante os “perigos” dos “homens de fora” lidas no capítulo IV,
embasando na mesma lógica da troca: a dívida por não fornecer irmãs ou meios de
compartilhar.
“Perigo” aqui desenha, para além da inflexão na aliança extra-conjugal, “o
compromisso”, a falta de substâncias propícias e afetos relevantes à pessoa como um ser
socialmente produtivo. Sexualidade reprodutiva, neste enredo, interseciona essas descrições
de um modo bastante evidente, descrita no decurso das alterações como estruturante da vida
conjugal e da “boa vivência”: “tempo de provas”, “fazer casal”, “fazer parentes”,
“obrigações”. Neiva, nessa direção, comenta que “homem que não tem mulher é como
mandioca que não cresce”.
Tangenciando as teorias de concepção ticuna, no que ela prossegue expondo a
positividade que tem a diferença para gerar interações criativas: “a mandioca só cresce se a
gente alimenta ela com nossos cuidados, se a gente limpa o terreno, se a gente vai lá
conversar perto dela. Casamento, jeito de se fazer maduro tem disso daí, das parcerias entre
homens e mulheres, dos filhos, das ensinanças, das alegrias”. E ela mesma encerra esta
colocação com as seguintes palavras, explicando que este “namorar” que seu neto exerce é
desperdício de afecções, de substâncias criativas ao parentesco: “namorar tanto para
nada...bom é namorar, bem bom; só botar fora numa conta, tem para fazer filho também”.
Esta analogia vegetal emergiu a partir do questionamento à Neiva, o que, do seu
ponto de vista, seria o “perigo” inerente ao “jeito de ser” de seu neto “namorador”, em
relação específica ao não matrimônio. Ela discorre corroborando a noção de que o casamento
é uma teia de intervenções múltiplas sobre o corpo-pensamento:
“Um homem sem mulher, ou uma mulher sem esposo ficam mã’ǖ175 fracos,
doentes do jeito deles, do corpo, dos pensamentos. Ficam como mandioca
sem dono. Não tem com quem dividir a rede, a vida; só [tem-se] parentes
aliados dos outros, assim é, como não ter roça e pegar dos outros. ”


175
Ela emprega o termo “mã’ǖ” para referir-se à ideia de pessoa, como descrito no Capítulo I e II, explicando
que “isso aí da pessoa ticuna que é o corpo-pensamento” deriva de “mana”, “o caminho, o trajeto da pessoa”, o
que é composto, também, “no casamento”.
283

Esta analogia vegetal explica a relação, já bastante clara, da composição de


“pessoas partíveis” (Strathern, 2006; Lea, 2012). Aqui, particularmente, ela expressa-se “na
feitura de jeitos de ser parente”. Condição que nos possibilita entender que em modo de
antítese, Nguyaecü altera-se na não entrega ao vínculo matrimonial e suas extensões
sociológicas, em “parente vazio”. Nesta posição, ele é destituído de capacidades propiciadas
na posição de “esposo” e, a um só tempo, conformadoras de outros tipos de ser parentes. Isso
resulta do fato de que quem “não faz esposa, não faz filho, não faz parentes; não fez casa,
não faz companheiros de dia a dia, como se alimenta? Não alimento de comida, alimento de
sentimentos, de palavra, de cuidados. Nada é feito sozinho, só de uma parte, vira nada de
homem maduro”, explica a avó de Nguyaecü. Suas palavras evidenciam as lógicas
diferenciativas de socialidades “cross-sex” (Strathern, 2001, 2006) subjacentes no debate.
Com isso, Nguyaecü nos está a comunicar sobre jogos de forças acionados nas
suas negociações, pelas versões de desejo, poder e subjetividades. Sua experiência, por fim,
articula intergeracionalmente categorias nativas envoltas nos dispositivos da aliança, na qual
“família” (dar continuidade às sociologias do parentesco fazendo-se casado para ser aliado
porque esposo/a) e teorias de relações que a mediam e conceituam estão embasadas
paralelamente na economia da pessoa (corpos) e de substâncias constitutivas (pensamentos e
fluidos corpóreos, estéticas e éticas generizadas). Por isso, entende-se que “parente vazio” se
constitui como o reverso de “parente maduro”, seja homem ou mulher produzindo relações, e,
situacionalmente, ambos estatutos de pessoa manifestam-se em plurais socialidades
expressivas de pontos de vistas dotados de agências femininos ou masculinos.

1.3.2. “O parente que tem jeito de homem errado”

Era final de uma manhã quente de outubro de 2013. Estávamos eu e um de meus


grupos extensos hospedeiros no espaço da roça, como costumávamos fazer aos sábados, para
preparar a “massa de mandioca” (“namū”) e fazer farinha (“ui”). Nguyaecü estava lá, com
seu celular irradiando forrós; sentado à rede, armada sob pequena sombra de castanheiras que
delimitavam o espaço de roça de seus avós maternos. Ele apenas observava seus parentes
trabalharem. O irmão de Nguyaecü ajudava na torra da farinha junto ao tio, e a armazenava
nos paneiros. Notei que o rapaz comprometido deixava um pequeno cesto com excedente de
cada rodada de torra de farinha, destinado à sua “noiva”. Todos nós fazíamos alguma parte
das tarefas. Passávamos, nestas ocasiões, o dia no mato.
284

Neiva dizia-me, aproveitando que eu perguntava, sobre a etiqueta de cortejo feita


por seu neto à noiva potencial:
“Isso se faz com quem te ajuda, com quem trabalha com você. Tira um
pouquinho do teu trabalho [massa de farinha azeda] para levar na casa da
Fulana, sua amiga, para fazer moêtchi [modo como se menciona obrigado
em ticuna]. Faz como parente com juízo, assim ensino. Ri não, meu neto
[referindo-se a Nguyaecü]. Ri de quê? Vai tu arrumar juízo. Aprende com
seu tchau’ené [irmão] jeito de ser homem. Bem já tá se fazendo assim, no
jeito de parente que tem jeito de homem errado”.
Nguyaecü era assim qualificado, “no jeito de parente que tem jeito de homem
errado”, pois tinha contido em seu desejo desenfreado por sexo e pela negação do casamento,
especialmente, “uma alegria de namorar de exagero”, diziam-me na roça. Seu avô,
enfaticamente coloca: “não é jeito de homem maduro”. Aristides, seu avô materno, explicava,
com isso, que a ideia da exorbitância comunicada pelos atos de seus netos é avaliada,
portanto, em duas ordens de sua solteirice, uma pela ideia de não continuidade ao parentesco
mobilizado no interior das relações matrimoniais, e, pelo entendimento do manejo de sua
sexualidade, não propiciadora de novas relações para que gere “mais parentes”, seja como
consanguíneos ou afins. Pelo efeito, emergem as qualificações: “ninguém respeita ele”.
Para Aristides, “esse jeito desse homem parente” denota certas instâncias de
“perigoso”, na medida em que no limite “das brincadeiras de namoro”, o jovem “incomoda
as pessoas”. Segundo ele, retomando ideias de outros interlocutores sobre a dialética do
casamento ser um momento de aprendizagem e ensino, “homem casado com mulher” ajuda a
“controlar” essa “alegria exagerada”. Aprende junto dela e dos parentes “jeito de fazer
benzinho, de estar na vida para usar bem os pensamentos. ”
Aristides sintetiza o que sua cônjuge explanava a respeito da noção de “jeito de
homem errado”:
“É gente que faz tudinho como homem. Aprendeu a ser no jeito de homem, a
fazer seu corpo, seu pensamento nesse jeito daí. Assim é esse meu neto sem
vergonha. Só que não faz esposa. É homem errado. A gente pesca. Meu
irmão, eu, vamos pro mato, a gente aprende bem com pa´pa a fazer coisas de
homens, assim de caçarias, reunião, madeira, de arrumar esposa, filho,
trabalho com ela, ganhar juízo, confiança. Só que pensamento dele não é
assim; aí eu digo, ensino assim pra senhora que esse jovem neto meu é isso
aí, vazio, sozinho desse jeito de homem errado. Por isso riem dele. Ele ri
285

nervoso, nervoso de medo. Num é de brincadeira não, dona moça. É sério.


Daí vem disso de fraquinho, moço feito assim homem errado. ”
Tornava-me mais inteligível o lugar social das chacotas a eles dirigidas, quando
os tratam como homens “enfraquecidos”. Nesse sentido, o “jeito de ser solteiro” descrito
acima evoca privar-se de esposa, de seu “petchica” (grupo extenso), de filhos e de outros
signos que mediam vínculos conjugais e alianças bem ou não avaliadas, empregando
significado ao casamento enquanto espaço-temporal, no que quero atentar nesse debate,
conveniente para sustentar que a sexualidade deve se prestar às relações criativamente
reprodutivas a diversificados campos de socialidades. Não apenas nas questões de reprodução
sexuadas de novas pessoas e parentes, mas continuidades a certos referentes em alinho com
aqueles de quem discute a problemática de seu de seu jeito de ser. A situação de solteirice,
como metáfora ao estar “sozinho”, ali, implicava enfaticamente, um jeito não prestigiado de
estar no mundo.
As performances sexuais por ele produzidas, equivocadamente repetidas, não
transformam substâncias (pensamentos, sêmen, emoções) e agências em conhecimentos
qualificados e legítimos, porque geram “conflitos” e “perigos” de muitos tipos (cosmológicos,
ontológicos, afetivos, sexuais, políticos, de saúde). As narrativas de não conjugalidade como
estas desestabilizam premissas pedagógicas, por fim, abrindo espaço para entender um modo
outro de ser ticuna, produzido noutros tipos de socialidades, no domínio do que caracterizam
aspectos, ou signos, conformadores também de tipos de masculinidades.

***
Na próxima seção vejamos sobre fluxos de relações engendradas nos “jeitos de ser
solteiro”, agora, porém, versando sobre um solteiro “caigüwaecü”, “aquele que faz sexo pelo
ânus” e movemo-nos por outra rede de parentesco, ainda na mesma aldeia. Com estas novas
imagens etnográficas, visa-se pensar como se formulam versões de “jeitos de ser homem e
mulher”, alargando os já conhecidos. De que modo afecções homossexuais, aqui apresentadas
numa descrição das práticas e usos dos corpos sexuados, deslocam e recompõem limites às
ênfases colocadas por alguns grupos de interlocução na importância material de certos tipos
de corpos, de seus agenciamentos de gêneros em torno da constituição de subjetividades
relacionais, especialmente interseccionado à ideia da agentividade reprodutiva, signo
estruturante do que pensam ser um efeito central à economia conjugal.
286

2. Quando casar não é possível


Ezaquia,
(“caigüwaecü: aquele que faz sexo pelo ânus”; “aquele que usa o ânus como vagina)

2.1 Relações

Eu estava atrás da escola da aldeia, já no cair da tarde. Tomava nota de palavras


em ticuna e em troca ensinava algumas palavras e expressões em inglês e espanhol para um
grupo de meninas, entre oito e catorze anos. Enquanto escrevíamos nos cadernos e levávamos
a sério o exercício de pronunciação das palavras, percebi que um jovem nos observava, um
pouco afastado. De aparência bem juvenil, corpo esguio, rosto arredondado, com cabelos à
altura dos ombros, de fios pretos e pontas aloiradas; usava unhas pintadas; trajava uma saia à
altura dos joelhos, cor laranja, e uma camiseta azul, bastante ajustada ao corpo; calçava um
par de havaianas.
Aos poucos ele tomava confiança e achegava-se com a gente. Tímido, porém bem
curioso, o rapaz espiava o que escrevíamos e perguntava-nos palavras, com um tom de voz
similar àqueles pronunciados pelas meninas: agudo e delicado. Compartilhava com elas as
mesmas expressões de timidez (ou “charme”, como ouvi em outro lugar): olhar baixo e, ao
falar, lançava a mão diante da boca. Conjugado a esses gestos, o rapaz, para responder
afirmadamente às meninas, quando convinha, levantava as sobrancelhas. Performances e
traços estéticos que vinha aprendendo ser característico do “jeito de ser mulher”.
Eu lhe perguntei como se diz marido (nate) em ticuna, depois de uma das meninas
ter me ensinado o termo para esposa (namâ). Elas, ao redor de mim, que estavam sentadas
num banco, riram e falaram algo que nele surtiu o mesmo efeito. Depois, entendi que o
haviam qualificado como “na nge'ã'ẽ”. 176 Para evitar interpretações equivocadas, resolvi
aguardar calada, quando ele, então, diz em português: “eu não sou desses. Não sei dessa
palavra”. E saiu.
As meninas lhe haviam qualificado como solteiro, “não casa esse daí”,
justificando, com efeito, que ele não saberia tal palavra que eu buscava saber, ensinando-me
uma delas o termo de tratamento. “Ele é homem com jeito de mulher”, dizia uma das meninas.
Ele não saberia ensinar-me o termo para esposo, “pergunta de esposa, ele sabe”,
riam todas as garotas, fazendo-me entender que ele não se fazia enquanto pessoa e parente nos

176
“na nge'ã'ẽ” traduz a expressão descritiva de um conjunto de relações generizadas que resulta de acordo com
o que me ensinavam, “como a gente diz assim o jeito de ser mulher”. Seu reverso simétrico está contido na
expressão “na yâtüã'ẽ”, “como a gente diz na gíria ticuna, assim, o jeito de ser homem”. Voltaremos ao tema.
Ver item 4 deste capítulo, onde é retomado o debate e as traduções destes termos.
287

circuitos nos quais o aprenderia. Do contrário, ele soube ensinar-me como se produzia, desde
seu ponto de vista, a relação para fazer-se enquanto “pessoa com jeito de mulher”, falando-me
de suas estratégias para tornar-se “mulher solteira e madura”. Sobretudo, aprendi com este
jovem, que identidades de gênero, ali, não se produzia isolado em referentes de dimorfismos
sexuais. Soube nesse dia que seu nome era Ezaquia, filho de Rosalina, o que “quer casar e
não pode, porque usa o ânus como vagina”.

2.1. “Até quero casar, mas como esposa”

“Casar? Até que quero sim, dona moça”. Assim dizia-me Ezaquia num dia de
prosa longa, iniciada ainda cedo, à beira do igarapé, quando o encontrei lavando louças e
roupas. Perguntei-lhe por sua mãe, que soube estar já na roça “cuidando das macaxeiras
dela”. Como não o via naquele “portinho” seguidamente, pois pertencia à outra rede de
parentela que não a dele, estranhei sua presença, indagando a ele o motivo da visita. O jovem
aparentemente desgostoso do mundo, responde, em português num tom baixo, que queria
“sossego”. Lhe haviam visto, anteriormente, no “portinho” de sua mãe e não lhe pouparam
“piadas”. Algumas delas referindo-se claramente à sua sexualidade e identidade de gênero:
“ei Ezaquia, já virou mulher? ”; “ei parente, vai casar com meu irmão, fazer sexo com o
ânus? ”; “vai aprender a pescar ou seguir na cozinha? ”, foram algumas que ele citou. Ele,
mais ou menos, sabia o horário que eu descia para lavar roupas, como de praxe a muitas
outras mulheres, e ali me aguardou. Ali ficamos parte da manhã.
Já havíamos conversando em outras ocasiões, no intervalo da cena da escola. Sua
mãe era uma exímia artesã, e com ela estive aprendendo a arte de tecer cestos de roça.
Retomei com ele, nesse dia, a cena detrás da escola, ocorrida um mês antes. Num silêncio
demorado, após mencionar sobre as piadas, ele começou a articular palavras em português
“bem aprendido”, dizendo-me, com o mesmo tono agudo e delicado de alhures:
“Aqui na aldeia o pessoal não deixa assim casar como eu quero,
aí não caso. É como ter vontade e não poder, sabe? Pode não.
Aí viro solteiro”.
Segui em silêncio por alguns instantes, e lhe mirei com uma feição
condescendente, a qual, sem aparentemente gostar, ele retruca com um leve empurrão,
dizendo que tal situação, apesar de “triste”, não lhe era “problema”. Nesse sentido, o rapaz
disse-me algo sobre os efeitos de afecções negativadas que sua condição de solteirice
mobilizava a outrem:
288

“é assim, dona, um problema para as pessoas verem que isso é normal. Sou
assim, no pensamento de mulher que veio feito no pensamento, no jeito de
corpo de homem. Me faço como mulher, quero casar com homem. Sou fraco
como dizem. Isso porque parente de força [poder] aqui pensa assim, que não
posso virar mulher. Não gostam do jeito que eu namoro, falam feio que
minha vagina tá no lugar errado”.
Distinguindo sexo biológico do gênero enquanto perspectiva assumida pelos
efeitos de suas relações, Ezaquia situa tais modos relacionais, informando que o viam na
aldeia como um “parente fraco”. Em continuidade com as lógicas político-morais das
situações anteriores, aqui os discursos sobre o lugar da produtividade dos atos sexuais
corroboram-se. Ezaquia torna-se, uma dimensão de “parente vazio” à medida que não “faz
parentes”, sublinhando a centralidade da reprodução na legitimação do casamento, como
momento no qual simultaneamente aprende-se, na conjugalidade, a fazer-se vínculos de
aliança propícios a estados de conformação da pessoa, e de novos parentes.
E, por isso, como relata Ezaquia: “o parente de poder não aceita que eu vire de
verdade uma mulher. Já sou. Já vim aprendendo”. Em suas palavras, reiteram-se os
princípios cosmopolíticos da conjugalidade e da aliança: “casar é disso, dona, fazer mais
parentes, virar gente madura, aprender a estar na vida com parentes, aprender a ser gente
com jeito de mulher ou homem maduro, com bom pensamento”.
Revela-se, neste contexto, o problema das avaliações deletérias a propósito do
“jeito” afeminado de Ezaquia, com base em regimes de conhecimentos que revelam corpos
que importam, mais ou menos, ao idioma do parentesco convencional aos Ticuna. Isto é,
aquele “feito no jeitinho de homem com mulher”, numa ‘hetero-normatividade reprodutiva’,
eu diria.

2.1.2. “Parente Vazio”

Ezaquia afirmava, decidido, que para esquivar-se das sanções aos seus supostos
desvios de aprendizado, não “fugia”: “enfrento dessas palavras feias. Quero [casar], mas não
deixam (...) Não tenho essa vontade de virar homem maduro, sou de outro jeito”. E afirma
sua identidade de gênero vinculada diretamente à sexualidade, evocada nas dimensões das
micropolíticas de parentesco: “sou um solteiro no jeito caigüwaecü: aquele que faz sexo pelo
ânus”. Ademais, ensina-me desde sua perspectiva que gênero e sexualidade são dimensões
relacionais compostas de relações de poder, de diferenciações e agencialidades produzidas,
289

nunca dadas a priori, e necessárias a este contexto etnográfico para a compreensão dos
sentidos de casamento e parentesco:
“Sou assim, um parente que nasceu homem, se fez com jeito de mulher. Aí
falam de eu ser parente vazio por isso daí, de não fazer bem as convivências.
Isso é problema das autoridades, não para mim”.
“Parente vazio”, neste contexto, é por ele traduzido como espaço da
potencialidade da presença da alteridade, no caso de uma sexualidade em desalinho com
alguns pressupostos sociais dos gestores do parentesco local. Entretanto, a sexualidade em
questão opera aqui, diferentemente de Nguyaecü, não pelo exercício exagerado e sem
responsabilidade.
A sexualidade desviante de Ezaquia é questionada e visibilizada, e por isso
também problemática. De que forma, então, Ezaquia busca driblar estes dissensos para
produzir um lugar social reconhecido “como mulher”, para então, administrar a aquisição do
estatuto de “solteira” ou “casada”, para alterar-se em “pessoa madura”?
“Mamãe é valente. Ri disso aí, dona. Espia como a gente faz: eu [es]to[u]
mais para a filha do que pra filho, sabe. Já faço coisas que minha irmã faz na
vida dela, faço como ela fazia quando vivia aqui com a gente, antes de ir
embora com o marido dela, sabe. (...) faço assim, as coisas, as obrigações
das mulheres: de roçado, limpar a casa, limpar roupa no rio. Não vou pescar
não, como fazem meus primos. Isso é coisa de homem (...) não eu não faço
isso. Não aprendi disso daí. Eu tenho terçado, pau de fiar rede e gosto de
fazer isso de ir para roça, de estar aí fazendo uns peixes assados, proseando e
fiando tucum. Só que isso não me deixa respeito, né. Aí falam essas palavras
feias, de que sou mais fraco. Sou nada. Sei assim...é coisa de sentir aqui
[com a mão toca em várias partes do corpo]. Se eu fosse fraca, ia ter vontade
de ir me embora daqui. Fazia isso, como os parentes aí da outra aldeia.
Ficam triste se vão [suicidam-se]. Não faz caso disso, não. É como aqueles
irmãos, filhos do Fulano, o cantor dos cultos, dos bailes. Ele também não se
ajunta, quer homem como eu. Ele tem jeito de homem.177 Aqui pode não se
ajuntar desse nosso jeito, dona. Bem que a senhora sabe, sabe não? Minha
vida é disso...vou aprendendo a ser boa filha, de saber bem no jeitinho da
ma’ma como se fazer madura. Ela fez parentes”.

177
Trata-se de Nelson, um homem ticuna, conterrâneo de aldeia, de aproximadamente quarenta anos de idade,
também solteiro, e “caigüwaecü”. A distinção mais relevante que aprendi entre eles é que Nelson não havia
“virado mulher”, “fazia coisas de homem”, “tem jeito de homem”, “só namora errado”. Nelson apresenta-se
“pescador, agricultor, religioso”, um dos filhos do germano mais velho do esposo de Neiva, Aristides. Mantive
durante o campo parcial contato com Nelson, porque aos que me hospedavam não parecia muito agradável,
naquele tempo em que entre eles estive morando, que eu mantivesse visitas mais regulares à casa dele, para além
daquelas que envolviam “fazer o trabalho de pesquisa das famílias”. Diziam-me que tempos antes de minha
chegada à aldeia, havia ocorrido uma celeuma entre os germanos, o esposo de Neiva e o pai de Nelson, “por
coisa de política”, algo envolvendo a eleição dos novos caciques. Dadas as circunstâncias, meus parentes
putativos diziam-me que se precisasse retornar à casa desses seus parentes para coletar dados “da família”, eu
poderia pedi-los aos Agentes de Saúde, que tinham o censo comunitário, “sabiam das casas”.
290

Neste rastro, comentei com Ezaquia sobre o que aprendia a respeito de ser
solteiro, expondo que, mesmo ele assumindo a posição social de mulher, engajando-se em
redes de socialidades entendidas ali como femininas e com isso forjava um lugar de
legitimidade por atuar de modo próprio ao seu “jeito de ser”, ele seguiria “solteira”. Situação,
a qual, talvez não modificaria seu estatuto de “parente vazio”, se relacionado à esterilidade
reprodutiva da relação conformada. Não está em foco a questão do gênero, senão os conjuntos
de relações de comunicações postas anteriormente pela problemática da sexualidade. A
respeito do complexo jogo conceitual e de forças políticas e morais que mobiliza tal situação,
o jovem menciona:
“Sei disso. Mulher solteira é feio também, porque não faz parentes, não tem
mais aliados, esposo; fica sozinho no mundo; não faz vida de convivência,
como diz. Só que mulher solteira, assim, eu pelo menos, já tenho meus
amantes, tenho minha roça, quero ser mulher de verdade, aquela parenta de
quem não riem”.
Na sequência, Ezaquia ressalta subterfúgios que, de sua perspectiva, o alterariam
naquilo que mais o afetava na posição de solteirice em que se encontra: não ser reconhecido
socialmente como “uma pessoa com jeito de mulher”. Se fosse, poderia buscar esposo ao seu
estilo, estar em “sossego”.

2.2. Negociações

Como não o oportunizam ser a “esposa”, é preciso, tangenciar performatizando as


estruturas da norma, “disfarçar”.
“Posso copiar um moço lá da aldeia grande, mais pra cima do rio. Ele fez
filho numa moça, fez a casa, ficou até filho andar. Ficou com pensamento de
homem por um tempo. Disfarçou ele. Depois foi bem fugir. Se foi para essa
cidade. Lá vi ele. Contou não tá sozinho; tem os parentes dele na aldeia, vai
de visita, vai ver o filho, não a ex-esposa, né [risos]. Disse esse tal homem,
de querer se ajuntar com outro [homem] e não deixavam lá no lugar dele.
Disse o homem que tem aldeia que deixa disso, parece. Ele não tem
pensamento de mulher como eu; ele é homem, do jeito que namora com
homem. Ele não tem dessa vontade de virar mulher. Mais facinho para esse
parente ser solteiro, né. Disfarça, né? (...) disfarça assim, se faz de homem
maduro. Mas no jeitinho dele, com gosto de namorar e casar com homem. Já
eu, não, outro jeito. Aí assim, no meu pensamento. Gosto, fui feita mulher
291

assim de pequena, assim foi. Não é como esse fulano. Ela faz coisa de
homem, só sexo que ele faz é errado pro parente. (...) Só que não nasce filho
da minha vagina. O moço esse daí, da cidade, é homem maduro. Eu vou ser
mulher, e ma’ma. Não pa’pa. Viu? Assim pai com pensamento, com
sentimento, alma de mulher? Será? Aí negocio isso daí, não o casamento (...)
isso de casar, eu dou um jeito. Se não me quiserem por aqui, me vou para
outra aldeia. Se o problema do pensamento desses parentes mais do modo
antigo é fazer casamento para ter parente, dou o golpe, faço filho numa
mocinha fico como esse moço, pa’pa. Ou, eu pego [adoto] criança de outro,
viro isso aí, ma’ma, que sei mais. Viro mulher com filho, madura, mas
solteira. E o filho não é de rua, porque gente sabe da verdade”.178
A intensão de casar parece estar, assim, subsumida à “vontade” anterior de “virar
mulher de verdade”. Casar é efeito e estratégia secundária no seu roteiro de dupla alteração:
em um tipo de pessoa social (mulher) e um tipo de parente, “vazio” ou “casada”, cada qual
com implicações específicas na atribuição de estatutos e status. Por isso, ter filho enquanto
“ma’ma” ou “pa’pa”, atrelado ao casar, para Ezaquia acessa condições de possibilidades,
como talvez fora o “casar na Igreja”, “casar no papel” ou “casar com inimigos” em outras
situações etnográficas.
A partir disso, podemos afirmar aqui, que não há nenhum tipo de disjunção entre
a “versão” do casamento reclamada pelos gestores morais do parentesco daquelas propostas
pelo jovem. Ambas leem o casamento como parte do idioma de parentesco ticuna, expresso
enquanto um espaço-temporal propício e legitimado para realizar-se como parente proficiente,
porém desalinham-se, se focalizado pela ideia de ‘heteronormatividade reprodutiva’.
Para Ezaquia, especialmente, essas relações em conjunto produzem lugares e
reconhecimento; o fazem como pessoa com gênero socialmente acolhido, desvinculando-se,
pois, do lugar de ambiguidade. E retomando uma das técnicas por ele aventada para isso,
indago ao jovem sobre como o “pegar filho de outro”.
“Assim, minha irmã se foi embora para aldeia do marido dela. Ela tem dois
filhos desse marido dela. Posso trazer um para cá, já bem disse para ma’ma
isso aí. Ela disse sim, pega para gente, disse ela. Até disse assim, esse
curumim terá três ma’ma”. (...). Assim, trago para casa, faço filho meu:
ensino, crio tudinho, sei bem como fazer isso das ma’ma, dona. Aí no papel,
se precisar disso aí, de documento, a gente coloca que é filho feito por eles


178
“yatü ya nguemacü ngueacücü” seria a expressão em ticuna que traduz homem não casado com filho/a,
enquanto seu contrário simétrico seria “ngue'e nguete'e rü ngue'acüe”. Cf. apêndice Capítulo II.
292

[irmã e cunhado]. Eu fico de ma´ma de criação, assim, não de nascimento,


mas de feitura na convivência. Assim é na lei do ticuna, pode disso. Tem
no’é [avó] que faz isso. Como na casa da senhora. Lá tem os netos da Neiva,
tem não? Não tem ma’ma esses daí, criou foi a no’é deles, foi não? Aí acho
que viro mulher madura, viro não? Mudo de nome na gíria, para ficar com
nome de mulher também. É plano, assim, vontade. Vamos ver o que
acontece, né”.
Um dos efeitos que vislumbrava Ezaquia com os processos de fabricações de suas
capacidades agentivas femininas era “enfrentar sem vergonha as piadas”. Não tardou muito
após estas últimas colocações do jovem, e outros de minha casa hospedeira desciam o
barranco que conduzia ao igarapé onde havia decorrido esses diálogos.
Ezaquia rapidamente puxou suas coisas, realocou-as na bacia de metal, a subiu à
cabeça, e saiu em passos largos da canoa onde estávamos. Cumprimentou os que se
aproximavam e, de cima do barranco, me chamou dizendo que me esperava na roça, para não
demorar.
Minhas “irmãs de aldeia”, que riam de mim, comentavam “ei irmã, tá de prosa
com o caigüwaecü? ” Rio e respondo que sim, que ele havia vindo visitar-me, e pergunto se
havia algum problema. Uma delas, também debochando, diz que não, afinal, com aquele ali
eu não corria risco de “fofoca de namoro”, como poderia ocorrer se estivesse em companhia
de seu germano “namorador” naquela mesma situação. Uma delas, apenas comenta “patcha,
esse é mulher. Não namora com você, namora com homem. Tem vagina errada [risos]”.
Dali, dirigi-me, sem tardar muito, ao caminho da roça, esperando reencontrar
Ezaquia. Lá estava ele à minha espera.
O que, como e com quem, então, se negocia quando Ezaquia assume, em seus
ônus e bônus, o “jeito de ser mulher”? O jovem relatava um corte de cabelo e várias
solicitações de retirada do esmalte de suas unhas, motivadas pelo “jeito de ser” da autoridade
política, o capitão local, enunciadas com “voz grossa, forte bem firme”.
Contra algumas ações pedagógicas Ezaquia dizia responder gestor moral local, “sou eu assim,
com jeito de mulher, de namorar com homem. O senhor não tem que mudar jeito de
ninguém”. Ezaquia colocava-se na perspectiva do pedagogo ao dizer que entendia suas
atitudes, sem, contudo, aceitá-las, qualificando algumas como “conselho”, advertindo-o com
essas palavras para eu virar homem; que era vergonha pra família, pra aldeia”.
Ezaquia mencionara ainda que o ponto de vista incomodado com o seu jeito de ser
estava localizado na pessoa política do cacique, tendo com isso, espaços legitimados para
293

agir, no que descrevia:“se fosse só outras gentes que não gostam do meu jeito, não esse
homem de poder, isso podia ser diferente”. Expressa por meio do exemplo do marido de sua
mãe a proposição, na medida em que dimensiona afetos e relações de poder, quem lhe diz: “tu
não queres mulher para trazer aqui, então vira mulher e ajuda tua mãe”. Ezaquia replica,
reforçando que é exatamente nisso em que está empenhado: “viro mulher, só que não caso
porque não deixam”.179

2.2.1 “Virar mulher”

Já na roça com Ezaquia e sua mãe, esta como o filho, não afastado do que já
refletia o Don Juan ticuna, sublinha que o que se negocia nessas solteirices menos ortodoxas
são os desejos, os afetos, “o que se sente”, explorando, com isso, as implicações práticas,
simbólicas e políticas que informam como socialidades generizadas são produzidas e
significadas no interior do parentesco, e, com efeito, controladas a partir de um marco de
inteligibilidade pensado como profícuo, mostrando-se não necessariamente simétricas e
igualitárias.
“isso de virar mulher, é como tomar lugar no pensamento, no jeito de estar
aqui na vida de mulher, fazer o que as mulheres fazem, assim, como ma’ma
ensinava minha irmã e foi nisso que me fazia mais alegre do que fazer o que
estar no meios dos meninos e aprender o que eles faziam, de pescar, brincar
de caçar bicho; de fazer canoa; eu gostava de aprender da roça, de como
plantar macaxeira, fiar tucum para rede, fazer esses cestinhos aí; homem
também faz cesto de roça, mas tem cestinho bonito que mulher que faz. Feio
mesmo, vou contar, é esses caigüwaecü, que são homens com jeitos de
mulheres, que não assumem esse jeito. Não sabem o que querem, não viram
gente madura, ficam aí, como os loucos, os palhaços da aldeia. Eu queria
assim, dona, que todos me vissem como mulher, e me dessem esse sossego”.
Ezaquia com estas análises nos conta o que, desde sua perspectiva, significa para
ele “virar mulher”, reconfigurando o “escândalo lógico” (Clastres, 2003:127), no qual para as
“autoridades” ele encontra-se situado. Se não se pode reverter os desejos (sexuais, afetivos)
de Ezaquia, melhor domesticá-los, contê-los, não diferentemente do que as ações moralizantes


179
Lévi-Strauss, em Tristes Trópicos (1996), relata a existência entre os índios Nambiquara de jogos eróticos
permitidos aos jovens solteiros e seus primos cruzados, cujo termo de relação, “tamindige kihandige”, traduz
“amor-mentira”. Cf. Fernandes (2013); Hurtado (2014).


294

visavam produzir sob o ponto de vista de Nguyaecü, para transformá-lo, assim, em locus de
afecções produtivo. Sobre isso, Ezaquia, de certo modo indulgente, comenta ser preciso
compactuar com as “autoridades políticas” (figuras de chefia e religiosas) sua posição, status
e estatuto.
Se a força modeladora e homogeneizante do discurso dessas figuras de poder é
“consertar” coagindo, propondo o corpo como relação e foco de poder, Ezaquia responde-os
no encalço político, pela repetição: “pinto unha, deixo cabelo grande, corpo com saia, com
jeito das mulheres; namoro igualzinho elas, porque sou como elas, amanso eles [homens]”.
Parece-me que ao insistir na diferença performática de seu gênero feminino e sexualidade
(Butler, 1990, 1993), Ezaquia e sua mãe visam convencer -“amansando” do contrário - as
“autoridades” de suas contrapotências agentivas, por isso, postas sob vigiamentos.180
Lembro-me de ter nesse dia perguntado se Ezaquia tinha algum pretendente ali na
aldeia, caso ele pudesse vir a tornar-se “esposa” de alguém. O rapaz responde num gesto
negativo com o balançar da cabeça para ambos os lados. “Tem não, dona. Aqui ninguém me
interessa, esses homens não são dos que eu gosto. Namoro com eles por aí, sim, mas não
servem para esposo, tudo safado”.
Por aí encerramos o dia de prosa, interrompidos por um torrencial aguaceiro que
nos pôs a correr de volta à aldeia. Ezaquia, levava no seu cesto de roça um punhado de araçás,
com os quais dizia que iria presentear um moço não indígena, que vivia num povoado perto
dali e com quem costuma relacionar-se, “sem gostar, assim, de paixão, só de namoro; ele me
dá um presentes também; não faz piadas como os parentes. Não fica dizendo que sou errado,
nem parente vazio esse daí”.181

3.3 Efeitos
(Caigüwaecü no jeito de ser mulher)


180 Ao empregar a ideia de atos performáticos de controle, pela noção de “consertos dos jeitos de ser” desses
protagonistas, enfatizo que seus efeitos tendem a normatizar os desejos. Estes atos têm o poder, parecem
aproximar-se, como sugere Butler, a partir de J.L Austin, “de fazer o que dizem”. Tal proposta aplicada ao
contexto deste capítulo, permite dizer que os “namoros” e práticas sexuais ilícitas, desviantes ou transgressoras
desses interlocutores solteiros, tanto quando aqueles realizados pelas “autoridades” (parentais e familiares,
religiosas ou políticas), seriam atos performativos reveladores das disputas de forças e os jogos de poder-saber
que orbitam no entorno das verdades múltiplas sobre os modos de estar no mundo. É nessa arena que são criadas
realidades (discursos) e materialidades (corpos/pensamentos/conhecimentos/jeitos) geradoras das noções êmicas
de domínios femininos e masculinos de ação social, desde os quais emergem os muitos “jeitos de ser” mulheres
e homens ticuna.
181
Ezequia dizia-me já ter recebido DVD de música da Paula Fernandes, “bombons” [doces], material escolar, e
tinturas para seu cabelo.
295

Num domingo ensolarado, no intervalo do jogo de futebol, enquanto eu estava


envolta em brincadeiras com algumas mulheres e crianças, avistei Ezaquia passar, beirando o
campo. Não mais do que uns cinco minutos depois disso, no mesmo rumo da estrada que
conduz à roça, passou outro jovem da aldeia, na mesma faixa etária e ciclo de vida que ele.
Nesse interim, uma das Agentes de Saúde, da comunidade vizinha, que estava ali
com a gente, puxa-me pelo braço, exclamando: “marü, marü, ngīa patcha”! (Já, já, vem
comigo, parente!). Ela conduzia-me pelo mesmo caminho trilhado pelos jovens, momentos
antes. Seu explícito interesse era saber se o moço que seguia o Ezaquia era seu sobrinho. E
com peito inflado, fôlego que já lhe faltava, depois de corrermos e caminharmos rapidamente
para não os perder de vista, minha amiga explica suas ações:
“Ai que tristeza. Não queria que meu sobrinho fosse desse tipo de gente
caigüwaecü (…) homem que engravida homem não é bom, né? (…) tá
vendo essa casinha, é o motel da aldeia. Aí é que a moçada vem para
namorar; assim escondido para ninguém fofocar e fazer eles casar”.
E o que acontece se flagrarem esses homens namorando com homem? Minha
amiga, comenta:
“Depende do pensamento das pessoas. Tem gente que nem liga para isso aí,
cada um com suas coisas, né? (...) Tempo tá mudado, como falam. Aí
chegou novas palavras, isso virou coisa de gay, de piada. Novos jeitos de ver
os namoros, ai é apocalipse, como diz pastor; vira até castigo do tronco,
doença diz que.182
Dizendo-me tais enunciados, entre os quais também se destaca o efeito da
incapacidade reprodutiva, ela seguiu, devagar e sozinha em direção ao imóvel para espiar
entre as frestas de madeira da antiga casa de roça abandonada.183 A Agente de Saúde ticuna,


182
(…) Aqui o pessoal fala que essas pessoas, os gay e as machudas [mulheres que mantêm relacionamentos
afetivo-sexuais com outras mulheres], ganham doenças”; “ (…) Pode mesmo casar lá na cidade? É como na
novela, homem com homem e mulher com mulher? A presidente [da república] sabe disso? Ela já assinou algum
papel que deixa casar os gays? [sim, lhe digo. ] E porque ela fez isso? Tá na bíblia, lá diz que é muito errado.
Será que ela sabe? Vou escrever uma carta para ela e a senhora entrega, pode ser? A irmã de Nguyaecü,
Yiatchiĩna, apontou-me, com isso, outra possível relação desencadeadora do jeito de ser “gay, assim de querer
namorar e casar no mesmo jeito, assim homem e homem e mulher e mulher”. Ela dizia-me: “eu ouvi uma vez
que isso era porque as pessoas estavam comendo muito frango, é verdade? É por isso que branco é gay? Esse
primo tem aposentadoria, por isso aí, de ser meio adoentado; ele não tem esposa, aí não tem roça, meu ti’tio
esse compra frango lá no armazém dos peruanos”. Não ouvi diretamente de nenhum colaborador menção a
“doenças” tendo as relações homossexuais como vetores de contágio, como diferentemente, ouvi falarem os
técnicos de enfermagem não indígenas, especificamente quando diziam que “gente gay traz doenças
sexualmente transmissíveis”, numa palestra. O uso de preservativos masculinos tem maior ocorrência entre os
jovens, sendo preciso uma melhor etnografia sobre o uso e inserção destas tecnologias entre os colaboradores.
183
Eu a esperei a alguns metros de distância, escondida. Não me interessava, por ética, respeito e também
constrangimento, “fofocar-vendo”, como me diziam, práticas sexuais alheias. Interessava-me pelos discursos que
circulavam e produzia-se a respeito.

296

voltou rindo, apressada, dizendo “sim, é meu sobrinho, filho da minha irmã, ali daquela casa,
bem ali”. Parou por alguns minutos e seguiu dizendo-me: “está tudo bem, é meu sobrinho
que namora nele”, entre risos altos. “Já tá bom, não vou contar para minha irmã, isso tá
bem. ”
2.3.1. Dos prazeres e orifícios

Intrigada com aquela cena, eu passava a compreender cada vez mais haver ali,
como noutros contextos da pesquisa, na cidade ou em outras aldeias e comunidades, ênfases
cotidianas de “vigiamento” das relações sexuais-afetivas. O dispositivo da sexualidade,
também nesses casos, era funcional, como fora com o Don Juan ou Isara, por razões distintas,
porém compatíveis: questões de “sexo malfeito”. Falar sobre, ou deixar-se ver nestas relações,
lançava espaços de controles a eventuais infortúnios agenciados pelas condutas sexuais. Estes
universos ticuna, ao seu modo e cosmopolíticas próprias, não deixam de dialogar com facetas
da “sociedade que fala sobre sexo” (Foucault,1988). O faz, tomando as palavras “dos antigos”
ou todas aquelas “chegadas”, como mecanismos que capilarizam as relações de poder, não a
partir de uma figura centralizada, soberana, senão de uma malha de discursos-saberes
visibilizados em muitos hologramas.
Minha amiga Agente de Saúde me expôs a questão de sua indiscrição como meio
de “ver” para fabricar uma fofoca denunciativa. Fazer falar do sexo municia fluxos de novas
ordenações, conforme quem vê, muda de posição ou de lente. Ainda, que do meu ponto de
vista, estes conjuntos de ações sejam percebidos em algumas formas violentas, há muitos
interlocutores que as veem sob tônica de “cuidado” aos modos de parentesco convencionais,
como a mesma amiga comentou: “estou só cuidando, vigiando ele de más condutas”.
A justificativa da tia, preocupada menos com o sobrinho, direcionava-se senão
com as repercussões para sua irmã, como me disse depois, ser sua “aliada na associação de
mulheres”. Ela afirma, nesse sentido, que se seu sobrinho
“Vira desses homens que gostam de homem, ele vai fazer vergonha, e das
grandes, para minha irmã (...) vão para cima dele como fazem com esse
outro rapaz. Mas se é ele quem namora o Ezaquia, tá bem, ainda é homem.
Namora do jeito dele, mas é homem”.
Indago a ela sobre o que diferia as posições e orifícios sexuais naquelas
circunstâncias, na produção de uma situação de “sexo malfeito”, e como isso se conectava aos
“jeitos de ser homem e mulher”. Ela apenas ri, e com poucas palavras discorre sobre:
297

“O problema é que sexo feito por gente igual não faz nada, por isso de parente
vazio, não faz filho, por isso ri deles”.
“(...) Sexo malfeito? Porque é coisa, assim, namoro feito com gente igual, de nação
ou de corpo, não funciona na nossa cultura do tempo de agora, só para brincar, pra
gostar, não para fazer casamento de verdade. Tem disso aí, das mudanças das
palavras, dos jeitos de ser. Meu sobrinho é homem certo porque é casado, esse
safado, faz filho, faz convivência com os parentes dele. Casado com uma mocinha
aí da outra aldeia, a senhora bem sabe. Ele faz o que os homens fazem no namoro
[risos]. Esse safado tá fazendo filho de mandioca em homem [sentido de
desperdício, como visto no caso anterior]. (...) é, é isso, eu acho. Não é só assim
com quem eles namoram, se homem ou mulher, na vagina ou no ânus; e vou dizer
isso daí não é só nos jovens não, viu. Adulto também tem isso aí do jeito de ser
homem e mulher certo ou errado, assim pelo tipo de sexo que a pessoa gosta, faz
por aí”.184
Questões éticas e morais estão em jogo nessas classificações, já se tornou
evidente. Elas, enquanto valores e princípios polifônicos, expressam-se não apenas no fato do
adultério (que não parece ser a questão central), mas do uso indevido do órgão sexual e dos
decorrentes efeitos de uma prática sexual improdutiva. O cuidado volta-se para a manipulação
de substâncias (fluidos corporais e dinâmicas de relacionalidade) que as evolvem nestes
vínculos sexuais, avaliados desde o lugar do casamento ticuna, como agenciamentos
despotencializados aos contornos de uma economia da pessoa (corpos) e do parentesco.185
Notamos nesse ponto que a performance “passivo/ativo” é a metáfora para esta
interlocutora caracterizar alguns signos sobre ações generizadas, particularmente aquilo que
ela diferencia e produz nos “jeitos de ser homens”, acionando índices de masculinidades
singulares. Nesse sentido, cabe notar que “caigüwaecü” admite em seu significado mais
genérico, “aquele homem que faz sexo pelo ânus”. Descreve, assim, pejorativamente, neste
contexto, um modo improdutivo ao idioma do parentesco pois denota levar-se adiante


184
Sondei sobre práticas de sexo anal entre mulheres, e não soube muito, além de comentários negativos, e que
“caigüwaecü” se aplicaria apenas a praticas envolvendo homens.
185
P. Gow (1989) menciona que entre os Piro a leitura que se dá para relações homossexuais considera a
circulação de alimentos e relações sociais relacionadas, não distanciada do que nos têm apresentado os ticuna. O
autor comenta que o homem piro passivo seria o “maricón” e comicamente tratado, porque usa errado os órgãos
genitais e tem relações falsas com eles. Ezequia é por alguns tratado como o “maricón” piro, mas para ele, sua
mãe e irmã, ele não está nesta posição, pois cotidianamente, ao engajar-se nos circuitos femininos de produção
de alimentos e outras atividades domésticas, ele vai incorporando aos seus modos de atuar, o lugar social de
mulher.
298

relações embutidas na dualidade do casal, agências e potencialidades que “feito no mesmo


jeito”, seriam “relações falsas” (P. Gow: 1989:574) .186

3. “Ser solteiro”, porque “vazio”

Ezaquia tanto quanto Nguyaecü, pelas naturezas diferenciadas de suas práticas


relativas ao “sexo malfeito”, são conhecidos, avaliados e alocados como “parentes vazios”,
“enfraquecidos”, são afins e consanguíneos problemáticos, pelo hiato sociológico que os
guiariam a outras relações, alterando posições, como vimos, mais prestigiadas, do que aquelas
de solteiros, “homens sozinhos sem esposa”. Além das formas de dualismo já conhecidas
(metade/clãs; proximidade/distanciamento; ticuna/não ticuna; primo/irmão; homem/mulher,
solteiro/casado; vazio/maduro), nesse jogo de identidades entre “jeitos de ser” e suas
diferenças constituintes em fluxos de agências femininas e masculinas, Nguyaecü e Ezaquia
tornam-se os “parentes vazios” em duas escalas estéreis: na solteirice que não indica nenhum
índice possível de conjugalidade, a partir da qual, borrariam o segundo problema de
parentesco colocado, a virtual (in)reprodutividade.
Aniquilam, de um certo prisma, a presença da diferença criativa, como um
princípio, uma “filosofia política” (Overing, 1985). Com efeito, parecem, ao atuar de tais
modos, irem no contrafluxo do que os tornariam “pessoas maduras”, alterando os códigos de
relacionalidades que os permitiriam alcançar tal estatuto. Eles evocam efeitos nas relações
basilares do cotidiano ticuna, sob formas de antíteses à produção convencional do idioma de
parentesco.
Contudo, isso é uma situação que parece sempre reversível, a ponto de servir
como vetor de manipulação para que eles se tornem, pela paternidade situacional e estratégica
do primeiro, “homem maduro”. O mesmo processo de produção de si levado a cabo por
Ezaquia, permite a ele que com filho também se dobre sobre si mesmo, situando-se na
posição de mulher, porém com estatuto outro de parente, “solteira”, mas “madura”.


186
Em ticuna a expressão “ngüe tügümaêgüé” traduz práticas sexuais associadas às “mulheres que fazem sexo
com mulheres” referindo ao uso da vagina, não ao ânus. Fernandes (2013), a partir de uma revisão bibliográfica,
indica correlatos linguísticos de ocorrência de práticas sexuais homólogas em outras paisagens ameríndias, a
saber: entre os Tupinambá seria “tibira”, referindo-se à homens que praticam sexo com outro homens e
“çacoaimbeguira”. Num registro apenas entre homens, aos Guaicurus haveria a expressão “cudinhos” e em
mbya seria “guaxu”, em Krahò “cunin”; em Kadiwéu seria “kudina”, em Javaé seria “hawakyni”, em Guayaky,
seria “kyrypy-meno”. Em Gregor (1985) há descrições de que entre os Mehinaku práticas homoeróticas são
rechaçadas, vetores de constrangimentos a ponto de restringir-se veementemente tal comportamento sexual,
citando o autor: “assim, um autoerotismo, incesto e homossexualidade são descartadas” (08-09).
299

Os casos de não casamentos descritos de Don Juan e Ezaquias podem ser lidos e
analisados como exemplos de que a sexualidade, tanto quanto o gênero, pode ser uma
construção socialmente orientada. Percepções sobre as experiências sexuais não fixadas, a
priori, em características dos dimorfismos biofisiológicos, como tomaram por base certos
pressupostos analíticos de algumas teses etnológicas, especialmente nos anos das décadas de
1950 à 1970, reconhecendo “papéis” femininos e masculinos pela suposição de que o sistema
sexo - gênero compunham escalas de um mesmo sistema anatômico, e não pelos processos
que o imprimem sentidos e agências a estas relações que produzem os domínios generizados,
independente da forma sexual que os agentes assumem.
Os orifícios e órgãos sexuais recebem impressões localmente significativas,
porque aos colaboradores o espaço-temporal que aloca as condições de possibilidades de cada
um deles fazer, aos seus modos, enquanto pessoas e parentes é “mã’ü”, que as versões
etnográficas que guardo sugerem traduzir: “tudinho aquilo que forma a pessoa, seu
pensamento, suas vontades; o que come, o que sente, o faz; tudinho junto”, explicava a mãe
de Ezaquia, por exemplo.
O princípio corporal de toda pessoa ticuna, seguia: “não interessa se no jeito de
mulher ou de homem, nosso corpo de homem e mulher se faz nessas vivências também, o que
é vagina depende do uso”. E, por fim, ela mesma classifica instigantemente estes valores: “a
vagina de Ezaquia fica no lado errado [risos] de fazer mais parentes”. Deixa de ser
funcional, mas se pode simbolicamente transferi-lo de sentido, como Ezaquia mesmo, com
apoio de sua mãe e germana e ‘padrasto’, como relata, propõe ao usar seus orifícios pelo
prazer não “pela família”. Assim, seu “jeito de ser” reflete indicadores de algumas posições
relacionais possíveis como parentes, que, situacionalmente, podem modificar-se em proveito
de um bem coletivo, sem perder a dimensão das “vontades” individuais.
Argumenta-se, pelo exposto, que o parentesco proposto por solteiros desses
“jeitos” segue operando, de outro modo, porém, em plena relação, ainda que “vazia”. Aqui
relações não-maritais, mediadas pelas problematizações de sexualidade, compõem
conjuntamente termos vocativos, descritivos das práticas e valores agregados a elas, alocando
pessoas como parentes de algum jeito, com seus qualitativos respectivos: “fraco”, “vazio”,
“errado”...
Contudo, intrigavam-me neste caso, as implicações que adjetivam Ezaquia como
“homem com jeito de mulher”. Nguyaecü também pratica sua sexualidade equivocadamente,
não porque seja “caigüwaecü”, senão porque a faz em demasia em descompasso com algumas
300

lógicas éticas e morais. Isso qualifica Nguyaecü como parente com “jeitos de ser homem
errado”.
Especificamente, cabe pensar a seguir, quais as naturezas distintivas desses estados
relacionais informados pelos “jeitos de ser solteiros”, diretamente atrelados aos dispositivos
de sexualidade desses jovens. Quais implicações e efeitos de tais relações, hetero e
homossexuais aos conceitos ticuna de pessoa e suas reverberações nos idiomas das
identidades de gênero, afinal?

4. Fluxos relacionais, “jeitos de ser homens”, “jeitos de ser mulher”.

“na nge'ã'ẽ é como a gente diz assim o jeito de ser mulher e na yâtüã'ẽ é
como a gente diz na gíria ticuna, assim, o jeito de ser homem, né. (...) isso
tem de ver assim com o jeito da pessoa querer estar no mundo, fazendo coisa
como mulher e fazendo coisas como homem, de formar o pensamento dela
nisso. Aí a pessoa vai virando ou um jeito ou outro. Isso se aprende de
pequeno. Assim a pessoa nasce, né. Vai virando gente, vai virando homem,
vai virando assim mulher (...). Os pensamentos não nascem prontos, vai
formando, vai fazendo a pessoa. Assim, como diz na gíria do ticuna: ñaãcü
ni mã’ǖ. Isso é assim o jeito a pessoa se faz, que se vive” (Neiva).187

Num dia jocoso de roça, quando comentava com meus “parentes de aldeia” sobre
os jeitos de ser solteiros que vinha conhecendo entre eles e seus conterrâneos, conheci a
expressão mencionada por Neiva, “na nge'ã'ẽ” e seu reverso simétrico, “na yâtüã'ẽ”.188 Elas
são descrições de modos de agir no mundo relacionados aos repertórios de conhecimentos
(“os pensamentos”) que orientam ações e regimes de condutas éticas refletidas em estéticas
singulares, em diversos campos de atuação do parentesco.
Cada jeito e nas suas pluralidades internas conforma-se o “mã’ü”, “aquilo que é a
pessoa”. Um corpo social e particularmente construído e reconhecido como dotado de
estatuto de mulher ou de homem. O que implica diretamente percebê-los como resultado nos
fluxos de socialidade que organizam a vida social, envolvidos na produção, na reprodução, na
distribuição e na troca entre, e extendido ao casal (Mccalum, 1999; Lea, 1986; Pizzolato,
2007, 2012).


187
Expressão que, neste contexto de narrativa, poderia sintetizar um conjunto de valores e afetos
correspondentes aos jeitos positivados e gerativos de efeitos relacionais sobre si e daqueles com se convive. Cf.
Capítulo I e II notas complementares.
188
Cf. Glossário.
301

O mesmo aporte relativo à pessoa relacional ticuna, seguindo as proposições


analíticas de Goulard (1998, 2009), e estas conjugadas às premissas dos meus interlocutores,
manifesta-se como locus de relações generizadas e produzidas no antagonismo necessário a
estes esquemas de socialidades mencionados, característicos do “mã’ü” (da pessoa, agente e
sujeito). Tal estado anímico adquire materialidade relacional dotada de gênero por meio das
filosofias ticuna de aprendizagem que enfatizam e estimulam a aquisição de um ‘gênero’,
num dos dois registros reconhecidos: “jeitos de homens e jeitos de mulheres”.
As posições ambíguas ou que sejam exercidas equivocadamente nos domínios
diferenciados das socialidades femininas e masculinas tornam-se questões a serem corrigidas.
Talvez a alocação desses jovens na categoria de solteirice (forjadas ou impostas) sejam um
regime regulatório local, mediado e operacionalizado por agentes particulares, para que
entendam e incorporem adequadamente suas posições de agentes com tais estatutos, casando-
se e praticando a sexualidade no seu propósito mais relevante: “fazer parente”.
Para Nguyaecü e Ezaquia a prática “certa” seria aquela que lhes garanta prazer
físico, emocional e social, não apenas voltada à procriação. Sobretudo para Nguyaecü, posto
que para Ezaquia, é justamente a ideia de tornar-se mãe adotiva, o veículo que, quiçá, lhe dá
empoderamento para alcançar “sossego”, e ser reconhecido como “mulher madura”. Assim,
não basta assumir a posição social de mulher, é preciso incorporar agencialidades e
capacidades criativas; há que exercê-las, e bem, para que sejam criadas novas relações, de
modo tal que minimize os perigos materializados nas afecções a outrem. E podem ser de
muitas intensidades, passiveis de desencadear mecanismos violentos e modeladores dos
corpos e pensamentos desses jovens.
Nguyaecü ocupa e assume signos e domínio de socialidades masculinas que o
produzem como “jeito de homem”: executa e demonstra conhecer as prerrogativas desse lugar
de ação, ainda que “sem vergonha”, “sem palavra”, “sem caráter”, “sem responsabilidade”.
Ezaquia, por seu turno, se produz num campo de ações sociais opostas, objetivando
estabilizar-se adequadamente na posição de “mulher”. Eles mobilizam suas estratégias de
sobrevivência aos corolários mais convencionais de identidades para “virarem” homem e
mulher maduro/a. Interessante notar que mesmo fora do casamento, eles tornam-se outros.
A questão, por fim, que me chama mais atenção nesse quadro que articula pessoa,
parentesco e sexualidade evidenciada nestas experiências retrata que a pluralidade contida nos
“jeitos de ser” ticuna “como homem e mulher” estão sempre mediados por encontros de
valores e significados sociais em relação ao lugar do casar, da produção do casal e do
casamento.
302

Como ensina Neiva,


“O jeito de namorar e jeito da pessoa usar o corpo, das partes que diz se é
homem ou mulher” [órgãos sexuais] é importante de ensinar junto daquilo
que ela aprende a fazer nos pensamentos da cultura, nos pensamentos que
ensinam como ser bom parente, pessoa feliz usando desse “ma’ü, como o
parente diz na gíria dos ticuna. Agora que só tem assim homem e mulher é
uma coisa, né. Porque sempre é assim, assim com bicho, com planta, com o
parente. Espia, dona, que o jeito que o parente se faz como homem e com
mulher vai dos aprendizados dele, dos caminhos. Assim tem os jeitos que
mudam, mas isso de fazer gente, da parte do homem da mulher não sai nada.
Assim se diz que cada um se faz ü’üne. Ü’üne é aquele ser que cresce, faz
crescer aos outros, por isso não se vive sozinho, por isso tem jeito de se fazer
homem e se fazer mulher, de muito jeitos, certos errados, depende de quem
te contar sobre isso”.
A dualidade entre os domínios de socialidades femininas e masculinas é central,
talvez estruturantes às formas de socialidade. Nesse sentido, analiticamente, “jeitos de ser
homem/mulher” desvelam uma sorte de capacidades agentivas providenciadas, reguladas e
atualizadas nas pedagogias moralizantes que situam pessoas e parentes. Igualmente esta
relação é estendida a tudo que os produzem e que produzem como portadores de
conhecimentos dotados de agencialidades femininas ou masculinas (C. Hugh-Jones, 1979;
Lea, 1994, 1999; Lagrou, 2007; Mccallum 2001; Rubio, 2004; para mencionar alguns dentre
uma longa lista). Dialogando com estas referências, diria, então, que os modos de atuar como
“parentes solteiros” é qualificado também pelos atributos sexuais que adquirem nesses
processos de conformação da pessoa e formação de suas capacidades criativas.
Neste ponto, voltamos ao problema enunciado pelos interlocutores solteiros de
que certos modos de atuar sexualmente convertem-se em dilemas morais e políticos por não
se expressarem produtivos aos ideais de convivialidade, entre os quais o casamento é central e
cujos alicerces situam a “feitura” dos parentes “bem feitos” como premissa que envolve e
legitima o vínculo conjugal e suas potencialidades de alianças. Estar sozinho, no sentido de
não estar casado, elimina vetores de interações com as alteridades e diferenças necessárias e
constitutivas da pessoa ticuna. Afinal, como pontuavam a Ezaquia, “dois iguais não fazem
parentes” (Cf. Overing, 1984).
Cada um desses modos de habitar o mundo, enquanto solteiros e performatizado
em diferentes escalas de relações de gênero visualizadas nas práticas sexuais e no sistema de
atitudes, provoca reações ímpares, de acolhimento e incentivo, mas também repreensivas,
303

fornecendo significados às relações de parentesco. Alguns destes manifestam-se nos


contextos cotidianos no seio dos quais as percepções sobre os “jeitos de ser” de Nguyaecü e
Ezaquia, na comparação sempre referenciada com seus parentes e conterrâneos, publicitam
fluxos internos de desigualdades, diferenças e hierarquias.
Com efeito, as cenas etnográficas tornam legíveis os valores e dissensos em jogo,
projetando nas qualificações sobre os “jeitos” de cada um desses protagonistas perigos para
serem administrados, a um só tempo, na justaposição de agentes, aparatos, técnicas e
tecnologias de produção e antíteses do parentesco. Uma micropolítica tecida em jogos de
poder-saber.
Ezaquia, como “caigüwaecü”, pratica atos sexuais com discrição, por certo receio
de retaliações e porque, como ele propõe, “não há o que negociar” em termos de casamento.
Portanto, não há porque ser público, mesmo que seja alvo de vigiamento. Anterior às práticas
que exerce, certas ou erradas, porque o manejo dos órgãos sexuais está equivocado, ele
precisa ter reconhecida sua situação de gênero. Nessa suspenção, a desordem de Ezaquia cria
um espaço ao “vácuo classificatório” (Overing, 1986) temporário, até que se estabeleça
verdadeiramente como mulher, daí as decorrentes acusações de “dar o golpe na cultura”.
Ezaquia, para contorná-lo, especialmente entre as figuras de autoridade que o
tolhem e para evitar estar à margem, afirma-se e se produz repetidamente, como “filha” e
“mulher solteira”. Processo similar, no que se pode comparar, este atua próximo à Krembegi,
o Guayaki e as tensões no chaco paraguaio descritas por Clastres (infra). A proximidade gera-
se quando posição e domínio de socialidade são postas em questão. Ezaquia, ao assumir até as
últimas consequências sua condição, “vira mulher”, incorpora um conhecimento generizado a
partir do qual elabora e performatiza seus “jeitos de mulher”, manipulando seus
conhecimentos para a eficácia produtiva, capaz de alocá-lo numa economia da pessoa com
quem dialoga através de seus parentes, visando alterar-se de “homem solteiro” à “mulher
madura”. Se não lograr ocupar este lugar para além do acolhimento de seus consanguíneos e
afins próximos, ele, como muitos outros “caigüwaecü” que vêm buscando dissociar-se desse
rótulo ambíguo e perigoso, fugirá para a cidade.
Antes, contudo, Ezaquia aposta na performance de gênero, seguindo as premissas
ditas “corretas” aos modos de ser mulher, visando convencer e seduzir outrem, num jogo de
forças no interior das micropolíticas do parentesco em sua aldeia. Ezaquia, ao assumir e
aceitar relutante sua sorte, visa legitimar o lugar encontrado por meio de sua solteirice
homossexual, que o incapacita, parafraseando Clastres neste ponto, o espaço masculino. Ele o
304

renega, mas lhe é imposto pela autoridade dos gestores morais e políticos, cujos referentes
parecem divergir.
Ezaquia, tanto quanto Nguyaecü, enquanto solteiros, nas alteridades que
representam, assumem posicionamentos cujos corpos e pensamentos produzem determinados
tipos de agencialidades, que resultantes de suas “vontades” e “jeitos de estar no mundo”, os
alocam com estatutos generizados destoantes e opositivos. Se há dois domínios de relações de
gênero estabelecidos, “entre homens e mulheres”, há, contudo, diferentes modos de exercê-
los. A partir dessas proposições fecha-se o capítulo, sugerindo que essas interlocuções estão
pontuadas numa sorte de imagens relacionais que conformam suas solteirices problemáticas,
teorias locais de gênero como experiência social (Strathern, 2006; Gonçalves, 2001; Lasmar,
2005).
305

Capítulo VII
Sobre ser “casal de mulher”
Dos “amores proibidos” e dos “romances vigiados”

Interlocutores

Darü'püuna e Mutchique’ena: “casal de mulheres”, ambas ticuna, que “vivem um amor proibido”
há doze anos. Darü'püuna é do clã mutum, trinta e seis anos; estudante do curso de graduação em
Antropologia Social; articuladora dos movimentos locais indígenas. Mãe de um jovem de 15 anos,
com quem também mora, estudante do ensino fundamental. Mutchique’ena, “sua mulher e
companheira”, tem trinta e dois anos, é clã de avai, do lar, mãe de quatro filhos, dos quais, apenas a
filha mais nova, de sete anos, mora junto com as interlocutoras. Elas corresidem numa casa alugada
nas adjacências da aldeia na qual vivem os parentes de Darü’püuna, em Rio Bonito. Seus pais são
aposentados pelo “movimento indígena” e agricultores; eles, como os demais familiares de
Darü’püuna, sabem de seu “compromisso” com Mutchique’ena; “o que não diminui a tensão”. Ambas
planejam o “casamento no papel” como uma “forma de mostrar a situação e quebrar o tabu sobre
vida de mulheres que gostam de mulheres”.

Botchicüna e Metchicüna: “casal de mulheres” que vivem um “romance vigiado” há


aproximadamente oito anos; ambas ticuna, aquela com quarenta anos, do clã mutum, é professora e
também figura importante nos movimentos indígenas locais; é liderança política local, também um dos
fundadores da Polícia Indígena Ticuna, Botchicüna é a caçula entre seus germanos, todos homens,
atores proeminentes no cenário dos movimentos indígenas locais e nacionais. Metchicüna de vinte e
dois anos, do clã de woca é estudante e “secretária” de Botchicüna. Sua família mora noutra aldeia, e
não está afiliada aos movimentos políticos, porém dizem-se vinculados à Igreja Batista Independente,
e dizem-se “não serem crentes de verdade”. O pai da Metchicüna é mototaxista e figura amplamente
conhecida; sua mãe trabalha na escola da aldeia como merendeira; corresidem na casa dos pais de
Botchicüna, numa aldeia nas adjacências de Rio Bonito. Enunciam que seus pais “desconfiam” e não
“assumem” sua “verdadeira orientação sexual”. Elas pensam em se casar, em ter sua casa e em terem
filhos. E para isso pensam em recorrer a tecnologias reprodutivas.

Waire’ena e Tchori: “casal de mulheres”, ambas ticuna e cujo relacionamento leva


aproximadamente seis anos; aquela de trinta e dois anos, do clã mutum, prima de Darü’püuna (filha do
irmão mais velho do pai desta). Seu pai é o fundador da aldeia onde mora, pescador, pastor e liderança
política reconhecida entre muitos; sua mãe é agricultora aposentada; Waire’ena é a filha mais velha.
Tchori, de vinte e seis anos, do clã de avai; seu pai é agricultor e pescador, e sua mãe agricultora e
“trabalha com artesanato”. Ambas são estudantes do curso de graduação em Antropologia Social;
pensam em casarem-se, “fazer família com filho de duas mães”. Elas residem cada qual na casa dos
seus pais, cientes de suas “opções” e dos “jeitos de ser ngüe tügümaêgüé” assumidos.
306

Do “amor proibido”, dos “romances vigiados”

“(...) sou mulher madura, mas não casada no papel, faço um casal, mas não de
casamento certo. Sou casada com mulher. Casamento assim no pensamento de
índio isso já é. Já estamos juntas de casa e filho faz é tempo. Somos casal (...). Já
fizemos os filhos, antes, com o ex-marido arranjado de cada uma. Isso garantindo a
eles [filhos] um pouco do jeito de ser Magüta [referindo-se à metade ao clã
patrilinear]. Gostar assim do meu ex-marido? Não, eu ficava com ele por ficar; sei
nem como explicar, sem gosto, sem prazer. Depois, separei, assumi que sou mulher
ticuna que gosta de mulher. Sou assim: ngüe tügümaêgüé, mulher que faz sexo
com mulheres. (...). Aí negociações de casamento com ela [companheira atual] tem
outras coisas: os problemas dos amores proibidos. Do sexo malfeito. Aqui não é
versão de womãtchi, é de pessoa do mesmo sexo” (Darü’püuna).

***
“Eu sou assumida, sou mulher que gosta de mulher. E o amor proibido vai nesse
sentido, do não fazer a regra mais certa do casamento bem feito, de homem com
mulher. Por isso eu e minha mulher não fugimos da crítica de maneira alguma. Eu
acho que não violei as regras tradicionais do povo Ticuna. Sabe por quê? A pessoa
com quem vivo e não deixam eu casar é do clã contrário, por exemplo; e isso é um
jeito de casamento bem feito. É a regra das nações. Eu faço isso no meu romance,
respeito a cultura. Meu jeito de ser mulher é nada contra os jeitos de ser de outros
Ticuna, não. Aqui é o sexo do parceiro, não só o clã, entende? São os dois juntos,
na verdade. (...) De negociar casamento por isso daí, do amor proibido”
(Botchicüna).

***
“Enfrentei muitos problemas por causa de amor lindo e proibido. Eu amo essa
mulher. Quero que ela seja minha esposa, no mesmo valor que dão para mulheres
que são esposas de homens ticuna. Quero ficar no sossego. Sem mais brigas, só
vivendo como casada com minha namorada. Casar como todo mundo. Seguir na
nossa cultura, como valorizam os que me ensinam. Assim é que quero, pra isso
negocio com os parentes. Não só o casamento, é minha parceira, esse amor
proibido, nosso romance é vigiado” (Waire’ena).189


189
As conversas aqui expostas foram todas registradas com o uso do diário de campo. Algumas delas foram
também registradas em gravações de áudios, mesclando-se o idioma ticuna e o português. Elas foram realizadas
em momentos distintos com cada uma das interlocutoras e com suas redes de parentes mais próximos. Em
algumas ocasiões, estivemos reunidas entre todas. Estas vivências ocorreram no intervalo entre julho e dezembro
de 2012; entre junho a dezembro de 2013; entre janeiro e fevereiro de 2014. Algumas conversas seguiram-se
posteriores ao tempo em que estive em campo com elas, por telefone e e-mails. E por fim, cabe ressaltar que
algumas entrevistas e conversas, especialmente aquelas realizadas com Waire’ena e Tchori, foram um exercício
de etnografia colaborativa, não analítica, com Darü’püuna. Com efeito, compartilhamos a autoria de alguns
dados expostos neste capítulo, cabendo informar que elas, em alguns excertos, compõem parte do corpus de
dados em uso também em sua pesquisa de graduação (Cf. Picq, M. e Tikuna, J., 2015). Nesse sentido, tenho sua
autorização para o uso em minha tese. As análises são por minha conta e risco.
307

Vamos conhecer mais destas “versões” e camadas dos significados sociais a


respeito do casar e do casamento para os interlocutores ticuna, agora focalizados em situações
conjugais de “casais de mulheres, tügümucügü”. Interessa-me, nessas experiências afetivos-
sexuais, observar nas tramas das micropolíticas de parentesco como fabricam-se no “jeito de
ser ngüe tügüma mãêgüé”, isto é, “mulheres que fazem sexo com mulheres”, ou, com outra
ênfase, “mulheres ticuna que gostam e se sentem realizadas ao fazerem fazem sexo com
mulheres (ngüe tügüma mãêgüé) ”.
Ao modo de Ezequia, do capítulo anterior, as protagonistas deste estão também,
na linguagem do parentesco “oficial”, “solteiras” (“nge’ě ngete’e”).190 Isso decorre, segundo
suas análises, de que, do ponto de vista dos gestores morais do parentesco, casar dois iguais
não pode, “nem de clã, nem de sexo”.
Assim, dando continuidade a algumas conjunturas empíricas e analíticas que
aproximam esses interlocutores, nos casos destas mulheres, a condição de querer casar e não
poder gera situações de suas clandestinidades, “dos amores proibidos”. Neste cenário reside o
dilema etnográfico deste último capítulo, posto que seus “jeitos de ser mulher” e as
estratégias de negociações destes vínculos visam, no âmbito do debate sobre parentesco e
sexualidade, abrir espaços para serem acolhidas enquanto tipos de pessoas ticuna (mulheres
solteiras, em posições e condições de desposarem-se) que fabricam novas e alternativas
posições de parentes: “nge'e tügürüe nge'e ma taã ti ngi'i, expressão que traduz “mulher
191
casada com mulher” . Estas interlocutoras, como Ezequia, querem com o casamento
transformarem-se em uma “família”, efetivar suas conjugalidades para que sejam
reconhecidas como “mulheres maduras” e, sobremaneira, ter reconhecido a alteridade criativa
de serem “mulheres casadas com mulheres”.
Espera-se, assim, fechar a tese, apresentando os contextos nos quais elas vivenciam
seus “amores proibidos” e “romances vigiados”, dimensionados ainda nas miríades de “jeitos
de ser homem” e “jeitos de ser mulher”. Objetiva-se com estas relações conjugais “mulher
com mulher” e suas tensões nas diferentes escalas de conflitos internos que geram sua
problemática, refletir sobre o jogo de forças que circunscreve as lógicas de transformações
das noções de “sexo malfeito”. Interessa-nos ainda saber da moral dos prazeres e do
casamento “mulher com mulher” como variações internas às “regras”. Para tanto, descreve-se


190
Traduz literalmente mulher (nge’ě) sem (nge) esposo (-te’e). Cf. Glossário.
191
“mulher casada com mulher”, foi assim traduzido ao ticuna: “nge'e tügürüe nge'e ma taã ti ngi'i”, enquanto
“homem casado com homem” transforma-se em ticuna na seguinte expressão, “yatücü rü nügürü'u yatücüma na
ni'i”.
308

como, o que, com quem elas “negociam” nestas situações de pretensão de arranjos conjugais
“mulher com mulher”.
Destas relações e menos focado na ideia de como se reproduz aqui o conceito de
“parentes vazio”, neste capítulo opta-se por voltar atenção aos modos como elas experienciam
o mundo e “deixa[m-se] levar pela vontade do amor, do romance com quem se quer” e suas
possibilidades de acionarem pela posição de mulheres casadas e mães, releituras do lugar dos
filhos e suas formas de “feitura”. Se as teorias de concepção de um “parente legítimo e
ticunado” são mediadas pela centralidade da transmissão patrilinear do clã, nestes casos, onde
se planeja ser mãe sem relações sexuais com homens? Como isso operaria? Se a ideia de
womãtchi enquanto um equivalente do incesto, marcado pelo exagero da semelhança
(metade-clã), casar mulher com mulher, evoca o sexo malfeito na problemática de alterar o
significado dos orifícios sexuais (ânus-vagina). Aqui, contudo, remete à similaridade
improdutiva de dois iguais (vagina-vagina). Talvez por isso dizia-se que dois iguais não
podem casar, “nem de clã, nem de sexo”.
Seguimos tentando descrever, desse modo, na miniescala do casar/casamento,
como as diferenças produzidas em diferentes contextos (de geração, de sexo, de sexualidades
bem ou malfeitas, de socialidade entre homens e mulheres, deles entre si, e entre eles e os
parentes ou afins) remetem às noções de corporalidade, de composição da pessoa como suas
conexões.

1. Dos “romances de prima com prima”

Veremos que entre Darü’püuna e Mutchique’ena, uma situação de conjugalidade


é exercida, ainda que não aceita, posto que já corresidem, criam seus filhos, e manifestam
suficiente autonomia econômica e produtiva. Para serem um “casal”, contudo, a estratégia
que usaram foi morar nas bordas da aldeia onde uma delas foi criada e onde moram seus
parentes. Elas pretendem “oficializar o romance entre primas certas de casar”, “ter papel
passado para virar o amor proibido e romance vigiado em compromisso verdadeiro”, isto é,
“reconhecido pelos parentes como um jeito de casal, de casamento”.
Outro par, como Waire’ena e Tchori, optou, diferentemente, por seguir morando
entre os seus parentes, “sem casar com homens que os pais querem”, vivenciam “seus amores
proibidos” numa clandestinidade dúbia, fonte de rumores e fofocas que desencadeiam os
“vigiamentos”, “dentro e fora de casa”. A estratégia de dar visibilidade pacífica ao “amor
proibido” é por elas pretendida e negociada entre os seus parentes e conterrâneos, com a
309

intensão de “fazer família indígena com duas mães”; “se fazer mulher madura como as
outras, só que fazendo filhos sem ajuda dos homens, sem casar com eles”.
Ao mesmo tempo, há outro par, Botchicüna e Metchicüna, que diferentemente das
outras, contam com capital político, “família de poder”, “gente da política”. Situações que
simultaneamente, replicando a ambiguidade de seus “desvios”, ajuda e as condena. Elas
também são corresidentes, “porém não com casal”, senão como “amigas, companheiras de
trabalho”. Para a primeira, “estar na casa da família com a pessoa que se ama é um desafio”,
que, como enuncia, “é um problema de vigiamento”, porque seus pais “desconfiam e pensam
na honra dos parentes”.

1. 1. Relações
Darü’püuna e Mutchique’ena
(Casal sem casamento)

“(...). Hoje vivemos um romance. Mas já vivemos tempos difíceis. Tempos


de medo, de ameaças, de castigos, de fugas e negociações. (...), Mas nunca
está tudo bem. Assim, vai e volta. Os parentes dela não aceitam bem; os
meus, depende do que acontece. (...) Falta casar de papel. (...). Moramos
juntas e já pensamos em casamento oficial. Assim queremos, casar de papel
também, para firmar nossa união. (...). Mas acho que não poderemos morar
na aldeia. (...). Aqui onde vivemos, isso é jeito de mostrar casamento: casa,
ter filhos, a roça, estar em boa convivência com os parentes, fazer aliados;
assim, se faz gente madura (...) ou estudada também vira, assim, gente
madura, como diz os mais velhos; pessoa daquelas que faz vida nos
caminhos certos. Sou mulher madura, fiz casamento certo uma vez, tenho
filho. Quero mais, casei como na regra mais geral, importante como respeitar
o womãtchi. Depois fui viver meu amor de verdade e não descumpro essa
regra. Mas com ela não sou casada. Agora falta os parentes deixarem esse
amor proibido, virar casamento de mulher com mulher” (Darü’püuna).

Darü’püuna e sua “companheira”, Mutchique’ena, foram as pessoas com quem


esta pesquisa iniciou-se, com quem o tema tomou seus primeiros formatos e desafios mais
centrais. Por intermédio delas conheci as demais protagonistas dessa seção. 192 Na primeira


192
Darü’püuna, a exemplos das demais, tem um bom domínio da língua portuguesa, espanhola e ticuna. Ela
reúne em sua trajetória pessoal experiências de cunho político, de inserção no movimento indígena local, tendo
viajado por diferentes cidades do país, acompanhando antropólogos, missionários e seus parentes que com quem
310

vez que conversei Darü’püuna, na mesma semana de minha chegada a Rio Bonito, em 2012,
ela já mencionava: “olha, branquinha, eu tenho uma companheira, sou comprometida,
esperando para casar. Vai te preparando para ver como aqui isso de ser homossexual é
problema, de casamento, de vida, de parente”. E, nessas conjunturas é que ela me ensinava as
micropolíticas que classificavam o relacionamento afetivo-sexual com Mutchique’ena como
“romances vigiados”, “amores proibidos”. Ela dizia-me que as “negociações” sobre tal laço
tinham associações diretas com o que dizem ser seus “problemas de afetos”.
Juntas há doze anos “como um casal de mulheres”, antes de assumirem o
relacionamento sobre o qual conversávamos constantemente, elas “namoraram” por um breve
período, “sem compromisso”. Elas contam felizes que se conheceram no ínterim entre as
“fugas” e “separações” de seus casamentos anteriores, contraídos com homens ticuna de
mesma geração e conterrâneos de aldeia de cada uma delas, considerados por suas redes de
parentela como uniões “certas”. Segundo elas situam esses eventos nos seus trajetos, foram
“casamentos” que, “obrigados e sem amor”, haviam sido “arranjados” pelos seus respectivos
pais em consonância com o interesse de cada cônjuge potencial - os quais, cabe mencionar,
alocavam-se na posição de “primos certos para casar” [homens a quem tratavam por seus
tchauta’a].
“Nesse tempo”, corroborando com a mesma “sensação”, Mutchique’ena, nos
conta: “gostar do esposo não era a questão principal”. Os “casamentos certos” de ambas
ocorreram quando tinham aproximadamente quinze anos e desses relacionamentos nasceram
seus respectivos filhos. Os referidos casamentos ocorreram em um momento próximo à
menarca de ambas: etapa paradigmática do ciclo de vida que as insere na categoria de
mulheres casáveis, “worecü”, com ou sem a realização do ritual de puberdade. Darü'püuna e
Mutchique’ena não passaram pela experiência do ritual de puberdade feminina, cabe ressaltar.
Tempo após a separação, seus ex-cônjuges respectivos contraíram matrimônios posteriores a
esses, ambos com mulheres ticuna.
Darü’püuna a respeito desse vínculo matrimonial anterior menciona não ter
casado “porque queria, mas porque era preciso seguir as regras”, contextualizando, com
efeito, a natureza dos “problemas dos afetos”, quando informa que sua “versão da regra”
circunscreve os mais diversos regimes de conhecimento, o que não ocorre com seus parentes,


se engajavam em mobilizações política. Mutchique’ena manifesta timidez que parece escassa em sua
“companheira”.
311

gerando os “problemas de entendimento, assim, de vontades”.193 Ambas, que se conheceram


e “aprenderam a se gostar” mutuamente, quando, então, “por paixão”, “enfrentando aos
parentes, as piadas e preconceitos das aldeias e da cidade”, passaram a morar juntas e a ter
um “romance”; “a viver um amor proibido”. Ou, como também costumava dizer-me
Darü’püuna, “um romance de prima com prima”.

1.1.1. Casal sem casamento

As conversas que tinha com Darü’püuna e Mutchique’ena sobre estes temas do


casamento, construídas nas entrelinhas que versavam de suas “orientações sexuais” e dos
“trajetos afetivos-sexuais”, 194quase sempre ocorriam em minha casa na cidade ou na casa
alugada por elas, onde sentiam-se “mais à vontade”.
Darü’püuna dizia, em algumas ocasiões, que mesmo seus pais “aceitando”, nem
sempre era “tranquilo conversar com eles”. Dimensionava as questões a outros exteriores de
si mesma: “e não é só com eles, tem o pessoal das aldeias, as autoridades do parentesco . Seu
pai, de aproximadamente setenta anos, também fora colaborador no princípio do movimento
indígena, como ele mesmo fazia questão de me narrar. Além de suas experiências políticas,
ele frisava não ser convertido, tanto quanto sua esposa, mãe de Darü’püuna, de
aproximadamente, cinquenta anos. Ambos estão casados há cerca de quarenta anos, juntos
tiveram doze filhos, dos quais Darü’püuna foi a que “veio assim, no jeito de mulher que gosta

193
Alhures (2013, 2015a, 2015b) apresentei algumas informações sobre estes casos, onde propus ser o
“problema dos afetos” uma categoria descritiva empregada por elas para caracterizar outros conteúdos
constitutivos das alianças, aquém e além, daqueles contidos nas “regras das nações”. A ideia de afetos propostas
por elas dizem respeito e são associados com o que dizem ser “sentimentos”, “amor”, “prazer”, “desejos”,
“vontades”, também conformados por situações de “alegrias”, “tristezas” e “medo”. Sobre estes últimos, elas
mesmas (veremos ao longo do capítulo) compõem a “negatividade pior que tem isso de viver escondido um
amor”. A ideia política dos “problemas dos afetos” não se encerra, portanto, nos componentes “existenciais”,
relacionando a uma esfera mais intimista e individualista da pessoa. Ela abarca elementos biopolíticos que
compõem micropoliticamente as negociações de seus vínculos afetivos-sexuais, as relações de poder que
também “ditam as normas”. À altura, pensávamos juntas, eu e Darü’püuna, no seguinte rumo: o que ocorre
quando enlaçamos essas duas perspectivas discursivas, as regras e os afetos, num estudo sobre os modos de
fazer-se parente no qual, além dos termos em relação, o sexo destes passa a ocupar lugar nas negociações? Que
lugar ocupam, ou podem ocupar, os conteúdos das relações que constituem, afinal, as modalidades de
relacionamentos acima mencionadas e como estas tendem a fazer parte dos casos de casamentos errados?
194
Darü’püuna emprega “orientação sexual”, referindo-se “ao jeito que cada um assume sua sexualidade, os
jeitos de praticar ou não”. A inspiração dela para uso do termo tem origem na leitura que juntas fizemos de
alguns textos, em especial alguns de Heilborn (1999), nos quais a autora metodologicamente desenvolve suas
análises enfatizando “trajetos afetivos-sexuais” desenvolvidos como experiências relevantes, constitutivas das
“trajetórias biográficas”, tratando-se, nessa articulação, dos usos de entrevistas, no estilo história de vida,
enfocando práticas e valores relativos à sexualidade. A autora busca analisar qual é o seu lugar na construção da
pessoa em distintos contextos culturais de uma sociedade complexa e heterogênea. É mais especificamente ao
recurso da ideia de “carreiras sexuais” masculinas como as femininas usadas pela autora que a Darü’püuna
afeiçoava. Isso porque tais ferramentas proviam, de acordo com ela, “meios de você entender como a gente se
faz como mulheres que gostam de mulheres”.
312

de mulher, por isso sofre piadas, ouve dos parentes e das pessoas aqui da aldeia coisas ruins,
feias”.
Darü’püuna emite a essas perspectivas respostas de que sua conjugalidades é
“normal”, direcionando a sua análise para as formas de consumo dos conceitos estrangeiros,
quando “aprende os dois jeitos juntos de conversar sobre amor e ódio nessa conversa de
séculos com os não indígenas”. Ela define essas intercomunicações como “preconceitos” e
entende haver diferentes mecanismos de contenção do que julga serem estados afetivos
(Albert, 1985) não desejáveis para dar continuidade ao parentesco: “para tudo isso tem um
jeitinho ticuna de lidar. Com nós, as primas que casam com primas, não é de outro jeito
não”. E encerra a colocação, sempre em tônica militante, da qual muito se orgulha, “qual o
problema de fazer casal de mulher e mulher, ou homem com homem? ”
A descrição faz alusão à situação que engloba seu “amor proibido” como uma
malha de referentes sociológicos e cosmológicos, tramados nas “vontades das pessoas” e
reticularmente exposto na política local, da casa e da aldeia. Darü’püuna, ao acionar essa
perspectiva de disputas por espaços de visibilidade de sua “orientação sexual”, relata que nas
aldeias que circundam a cidade, estavam muitos “parentes do lado dos dois” (maternos e
paternos), muitos dos quais eram fundadores das localidades, figuras da política, da religião,
muitos dos quais, de acordo com Darü’püuna, não entendiam seu “comportamento” e, por
isso mencionava que desde muito nova “disfarçava”.
Mutchique’ena refletia a ideia de seu estatuto de solteira, como “casal sem
casamento”, pontuando, como sua esposa, a lógica política das equivalências de seus jeitos de
ser mulher ticuna. Coloca-se, ainda, agente dessas situações que as atingem, não se deixando
notar na perspectiva da “vítima, da mulher que vai aceitar o que querem esses homens da
política”. Situa, pois, a ambiguidade dessa relação dupla: “meu sogro é o polícia do
casamento, aí fica mais difícil”, remediando os conflitos “nos disfarces, só na tocaia para
dar o golpe e casar no nosso jeito”.

1.1.2. Disfarces e fugas

Darü’püuna relata que, até o casamento com o pai de seu filho, residia com seus
pais e irmãos solteiros na aldeia. Diz que à essa altura, já sabia que queria estar relacionada
afetiva-sexualmente com mulheres, e falando de suas aventuras amorosas, seus desamores,
Darü’püuna confessava-se uma “mulher romântica”; “namoradeira”, “mas não safada”.
Expor seu ponto de vista, sobretudo, pela militância que exercita na universidade, no
313

movimento indígena, era para “quebrar tabus”. Por aí, ela situava-me nos enredos sinuosos
que compunham sua “trajetória biográfica”, enfatizando o lugar que reservava ao “amor
proibido”.
“Assim, que eu tinha, como posso dizer? Olhava para as mulheres e achava
elas bonitas, olhava para homens e não tinha isso. Eu ficava assim,
perguntando: mas por que disso? Tentava disfarçar com a amigas na escola,
na aldeia, que ficavam assim elogiando os meninos, eu só metendo defeitos.
(...) foi passando tempo, eu fui formando esse sentimento, esse pensamento
(...). Depois já maior, já tendo estudado e provado da vida, assim, de ter
namorado meninas, ter perdido a virgindade de mulher, não com homem, já
lá pelos tempos de menstruar, eu morava nesse tempo na aldeia de meus
pais. Trabalhava aí no comércio da cidade, vendia no microfone, falava em
ticuna as ofertas, e em português. Era tradutora. Segui estudando,
frequentado uma escola na cidade, no tempo em que ela ficava longe da
aldeia. Era só um trilhozinho naquele mato que ligava uma a outra. Foi nesse
tempo que tive a primeira namorada. Já outra, uma indígena, que também
estudava por aqui já. Nesse tempo conheci o pai do meu filho, daí dessa
aldeia do lado de onde mora meus pais. A gente estudava na mesma escola.
Ele mais velho, pouca coisa mesmo, aí um, dois anos. Assim se cruzou as
histórias, as de paixão e alegrias, e o casamento por obrigação, sem prazer”.
Darü’püuna apresenta-nos questões que envolvem éticas de prazer em conflitos.
Para tornar mais claro, ela conta que se casou e, então, passou a morar com o ex-marido,
numa “casinha de madeira dada pelo missionário amigo” de seu pai. Não tiveram nenhum
tipo de celebração ou ritual para marcar a união, mudou-se cada qual de casa e, “pronto,
casamos”, dizia ela, e nesta relação estiveram por “longos e duros” cinco anos, durante os
quais, segundo ela, “ele foi cuidadoso. Esperou eu menstruar para querer sexo. Ele
acompanhou esse período dormindo comigo, e tudo. Foi dessa transa que eu peguei
barriga”.
Ela conta que tal arranjo foi estratégia ao que na época seu pai alegava ser
desconfiança de que ambos já estavam se relacionando, e por tal motivo incentivou a aliança,
não negada pelo ex-cônjuge de Darü’püuna. Ela o descreve como “homem de família boa” e
que casou por não querer “confusão”, descrevendo suas lógicas de fugas e disfarces, julgando
314

“melhor. Depois eu fazia minha vida e seguia como eu queria. Pensava assim, disfarçava
meus gostos. Mas isso do amante é bom. Ajuda a disfarçar”.195
Nesse jogo de “disfarces”, a invisibilidade da existência da amante de
Darü’püuna, quando comparada a uma situação contrária, um amante do sexo masculino, foi
analisada por ela própria na seguinte asserção: “ter amante nem é problema, assim de um
pensamento, de uma coisa de ser feio trair e tal”. Sua leitura é fortemente arraigada na crítica
as introjeções dos moralismos cristãos que mediam as relações de “negociações” em jogo,
ainda que as questões das relações extraconjugais não estejam no centro do debate, mas sua
opção sexual, ao que diz que entre elas “as mulheres com suas namoradas do mesmo sexo” é
que as “palavras dos crentes atrapalham”, criam contextos de disputas de valores, geram os
dizeres “que ser gay, machudas ou lésbicas é feio, é o apocalipse”. “Machudas”196 é uma
expressão presente na mesma tonalidade jocosa e descritiva daquela aplicada aos
“caigüwaecü”. Ser referida como tal, tanto quanto “ngüe tügümaêgüé”197, para elas, “é
piada”.
Neste ponto, ela critica os modos de incorporação desses significados, “palavra
de Deus faz para algumas coisas, apenas” e diz que os disfarces eram fugas, descritas como
ações que visavam “disfarçar com o casamento com o ex-marido sua real vontade de ter uma
esposa”. Sobre seus “disfarces” e “fugas”, ela repetidamente mencionava:
(...) “Ao mesmo tempo, eu tinha namoro com essa namorada que falei da
escola. Tudo ao mesmo tempo. Com ele obrigação, com ela paixão. (...). Não
me arrependo de nada do que eu fiz. De não ter assumido do que eu gostava
muito antes, de ter casado porque meu pai me pediu. Mas aconteceu e com
ele. Mamãe depois entendeu que eu era normal, que era “wova”, virgem,
como diz no idioma ticuna; ela até achava que eu não provava do sexo, que
eu escutava bem o que dizia o pastor sobre isso. Era nada, era porque eu não
namorava com menino. (...). Gostar assim do meus ex-marido? Não, eu


195
Descrita pelo pai dela, a separação de Darü’püuna narra simultaneamente motivos morais e cosmopolíticos
associados ao resultado esperado em relação à “feitura do compromisso”. Suas palavras também o situam, como
articulador de alianças e como agente produtor de significados ao casar, sobre o casamento e a sexualidade:
“esses dois foram sem juízo. Por isso ajuntamos eles. Assim era. Aí levaram o casamento bem, até um dia que o
pai do filho dela tinha outra. Fez desonra com a minha família”
196
Darü’püuna, em seu artigo intitulado “Caminhos de uma pesquisa etnográfica sobre questões de
homoafetividade entre mulheres Ticuna, Alto Solimões, Amazonas (tare y nge’ãntagü ticunagü tchiga) ” (no
prelo), sugere que a introdução da categoria social “lésbica” no vocabulário de suas interlocutoras ticuna e nos
seus respectivos espaços de sociabilidade intra-aldeão/comunitário, ganha espaço através da presença da Igreja
Católica, em suas diferentes correntes dogmáticas. Segundo ela, e alguns outros interlocutores desta tese,
“lésbica”, “gay” quando inseridos nas gramáticas relacionais ganham sentido que remetem à noção de “pecado”
e “sexo malfeito”.
197
“mulheres que fazem sexo com mulheres”.
315

ficava com ele por ficar; sei nem como explicar, sem gosto, sem prazer. (...).
Eu beijava ele assim, por beijar. Essa outra moça, essa namorada amante, me
dava assim prazer, alegria. A gente namorava e eu gostava. Tinha medo.
Com homem eu não queria, não tinha prazer. Foi ruim quando fiz. Com
homem era assim, fazia amizade por obrigação, para não ficarem rindo de
mim, fazendo piada dizendo que eu era machuda. Eu tinha que fazer
escondido, no mato, aí para os igarapés. Fugia do marido para encontrar com
ela, tocar violão, conversar”.

Após o desfecho do casamento de Darü’püuna, já com o filho nascido, em


decorrência de um flagrante dado por ela em seu ex-marido quando retornava de uma viagem
e sem muito melodrama, resolveu-se rapidamente, inclusive com aval de seus pais, que
entenderam que entre o casal não havia sentido seguir juntos. Para Darü’püuna foi a escusa
perfeita para separarem-se, mantendo a namorada-amante. Foi-se para Manaus, até que as
coisas assentassem, e porque em Manaus, longe dali, “era mais fácil desse amor proibido”.
Declarando que seu ponto de vista sobre tais “guerras ontológicas” – esse problema de mulher
com mulher – está diretamente relacionado com as transformações do sexo malfeito, cujas
configurações
“Têm a ver com poder, como os parentes também usam isso para regular
nossas vidas, nossos pensamentos. É muita informação e muita confusão.
Agora importa com quem se namora, não só das nações, mas do sexo do
parceiro, entende o que tem aí?
Darü’püuna descreve os fluxos de poder entre todos os que compõem a rede
nessas trocas em negociações. Ela remete-me a algumas proposições de Albert (2002) e
Ramos (2002), quando por “cosmologias e histórias” sugerem formas de registro indígenas do
contínuo processo de contato. Darü’püuna atenta para como novos referentes que somam
signos e significados diversos para a boa aliança conjugal geram atritos, mas desvela
simultaneamente modos como problemas ditos dos brancos (religião, política, família)
atualizam-se em elaborações do “dualismo instável” dos sistemas de pensamento ameríndio,
por um lado.
Ela anuncia, como fizeram os colaboradores anteriores, uma análise da
experiência de manejo da introdução de valores, de confronto linguístico e ontológico, como
“uma confusão”. Entendo que Darü’püuna reflete sobre as conjunturas desses atritos dando-
nos, com efeito, imagens das subsequentes atualizações das introjeções das moralidades
cristãs e moralistas, também legais e administrativas, que para as gerações anteriores foram
316

analisadas como necessárias (Cf. capt. V) às “melhorias de vida”. Darü’püuna segue com
algumas construções da reorganização social que esses novos instrumentos de mediação
promovem, ambiguamente, no cotidiano dos “amores proibidos”
É que lutamos para isso; queremos casar de papel para provar que por isso
do amor entre pessoas do mesmo sexo não afeta a cultura do Ticuna. É só
um jeito de viver o casamento, a família de outro jeito. Agora tem a escola,
outras ambições. Mulher ticuna já se faz de outros jeitos, não quer casar para
ter roça, um grupo de parente grande. (...). Disso é que a antropologia
também devia fazer. Falar dessas polícias de parente; não só das questões
dos clãs. Já está aí. Sexo e casamento combinam de muitos jeitos. ”
As análises de Darü’püuna são como uma espécie de “arqueologia dos saberes” das
“genealogias do poder” (Foucault, 1988, 2004, 2007), tornando inteligíveis processos de
transformação dos regimes de conhecimentos sobre a sexualidade (“os jeitos que os índios
namoram, fazem sexo, falam disso aí”), cujas implicações recaem diretamente nas versões
conhecidas sobre o casamento. Porém, não apenas. Ela descreve como em diferentes
contextos, tempos e espaços de relação, cada pessoa altera-se em novas relações; e são nesses
intervalos de relações que emergem os pontos de vistas divergentes. Teríamos, assim, uma
análise dessa mulher a respeito de como a micropolítica do parentesco absorve variados
valores, formas, categorias, nomenclaturas e sexualidades, estando a administrás-lo à medida
em que os conhecem nas socialidades com os regionais.

1.2. Negociações
(Casamento reconhecido)

O relacionamento conjugal de Darü’püuna e Mutchique’ena deu-se após um certo


tempo em que ambas corresidiram, quando esta veio da sua aldeia à jusante do rio, já em fuga
de uma separação que culminou na chegada a Rio Bonito, para trabalhar na casa da sua atual
sogra. Mutchique’ena havia abandonado seu esposo, arranjando pelo pai, com seus filhos
mais velhos, trazendo com ela apenas aquele que estava gestando à época. No início
Darü’püuna não estava buscando ninguém. Tinha “uma ficante” na mesma aldeia em que
Waire’ena, filha do irmão de sua mãe, e seus demais parentes maternos residiam. Ela conta
que nesse momento, “o babado estava forte, estava começando a surgir os que se
assumiam”. Oque se iniciou apenas como amizade, alterou-se em “amor, paixão”. Waire’ena,
317

diferentemente de sua atual esposa, não tinha naquele tempo experiências homoafetivas, e
paulatinamente, deixava-se “apaixonar”.
Darü’püuna pensando em ajudar sua mãe que a auxiliava na criação do filho,
propôs a Waire’ena que esta vivesse com ela, na casa próxima da de sua mãe. Elas contam
que, no início, diziam ser apenas amigas, que uma ajudava a outra, que Waire’ena era como
“uma secretária”. Darü’püuna relata que se “apaixonou perdidamente”. Assumiram-se
conforme iam negociando com os parentes, especialmente com os pais de cada uma. Nesse
ínterim a filha da Waire’ena nasceu e foi o irmão de Darü’püuna quem a registrou, “para dar
o clã. Para pôr no documento”. Ele mesmo conta que o fez por “questão”, no intuito de
ajudar a irmã a “vencer o sogro e ficar com Waire’ena e não deixarem eles levarem com eles
a pequena”.
Darü’püuna diz que antes de conseguirem assumir, as pegaram desprevenidas, as
“pegaram se agarrando”, e seus pais a expulsaram dali, “brigaram comigo”. Ficaram por
volta de um ano em Manaus e ao retornarem Darü’püuna e Waire’ena “tomaram coragem” e
foram à casa de seus pais e assumiram. Darü’püuna disse que a partir de então, sob muita
tensão, negociaram, mas ela teve de sair fugida da aldeia de sua esposa, expulsa pelo ex-
marido e pelo irmão de Waire’ena. Esta última seguiu dias depois de volta para Rio Bonito e
passaram a locar a casa onde ainda residem. Darü’püuna resume a situação com a seguinte
análise: “a gente enfrentou preconceito dentro da própria família. Aí teve as confusões que o
pai dela queria a criança dela; de novo, muita porrada. Hoje vivemos um romance vigiado,
porque como tá fora da aldeia, eles não podem impedir nossa união. ”

1.2.1. Do sexo dos termos

O que afinal, gera as indisposições política e morais em seus parentes, a ponto de


rejeitarem o vínculo com a “prima certa” elegida de Darü’püuna, “por amor, não só pela
regra”? Ao questioná-las sobre as “negociações” enfrentadas, em ambas situações de
matrimônios por ela experenciadas, Darü’püuna inverte a posição de entrevistada e argui:
“percebe o que tem aqui? ” Replico-lhe que haveria ali um problema de intercâmbio de
termos: de homens com mulheres, para mulheres com mulheres/homens com homens. “Isso”.
Ela segue, como uma boa antropóloga, já tendo cursando Organização Social e
Parentesco, no emestre anterior ao diálogo, provocando deslocamentos importantes ao
analisar sua situação: “mas o que isso tem a ver com as proibições, se a gente faz como na
regra, não erra no clã? ” Eu como boa ouvinte dela, fico muda. Ela ri pequeno e comenta
318

sutilmente, “são os sexos dos termos, do jeito do parente”. Desde aí explica-se a diferença:
“não fica como no usual, primo casa com prima, é prima com prima, confunde as coisas”.
Ela mesma descreve efeitos desses cruzamentos de referenciais sobre manifestações
de gênero e da sexualidade reprodutiva: “assim do sexo, da transa. Coisas de feitura”. No
aspecto reprodutivo, podem-se mencionar elementos de moralidades cristãs, mas não apenas
isso. Lado a lado a elas, há diferenciadas agências disciplinadoras, na saúde, e na educação,
mais especificamente. Ela entende que certos valores se dissipam e transformam, quando
“chega de fora novo nome para doença, novo remédio, novo livro, nova histórias, nas
crenças, novos jeitos de namorar”.
1.2.2. Do problema do mesmo sexo

“No modo como se ensina, como se vive por ai. Mas o casamento que a
gente faz é mesmo isso: é compromisso. A gente tem a vida igual das
mulheres que casam com homens. Igual a minha irmã. Só que eu me fiz
assim, desde cedo, nesse jeito de mulher que gosta de mulher. Não afeta
assim isso dai da identidade de mulher ou de homem”.

Estávamos lendo Judith Butler, algo de G. Rubin, e Foucault nessa altura, eu na


aldeia, ela na cidade. Num rápido intervalo entre outra aldeia eu a encontrei por uns dias, e
conversamos a respeito dessas leituras. Parecia-me que a questão por ela aventada tratava de
um antigo problema analítico entre sexo, enquanto aparato social que organiza dicotomizando
relações, de acordo com referentes que naturalizam sexualidade e reprodução enquanto
objeto. Desde essa equação, historicamente situada, engendram-se o gênero feminino e
masculino. Nesse caminho, ela diz que o sexo, “o que vem do corpo, do biológico, dos
órgãos”, não determinaria o “jeito de se fazer mulher ou homem”, na medida em que “esses
jeitos de estar na vida, no mundo, vem com a vivência”.
A análise de Darü’püuna, ao ler comigo algumas transcrições de conversas feitas
por nós, outras apenas por ela, com as interlocutoras deste capítulo, sobre essa mesma
problemática, expressa a controvérsia entre os valores que julgam e enunciam-se sobre tais
relações na “confusão” entre o sistema sexo-gênero, especificamente relacionado ao
parentesco. Menos como uma ideia de subordinação entre reprodução e sexualidade, a
questão parece orbitar no entorno de como a segunda é exercida, gerando campos de
referentes variados e concomitantemente aos regimes de produção de conhecimento.
319

Entre eles, aqueles que entendem pela lógica reprodutiva a continuidade de uma
esfera do parentesco: “a família, o grupo de parente”. Darü’püuna apresenta sua perspectiva
do dispositivo da sexualidade, sobremaneira em algo já pontuado no caso de Ezequia: o
manejo equivocado do órgão sexual que geraria relações falsas (“vazias”).
“Nosso jeito de ser não tem disso, de virar homem, nem de nossa vagina
deixar ser boa para filhos. Se eu namorar com outra mulher, não engravido
dela, enfraqueço a cultura da transmissão de clãs. Isso eles pensam. Só que a
possibilidade de eu ter filho e virar mulher madura não acaba. Diferente dos
homens, as mulheres têm o recurso do xamã para ajudar nisso da
fecundidade, do ter filho. Os homens não, dependem das mulheres fazerem
mandioca para eles ter sêmen, assim é na palavra dos antigos, das palavras
das nações, dessas coisas. A gente já fez filho. Já virou mulher madura, já
fizemos nosso bom viver de casal certinho. É só agora que o parente
aprendeu a respeitar. Os antropólogos também aprenderem que esse jeito de
ser mulher, de ser ticuna e parente é possível de muitos jeitos. ”
Cabe-se, então, saber como nessas situações de relações conjugais “mulher com
mulher”, cujos órgãos reprodutores e sexuais seguem potencializados à geração de novos
seres, independente do alter masculino, como elas manejam a continuidade da “família”. O
que oferecem aos pares antropólogos como novas possibilidades de pensarmos o parentesco,
lançando componentes sobre as teorias de concepção, como um efeito de seus agenciamentos
como ponto de vistas femininos com artefatos do exterior.
A este respeito dizem que para terem mais filhos, além daqueles que já possuem,
podem recorrer às novas tecnologias reprodutivas, “de fazer filho de barriga homem sem ter
homem. Não tem isso de adoção? Tem gravidez tomar injeção com sangue do homem e vir
barriga. Ai não é filho de rua, é filho nosso”. Ainda que ambas, diferentemente do que
veremos a seguir, não tenham necessariamente essa intenção, mencionam-a como uma
alternativa criativa aos empasses morais.
Se casar certo, nos conflitos aqui presentes, expressa-se pela heteronormatividade
reprodutiva, o que Darü’püuna e Waire’ena comunicam nessa problemática é que os
cônjuges, enquanto termos que expressam relações em troca, estão em posições preferenciais,
mas não a “mistura do mesmo sexo”, portanto seu efeito. Este último, parece impingir
etiquetas, o que se manifesta minimizado na condição de mulheres solteiras, porque são
casadas entre mulheres, cuja situação conjugal as tornam ilícitas a certas dinâmicas e circuitos
de interelações.
320

Isso, até onde entendo, é porque suas substâncias agentivas (fluidos corporais,
pensamentos) não propagam diferenças mínimas, senão similitudes demasiadas, aqui
focalizadas pelo “problema do mesmo sexo”, como vimos serem questões também aos
homens que querem casar com homens, como demonstrou Ezequia. Assim, não parecem estar
confundindo sexualidade e gênero, senão modos de manejo social da primeira, operando de
contextos às manifestações aceitas ou não da segunda. O casal e as dinâmicas “mulher com
mulher” parecem culminar, por consequência da ideia de pessoa e parente abarcada na tese,
em um corpo “enfraquecido”; num tipo de “parente vazio”. Aqui não sozinho, entretanto.
Como elaborou, certa vez Darü’püuna, “isso é casamento errado, um tipo de
amor proibido, porque casal somos, não somos mulheres casadas. Isso é ofensivo”. Ela
mesma ressalta, que mesmo em seus casos, cujas alianças precedentes forneceram a cada uma
delas “caminhos para fazerem-se autônomas, mulheres maduras”, é “preciso lutar,
reivindicar” posições de mulheres que “podem casar”. Buscam, pois, lugares de
engajamentos produtivos e por isso, reconhecidos no parentesco que criam, para assim, se
tornarem locus de afecções não censurados, contidos e “vigiados”. “É preciso negociar”.
Com efeito, “não o jeito de mulher porque já somos, mas como uma mulher poder ter como
esposa outra mulher”.

1.3. Efeitos
(Da família, dos papéis e documentos)

“É proibido nosso casamento, mas vamos nos casar assim mesmo. No


cartório, em Tabatinga, com juiz. Ela é o amor da minha vida. Se na lei dos
Ticuna tem isso de proibir, eu sei que não vale porque no Estatuto do Índio,
a lei mais geral como a Constituição, não diz nada disso. Aí a gente vê quem
tem mais poder. Se lá diz que os indígenas são cidadãos como todos os
outros, também têm direto ao uso da lei que deixa casar pessoas do mesmo
sexo. (...) se na lei do índio as autoridades copiaram do homem branco, da
igreja, a palavra pecado, uma mulher ticuna, que tem estudo e sabe dos
direitos também faz como eu. Copio o direito federal que diz ser certo casar
com pessoa do mesmo sexo. Isso não é lei de índio, esse problema do sexo
malfeito de casal igual é coisa de fora, aí se muda tudo, traz para dentro o
que se pode mexer. Assim é. Mas bagunça, é isso de sexo malfeito para
muita outra coisa. Até casamento de mulher com mulher”.
321

E, para encerrar este caso de “romance de prima com primas”, é interessante


observar como não apenas os “documentos”, “papéis” e os conhecimentos de suas potências
agentivas, tão próprios às lógicas de contrato matrimonial em meios urbanos ou rurais,
mediados por outros interesses e valores. Ao apelar aos aparatos legais, formalistas, o casal
aciona apropriações de características de institucionalização da aliança, igualmente como
instrumentos de acesso ao poder, quando o dispositivo da sexualidade também demarca e
impõem espaços de ação social generalizados.
Assim, talvez, lado a lado na equação que reconhece a díade do casal, via a
presença mediadora do filho. Estando munidas de Certidão de Casamento ou de União
Estável, estas interlocutoras conseguem mobilidades nos arranjos sociais e trânsitos às suas
posições, status e estatutos. Pensa-se, inicialmente, que estes referentes ganham vida social
como instrumento de poder nas dimensões interseccionadas entre saberes em relação escalar e
reticular, entre partes e todos, e intra e supralocal.
E, nessa conjuntura das “misturas” de referentes, que os documentos e suas partes
manipulam e agenciam as “negociações”, assegurando uma via de “consumo produtivo”
(Fausto, 2001) nos cenários onde assim ganham operacionalidade, posições de enunciadoras a
essas duas mulheres, ainda que por isso, à margem. Um consumo que não é generalizado,
quiçá por isso não incorporado nas mesmas escalas e valores de todos, porque sabe-se, pelas
“palavras dos preconceituosos” ser deletério.
Numa analogia à ingestão de certos alimentos exógenos que “enfraquecem o pora
[força, princípio energético]”, o casamento entre pessoas de mesmo sexo consistiria num
vínculo anti-social. É como no caso dos esposos estrangeiros, cujos saberes de “fora”
precisavam, noutras cenas, serem domesticados. Aqui a natureza da diferença é a outra e
numa dimensão interna. O “sexo malfeito” por elas praticado para constituir seu “petchica”
(grupo doméstico e unidade econômica cujo cerne relacional é o casal e suas agencialidades
generizadas) é a antítese do parentesco, porque não gera, como enunciou o pai de Darü’püuna
“nem filho com woca, nem genro para aliado. Vem nora, aliada, mas de outro tipo, porque
grupo de parente dela não vem junto”. Aqui as mulheres colocam em perspectiva a troca,
fazem fazer circular esposas e cunhadas.
Trata-se de deslocamentos, ênfases e diferenças de acentuação de pontos de vista
sobre a relação entre sexo, sexualidade e gênero, aqui mediadas pelas versões de casamento.
Estas relações, contudo, não expõem situações “de rompimento”, de oposições e
descontinuidades entre “regras” e “afetos”, entre aqueles enunciados e enunciadores que
proíbem e aqueles que intencionam as uniões. A nós, os “antropólogos”, esses informes,
322

cingidos e mencionados em partes iniciais da tese, materializam-se neste mosaico como tipos
de ‘sociedades’ diferentemente produzidas no âmbito ‘do modelo de parentesco do povo
ticuna’. Emerge nos caminhos para pensá-lo, ao menos.

***
Vejamos, então, a seguir, outros pontos de vista sobre o “jeito de ser mulher ticuna
que gosta de mulher”, em outras situações de conjugalidades clandestinas para ver como
outras mulheres estão “fazendo outro tipo de vida, de sociedade, de cultura Ticuna,
misturando as palavras de saberes, misturando tudo. ”

2. “Amores disfarçados”

Botchicüna e Metchicüna
(Casal disfarçado)

2.1. Relações

“Até hoje ainda sou criticada por amar uma mulher, as pessoas me insultam
com piada; já prometeram fazer piadas para eu e minha namorada. Sempre
me mantive forte. Mas hoje posso dizer que sou uma mulher Ticuna com
medo de assumir o que na verdade eu sou. Por aí, nessas nossas vivências
você vai aprender como vamos misturando, fazendo outro tipo de vida, de
sociedade, outros jeitos de ser mulher ticuna” (Botchicüna).

Botchicüna é a mais velha do grupo de protagonistas desse capítulo. “Mulher alta


dos cabelos curtos, loiro”, sempre trajando seu chapéu “estilo panamá, mas do peru” e seus
óculos de sol, como ela descreve-se. Ela tem uma “moto possante, cara; moto de
professora”. Outra marca distintiva a descreve como “a mais safada, ciumenta e
namoradeira”, segundo comentam suas amigas. Ela diz que lida bem com as situações de
conflitos pelas quais passa pelo fato de ser “machuda”. Sempre muito ocupada com os
afazeres na escola onde lecionava, era difícil encontrá-la nos dias de semana. Aos finais de
semana “quando não estava metida na política, estava metida no amor”.
Metchicüna, sua “namorada”, com ela reside há pelo menos sete anos. “Sem
casar”, para efeitos de “evitar confusão”, Metchicüna apresenta-se aos que não sabem
“oficialmente do caso”, como “secretária” de Botchicüna e com ela comparte a rotina de
labuta, “a cama, a moto e os problemas”. Foi esta última quem informou que o “disfarce”
323

emerge como um dos efeitos de “não aceitarem” seu “casamento”, residindo a sua eficácia na
possibilidade de viverem juntas, ainda que a relação conjugal seja clandestina.
Metchicüna compactua com esta estratégia, esclarecendo sua eficácia nos
contextos de “negociação de seus jeitos de ser” entre seus pais, os quais, de acordo com ela,
“não gostam”, e seu “jeito de ser machuda” os entristece”.198 Dizem viver como se fossem
“duas irmãs”, ao que se referem exclusivamente ao cuidado que esta relação comunica,
quando Metchicüna descreve os atributos do ser “secretária”: “eu trabalho com ela, faço
almoço, cuido da nossa parte da casa, cuido dela e ela de mim. É uma companheira. Juntos
nos viramos, somos assim um casal disfarçado”. A relação de consanguinidade estratégica
gera uma possibilidade de afinidade por vir, gera “um pouco de esperança, de vontade de
deixar isso claro”, arremata Metchicüna. Além de suas tensas relações parentais, estas
colaboradoras analisam os efeitos de “pensamentos diferentes” sobre o casal de mesmo sexo
noutras dimensões da vida na comunidade, ao reclamarem de ofensas, de serem apontadas
como “machudas, sapatonas, pica de borracha”.
Ao que respondem não pela oratória pacífica, senão desde a perspectiva do
predador e transformativo: “se ameaçam, assumo isso que dizem ser machuda, mulher que
parece homem, para combater esses preconceitos”. Para ela, sendo inevitável que as
diferentes interlocuções com os exteriores de socialidade tenham o mesmo efeito sobre todos
seus congêneres, assume-se o risco de “parecer coisa de gente não índia”, quando na
verdade, a questão centra-se no que “essas novas palavras de críticas” não deixam espaço e
disciplinam relações.
Como as outras interlocutoras, elas pensam em se casar, em ter sua casa e em
terem filhos. E para isso pensam em recorrer a tecnologias reprodutivas, sobre as quis
falaremos doravante. Contudo, não agora. Para Botchicüna casamento é “importante”, é a
visibilidade de sua opção e da diversidade sexual num contexto que está experimentando e
refletindo, por isso, fazê-lo implica um “compromisso muito grande”. Não apenas com a
esposa, mas com a rede de parentela bem com os gestores morais dos parentes, aqui,


198
Nunca conversei com os pais de Botchicüna sobre o tema, não tinha com eles nem abertura, nem intimidade
para tanto. Com ele tive, inclusive, que “conversar sobre a pesquisa”. Por isso, assumo também muitas
reticências em relação a suas perspectivas sobre o que apresento aqui. Não frequentava a sua casa. Encontrava
com sua filha sempre fora da aldeia, ou quando nela, apartadas de seus parentes. O mesmo em relação à
Metchicüna. Diferentemente, pude conversar em algumas ocasiões com dois dos irmãos da primeira, Luis e
Adriano (Cf. Introdução).


324

notadamente em destaque a figura de seu pai, cacique, ex-delegado e um dos criadores da


Polícia Indígena.
Neste contexto, ela menciona querer levar uma vida “normal no meio da
sociedade ticuna”, cujos efeitos de seu matrimônio também reverbera nela mesma, ao que
conta em um momento “ter uma família, de honrar os nossos nomes. Só que para isso, é
aquela coisa: assumir para todo mundo e aguentar os prejuízos”.

2.1.1. Dos amores, política e prazeres

Botchicüna, sempre muito alegre, risonha e conversadeira, contava sobre seus


trajetos pessoais, suas “aventuras amorosas”, seus planos na careira política, também na área
de atuação educacional, que tanto lhe encanta e lhe faz reconhecida. Com efeito, ela situava-
me, nesse enredo de linhas de força destoantes em relação às “vontades e verdades”,
alertando aos “riscos de ser como se é”, “por isso os cuidados, os disfarces”.
Ela retrata como isso está dimensionado em variadas esferas de socialidades e às
sanções a que se refere sua namorada como “prejuízos”: “na política da aldeia, da família, da
política com branco ou do parente vale tudo. E fofocar para eu perder voto ou ela apanhar
do pai dela não seria nenhum problema para os parentes, que já gostam de fofocas; nem
para os brancos, que já não gostam de índios”.
Ao lhe perguntar, com vista nisso, como eram vistos seus “romances” no
ambiente de trabalho escolar como professora, na aldeia ou na cidade, ela comentava, sem
perder o humor, que seus alunos lhe diziam, “dando um exemplo”: “e aí professora, conta aí
como é essa vida de namorar uma mulher? ” Ela responde pela artimanha do prazer: “digo
que é bem mais gostoso do que você namorar um homem”.199
Pedia-lhe para explicar-me como caracterizava “prazeroso”. Ela dizia-me que
nunca tinha se relacionado “sexualmente com homens”. Ela contextualizava afirmando que
não sentia “vontade alguma de estar com homens, de sentir o corpo deles, de saber o cheiro,
o gosto”. Numa simetria oposta, ela comenta: “acho que sexo, vida de casal ou namorado
entre homem e mulher deve ser bom igual ao que eu gosto. E é isso, questão de gosto,
também de poder, de política...negócios dos ticuna. ” Eis a versão da micropolítica do


199
Ela descreve que aos dez anos percebeu que “gostava de mulher”. “Eu observava muito minha prima, quando
tomávamos banho no rio. Eu ficava olhando o bumbum, as coxas, tudo isso me atraía. Mas não sabia o que era
de verdade que eu tinha. Eu tive a certeza que gostava de pessoa do mesmo sexo quando beijei pela primeira vez
a minha amada: senti algo diferente, excitante e desejável”.


325

parentesco e sexualidade para ela. Botchicüna diz que seu “casamento disfarçado” se iniciou
quando Metchicüna deixou a casa de seus pais passando a residir com ela, e desde então
sentem-se apreendidas em relação às reações de seus respectivos familiares mais próximos,
especificamente seus pais.
E numa de nossas conversas, Metchicüna mencionou algo que me chamava muito
a atenção, em relação ao desejo de ter filhos, revelando ser um “sonho” associado a construir
uma “família” com Botchicüna. Para tanto, chegou a pedir-me ajuda para buscar informações
na internet a respeito de tecnologias reprodutivas que a eximissem de manter relacionamentos
sexuais com homens para que pudesse ela ou sua companheira engravidar.
Com isso, ela aloca, simultaneamente, o fato de ter filho como um instrumento
político gerativo de visibilidade, “faz[endo] reconhecimento de nosso casamento, como
aprendemos com nossas mães”, e, nessa lógica, sua reflexão previa construir uma família,
para serem mulheres maduras, não só pela “vontade dos outros”, quando se comparavam ao
casal da seção anterior e seus casamentos “sem amor”. E bastante reticente ao final dessa
conversa, num pôr do sol, à beira-rio, em Tabatinga, ela arremata parte do dilema: “só que
antes disso, eu quero me casar de papel passado e na igreja. Mas me falta coragem de sair
da casa de meus pais”. O que ela mesma, noutra ocasião, relembrou descrevendo a situação
na seguinte proposição: “sair é assumir tudo; sair é precisar assumir essa família nova; não
sei, assim tá bom. Assim também sigo no apoio político; sigo como boa filha. São muitas
coisas no meio”. 200 Complexidade por ela sintetizada como “problemas de dos amores,
política e prazeres”.

2.2. Negociações
(Virar casal, casar e filhos)

Botchicüna relatara-me como iniciou a relação com sua companheira, evidenciando


o que ela diz ser “dificuldades de viver o seu amor lindo e proibido”, ideia associada com o
“medo” de enfrentar sua rede de parentela, que silencia o assunto. Um silenciamento
estratégico, que desvelava “críticas” de suas irmãs mais novas e ameaças de seu pai.
Paulatinamente, Botchicüna contextualiza que suas irmãs passaram a respeitar sua

200
Sobre a ideia dela ser protagonista deste estudo, ela mencionou certa vez, “estar à vontade”, dizendo ser
“preciso contar e registrar o outro lado da vida das mulheres ticuna. Isto é, a descoberta de um amor
proibido”. Incentivava-me, afirmando que “pesquisar para que possam esclarecer certos tabus”, mencionando
que para ela “esse tipo de relação é algo tão normal, maravilho e gostoso. (…) o mais difícil é você contar pra
alguém, que te dê confiança e não te prejudique né; vamos lá, estou aqui para colaborar”.
326

companheira, passaram a “gostar dela” e voltaram a frequentar a casa dos pais onde se aloca.
Inclusive, ainda que jocosamente, perguntem a ela sobre o “cunhado? ” Ela mesma, por fim,
coloca em cena, o cerne de suas “negociações pela aceitação”. Para ela, “tem a família, os
parentes”, de um lado, que “protege e castiga, proíbe”; de outro, a rua, “a aldeia, os
brancos”. Botchicüna dizia-me essas palavras, num dia de sábado, quando passou por minha
casa, pedindo “conselho”. Visivelmente abalada, sentou-se à rede, presentada pela mãe de
Darü’püuna e, chorando, contextualizava a situação de desolamento:
“Meu pai. Ele é político, um chefe de nome. Importante. Nessa reunião que
eu estava com esses homens e mulheres mais velhos, dessas autoridades, ele
falou dessas safadezas, que era mesmo para pegar os sem vergonha e dar
castigo. Mandar falar com ele. E eu lá pensando, “Por que isso? ”. Por que
olham como negativo? Como proibido? Daí vigiam a gente. Vão cuidar dos
problemas de verdade, das invasões de terra, dos peruanos que entram aí
pegando mulheres, levando drogas, remédios, dívida. Mas não podia dizer
isso. Parece fácil. Parece de fora que é fácil ser filha de gente de poder. Só
que nem sempre. Vigiamento dentro de casa é duro. Mais que vida de
mulher de roça. ”
Botchicüna é a irmã mais nova de Luis e Adriano, que conhecemos nas páginas
introdutórias desta tese. Ao contrário deles, Botchicüna não pensa em sair de sua aldeia para
viver na cidade. Segundo ela, seu capital político lhe assegura certa segurança, ainda que
duvidosa e instável nos níveis em que circula. Com isso ela entende conseguir driblar
situações de rechaço a seus relacionamentos, porque, sendo uma mulher “machuda”, como
dizem, é “mais fácil enrolar e não casar”; ou mesmo “disfarçar” e “fazer de conta que
namora com alguém”.
O que, afinal, fazia com que seus irmãos também sofressem represálias e
disciplinamentos diferenciados em relação a suas situações conjugais, ditas “proibidas”, por
isso sob vigilâncias e “castigos”. Do ponto de vista de Botchicüna, o que explicaria a melhor
aceitação, ainda que resignada, de seus pais em relação à homoafetividade de seus irmãos,
revela um jogo de forças entre os homens, quando a lógica do “disfarce” por eles
empreendidas está duplamente travestida: pela distância da convivência diária, pois residem
em Manaus, e pelo fato deles terem esposas na comunidade, a quem visitam periodicamente e
com quem têm filhos e mantêm uma casa, “um grupo de parentes”, o que não deixa de
reverberar, nas imagens públicas por eles expressas. Ela analisa tal situação como “desigual”,
327

justamente o que parece mobilizar suas vontades “de virar casal de verdade. Quero também
casar. Mas quero ficar aqui, não quero fugir como eles, ou como as minhas amigas”.

2.3. Efeitos
(Dos amores proibidos, dos filhos e casamento)

As estratégias de escapes dos irmãos de Botchicüna não destoam dos demais


interlocutores desta última parte da tese, em especial. Através delas visualizamos os universos
das micropolíticas, nem sempre em consonância, porém sempre criativas aos modos pelos
quais se vem descrevendo as formas de elaboração da pessoa, dos parentes em seus muitos
jeitos de ser”. Neste rastro, ela associa o fato deles serem homens, já terem filhos e terem
alcançado certas prerrogativas, no que circunscreve as relações de poder no capital político,
ao afirmar que “os muitos jeitos de ser feitos pelas palavras, nos poderes, nos disfarces deles
com os filhos e com os casamentos, as tais políticas dos ticuna”.
Botchicüna, noutro momento, retomava a ideia do “amor proibido”, já
evidenciando alguns efeitos, remetendo-nos de volta ao lugar que certos signos do casamento,
das socialidades “mulher com mulher” produzidas nas dualidades contidas no “casal de
mulheres”. Situa que não é necessariamente o ato sexual praticado “em si” o problema, mas
as consequências de suas afecções sobre si mesmas e sobre os outros.
“ (…) às vezes, as mães das outras mulheres proíbem suas filhas de fazer
amizade comigo, ou com quaisquer pessoas que tem uma vida igual a minha.
Dar aula na cidade ajuda a não ter que ouvir delas preconceitos”.
Metchicüna, nesse sentido, esclarece que o casamento pretendido quer provocar
isso, o “aceite” da modalidade de conjugalidades como casamento e espaços para formulações
de alianças. Para tanto, “fazer a família” será um jeito de não “romper com a cultura”, de não
romper com suas “vontades, suas paixões”. O que buscam é que suas vidas afetivas sexuais
deixem de ser vigiadas, o que lhes parece, como o casal anterior, ocorrer pelo recurso da
linguagem do “combate do papel”, quando tiver registro de casamento civil, como mecanismo
de “poder para mostrar pra eles [os gestores morais do parentesco]”.
A análise delas surge, por fim, para transparecer como certos instrumentos legais,
na correlação entre as lógicas de governabilidade ticuna e outras provenientes de variadas
esferas do socius com as quais se relacionam e se intercomunicam. A institucionalização do
328

201
“casamento homoafetivo”, nesses termos por elas colocados, materializa o que os
discursos e práticas modeladoras das “autoridades” tentam conter. Também se entrecruzam
nestes dois casais a noção de autonomia pessoal, que se acomodam no interior dos capitais
que cada uma maneja nessas “negociações”. Essa autonomia de “amansar os parentes” com
atributos e agências “dos brancos” aparece enquanto “poder político”, “de poder de família”,
“de poder dos documentos”, “poder econômico”, igualmente atrelados aos espaços
relacionais expostos pelos “os filhos”.
Num de nossos encontros em Tabatinga, quando conversamos sobre as
controvérsias e os dilemas de seu “jeito de ser”, Botchicüna disse querer “aproveitar” aqueles
dias por ali para conversar com uma enfermeira, numa clínica de obstetrícia, explicando que
“como casal”, elas queriam “para oficializar o compromisso”, ter quer um filho, cuja
gestação seria feita por Metchicüna. Para isso, Botchicüna pretendia ter a tal consulta e
conversa com uma enfermeira conhecida sua, em Letícia (COL), sobre os procedimentos de
inseminação artificial. Antes, pediu-me para conversar a respeito.
“Começa que ser uma mulher madura tem que ter filhos. Isso é algo que eu
quero, gosto de criança, e saber que terão depois uma continuidade da
família, de mim, da minha mulher é bom. Mais fácil seria se eu tivesse
marido, mas não dá. Já te falei que não consigo querer um homem. As
meninas [referindo-se à Darü’püuna e Mutchique’ena], sim, já tiveram seus
filhos porque casaram por aí com homem quando estava na idade de casar,
porque os pais delas eram bem tradicionais”
Longe de Rio Bonito e da aldeia, ela situava-me num campo interessante de
distinção social entre ela e suas “amigas” Darü'püuna e Mutchique’ena, ensinando-me mais
detalhes a respeito de suas intenções de tornar-se “mãe sem fazer filho”, descrevendo o lugar
social da “família”, “dos filhos” na produção da socialidade cotidiana, “das vivências das
políticas dos índios”.
(...) para ter um filho, eu vou fazer na clínica. Eu não, será Metchicüna. Dou
meu óvulo e o médico põe no útero da minha companheira. Eu já tô passada
da idade de ser mãe. Ela quer. O sêmen pode ser de qualquer quer um. De
preferência um homem bem bonito, charmoso (…). Tanto faz, se ticuna ou


201
Com Botchicüna busquei apreender os termos e diferenciações legais entre os termos “homoafetivo” e
“homossexual”. Aquele refere-se ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. No Brasil tal direito está
assegurado por decisão do Superior Tribunal Federal (STF), e pela Resolução nº 175, de 14 de maio de 2013, do
Conselho Nacional de Justiça, que obriga os cartórios a realizarem a cerimônia. Quanto à ideia de
homossexualidade, em Silva (1997: 109) refere-se a “toda pessoa que procura prazeres carnais com pessoas do
mesmo sexo. ”
329

não. Ela já pensa que não, que tem que ser um ticuna, parente mesmo,
legítimo, para poder ser como a gente e ter clã também”
As formas como estas protagonistas também atuam nesses enredos de conflitos de
interesses, deixam entrever os modos pelos quais se tornam a si próprias objetos de
conhecimento e campo de ação para alterarem-se e promoverem a sua posição legítima de
“esposas de outras mulheres”. O filho como operador simbólico que faz visualizar a relação
conjugal deste “casal de mulheres” tem eficácia política quando cria conexões que rompem
com o hiato gerado na conjugalidade “mulher com mulher”.
Lançam mão de uma nova versão de teorias de concepção. A dependência delas
em relações a capacidades agentivas masculinas, expostas pela figura do genitor, ganham
novos formatos, são por elas consumidas. Botchicüna diz incentivar as amigas a
posicionarem-se, ainda que saiba o que isso implica, mencionando que enquanto “mulher”
podia ter quantos filhos desejasse, “sem ter necessidade de transar com homem”. Dizendo
que se a preocupação das pessoas “ignorantes” é a não aceitação da diversidade sexual, estes
pensam “erradamente”.
Sua ênfase recai na oratória da transformação, afirmando estar transmitindo
saberes que gerações anteriores os ensinaram, mas com outros valores associados, o que faria
muita diferença, dimensionando a crítica à problemática da sexualidade e reprodução, do sexo
e do gênero: “assar a cultura ticuna de geração a geração não tem a ver com o sexo de quem
eu amo. ”
***
Vejamos esses signos de conjugalidades e matrimônios dimensionados nas
micropolíticas de parentesco (na produção de espaços-temporais propícios a continuidade de
afins e consanguíneos), atualizando-se em outro par conjugal “mulher com mulher”.
Disfarces, fugas, castigos conjuntamente com a linguagem do cuidado e obrigações de que
dependem tais continuidades às formas relacionais de criar parentesco, mostram que casar é
também operador de transformações e criações de “jeitos de ser mulher casada com mulher”.

3. “Casais de duas mães”


Waire’ena e Tchori
(Casal de relacionamento sério)

3.1. Relações
“Hoje o preconceito está muito forte. (...) Ficam jogando piadinha do tipo:
“vocês são duas machudas”. Às vezes, esse tipo de piadinha incomoda.
330

Alguns adultos olham a gente na rua e ficam cochichando, mas agride ficar
só fofocando. Acredito que esse preconceito tem que acabar dentro da
comunidade. Nossa intenção de casar vai nisso, querer sossego”
(Waire’ena).

Dentre as interlocutoras deste capítulo, Waire’ena e Tchori foram as últimas a


quem conheci e com quem iniciei as conversas sobre seus “amores proibidos”.202 Foi com
Waire’ena e Ezaquia, em particular, que ouvi claramente que “há dois jeitos de ser adulto:
como casado ou como solteiro”. Waire’ena, o disse a mim no primeiro encontro, na cidade,
quando trocamos, nessa ocasião, poucas palavras. Estes dados resgatados do diário de campo
foram breves provocações, a partir das quais tentei guiar os diálogos com ela e sua
companheira Tchori.
Passado um período da breve conversa, soube por Tchori e Waire’ena que elas
costumavam se encontrar todos os finais de semana, quando esta costumava receber aquela
em casa. Contextualizando os encontros, Waire’ena comenta: “ela dorme comigo, meus pais
sabem, não encrencam tanto”, sem que isso minimize as negociações precedentes.
O mesmo roteiro de trabalho e “obrigações” ocorria com Waire’ena e Tchori, que
se resumia durante os dias de semana dedicar-se à roça, às tarefas da casa, com seus pais, tias
e tios paternos que moravam próximos. Ambas corroboravam o apreço pelo futebol
dominical, e ambas são partícipes de times feminino da aldeia onde moram. Aproveitam os
momentos de viagens para jogar noutras aldeias “para namorar”.
Ambas residem na mesma aldeia, nas adjacências de onde residem Metchicüna e
Botchicüna e relatam situações comparáveis com a destas últimas, no que dizem ter sido
preciso enfrentarem em relação as “aceitações”. Foi preciso fugirem algumas vezes,
interromper seus estudos, “já de maior, mulheres adultas; fazendo curso técnico para
melhorar de vida. ”
Sem perder lugar aqui também nos quesitos de autonomia, Waire’ena mencionou
certa vez que a comunidade sabe de seu relacionamento e diz-se “assumida”. Ela


202
Elas são, comigo, as mais tímidas. Falam e compreendem bem o português e entendem mais do que falam o
espanhol, e nossos diálogos mesclavam-se nos idiomas. Alguns poucos encontros na cidade, algumas acolhidas
em minha casa, em dias de “fuga” de seus pais, e algumas poucas, não mais do que duas visitas à casa de
Waire’ena. Fiz apenas uma visita à casa de Tchori e tivemos, ainda, algumas conversas na roça da mãe de
alguma delas. Foram estes os contextos nos quais tecemos os diálogos aqui apresentados. Ambas, até a última
estadia em campo, por meados de fevereiro de 2014, estavam desempregadas, articulando-se para receberem
bolsa de estudos por meio de um convênio entre FUNAI e a universidade onde haviam iniciado o curso de
graduação em Antropologia Social. Diferentemente de Darü’püuna, elas não tinham naquele momento muita
certeza do que as motivavam a escolher o curso, não tendo no horizonte interesse de pensar na academia as
situações sociais por elas vivenciadas relacionadas às “orientações sexuais”.
331

contextualiza, nesse horizonte, seus “dilemas amorosos e políticos”, afirmando que seria um
risco ético, “dizer que para todos as pessoas do povo Ticuna esses relacionamentos de
homens com homens, mulheres com mulheres é visto do mesmo jeito”.
Com efeito, desde sua perspectiva, “cada pessoa, cada grupo de família, cada
aldeia, comunidade, cada povoado tem suas regras, seus jeitos de serem”. Situa, a partir de
suas redes de interações, alguns aspectos do seu cotidiano dimensionado nesse enredo entre
casamentos restringidos e as solteirices forçadas aos “casais de mesmo sexo”, estados afetivos
situados em noções das políticas de vivências e as graduações de moralidades
“O amor, o desejo, o prazer, a dificuldade que passamos e sofremos para
hoje termos algo tão gostoso, prazeroso. Valeu a pena a gente ter passado
por tudo isso. Posso afirmar que é muito diferente sim, o afeto que sentimos
uma pela outra, parece que a gente consegue entender o que a outra está
passando e sentindo. Às vezes converso com meu amor, se a união de dois
corpos é tão bom, porque proíbem, né? (...) hoje na minha comunidade tem
muitas garotas se descobrindo. Digo para elas que o amor que vivemos é
muito mais gostoso do que ter um relacionamento normal, como eles dizem.
Mas isso não importa, o importante que eu sou livre pra amar e voar de tanta
felicidade. Livre assim, sempre negociando”.
Tchori, nesse sentido, coloca em cena a ideia dos “problemas dos afetos”, mais
uma vez, ganhando contornos e conteúdo bastante associados com noções de “medo” e
sanções (castigos), entremeadas aos jogos de força constitutivos desses enredos de intenções e
“vontades proibidas”. Waire’ena nos conta a respeito, narrando como vem sendo pensado
entre os parentes esses problemas de casais do mesmo sexo, a partir de sua experiência com
os disciplinamentos bastantes interligados às moralidades cristãs, transformadas nas rotinas
indígenas
“Para mim, isso começa quando eu descobri minha orientação, aos nove
anos de idade. Eu me achava estranha, porque quando olhava para as garotas
algo me atraia nelas e me deixava excitada. Mas não sabia o que era, eu
tinha vontade de perguntar à minha mãe. Mas aí tive medo dela brigar
comigo, fiquei sempre calada. Meu pai é sacerdote da igreja, ficava com
mais medo ainda”.
Waire’ena, já por volta dos quinze anos, foi-se para a cidade onde sua irmã mais
velha passou a morar após casar-se com um ticuna de uma aldeia mais próxima da cidade,
onde permaneceu um ano e para onde havia ido para estudar. E menciona ter sido nesse
período em que mulheres lhe chamavam atenção, mas que tomava cuidado porque lhe haviam
332

alertado que na cidade se é mais violento e preconceituoso, para que não ficasse de flerte com
mulheres, nem com homens. Nesse ínterim na cidade, Waire’ena conta de sua “primeira
garota”.203

3.1.1. Do casamento

Neste trajeto, Waire’ena preenche de significados a ideia de “relacionamento”,


descrevendo-o como “unir-se” a uma pessoa que se “ama, construir uma família e viver em
paz, sem medo de algo acontecer”. O que, com efeito parecia a ideia de casamento para ela.
Tchori descreve o processo de conhecimento e reconhecimento de seus
“sentimentos”, “do corpo”, “dos pensamentos”, afirmando que “olhava muito as meninas da
minha idade, mas não tinha coragem de falar pra uma menina que eu estava de olho nela”.
Similar às táticas de “disfarces” manejadas por Darü’püuna, Tchori manteve um
relacionamento com um jovem parente na aldeia, ao mesmo tempo em que se relacionava
com uma mulher também parente.
Tchori diz que as “histórias de vida” dela, de sua “namorada” e das outras
mulheres com eu estava fazendo esse trabalho “não era fácil”. Compara-se às demais, “assim,
naquilo que era o importante do casamento. Para viver esse amor proibido”. Depois de
enunciar, reflete e passado algum tempo calada, diz: “pesado ficar negociando com os
sentimentos”, dela e de seus parentes, expressando, resignada, “é o jeito que dá para negociar,
até virar casal de verdade”.

3.2. Negociações
(Fazer casamento)

“Nós queremos dizer isso”: ye'emagü ta ni'gü”. Ela, minha filha, diz assim.
Significa nós casamos, assim de conjugar verbo em ticuna; delas fazerem
casamento. Isso que negociamos como elas, porque é isso que elas querem
firmar” (Pai de Waire’na).
Waire’na, nesta mesma ocasião, sentada à mesa, fazia-me companhia enquanto
seu pai contava-me um pouco sobre o próprio casamento. Em relação comparativa, o senhor


203
Waire’ena menciona que um dos motivos para retornar à casa dos pais foi o rompimento com essa “primeira
garota”. Assim me foi contado: “ela não se contentou apenas com mulher. O problema era que ela gostava dos
dois lados do sexo. Ela me traiu com homem. Eu queria morrer na época, tentei me suicidar. Foi aí então que
minha irmã me levou de volta pra comunidade”.
333

de aproximadamente setenta anos, “sacerdote”, “também pescador, agricultor”, qualifica


como perigoso o “romance” de sua filha no que associava às redes de relações de parentes.
Ela mesma narra a situação em que se “enfrentaram”, quando lhe disse que
homens não lhe “atraiam”, que “gostava de mulher”. Argumentava que queria viver sua
“liberdade”, e lhe queria o apoio, quando as controvérsias das políticas de vivências passam a
operacionalizar contextos de circulação de valores, analisando a proposta de desfecho de seu
pai, que lhe disse: “ainda quer viver sua vida? Então viva. Faça sua vida bem longe de casa,
não por mim, mas pelas pessoas da igreja, que irão me criticar por aceitar seu
comportamento”.
Waire’ena, “de família de poder”, aqui no campo religioso mais que político,
fornece imagens de desprestígios efeitos de “seu jeito de ser mulher que gosta de mulher” que
implicam em seu pai, duplamente, como pai e “sacerdote”. Num outro momento, quando
passeávamos no interior da aldeia onde Waire’ena morava com ele, sua mãe os irmãos
solteiros mais novos, ela explicava-me as micropolíticas, em sua situação, gerativas da ideia
de “amor proibido” e “vigiado”, descrevendo que o primeiro era esse “tipo de amor” que ela
e suas amigas “sentiam e não podiam deixar público”.
E eram “vigiados pela família, pela gente da aldeia”. Waire’ena nos fala mais
sobre outros elementos que replicam efeitos dos dissensos na relação parental, como vimos,
adensados nas sobreposições de “papéis de autoridades”, agora de “pai” e “sacerdote”.
“Não tive medo, mas, pelo menos, eles iriam ouvir da minha boca a verdade
dos fatos ocorridos. Chegou a noite, meu pai e minha mãe foram para igreja,
ao chegarem em casa, no jantar, ele me falou: “a única coisa que posso te
falar é que esse pecado que estás praticando é seu, não é problema meu. O
único que pode te julgar é Deus, não eu”.
Aclare-se com essa narrativa uma sorte de pivôs morais e políticos que alimentam
a conflitualidade parental no caso de Waire’ena, de cujas negociações, na sequência dessa
conversa, aparecem num episódio de fuga dela e de sua “namorada”, descrevendo seus
contextos “tensos” e “violentos” de ocorrência. Waire’ena diz ter “fugido” em resposta às
repreensões de seu pai, que ao dar-se conta de que a filha não retornaria à casa, tampouco à
comunidade, ligou insistentemente para seu celular e por meio dessa ferramenta negociaram
os termos de sua volta. Passou cerca de uma semana e Waire’ena retornou, retomando o
acordo de que suspenderiam as “brigas e conversas duras”, e de assumir seu relacionamento,
o qual, se desdobrando bem, eventualmente poderia “virar casamento”. Seguem juntas desde
então.
334

3.3. Efeitos
(Ajuntar de verdade, fazer filho e virar casal)

“Não estou nem aí para o que vão falar. Sou uma mulher feliz e realizada. O
que era proibido, agora, para mim, não é mais. Assumi meio jeito de ser, doa
a quem doer. Queria era viver junto de minha namorada; virar mulher
casada; aguardo para isso, mais um pouco. Vamos terminar os estudos e ter
condições de comprar madeira para fazerem a nossa casa. Ai pronto, mais
sossego. Nossa família, assim de casamento”.

Waire’ena, intrigada, dizia-me isso no final de nossa última conversa, na casa de


sua mãe, em meados de fevereiro de 2014.204 Ao ouvir Darü’püuna e Mutchique'ena falar de
seu “casamento no cartório”, do qual sou madrinha, ela pergunta como fariam para colocar
no papel se eram duas mulheres? Ela e Tchori ficaram surpresas ao saberem da possibilidade
legal da união entre casais do mesmo sexo. Uma delas chegou a comentar algo interessante
sobre suas amigas estarem casadas “na lei do índio e dos brancos”. Tchori, rindo,
surpreendeu-se mais uma vez ao saber que a esse tipo de “casamento de mulher com
mulher/homem com homem” nominamos fora dos contextos indígenas ‘uniões homoafetivas’.
Numa troca de olhares entre Waire’ena e Tchori, deixando cada qual escapar um
pequeno sorriso de canto nas faces morenas, aquela exclama em ticuna, depois traduzido para
mim para que eu entendesse bem seus propósitos e esclarecesse os motivos daquele encontro,
quando disse que casar era o que “mais queria”. E queria entender melhor se casar ao mesmo
modo que fizeram o casal Darü’püuna e Mutchique'ena, seria mesmo casamento, mesmo sem
o consentimento dos pais de cada uma delas.
As respostas sinalizaram que não, ao que juntas, as colaboradoras analisaram que
seria um modo de fazer casamento sem que provocasse mais situações de conflitos, quando
“com o papel, junta casa, casa de verdade”, sem que com isso “passassem por cima da lei do
Ticuna, dos jeitos e vontades dos que não gostam. Vai mora junto como amigas, como


204
Neste dia estávamos eu, Waire’ena, Tchori, Darü’püuna e Mutchique’ena. Havíamos passado o dia na roça,
passeando, conversando, banhando no igarapé. Ao cair da tarde, chegamos à casa da Waire’ena, onde fomos
recebidas com mandioca e peixe. Seus pais estavam por ali. Reunimo-nos na cozinha de sua mãe. Sempre que
estávamos retomando assuntos de seus relacionamentos, notava-se claramente certas reticências em seguir
conversando. Sempre que os pais de Waire’ena por diferentes motivos juntavam-se a nós para conversar ou
aproximavam-se de onde estávamos, falava-se baixo em ticuna, quase inaudível. Isso quando não se calava, ou
mudava-se de assunto.
335

mulheres solteiras, disfarça [para] eles”. Tchori riu, olhou para todas nós, e disse:
“maname”.205
Nestas micropolíticas que as envolvem como um “casal de relacionamento sério”
e pretendentes ao “casamento de verdade” nota-se que o casamento é também um tempo-
espaço, uma relação, no interior da qual pessoas alteram-se em tipos de parentes. O
casamento, portanto, como vínculo afetivo-sexual que associa esposos e esposas, ou esposas e
esposas (casal) a posições possíveis de aliança é o operador que estabiliza aqui também as
diferenças e alteridades.
Entre elas, para dar continuidade analítica futuramente, esta estabilização é
vislumbrada na produção de signos positivados aos seus casamentos pretendidos.
Notadamente, os filhos, os papéis aqui tornam-se mecanismos a esses movimentos de
alterações e produção de novas forma de parentesco aos seus universos sociais. A focalização
da sexualidade com base nas ideias de saúde reprodutiva ou pela narrativa mito-ritual, alarga-
se, se produz noutras arenas de socialidade e domínios de ações diferenciadas.
Waire’ena segue mais entusiasmada do que todas nós naquela última conversa
pessoalmente. Ela menciona que juntas, ela e Tchori, querem muito ter um filho. Tchori,
atravessa no diálogo, afirmando que isso ocorrerá no tempo propício, comentando que irão ter
casa, registro no papel para “firmar união”, mas que antes Waire’ena precisaria “parar de
ficar criando o medo na imaginação dela”. Indagadas sobre isso, Waire’ena, com endosso das
demais interlocutoras presentes, explica que o “pior efeito de tentar assumir esse amor
proibido vem desse medo, das ameaças, das piadas, das fofocas, de deixar triste outras
pessoas, porque também ficamos tristes”.
Tchori, então, lhe devolve nas seguintes palavras tal comentário: “fico me
perguntando, depois de aguentar tudo o que passamos, você acha que eu vou desistir? Não,
vou não. Vamos casar, ter nossa família e descobrir isso do casar de papel, de filho sem
homem. ” Ela empolgava-se cada vez mais com a possibilidade de acesso a tecnologias
reprodutivas e formalistas (casamento civil ou união estável) exógenas, ali consumidas aos
seus modos e estratégias de predar o que lhes interessa à “conquista de lugares de
respeito”.206


205
Expressão que se emprega ao final para marcar o encerramento de uma conversa, aqui particularmente, a
questão de que a menoridade era um assunto resolvido.
206
Waire’ena e Tchori, menos seguras sobre esses mecanismos artificiais de tornarem-se “mulheres maduras”,
em nossa última conversa, em fevereiro de 2014, ao conhecerem sobre esses “jeitos de fazer filho sem homem”,
lançaram perguntas como estas: “Como é que funciona esse caso de inseminação de duas mulheres? ” “Como é
ter filho assim, é possível? ” “ Se engravido, depois menstruo normal? ” “Não precisa de remédio? ” “Na
336

O lugar social do papel, dos documentos, da maternidade é referido como


estratégia e mecanismo através dos quais disputam os discursos, nas variantes das regras, para
legitimar suas uniões pretendidas. Seriam aqui também os “disfarces”, lado a lado nesses
artifícios de visibilidade, um tipo de conhecimento (generizado e político) incorporado a
respeito dos meios de tornarem-se “mulheres maduras” porque “parentes casadas”, “mães”,
aliadas”, “esposas”? Argumento que sim. E por isso os usam e manipulam, como talvez
operassem os “feitiços de amor”, “de ciúmes”, “traições”, de “invejas” para mobilizarem-se
socialmente, evitando posições que as classificariam às margens de certos circuitos
relacionais.

4. Dos casamentos pretendidos, “jeitos de ser mulher”

“Tem jeito de aprender a ser mulher, a ser homem, bom pretendente, bom
esposo, boa esposa. Assim vai. Tudo tem seu jeito de aprender nessa vida,
Pati. O que a gente faz é isso aí também. Do nosso jeito, de outro
pensamento. Misturamos o que aprendemos. Isso de ser machuda, também é
aprendizado que entra, que marca a gente, nosso jeito. Os problemas vão por
aí, como a dona já vem aprendendo também, nas políticas dos parentes. Aí
depende de como pensam, a gente fica de lado, aí dita assim machudas,
mulher de útero vazio, solteirona; filha fraca que não traz genro, dessas
coisas, dessas vontades que são diferentes (Tchori) ”.

O que mais me apegou, enquanto antropóloga e etnóloga, a essas experiências,


foram as questões sobre a produção de identidades de gênero (“jeitos de ser mulher”). Aqui
no mesmo rastro do capítulo precedente, as formas plurais de materialização desses “jeitos de
ser” fabricados nos interiores dos domínios relacionais entre pessoas sociais caracterizadas
como homens e mulheres emergem nas conexões com as práticas discursivas e empíricas de
“falar sobre” sexualidade que as circunscrevem, como tipos de parentes solteiros. Tentarei
nesta última seção do capítulo tecer alguns alinhavos, pensando nas propostas que estas
interlocuções produzem às perguntas iniciais: que tipo de parentesco, como e com quem se
produz em relações de conjugalidades “mulher com mulher”?


certidão, a criança leva sobrenome das duas mães? ” “Depois quando casar, como fica o sobrenome das duas
mulheres? ” “Posso ter filho de olhos azuis”? “Depois que nasce vão chamar de mamãe? ”
337

As descrições, neste sentido, voltaram-se para saber da “solteirice forçada” como


um problema de micropolítica do parentesco ticuna e, por isso, sob cuidados vigilantes,
associados, muitas vezes, à sexualidade e a produção de relações de aparentamentos “certos”
ou “errados”. As condições não oficiais de casamento destas últimas interlocutoras atualizam-
se ou se reconfiguram entre elas, em seus modos de conjugalidades e de estar no mundo como
“mulheres que gostam [afetiva-sexualmente] de mulheres”. Tal pano de fundo replica a
provocação guia do capítulo anterior: o que ocorre quando, além da posição prescrita pela
exogamia clânica, o sexo e as práticas sexuais do parceiro importam ao casamento? Algumas
respostas são instigantes.
A corresidência (mais do que a casa parece marcar conjuntamente outros tipos de
relações), que publicita e oficializa, com ou sem cerimônia, a conformação da díade do casal,
entre elas igualmente define suas condições de conjugalidade. Não à toa, aos três “casais de
mulheres” suas negociações e esforços políticos voltam-se, cada qual em sua particularidade,
a tornarem-se um casal “mulher com mulher” reconhecido social e respeitosamente, mesmo
para aquelas que já “vivem juntas, que dividem o mosquiteiro” e casa, própria ou de seus pais.
Para isso manipulam, “disfarçam” criativamente, como em outros casos de relações conjugais
ilícitas. A centralidade do casamento como operador das diferenças e alteridades constitutivas
da pessoa, do casal e do parentesco segue sendo o alicerce relacional do cotidiano dessas
mulheres, como fora para seus “parentes de perto e de longe” que compuseram os capítulos
precedentes.
Desse modo, se o sentido e a centralidade do casamento seriam a constante na
teoria de relação Ticuna, os modos de produzi-los são os temas de modificações. Seus
significados e as relações de conhecimento, poder e de diferenciação caracterizam as
variáveis nesse quadro cosmosociológico que articula matrimônio, sexualidade e aliança. Se
possível fosse resumir, optaria por esta glosa à ideia de “política” contida no verbo
“transformar”, “mudar”, “virar” (ã'caítchi) que empregou Darü’püuna ao associar parentesco
e sexualidade:
“Somos, assim, solteiras no dizer do parentesco mais organizado com as
palavras dos antigos. (...) Solteira sem homem e sem marido. Sem marido
porque queremos que nossas namoradas/companheiras virem esposas. (...)
que nossas opções sexuais sejam respeitadas. Com isso viramos casal de
verdade, esposas e mulheres normais, porque casamos. Isso é nossa parte na
regra de casar”.
338

A “regra do casar”, em suas variações, aparece aqui, como ao longo da tese,


igualmente via dispositivo efetivo empregado na moldagem das condutas, dentro de uma
pauta de expectativas ditada pelo campo de poder que entende uniões de pessoas do mesmo
sexo como um tipo de exercício do “sexo malfeito”. E assim são qualificados por variadas
razões: sejam pela inserção de moralidades cristãs, que julgam como uma forma de “pecado”;
seja porque, no idioma da substância, relações “mulher com mulher” evocam o problema da
mistura de fluidos similares, improdutivas à continuidade do parentesco, seja porque
justapostos, esses modos de conjugalidade prejudicam as imagens de prestigio e poder de seus
familiares na arena política e religiosa.
As interlocutoras sucumbem, muitas vezes, como relatam aos “problemas dos
afetos”, às sanções e castrações que lhes afligem, sem com isso, entretanto, abandonarem seus
“desejos, suas vontades”. Num outro lado da força, elas se munem de outros artifícios de
poder alternativos: “disfarçam”, casam-se “arranjadas”; “separam-se”, “casam no papel”,
planejam filhos de inseminação artificial. Elas conjugam, e aí estão as interseccionalidades
desencadeadoras dos conflitos de referentes e noções de casamento que colocam a diferença e
alteridade em movimento de negociações nestes casos. Os termos em “negociação” deixam,
pois, transparecer os “acordos pragmáticos” possíveis (Almeida, 2014), mas aqui num interior
violento e em transformação.
Nesse caminho, mecanismos e estratégias de visibilidades políticas são trazidos
de fora. Por um lado, “os papéis” e instituições (cartório) paralelamente situam-se como peças
chaves nessas performatividades, ressignificando e alocando-os às lógicas das micropolíticas
ticuna, como fora o “pecado”, o “dinheiro”, o “marido de fora”. Com efeito, ao acioná-los,
essas mulheres ticuna vislumbram paulatinamente abrigar com tais ações sociais espaços às
possibilidades de “negociar” a alteração [“virar”] de suas relações conjugais em “casamentos
de verdade”. Parecem-me cogitar estas condições de possibilidade para ao modo que produz
efeitos ao casal Darü’püuna e Mutchique'ena, ao qual para ser “casamento de verdade falta
fazê-lo no papel, no cartório. Mesmo se nossos pais não deixarem”, posto que já “se fizeram
mulheres maduras, já somos mães, cunhadas, tias. Já temos casa e vida de casal”. É
justamente nessa altura que voltamos aos movimentos de atualização que elas realizam ao
propor novas formulações ao desenvolvimento do parentesco.
Contudo, o critério que mais parece afrontar seus dilemas conjugais entrelaça-se
à centralidade dos filhos enquanto efeitos esperados das relações generizadas que constituem
o “bom casar”. Diferentemente das relações mais usuais, as formas de conjugalidade “mulher
com mulher” promovem novos formatos ao casamento e ao fazer “família”, “grupos de
339

parentes” [consanguíneos – filhos – e afins – aliados]. Para elas, enquanto casal e como
“mulheres Ticuna que gostam e sentem prazer com mulheres”, ter filhos é conformador de
seus processos de fabricação da pessoa, do parentesco.
Não se esquivam a essa relação, porém, propõem produzi-las de modo que seus
pontos de vista não sejam submetidos aos “preconceitos” dos próprios parentes, como me
disse Darü’püuna. Assim, através dessa trama buscou-se enfatizar uma passagem, não apenas
entre tipos de pessoas e parentes, também entre campos de atuação, onde o corpo, naquilo que
tange ao seu sexo e sua sexualidade enquanto conformadores de suas socialidades compósitas
e constitutivas de agências feminino e masculino, cuja transformação sugerida expressou-se
na seguinte fórmula que embasa suas “negociações”: elas são “solteiras”, “mulheres sem
esposos” (nge’ě ngete’e) porque “mulheres casadas com mulheres” (nge'e tügürüe nge'e ma
taã ti ngi'i).
Seus “amores proibidos” nada mais são, nesse cenário, do que imagens
etnográficas da justaposição desarmônica entre as “misturas” de registros que codificam o
mundo social indígena que estamos conhecendo por meio do casar e do casamento. Suas
relações na positividade política e epistemológica descrevem vetores de produção de
diferenças que importa à elaboração de um universo sociocosmológicos sempre em “perpétuo
desequilíbrio”, em suas constantes transformativas, diria Lévi-Strauss (1993). Vimos, assim,
que elas lançam luz a partir dessas posições assumidas a níveis alternativos dentro dos
parâmetros e dispositivos de aliança, especialmente vistos pelo signo do casal e da fertilidade
e reprodução [filhos e fazer parentes] engendrados nas versões e significados que atribuem ao
casamento e aos seus “jeitos de ser”.
Nestas conexões, as protagonistas expõem e corroboram com a centralidade do
casamento como momento de aprendizado e ensino atravessados nos seus próprios processos
de formação de si. Por isso, suas conjugalidades e efeitos respectivos ajudam a observar os
campos de disputas no qual entrelaçam concepções de gênero (relações entre homens e
mulheres e deles entre eles) e do exercício da sexualidade aqui autodefinidores. Ao fazer, por
certo, elas os dimensionam aos universos de conjugalidades e às diferentes expectativas de
conduzi-las, dando ritmos e sentidos às relações de poder que permeiam suas socialidades no
tempo-espaço do parentesco.
Um dos primeiros insights com o qual me deparei em campo, ao saber do
interesse das interlocutoras por tecnologias reprodutivas, notadamente a inseminação
artificial, foi pensar nas questões da transmissão do clã. A respeito, já vimos alguns exemplos
de reconfiguração desse operador de diferença e similitude, quando em casos de casamentos
340

com “homens de fora” desloca-se o papel de transmissor à sogra, podendo ser recuperado o
ciclo convencional na geração posterior, quando o neto volta a transmiti-lo aos filhos. Isso
burla, em certos casos, o recebimento do clã de boi (woca), que situacionalmente, opera como
marcador de diferença social interna ao grupo.
Circunscrito nessas relações de socialidades “mulher com mulher”, isso poderia
ocorrer na mesma lógica, se o “doador do sangue masculino” não for ticuna, como ensinou
Botchicüna “não tem problema”. Pelo contrário, ela mesma querendo casar com alguém do
clã woca, reitera a relevância da abertura ao outro. Se colocado nos termos de Gow
(1991,1997, 2003), o parentesco dessas mulheres e seus parentes, como viemos tendo pistas
em todos os capítulos, é a “memória [das relações] encorporadas”.
Especificamente ela quer chamar a atenção, e eu corroboro, que diferente do
primeiro casal, que se tornou mesmo enquanto “casal errado”, “mãe solteiras” ou
“separadas”, estas renegam relações sexuais com parceiros homens. É aqui que “filhos de
clínica” aparecem como solução, contra-argumento “mulher com mulher” às violências
simbólicas pelas quais que dizem serem afetadas, nunca vítimas.
***
O desdobramento desse tema das novas possibilidades de “fazer família” é uma
questão futura, certamente. Aparece aqui de vários meios, desde os capítulos iniciais,
provocando vê-lo como uma “nova palavra” repleta de “história”. Para tanto, as abordarei
doravante em artigos com base em algumas perguntas a mim colocadas por Waire’ena e
Tchori.
Elas costuram em suas “vontades de formar um casal de mulheres e mães”, pelo
uso dessas ferramentas de elaboração de novos parentes, como instrumento político de
legitimação dos “casamentos pretendidos”, igualmente significativo como “casa no papel do
cartório”. Por fim, o que não muda é o casamento como espaço-temporal privilegiado para
fazer-se “parente”, mas a natureza dele, justamente por coexistirem novos tipos de
conhecimentos encorporados para realizá-lo e conduzi-lo, como motor da socialidade, entre
tantos outros temas que também lhes interessam, ao largo das “intimidades dos índios”.
A passagem destes “romances vigiados” e pretendidos a os “casamentos de
verdade”, para encerrar o capítulo, aponta para algumas potentes colaborações à etnologia
interessada no tema de gênero e da sexualidade, quando estas situações de conjugalidades
clandestinas propõem alargar os referenciais analíticos, especialmente realizadas por
antropólogas indígenas em formação. Conhecemos nessas narrativas outros prismas
envolvendo a vida reprodutiva e suas relações com o parentesco.
341

Definitivamente, as cenas apresentadas, deixam emergir novas questões e


conceitos, partindo da ação e das análises e da criatividade feminina, entremeadas com as que
já lemos nos capítulos III, com Lurdes, no IV com Isara e Juraci, no V com Anita e
Constância. Há enlaces que os tornam um conjunto para daqui em frente. Retomando alguns
pontos, contudo, os casos de conjugalidades homoafetivas levadas a cabo pelas interlocutoras
deste último capítulo permitem-nos uma aproximação inicial com os processos de
transformações de expressões locais de incesto clânico e consanguíneo a partir de seu próprio
relacionamento “proibido”, que o é, em diferentes motivos, mas cerceado igual aos demais
citados, pelo entendimento de uma metáfora sexual: “o sexo malfeito”. As experiências de
homoafetividade acrescentam definições outras. Ainda que não modifiquem a concepção de
exogamia clãnica e de metade, deslocam, contudo, seus agentes.
342

Epílogo

Vínculo-aliança, muitos jeitos de ser

“O que a pessoa é, com seu nome, com seu clã, seus sangues, pensamentos,
desejos, vontades [...] isso tudinho é o que dá o seu jeito de ser; seu jeito de
ser homem, seu jeito de mulher; (...) Disso é falar de parente, das
vivências, do casamento, da vida nos beiradões. (...) Dos pensamentos, dos
saberes de muitas misturas, de muitas gentes; dai vem as versões do jeito
de casar certo, do jeito de casar errado”.

***

“(...) dai é que nesse assunto do nosso trabalho com a senhora tem das
políticas de vivência para que o sexo malfeito não atrapalhe, não deixe
jeito poluído nas vivências. [...] por isso lembrar das palavras dos antigos é
parte de nosso conhecimento de ser índio ticuna, de ir se misturando nos
pensamentos de si mesmo, de ir fazendo vida nesse mundo. Dai dessas
perguntas que [eu] ensinava para dona moça saber do casamento, do jeito
de ser ticuna” (Pedro, xamã e pastor, sequência do diálogo exposto na
introdução da tese).

A pretensão maior desta tese, talvez tenha sido no seu percurso textual e, portanto,
no seu maior desafio, descrever um complexo conjunto de relações sociais tramadas desde a
perspectiva etnográfica e analítica das micropolíticas de parentesco que envolvem os temas
centrais do trabalho: casamento, sexualidade e aliança. Para descrever os conjuntos de
socialidades que circunscrevem estes “movimentos de feitura” plásticos e instáveis da pessoa,
do parentesco e do cosmos, focalizamos as narrativas conjugais que diferentemente situadas,
entrelaçam-se pelas imagens contidas da transformação da ideia de “sexo malfeito”. Nestas
experiências indígenas buscava-se elementos que dispusessem em formas relacionais,
dispositivos e mecanismos de socialidades que se tornam, situacionalmente, “versões” ou
análises de casamentos a partir das classificações “certos ou errados”.
Entendo que este complexo relacional que conforma o tempo-espaço do
casamento apresentado até aqui poderia ser um sintetizado na ideia de vínculo-aliança. Esta
ideia, penso, constitui-se nas relações matrimoniais, tramando duas escalas de socialidades.
Uma delas, os vínculos conjugais, são produzidos na díade inicial do casal, assinalados numa
dessemelhança de configurações possíveis, a partir dos variados “jeitos de ser”: “esposo e
343

esposa”; “casal de mulheres”; “casal de homens”; “casal de mulher Ticuna brasileira com
homem de fora”; “marido peruano do outro lado do rio”, ou “ex-capataz seringueiro”;
“casal de homem e mulher pecador” ou “casal womãtchi”, retomandos algumas
configurações conhecidas no decurso dos capítulos.
Estas multiplicidades de “jeitos ser”/estar casal atuam paralelamente à outra
escala sociopolítica, estendida, porém, ao exterior da conjugalidade, portanto voltadas
igualmente ao “compromisso” e as “obrigações”, para as alianças. Neste ponto o vínculo
conjugal ao afetar e implicar outras formas de socialidades com suas redes de parentela
bilateral e igualmente com as figuras de “autoridade” geram os espaços de “negociações”. Se
aos interlocutores o casamento (“ni’i”) descreve a situação inicial de conjugalidade, conforme
perdure a relação atrelada à ideia de “compromisso” (“nigü2), argumentou-se que tal vínculo-
aliança, intra e interétnico, é o operador que estabiliza, num momento específico do ciclo de
vida, diferenças e maneja criativamente alteridades, com vistas a dar continuidade ao
parentesco, ao socius.
As narrativas que compõem a tese estão circunscritas no universo político das
“misturas de palavras e histórias”. Tudo isso lido como um processo de diferenciação que, de
tempos em tempos, provoca e implica a manutenção das condições dessas formas de
socialidades, conjugais e supra relacionais. Assim, ao discorrerem reflexivamente acerca do
casamento no interior recortado das micropolíticas de parentesco e suas tensões, os
colaboradores nos mostravam meios pelos quais eles produzem e gerenciam seus modos de
habitar o mundo, gerando, desde esta perspectiva relacional, malhas de significados sociais
aos eventos em foco, que difusos, vão incorporando e atualizando seus próprios regimes de
conhecimentos sobre si e seus outros.
Em poucas palavras, discursos, práticas e instituições de “negociações” indígenas
associadas aos vínculos matrimoniais dizem-nos a respeito de suas motivações para construir
a multiplicidade de condições de fazer-se pessoa, onde o problema do casar e do
“compromisso” apresenta-se como idioma privilegiado de produção de parentesco. Com
efeito, tornam-se visíveis camadas dos jogos de forças e de poder presentes nas decisões e
qualificações das relações conjugais, cujas condições de existir socialmente, como certo ou
errado, desenvolvem-se ditadas por referentes políticos-morais particulares e em permanente
transformações. Assim, as noções ticuna de casar “certo ou errado”, debatidos na
transversalidade e implicações sobre sexo e sexualidade mostram-se paralelamente
constituintes dos dispositivos de parentesco para conformar o valor político da aliança que
mobilizam os eventos etnografados.
344

Nesse rumo e para encerrar, tínha-se ao iniciar a composição do texto o objetivo


de ver o que rendia conduzir a escrita e as análises, minhas e as produzidas pelos
colaboradores ticuna, tomando como eixo os modos como o diálogo e a incorporação com
outros referentes, conceitos e instituições não indígenas envolvidos nas tramas conjugais
projetava-se nas relações de troca enquanto linhas de enunciados e de capital de poder.
Articulando esses fluxos de socialidades com os exteriores e o tratamento à alteridade,
aproximamos-nos provocativamente dos aportes sobre “consumo produtivo” e a
“familiarização familiarizante” de Fausto (2001) para, com isso, atualizar este instrumento
heurístico, no plano do cotidiano, não da caça enm do xamanismo, mas do casamento, da
conjugalidades e da sexualidade, num sistema maior de alianças, como chave ara conhecer
alguns princípios filosóficos indígenas frente aos efeitos de suas “aberturas aos outros”.
Ao tecer tal paralelo, queria especificamente ver em operação como efeitos que
produziam as “novas palavras” nos regimes morais e éticos indígenas, para, com isso
observar os modos como em campo se conduzem as próprias formas de governabilidades
sobre as diferenças e suas implicações nos regimes de convivialidade e sistema de aliança,
troca e reciprocidade que envolveme e produzem os vínculos-alianças e seus processos de
“negociações”. O modo indígena de relacionar-se com domínios do exterior e familiarizar as
potências inimigas, perigosas ou bem quistas (como direitos, conceitos, documentos,
cônjuges) ao serem trazidas para o interior enquanto signos produtivos à manutenção do
socius são muitas. Predação e convivência justapostas apareceram nos campos matrimoniais e
da aliança enquanto conjuntos de ações sociais comunicados pelos laços conjugais e suas
negociações circunscritas nos dispositivos indígenas de sexualidade.

A sexualidade, os afetos e a parentesco

Para compreender as micropolíticas de parentesco em evidência neste enredo,


conhecendo que tipo de relações projetam estas aberturas à alteridade, elegeu-se o processo de
transformação do “sexo malfeito” como foco etnográfico. Voltemos a pergunta colocada na
introdução sobre como a sexualidade, em suas diferentes formas de experiências. Indagava-se
à essa altura se este componente relacional se mostra relevante à leitura do parentesco, da
aliança e dos “jeitos de ser homem” ou “jeitos de ser mulher” vinculados às descrições de
suas orientações sexuais e manejo de “vontades”, muitas vezes, dissonantes e não generalista,
que conceitualizavam o matrimônio e seus meandros políticos. Ao final, parece-me rentável
345

inclui-la sim junta com as demais perguntas existenciais sobre “os jeitos da pessoa [cônjuge
potencial] estar na vida”, com as quais iniciou-se a tese.
Conectada à muitos aspectos do cotidiano e da história ticuna, a sexualidade,
como experiência e dispositivo comospolítico, funcionou como uma estratégia etnográfica de
narrativa, especialmente para observar as análises indígenas acerca do tema clássico, o
casamento e o parentesco, mediado pelo conceito de “sexo malfeito”, de pessoa e de corpo,
como motivos para mostrar modos e contextos nos quais cada interlocutor produz seus
regimes de conhecimento e significação das relações, e com isso, conhecermos um complexo
sistema de aliança. A ideia deste trabalho era alargar os horizontes etnográficos que versam
sobre estes universos sociais indígenas, pensando o casamento e a conjugalidade como
produtores e produtos de “jeitos de ser” variados, operando, senão, como meios de conhecer a
natureza das diferenciações entre “jeitos de ser homens” e “jeitos de ser mulheres”.
Mostrou-se apoiado nisso como narrativas cosmopolíticas dos usos da sexualidade
nos tempos pretéritos instaura a diferença sexual e os códigos para o bom uso e prazeres dos
órgãos sexuais, dimensionados à uma perspectiva da imortalidade. Estas experiências afetivo-
sexuais, que quando contraproducentes, fazem emergir cataclismos e os perigos (“males do
mundo, males do corpo”), dando origem à humanidade e suas condições de instabilidades. O
enredo dos capítulos inciais buscou evidenciar esses parâmetros relacionais, resultando na
“geração dos Ticuna de hoje” e dos seus conjuntos de alteridades, como uma arquealogia dos
saberes e como meio de apresentar a genealogias do poder que estão constituindo “os muitos
jeitos de ser” e o sistema de alianças matrimoniais, nas tensas relações de negociações, e suas
formas pretéritas e atuais de violências.
A inadequada conduta sexual traduz, por diferentes relações – incesto ou pecado,
endogamia ou exogamia étnica, (Cf. Capt. III, IV, V, por exemplo) – e condições de
possibilidades de entende-la e maneja-la dos colaboradores, meios de alcançarem ou não os
modos alegres e eternamente joviais de seus ancestrais. A descontinuidade entre os patemares
cosmogônicos causada por diferentes eventos de “sexo malfeito” e desobediência primordial
não implica, contudo, no tempo-espaço de vivência dos meus interlocutores, como narra os
dois primeiros capítulos, um equívoco irreversível. Do contrário, a mortalidade, os “sangues”
e os “pensamentos poluídos” servem de “lembranças” às transformações da pessoa, do
parente e do parentesco. É, pois, pela positivação dos infortúnios e violações cometidos no
pretérito que se “aprendeu a casar bem”. Instaura-se nesse jogo de diferenciações de saberes
e controles dos desejos entre os “mortais” os princípios das “regras de convivência”, que
passarão a significar as modalidades de casamentos, certos ou errados. Desde ai, o lugar do
346

sexo e da sexualidade, além e aquém, dos intercursos sexuais ou da ideia de reprodução como
unidade focal para produzir-se parentesco, ocupa aos interlocutores um campo descritivo e
analítico bastante complexo acerca de seus “jeitos” de gestar e administrar as diferenças.
De acrodo com oque ouvi de uma interlocutora, “cumprir bem as regras dos
antigos”, dizia-me uma interlocutora, “não é viver num passado que os brancos acham que é
coisa de índio não civilizado”. Com isso, ela dimensiona suas teorias de relações vinculadas a
problemática da sexualidade, da aliança e do parentesco, aos benefícios cosmopolíticos de
uma redefinição do estado de continuidade entre os “ticuna” e seus outros atuais e os
“ancestrais”. Ela prossegue, dimensionando as narrativas míticas à história das relações com
outros referentes que produzem o universo relacional entre os primeiros: “é tentar fazer no
tempo de hoje que esses ensinamentos sejam bons para pessoa virar bom parente, boa esposa
[o]”. A partir desse crivo cria-se a variação de relações e seus termos classificatórios, que ao
serem acionados, geram espaços à uma variedade de pontos de vistas e justamente ai, reside
os contextos de violências, aqui não analisados por questões já expostas no prólogo. Para
fazê-lo é preciso a partir de agora um outro contexto de campo, no qual eu possa renegociar
minhas interlocuções e, em conjunto com os colaboradores que o queiram encarar como
objeto, discutir e analisá-lo.
No decorrer do texto, o enredo das “misturas e palavras” confere ao objeto de
tese outros jogos de forças, inserindo no quadro das “regras” e suas “outras regras”, novas
orientações e análises aos fluxos ideais das trocas maritais, desenhando-se, com efeito, as
dimensões de afinidade e consanguinidade que as fazem compor redes de relacionalidades
fundamentais. As questões para as quais chamou-se a atenção direcionavam-se à saber que
ademais dessas dimensões das “palavras dos antigos”, princípios filosóficos, que buscam
evitar não apenas formas relacionais que culmine em “womãtchi” (incesto clânico e
consanguíneo), senão em outras maneiras concebidas como precárias e poluidoras de se estar
aparentado com alguém, regem-se concomitantes. Isso decorre das “chegadas de novas
palavras” (pecado, virgindade, desonra), que operam diferentemente em escalas de afetos
pessoais e políticos atravessados por variadas ordens (econômicas, geracionais, morais,
sexuais ou religiosas). Se interligam engendradas nas “negociações” dos vínculos aqui
focalizados, conformando, pois, a micropolítica dessas relações de parentesco e seus aparatos
d egestão do mundo.
Ao abordar estas duas vertentes, “as regras e os afetos” dimensionadas em
contrastes de “casamentos certos” ou “casamentos errados”, buscou-se pensar as relações
entre perspectivas sem, contudo, hierarquiza-las. Tentou-se criar, como fazem os
347

colaboradores na vida cotidiana, um jogo entre as facetas de dentro e de fora, do parentesco e


seu avesso. As análises dos colaboradores me levam a pensa-las menos representando
antinomias, e mais como problema que torna possível os métodos de arranjos entre as
diferentes formas de produzir conjugalidades e alianças. E neste intervalo, abrem-se as
problemáticas sobre violência, gênero e sexualidade, deixar em aberto.

Ser transformando-se

Se entendemos que pessoas e parentes são resultado coextensivo senão das


relações, com exceção dos dois primeiros capítulos, todos os demais são compostos com a
mesma estrutura interna: apresentou-se os interlocutores, as relações de conjugalidades em
jogo, suas negociações, critérios e agentes envolvidos. A partir dessas configurações,
descreveu-se os efeitos produzidos no âmbito do que resultam em termos de relações e
aparentamento diversos, materializados em tipos de pessoas e parentes, cujos estatutos
orbitam sempre a depender de como se qualifica o vínculo no qual se engajam, ou dele
esquivam-se.
“Para os parentes casar é importante, transforma a pessoa” é uma das epígrafes
da tese, dita por Tchori, uma mulher ticuna, em dezembro 2014. Ali ela está situada porque
sintetiza as análises do verbo transformar (“ã'caítchi”), a partir do qual, entende-se a força de
algumas expectativas geradas no entorno das formas de casamentos e conjugalidades.
Entreviu-se, neste âmbito, os cerceamentos infligidos sobre corpos e relações, entendendo a
articulação entre parentesco, memória, afeto (Gow, 1991, 1997) e sexualidade (Foucault,
1988, 2006, 1990) enquanto motivadores das “políticas de convivências”, como dizem os
interlocutores. Nesse movimento, não apenas os pretendentes modificam seus pontos de vista,
seus parentes, afins e consanguíneos, também se alteram em posições sociais, e, similarmente
mobilizam status, estatutos de pessoa e parente, e, com efeito, relações de poder. Aí reside a
centralidade das “negociações”, “dos tempos de provas” dos regimes de etiquetas e atitudes,
que as tornam veículos de controle (“para verificar”) das relações em construção.
Se a vida social consiste num constante movimento de um estado à outro da
pessoa e do parente, de um tipo de socialidade à outro, de uma unidade (singular ou coletiva)
(Strathern, 2006:43), o fenômeno do casamento e das formas de produção legítimas ou não de
conjugalidades e alianças ticuna instanciados através dele, parece-me, fazê-lo enquanto
espaço-temporal no seio do qual relações de parentesco fornecem lugar à essa alternância “de
jeitos de ser”. E as “negociações”, neste sentido, parecem-me ainda operarem como eventos
348

comunicadores das lógicas ticuna de gestão e gerência da vida, dos corpos e relações. Ao
percebê-las circunscritas nas copiosas economias sociopolíticas gerativas dos “muitos jeitos
de ser ticuna” somos conduzidos aos níveis diferentes de significação constitutivas dos
discursos, práticas, interesses e estratégias conformadoras das alianças matrimoniais, e para
além delas. Nesse caminho, as versões entremeadas sobre as “regras” e as “vontades”
atualizam-se em cada capítulo sob diversificadas “negociações”, ilustrando variados campos
de atuação social, seus gestores morais do parentesco, também refletidas nas relações de
gênero, à medida que demarcam, como nos diz Strathern (2008:152), “diferentes tipos de
atuação [agency]”. E, com isso, emerge as muitas possibilidades diferenciadas do fazer-se
“gente e parente”, conforme os interlocutores movem-se nessas redes de interações.

Misturas para seguir pensando

“A Comissão Especial sobre Estatuto da Família (PL 6.583/13)


aprovou hoje (24) outubro 2015, por 17 votos a 5, o parecer do relator,
deputado Diego Garcia (PHS-PR). O texto segue agora para o plenário
da Câmara, com a polêmica sobre o conceito de família, que restringe
as prerrogativas às famílias tradicionais, excluindo do texto os casais
homoafetivos”. (Excerto da reportagem veiculada no portal de notícias
Uol).

Tratando-se de uma tese sobre parentesco, sexualidade e alianças em universos


ameríndios, o leitor poderia se questionar o que tal retrocesso mencionado na reportagem
afetaria os cotidianos de meus colaboradores nesta pesquisa. Sabemos que desde 1988, os
povos indígenas no Brasil tornaram-se cidadãos de direito, e, mais do que isso, tornaram-se
emancipados de tutelas específicas, alargando e garantido a eles participação nestes debates
no entorno das transformações constitucionais, que direta ou indiretamente os concerne e
aflige. Nos últimos dois capítulos deste trabalho, em especial, temas sobre família, direitos à
diversidade sexual e de gênero, também direitos reprodutivos, destacam-se como foco de
debate nos meandros das alianças conjugais e suas qualificações políticas e morais. Em certa
medida, “o sexo malfeito”, enquanto simbolização metafórica de um efeito improdutivo
gerado pelo casamento, revela atualizações e transformações dos termos de significação (os
contextos das misturas de palavras e histórias) que injetam e resituam maneiras de lidar com
temas de gênero e sexualidade.
349

Assim, um caminho ainda a ser percorrido analiticamente esta direcionado aos


dados dos capítulos que compõem a segunda e a terceira parte da tese (III, IV, V, VI e VII),
busca estimular a realização de novas reflexões sobre as articulações entre gênero,
sexualidade e parentesco. Será rentável propor uma discussão sobre a vigência e fertilidade
em termos analíticos e políticos, de categorias frequentemente imaginadas como próprias de
camadas médias urbanas, brancas ou "Ocidentais" a esses contextos etnografados?
Para então seguir pensando os efeitos dessas descrições e dos modos pelos quais
agencias e “jeitos de ser mulheres/homens” ticuna atuam propomos seguir alargando
possibilidades de análises. Um caminho seria uma melhor aproximação com os debates entre
os campos de produção de conhecimento etnológico e de estudos de gênero, naquilo que
particularmente os têm, pelo menos desde os finais dos anos 1970, proposto aproximações
teórico-metodológicas articuladas: o parentesco (Ortner & Whitehead, 1980; Yanagisako &
Collier, 1987; Strathern, 1992; 2006) 207. Aqui o que fizemos foi, pela lente da sexualidade,
fazer um exercício de aproximar estes universos analíticos, incipientemente. Para isso,
usamos M. Foucault e L. Rival, que pensamos útil para ajudar a costurar esses diálogos,
notadamente no que se refere às relações de poder que engendram estas negociações e acessos
à repertórios de saberes que culminam no dispositivo da sexualidade, colocado em
comparação equivalente ao dispositivo do “sexo malfeito”. Desde aí, as performances de
gênero, associadas em meu ponto analítico com algum foco em J. Butler, especificamente
quando a autora debate os efeitos das visibilidades políticas às alteridades.
Família, papeis, orientação sexual, homoparentalidade são tomados como novos
referentes juntos dos quais se conjugam aqueles de gerações passadas, com valores ou forma
de gera-los alterados. Mais do que ler estes referentes como diferenças gerativas de
identidades e contextos de configurações dentro de um sistema de transformação, indagamos
sobre que tipos de formas tomam essas “novas palavras” e seus enunciadores, e seus efeitos
cotidianos quando inseridos no cotidiano indígena.
Nesse ponto, voltamos à epígrafe desta seção. Se as problemáticas atuais sobre o
Estatuto da Família, por exemplo, que rechaça e passa por cima de direitos (de indígenas e
não indígenas) já garantidos anterioremente, impondo um “modelo tradicional” hetero e
carregado de premissas moralistas, eu entendo e argumento que sim, estas questões de
sexualidade como chave analítica às novas formulações de casais e casamentos são também
relevantes aos modos contemporâneos de ser indígena. Abrem-se caminhos de debate à

207
Cf. Leituras a respeito dessas abordagens também em Francheto et al. (1981), Gonçalves (2000 a b), Lasmar
(1999, 2005); Mahecha (2013).
350

etnologia para pensar estas questões, sem cair na armadilha de buscar a origem dessas
presenças de casamentos ou intenções de homoparentalidade ou casamentos homoafetivos
entre os colaboradores. Diferentemente, parece-me ser potente perguntar-se, daqui em diante,
sobre se o modelo tradicional de casamento e homossexualidade são incompatíveis, e se sim
ou se não, como existem nas vidas dessas pessoas, tanto quanto nas vidas dos cidadãos
habitantes das “sociedades complexas”, justamente descontruindo esses pontos de vistas
(Mafeje, 1970).
Um dos campos que tem possibilitado a aproximação entre etnologia, feminismos
e estudos de gênero e sexualidade dá-se pela efervescência das organizações políticas que
garantem, via a proliferação de políticas públicas voltadas à garantia de direitos e
protagonismo político, o engajamento de mulheres indígenas via, por exemplo, os contextos
de associações, da escola/educação, da saúde, dos benefícios sociais, à conceitos e teorias de
relações de gênero em outras formulações, sem com isso, cair-se no perigo do discurso da
perda/falta de “identidade” 208. Já tendo alguns casos empíricos para seguir refletindo, pela
frente, cabe-me analisar ainda as transformações que ocorrem na experiência social das
mulheres ticuna quando, do ponto de vista delas, seus agenciamentos foram, ao logo dessas
“misturas de palavras e histórias” eclipsadas, em alguns setores como as políticas
assistencialistas promovidas por diferentes agentes e gestores do estado, cujo privilégio de
interlocução fora os domínios de socialidades entre homens. Se não ser da praia colocou-me
desafios de inserçãoo inicialmente, estar vinculada com outros circuitos de produçãoo de
ocnheciemento, conduziu-me à enfrentar outros temas de pesquisa, e ouvir os reclames de
haver poucas etnografias versndo sobre os pontos de vistas políticos das mulheres nesse
longínquo processo de diálogo entre antropólogos e os “pesquisadores ticuna”.
Um “problema” de relações de gênero nosso, mais do que parece ser aos
interlocutores, ainda que o adquiriram nesse enredo das “misturas” e paulatinemente o
alteram aos seus propósitos e também aos campos de atução de mulheres, “cada vez em maior
número de professoras, Agenets de Saúde, enfermeiras, chefes [de aldeia e nas
coordenadorias locais do órgão indigenista estatal]; bilíngues, estudadas”, como menciona
Mematüna, uma mulher ticuna de trinta anos, liderança política, abre esses espaços de
comunicação à outros patamares dialógicos. Diluído nos capítulos, a etnografia sugere
repensar certos prognósticos a respeito, justamente, dos lugares sociais e conflitivos que os
“gestores morais do parentesco”, majoritariamente apresentados por figuras masculinas,


208
Cf. Coletânea Museu do índio (2012) ou Ivo Brito. (Org.). (2011).
351

ocupam nos enredos de conjugalidades de homens e mulheres. As literaturas etnológicas das


terras baixas têm notado a alta produtividade da distinção de gênero nas concepções indígenas
sobre os princípios que organizam a aldeia, a comunidade, o parentesco, a vida social e o
cosmos. E os exemplos de experiências sociais descritas nesta tese não passam ao largo desta
premissa.
Fundamentalmente, então, a questão coloca-se, quando a partir da experiência de
campo junto aos colaboradores, as abordagens sobre relações de gênero e sexualidade
mostraram-se abertas etnograficamente às outras metodologias e referencias analíticos. Um
exemplo, foram os diálogos com Foucault e, aqui, via exegeses e experiências a respeito da
sexualidade e dos prazeres dos corpos, pensado enquanto algo que no sentido “genealógico”,
ainda que em caráter experimental, revela os referentes proeminentes à compreensão das
lógicas situadas de diferenciações entre homens e mulheres, ou domínios de ações femininos
e masculino, portanto, das relações de poder.
Parte expressiva dos estudos antropológicos sobre sexualidade no Brasil está
orientada pela hipótese foucaultiana da "sexualidade" como dispositivo de gestão do Ocidente
burguês moderno (Piscitelli & Olivar (2013), também atualizado na reelaboração de Judith
Butler para refletir temas do corpo e gênero, neste texto também trazido à baila. Eles apontam
perspectivas que situam metodológicamente a problemática do gênero e sexualidade como
construção histórica e geograficamente situada que, no país, teria marcado as camadas médias
urbanas. O que restaria, assim, aos etnólogos quando deparados com tais temas em espaços
das ditas “sociedades tradicionais”? A opção por mim tomada, foi a de aproveitar a chance
para borrar os distanciamentos epistêmicos, talvez herança de antropologias demasiadamente
culturalista, apoiadas nas dicotomias “nós e eles”. Evidentemente a cautela vale-se pela
descrição etnográfica que, em alguns meandros apresenta conexões de práticas e percepções
sobre gênero e sexualidade, coincidindo em algumas tramas, com as chaves teóricas que até
certo ponto não as produziram. Mas a questão, mais uma vez, não se dá apenas em pensar
comparações apenas internas ao campo da etnologia americanista, senão como os próprios
indígenas produzem equivalentes problemáticas políticas em termo de reflexões e análises dos
efeitos das “misturas de palavras e histórias” em seus sistemas de aliança.
352

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370

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Reportagem “Índios gays são alvo de preconceito no AM”.


http://www1.folha.uol.com.br/poder/2008/07/426640-indios-gays-sao-alvo-de-preconceito-no-
am.shtml

Seguro Defeso
http://www.mds.gov.br/falemds/perguntas-frequentes/bolsa-familia/bolsa-familia/gestor/seguro-defeso

Museu Magüta
http://museumaguta.com.br/
371

Apêndices
372

Capítulo I

3-45+*!'6!78!9:;<=!)&!>?&@!A$',*(!>'%$-0,$!!
BC;D!

!
Verbo Pensar!
!

Eu penso – tchama rü nagü tcharü !n"!

Tu pensas – cuma rü nagü !n"!

Ele pensa – numa rü nagü tarü !n"!

Nós pensamos (inclusivo) – yiemagü rü nagü !n"egü!

Elas pensam (inclusivo) – tumagü rü nagü tarü !n"egü!


!!

A El ser na está instaurado por princípios que lo constituyen como existência sin
importar su naturaliza. [...]La gráfica 6, describe claramente que el micronaane como
el macronaane poseen los principios corporales, vitales y energéticos. [...]La
naturaleza de los du!gü “humanos” entre ellos los yunatügu", está constituida por los
principios descritos con anterioridad. El tikuna concibe que el cuerpo humano sea lo
corporal y lo anímico”.
373

Capítulo II

Item I e II
A genealogia está disposta parcialmente, a partir de ego masculino, pois nestas
configurações estão tecendo diálogos com os autores no capítulo II. As terminologias encontradas
(item II) em campo e usadas neste capítulo. Nos demais são aqueles cujos empregos mantiveram certa
regularidade semântica e prática entre os interlocutores. Algumas se verá, apresentam-se plurais. É
menciono ainda que incompleta os dados a partir de ego feminino.

Terminologia

Ego Masculino
Ego Feminino
Termos Posições

Oi FF, MF Termos Posições


no’é MF, MM
Oi FF, MF
-natü/pa’pa F
no’é MF, MM
ma’ma M pa’pa/natü F
ti’tia MZ ma’ma M
-nepü/ti’tio/o’e FB ma’ma/ti’tia MZ
o’e FZ o’e/ti’tio FB
o’e MB -cuta/cutamã/ti’tia FZ
-ene B, FBS, MZS
-cuta/o’emã MBW
-eya Z, MZD, FBD
-eya Z, FBD, MZD
- ta’a MBS, FZS
- ta’a FZS,FZD,MBS,MBD -ne S
-ené B, MFZ, FBS, MZS -akü/acü D
-akü/acü D -mâ W
-ne S -ate H
- mâ W -tü HF
-cuena’ne WB -na’e H
-cuea’cü WZ
-tü WF
-nã’e WM
WF
374

Quadro – Categorias etárias ticuna encontrada em campo

Categorias Glosa Categorias Glosa


Masculinas Femininas
õõ Recém-nascido õõ Recém- nascido
ã’ã ã’ã
õ’chana Bebê õ’chana Bebê
“não maduro” “não maduro”
“semente pequena” “semente pequena”
bué Designação bué Designação
bucü/bukü209 genérica à crianças bucü/bukü genérica à crianças

pabukê Quando passam a pabukê Quando passam a


engatinhar engatinhar

iabukê
quando passam a iabukê quando passam a
caminhar sozinhas caminhar sozinhas
(marü tarü ngaǖu) (marü tarü ngaǖu)

nge’tücü Jovens; solteiros nge’tücü Jovens; solteiros

yatücü ngüemacü “homem solteiro” ngue'ě nguete'ě “mulher


pode designar um solteira”
homem cujo pode designar
casamento acabou- mulher cujo
se casamento acabou-
se
ngemã “sem esposa”
na worena ya Púbere, homem worecü Púbere, mulher
nguetü'ücü. casável casável
“homem quando “moça quando vira
engrossa a voz” mulher”

Homem casado; Mulher casada;


Homem com mulher casada
esposa
yatu amacü rü Homem casado ngue'e ante'e rü Mulher casada com
ã'ãcücü com filhos ã'ãcü'ě filhos
yatü ya nguemacü homem não casado ngue'e nguete'e rü mulher não casada
ngueacücü com filhos ngue'acüe com filhos
papa muãcü'ŭtchicü Pai de muitos mama Mãe de muitos
filhos müãcü'ütchie filhos
oi Avó/ancião no’é Avó/ancião
yumacü Viúvo yute'e Viúva


209
Expressões homólogas apreendidas em diferentes circuitos de interlocução, variando, especialmente, a grafia.
375

* Peruanos, desconfiança e motosserras210

“Assim se faz da desconfiança! ”. Ouvi isso hoje, na casa de Juan. Passei o dia com seus
filhos menores, Aline e Ari. Saímos da escola juntos e os acompanhei à casa, acabei ficando para o
almoço. Depois do descanso, depois o igarapé. Retomo conversas com Constância, com a mãe dela. Já
no final da tarde, quando Constância nos preparava um “suco de banana doce” chega Pablo, seu
esposo. Ele acabara de retornar de Letícia. Estava exausto, e ali parou para deixar encomendas ao
“primo” e tomar fôlego para seguir até sua casa, longe dali, atravessando a aldeia.
Estávamos eu Constância e Juan conversando sobre a lastimável perda de sua motosserra,
“roubada por um peruano mentiroso” dias antes. O enredo era esse: Juan havia emprestado sua
motosserra “quase nova”, comprada à vista meses antes, com o montante por ele guardado com a
venda de sua mão-de-obra em algumas casas num povoado próximo dali. Juan havia “alugado” tal
ferramenta à um suposto conhecido dele também peruano, que estava pelos beiradões buscando
trabalho. Este conterrâneo de Juan lhe havia dito que “estava de acordo com um senhor de outra
aldeia”, não longe dali, para quem iria trabalhar “tirando madeira do mato” e cerrando-as para eles
fazerem novas casas na tal comunidade. Juan averiguou as informações e sendo verdade o acerto,
emprestou-lhe a motosserra em troca de receber uma quantia semanal pelo uso do aparato. O trato era
de que tal pagamento à Juan perduraria enquanto durasse o serviço do tal peruano. O acordo durou
“bem” duas semanas.
Na terceira, o peruano não apareceu para pagar pelo aluguel da motosserra e Juan foi atrás
dele na comunidade vizinha. Para a surpresa deste último, chegando lá, o “patrão”, cacique daquela
aldeia, estava zangado, pois havia uns dias que o tal peruano havia fugido com seu dinheiro e muitos
peixes. Este homem levou com ele a motosserra de Juan.
Enquanto isso no porto de Letícia, na Colômbia, Pablo havia visto ao tal “ladrão”. Sem saber
dos ocorridos à jusante do rio, Pablo retornou à aldeia e chega à casa de seu “primo” contado do
encontro inesperado na cidade. Seu primo lhe indaga onde havia sido o tal encontro, e Pablo responde
que o havia primeiro encontrado na feira em Letícia comendo e, que quando o sujeito o viu, tratou de
despistá-lo. Quando Pablo já se organizava na sua canoa para iniciar a viagem de volta, que levaria
pelo menos uma semana, reencontrou o tal peruano fugitivo, que ao vê-lo, rapidamente correu para
sua “nova canoa roubada” do tal patrão, e saiu rapidamente sem com ele falar novamente.
Pablo sentado à mesa seguia falando e aguardando o suco de banana, quando comenta com o
“primo”: “mira la carita de ruina del man. Qué pasó, primo mío? ”. Juan de pronto lhe contou do
infortúnio. Constância imediatamente diz rindo ao marido, “ahora ya sabes tu porque aqui la gente no
les tienem confiaza? ¿Los tiempos de prueba no te fueran lo suficiente? ¡Mira Pablo, cuídate!


210
Estas notas compõem um dos diários de campo.
376

Capítulo V

* Um casamento Batista211

Hoje, sexta-feira, dias finais do mês de outubro. Hoje é dia de ensaio final e dia da
organização do espaço da Igreja local, onde amanhã ocorrerá o casamento de Isara e Fernando.
Assistirei, pela primeira vez em campo, um casamento Batista ao modo ticuna. Nos organizamos, eu,
Isara, a missionária carioca esposa há dez anos de Alberto, o pastor mais jovem da aldeia, a filha
destes últimos, Aicüna, de onze anos e mais algumas parentas solteiras da noiva para limpar e decorar
a pequena igreja.
Pela aldeia podia ver-se alguns reunindo um quilo de açúcar, um refrigerante, um paneiro
de mandioca já preparada para somar-se àquelas em fermentação. A família da noiva estava quase toda
empenhada na produção da bebida de mandioca, “não muito fermentada”, por recomendação dos dois
pastores, afim de evitarem embriaguez desnecessárias, eram muitas panelas de 10 e 15 litros que se
enchiam diariamente com a bebida. Nos domingos de culto que antecederam a cerimônia, havia uma
caixinha nos fundos da igreja para donativos espontâneos, cujo montante arrecadado converteu-se em
arranjos e enfeites, comprados “no 1,99” na cidade para decorar a Igreja. Fizemos também um buquê
pequeno e delicado com flores de tecido e plástico que Jussara trouxe da cidade, junto com papel
vermelho aveludado, que serviria como tapete vermelho que conduzirá os padrinhos, depois os noivos
ao altar da igreja. Ali somente eles poderão caminhar, alertava a missionária. Os convidados, como em
dias de culto, se alojarão nos bancos de madeira, decorados com fitas e laços de papel crepom branco.
No altar, o pastor providenciou dois corações feitos por ele e papel dourado e brilhante, que ficará no
alto da parede, ao lodo, da imagem também de papel, de flores rosas, que já ornam o local.
Foi providenciado um vestido de noiva, doado pelo missionário que o reformou aos
moldes do corpo de Isara; um terno para o noivo foi emprestado pelo pastor Alberto.
Começamos a organizar o local por volta das 14hs horas, levando para a igreja os enfeites
que viemos confeccionando nos últimos dias. Produzimos flores em papel crepom brancas e lilás,
cores prediletas de Isara. Enquanto estávamos limpando e decorando, muitos vinham espiar, outros
poucos colaboravam com alguns objetos e mais papeis para a decoração. Isara, insiste e ninguém
reclama, a certa altura: “precisa de balões. Muitos balões coloridos”. As parentas de Fernando, então,
mobilizam-se com o gestor da escola, na tentativa bem resolvida, de “pegar emprestado” da escola as
bexigas de látex guardadas para atividades pedagógicas. Enquanto isso, algumas crianças picotavam
papéis brancos, que guardados numa cestinha, seria levado por uma pajém e serviriam para anunciar a


211 Descrição extraída do diário de campo, apenas com edição dos nomes aqui mencionados .
377

entrada de Isara na Igreja, conduzida por seu pai. As alianças, serão conduzidas por Aicüna, também
pajém da cerimônia.
Tudo pronto, já ao final da tarde, Fernando, ao encerrar o expediente na escola, junta-se a
nós, e engaja-se com um de seus irmãos a encher os balões e a pendura-los nas paredes laterais da
igreja. Fernando chega decidido a ensaiar, visivelmente nervoso. “Melhor é entrar, caminhar no
tapete, ir para o altar, fazer de conta que é amanhã”, dizia ele esfregando as palmas das morenas e
delicadas mãos. Com o atraso da chegada dos padrinhos, Fernando, um pouco impaciente, menciona:
“Cadê parente? Cadê Luis? Não passou recado na boca de ferro, não? Cadê? Parece branco que
atrasa, mesmo tendo relógio”.
O que me pareceu um dos mais contraditórios dos comentários, posto que em meses na
aldeia, nunca havia percebido preocupação com questões de pontualidade. Pelo contrário, a metáfora
do relógio como instrumentos indicador do tempo dos brancos, costumava ser manejado pelos ticuna
apenas na cidade, quando via muitos de meus amigos de aldeia concernentes com os momentos de
expedientes de certas instituições e comércios, que usualmente os faziam transitar entre aldeia e
cidade, uma vez ao mês. Algumas dessas noções temporais apareciam nas seguintes expressões: “hora
do banco [das 9h às 13h]”, “hora da Casai”[geralmente referindo-se à horário de visitas], “hora da
SEDUC”[das 9h às 17hs], “hora da canoa voltar”, “hora do lanche bom na praça”, assim por diante.
Na aldeia, eu era quem costuma ser pontual, e sempre esperava.
O ensaio marcado para às 18hs, inicia-se não antes das 20hs. Com a chegada atrasada e
bastante animada dos dois casais de padrinhos, um tio paterno (professor) de Isara e sua esposa
(agricultora) e outro formado por Luis (agricultor) e sua esposa (agricultora). Ensaiamos por cerca de
uma hora e meia, acompanhados pela música do teclado eletrônico tocado por um jovem de dezoitos
anos, filho de um casal de amigos.
No sábado, Isara despertou cedo, banhou-se no igarapé, retornou à casa de seus pais, e ali
ficou a ornamentar-se com suas parentas mais próximas. Fernando estava com os seus parentes, no
mesmo ritmo. Em minha casa, seguimos o fluxo rotineiro. Quando por volta das 8 da manhã,
organizou-se um café comunitário, alojado atrás da escola, sob um tapiri bastante grande onde se
reuniam muitos da aldeia. Tinha tudo o que me havia anunciado Fernando: “quisuki, café com leite
doce, bolachas, margarina e pajuaru”. Alguns de seus amigos e parentes já estavam às voltas do fogo
que abrigaria o moqueado de bodó (peixe de casco). Iniciava-se, então, o festejo.
Dali as pessoas retornaram às suas casas para arrumarem-se para o culto e prestigiar o
casamento. Por volta das 9h30, com a Igreja completamente lotada, as pessoas em seus melhores
trajes, portando celulares e máquinas fotográficas em punho, aguardavam a chegada de Isara e
Fernando. Iniciava-se assim, a cerimônia.
Todos acomodados nos bancos, a chegada bem atrasada de Isara, na garupa da moto com
seu pai, foi anunciada em algum canto da igreja em português que “tá na hora”. Com a música
378

executada no teclado e com aporte complementar do computador do pastor, entram primeiro os


padrinhos e testemunhas, em seguida, o noivo acompanhado de sua mãe.
Antes que a noiva entre as pajém entram, uma carregando as alianças, e outra, lançava as
pétalas de flores, que alguém havia conseguido angariar no mato, e o papel picado sobre o tapete
vermelho por onde passará a noiva. Ela, finalmente, depois de uns 40 minutos de atraso marcados por
Fernando, quem me forneceu este dado, entra a Igreja acompanhada de seu pai. Elegante em seu
vestido branco, longo e com véu e grinalda, a noiva é conduzida pelo pai até o altar onde a “entrega”
ao noivo, que a aguarda, suando no seu terno escuro.
A cerimônia segue com o culto, o pastor Alberto conduziu o ritual, em todo em ticuna. A
exceção eram algumas canções bíblicas entoadas em português, com bastante empolgação. Segue-se
com as benções e sermão do pastor, dos padrinhos e, aconselhados novamente, agora publicamente
perante os convidados, os noivos selam os votos de compromisso e seguiu-se com as trocas de
alianças e com um beijo discreto na boca. Logo após, o casal e seus pais e padrinhos seguem para os
fundos da igreja para momentos de fotos e cumprimentos. Isso dura aproximadamente uma hora.
Encerrado esses protocolos tão bem ensaiados no dia anterior, já próximo das 13hs, Isara
reúne um grupo significativo de mulheres, casadas e solteiras para lança no ar, já na parte externa da
Igreja, no pátio da aldeia, o seu buquê de flores de plástico. As mulheres solteiras (e outras que
brincavam dizendo que iam mudar de marido) se reúnem para “caçar” o símbolo de sua união
potencial futura. Caçar foi o termo empregados por muitas jovens amigas solteiras.
Dali em diante o festejo segue com algumas sessões de fotos e com o almoço coletivo,
oferecido pela família do noivo. Sem avareza, temos muito “pajuaru”, refrigerantes, arroz, macarrão e
frango servido aos convidados, que traziam de casa seus próprios pratos e vasilhas. Teve discurso de
agradecimentos dos noivos, mais umas palavras do pastor e muito forró, em ticuna e português,
animando o ambiente quente e seco daquela tarde. Antes, contudo de que se “sentisse os parentes
embriagarem-se muito forte”, dizia-me o pastor, “era hora do futebol”.
Por volta das 13h inicia-se a partida de futebol, como usualmente ocorre aos sábados na
aldeia. As panelas de “pajuaru”, entretanto, parecem multiplicarem.







379

Capítulo VI

Carta de amor à Nguyaecü



Pachorü,
Cucatcha naüi nhã’a tchoru popera erü tchama rü cuca tchã
Nhetchaü.
Tchanawaé na cucüwawa tchangemaü.
Tchoücume ngema nguneï i yiema nori yicüi cuaegu.
Ngeicatama patchorü

Meu amor,
Estou lhe enviando esta carta porque estou com saudade de você.
Quero muito estar ao seu lado.
Gosto de você desde o dia que nos conhecemos.
Somente isso
Meu meu amor.
Glossário
ã: pernilongo
ããcü: gestação
aãrüã'ẽtchaé: namorador, uma tradução literal seria, a- raiz do verbo possuir, ter; ãrüã'ẽ - namorar,
fazer sexo com alguém; tchaé (ou uma variação deste morfema, tchié, chie) remete a formas de
poluição, por isso denota algo equivocado, ambíguo, instável; às mulheres usa-se aãrüã'ẽtcha.
ã'caítchi: transformar, alterar
achi'igü: “com penas”, designação para a metade exogâmica
ai: onça; nomina o clã homônimo
ãka: olor
amare: presentes
ã’në: expressão que glosa o estado de vergonha de alguém
aneweîtchi'e: timidez
ã’nï: vergonha
ãnüpaá: dizem-se das pessoas acometidas por enfermidades ou potencialidade vital enfraquecida
ãpüü: joelhos
ãpü’üe: traduz gestação; traduz estar cheio; aplica-se nesse sentido também para dizer que o paneiro de
farinha está repleto; que o ouriço da castanha está com frutos, –püü refere-se à imagem esférica,
arredondado
au: chorar
ãŭatchi: inveja
ãucümãǖ/ãũcümãǖ: perigos
aure: resguardo; reclusão
ãũ’ríma: intensificador associado à odores e aromas
awane: inimigos, gente em quem não se confia
bü'e: traduz criança: büe'kü traduz literalmente fruto/algo de aparência oval/redondo pequeno, onde bü
é forma arredondada e é raiz do verbo nascer bü, e kü aludi a pequeno. E esta mesma raiz bü aparece
no verbo comer tatchibüe.
buré: cesto de roça/de carga
caigüwaecü: aquele que faz filho em homem; homem que faz sexo com o ânus
chà e matü: literalmente e nesta ordem: desenhar; jenipapo; desenho/motivo gráfico
chawüchi’ũ: bebida fermentada de milho, segundo dizem, própria dos demiurgos

1
corigü: não indígenas, com especial ênfase aos missionários
cüã: conhecimento, mesma palavra para designar clã ou seu correlato “nação”, também presentes nas
variações de grafia no formato cuã, kuã, ki’a
cuã’atchi: traduz lembrança; “algo que se guarda na memória”
De acordo com Soares (2008:61-62), cuã corresponde a saber, conhecimento e – atchi
corresponde a uma partícula de duração curta, limitada;
cucümarünatchié: pessoa sem caráter; pessoa de maus pensamentos, intenções
cueacü: termo de parentesco que se refere às cunhadas
cueiīeü: termo de parentesco que se refere ao “irmão de minha esposa”
cuena’ne: termo de parentesco que se refere aos cunhados
cowu: veado
daü: ver
daukena: ao leste
da’weîne: período menstrual; estado de doença diz-se “i'daweǖ”, “alguém doente”; “tchidawe”
emprega-se à primeira pessoa do singular, “eu estou doente
de’a: falar
do'aka'èmá: cheiro forte, ruim, perigoso proveniente da menstruação ou parto.
do’one: instável, inseguro
do'ü: algo inacabado; em processo de formação
duü’ǖgü: seres viventes; pessoas, gentes, mortais e imortais, que habitam os espaços-temporais
que conformam o cosmos; aqui consideram todos os seres, humanos e não humanos; animais,
vegetais.
A tradução fornecida por Goulard (1994) a “duü'ǖgü” é du como associação à sangue, gü
partícula pluralizadora inclusiva. Posteriormente, o etnólogo sugere à tal palavra a tradução
“gente”, “ser vivente”, “incluindo aos Ticuna, mas também a todos os seres vivos, visíveis e
invisíveis, espécies animais e vegetais” (2009: 61, 283 tradução minha).
duü'gü i tcho'ǖ: expressão que empregam para referir-se aos não indígenas; traduz “gente
branca”
e: jenipapo
è'má: cheiro
Éware: mundo celeste, morada dos demiurgos
ga: nome pessoal
-gü: sufixo pluralizador inclusivo
gümata: sangue menstrual
ǐ’ãne: comunidade; aldeia

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ĩ'ẽ: zarabatana
iki: verdadeiro
ina: traduzindo a ideia de domesticado, amansado, esse terno designa a capacidade de domesticação de
uma série de cultivares (mandioca, cará, frutas) da mesma forma que àqueles, estes últimos estão sob
responsabilidade da mulheres.
inanaüǖ: algo criado, inventado, produzido por alguém
înü: escutar
ǐ’tapa: casa; maloca; unidades residenciais
Magüta: autodenominação, onde magü- ação de pescar com vara; ta- pluralizador não inclusivo
magü: verbo pescar
mã’ī: materialidade corpórea; ser dotado de agência
marü manaya: expressão que descreve mulher que já passa do tempo de casar; “fica velha sem
marido”.
mã’ǖ: conceito descritivo de corporalidade constitutivo da noção de pessoa; corpo, lugar de
conhecimento, de pensamento, sítio de relações. “O jeito que se vive”. Tal conceito é composto por
outros relacionados: pora/põra: energia/princípio energético; força, poder; nã’ē: pensamento; cuã:
saber, conhecimento adquirido; naüne: parte perecível do corpo, carne, ossos, sangue; e ã'ẽ: que
traduzem por alma, espírito, princípio vital; sem este componente, o que entendem por pessoa desfaz-
se, ocasionando a morte.
mã'ũne: coração, sede da vida
meã cü ni'i : casar certo; casar bem
miĩ: leite materno
moêtchi: expressão de agradecimento
mü’ǔ/ mu’ǔ: medo, temor
naã: habilidade olfativa; também grafada ñaã
naane: aldeia
na’ane: terra, território, territorialidade, cosmos, mundo, mapa
O linguista ticuna, Santos Angarita (2013: 10 e passim) decompõe tal conceito, informando que tal
palavra está composta pelo morfema na- que designa “ser,” “indica 3ª pessoa singular”; um agente; a-
refere-se à raiz do verbo possuir e vermos doravante, também ser partícula indicativa de afinidade
quando associada aos vocativos e termos de referência; –ne, mais complexo, que designa “imagem,
figura, desenho, uma entidade”; “–ne refere-se ainda à corpo, substância, as formas de vivencia”. Algo
que resulta-nos [na – (ser) – a (possuir) – ne – materialidade agentiva].
nachimã'ũ: útero
nã’ẽ: é princípio de conhecimento; capacidade de captar e aprender, escutar, falar, trabalhar; com esse
princípio se aprende as regras clânicas.

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nações/clãs: modo como caracterizam os clãs exogâmicos, patrilineares que conformam a
organização social Ticuna
nã’cü: anta
nacugü: traduz uma condição
nacüma: traduzido como cultura, conhecimento e pensamento próprios aos Ticuna. Estas últimas
expressões propõem traduzir modos de “pensamentos errados”, “pesados” ou “poluídos”. “tchiga” é
um termo da língua ticuna usado para referir-se à narrativas pessoais ou coletivas, histórias, contos,
mitos. Uma forma genérica, portanto, de alusão ao ato de discursar, falar, narrar diferentes eventos; ou
como sugeri Montes (2005: 58), em um sentido amplo, tchiga condiz à “palabra” de una “entidad
mítica o humana, el significado de las cosas, la historia de algo ou alguien, las historias míticas”.
nacüma i tchi'e: glosam como pensamento/comportamento errado; atitude ou ação avaliada de modo
negativo
nacüma i mengü'ü: “nacüma” traduz ideias associadas ao “pensamento ticuna”, a “cultura ticuna”,
“os conhecimentos ticuna”. A partícula i designa a pessoa da ação, indica o predicado. “mengü'ü” é
que me é sufixo empregado para designar valor positivo à pessoas, ações, estados, coisas; adjetiva
como “bom”, “bem”, “belo”. A partícula “gü” é pluralizador e “ü” designa o verbo crescer.
nagü: sangues
namâ: esposa
name: designa algo (pessoa, corpo, objeto que assuma natureza relacional com quem o está
designando) para o qual se atribui beleza (me)
namũ: sêmen
na'ne: flecha
na ngeã’ē: tal expressão aludi ao estado da morte, traduzindo-se literalmente como “sem pensamento,
pensamento vazio”, onde na [nominador, agente]; nge [sem]; ã’ē [alma].
na nge'ã'ẽ: jeitos de mulher, traduz literalmente, na ser, indivíduo; ou também partícula verbal
aplicada para designar que alguém está em alguma condição, situação, momento de atuação, o agente;
nge- partícula feminina, designa aqui mulher; ã'ẽ traduz alma, princípio anímico de todo ser, aqui que
assegura e é constituída dos pensamentos (naẽ) para produção de saberes/conhecimentos (nacüma).
narü meme'e nacü ante y dü'üngü y nhã'ãma y tatücã: casa-se melhor com gente deste lado do rio
natanü'güna yawa ma'üü: expressa que alguém está longe de seus parentes, mas mantendo-se
relações esporádicas
natchane: pênis
natchapa'a: placenta; glosada minha casa/cama/rede
natchi’i: alma de mau morto, sombra, susto
nate: esposo
natü: pais, dono
nawemugü: alimentos considerados fortificados, dotados de agências produtoras do corpo;

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Santos Angarita (2014) ao descrever estes mesmos dados propõe õna como tradução a alimento,
enquanto Goulard (1998) sugere nabü. Ao sondar sobre essas diferenças de tradução entre alguns
interlocutores, alguns me disseram tratar de tipos de alimentos variados, alguns com mais o
menos pora, sendo nabü indicado certa vez com uma espécie de pássaro.
nayachigü: expressão para designar e descrever o processo de criação dos filhos, também empregado
aos xerimbabos
na yâtüã'ẽ: jeitos de homens, em tradução similar a esta última, yatü designa homem, ou algo
masculino.
ni’i: casar
nigü: “casamento”, “compromisso”; “estar junto com alguém”; “em parceria”; “em cooperação”. ni’i
aprendi que denota a ideia de casar, as intenções de vínculo conjugal. O mesmo radical ni- compõe o
verbo ser/estar; o mesmo quando substantivado torna-se “nigü”, que traduzido corresponde ao ato de
“estar junto com alguém”; “em parceria”; “em cooperação”; onde -gü é partícula pluralizadora
inclusiva. Quando se quer afirmar que se está casado/a, respectivamente, diz-se: tchama rü tcha ãma e
tchama rü tcha ãte, literalmente traduz “eu e minha esposa”, “eu e meu esposo”.
ninha’ã: verbo fugir, escapar
ngeatchare: vagina; forma jocosa de evocar tal órgão sexual; traduziram-me ngeatchare como nge-
partícula feminina; a ou a variação ã como boca, e -chare compõe a “palavra semente, assim,
natchare”.
Goulard (2009: 135) glosa vagina como “nge-achare”. Algumas interlocutoras traduziram-me
“ngeatchare” como nge- partícula feminina; ã como boca, e -chare compõe a “palavra semente, assim,
natchare”.
ngetanü'untchi: viver sozinho, sem família
nge’ě/ngüe/nge: diferentes grafias para expressar mulher, algo feminino.
ngechi'igü: “sem penas”, designação para a metade exogâmica
ngemã: solteiro, formado pelos morfemas nge – partícula negativa; -mã radical que compõe esposa
ngemâcü/ngemãcü: homem sem cunhado, formado pelos morfemas nge– partícula negativa; -mã
radical que compõe esposa; cü- nominalizador
nge no´é mareü rüngeyamareü: expressão que descreve mulher que já passa do tempo de casar; “fica
velha sem marido”-
ngétchã: saudade
ngetchãǖ: entristecedor, ngetchãǖ traduz-se literalmente como sem (nge) estado de alegria (-tchã)
continuada (ǖ).
ngo'ogü/ngó’ogü: entidades nocivas, criadas pelos primeiros seres primordiais. Eles são descritos
genericamente pela categoria de “bichos”, nas variantes “gente-bichos; espíritos malignos; demônios,
soldados de Deus, bichos de Ta’e” (demiurga). No conjunto vasto de entidades desse tipo há os “bichos
Yereu”, “bichos wave”.
nguetü'ütchicü: virgindade masculina

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ngüe tügüma mãêgüé: expressão glosada como ““mulheres que fazem sexo com mulheres”; portanto
posições sexuais;
ngu'i: nominadoras
nü'in catama ma'ü: alguém que vive solitário
nünã'ü nã'ã pacu aru mã'ü?: pergunta empregada nas negociações para saber-se sobre o jeito da
moça estar na vida.
nügüma na ãra'ãgü : eles estão namorando.
ngümawa: pensamento-ação; capacidade agentiva dos seres primordiais
ngu'ũ: marcar sobre o corpo e memória
nügümucü: casal conformado por um homem e uma mulher
no’é: avó
noregù: traduziram-me como expressão que fornece uma ideia de princípio; sem referir-se a uma
temporalidade localizada no espaço das socialidades dos narradores. Cf. Angarita Santos (2013, 2014);
Montes Rodriguez (2004) para mais aportes linguísticos.
nüŭwae: ciúmes
oi/o’i: avô; aquele que sabe;
o'oiracü: recém nascidos
ore: é a tradução à palavra. Há gêneros narrativos diferenciados que compõem modos de narrativas (-
tchiga). tchiga é um termo da língua ticuna usado para referir-se à narrativas pessoais ou coletivas,
histórias, contos, mitos. Uma forma genérica, portanto, de alusão ao ato de discursar, falar, enunciar,
narrar diferentes eventos; ou como sugeri Montes Rodriguez (2004: 58), em um sentido amplo, tchiga
“condiz à “palabra” de una “entidad mítica o humana, el significado de las cosas, la historia de algo ou
alguien, las historias míticas”. Compondo tipos específicos de tchiga, há os gêneros discursivos, alguns
exemplos que aprendi: ukuē (conselhos), wiyae (recitações de cantos rituais), tüü (canto específico
entoado durante o ritual de puberdade feminina), taīñeē (ato de cantar ou pronunciar palavras visando a
cura por meio delas, algo próprio ao conhecimento xamânico). Estes gêneros narrativos distinguem-se
daquelas palavras rotineiras, evocadas na conversas diárias, cujo verbo falar (de’a) parece englobar (Cf.
Angarita Santos, 2014:330 para outros exemplos e esclarecimentos). À alguns interlocutores a
expressão “nukima yagu'agü” traduz “palavras dos antigos, dos anciões”.
oregütaegü’e: fofoca
pajuaru: bebida fermentada de mandioca
pa’mai: grau de aproximação, de semelhança; pessoas pertencentes à mesma metade exogâmica usado
para homem e mulheres;
patcha: parente
petchica: unidade doméstica e econômica, podendo se estender à um grupo extenso, conformados pelo
casal mais velho do grupo; petchica corresponde ao espaço-temporal composto das unidades
residências (ĩ'pata), considerando aqui suas espacialidades constitutivas (roças, jardins, porto à beira-
rio/igapó/igarapé e os caminhos que os conectam) e também, em casos de casas não plurifamiliares,

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seus segmentos (casas da parentela próxima).
indicativo de proximidade pa; pelo verbo crescer ü; e ainda pela partícula que adjetiva negativamente
algo, alguém, um pensamento, uma ação, uma substância, itchi’é. cf: wova
composta pelo sufixo
pachore: termo que expressa carinho; aludi à uma expressão romântica
paütchi´é: virgindade; está
po’í: banana
popera: livro
porã'ãcü/porakü: trabalho, obrigações
porã/pora: força, energia;
Goulard (1998, 2009) propõe ser pora um princípio energético necessário para manter-se/estar vivo
(mà). Santos Angarita (2014: 330) traduz como “poder”, e corroborando o etnólogo francês, o ticuna
linguista adiciona à sua proposta: “Pora sirve al cuerpo para tener fuerza. Además, pora es la potencia
física, es la capacidad para realizar las actividades cotidianas para la perpetua existencia y para
mantener las relaciones sociales. Igualmente es el principio de poder perpetuar nuestra naküma
(tradición o cultura), kua, conocimiento), mau (vida o nuestra vivencia) y torü ma (nuestra formade
vida o los modos sociales de vivir)”. E, páginas depois, o mesmo autor complementa: “Para
incrementar el pora, los tikuna consumen pora de los alimentos, con el cual fortalecen el suyo. La
adquisición es cuidadosa y sincronizada con la edad, con el tiempo, espacio, momentos y la capacidad
anímica de la persona”(dem: 331).
puya: poluição, sujeira
ta nee: traição
tachibué: verbo comer
tacü i cuega: qual seu nome? ou qual seu clã?
tama: refere-se à estrangeiro, usando em campo para aludir à gringos e mestiços
tama tcha na õ: traduz o afeto da desconfiança. E sua forma reflexiva é “tama cü'ü tchana õ”,
traduzido literalmente “eu não confio em você”. Seu oposto simétrico, confiar se expressa “tchama õ”,
e sua forma reflexiva “cugü tchana ô”, traduz “eu confio você”.
tanü: família, grupo extenso;
tanatü/tanütü: refere-se ao casal fundador de um grupo extenso;
tawama: oeste
tchangewaë: intercurso sexual; tcha- corresponde à primeira pessoa, nominalizador
tchaua’ta: termo de parentesco empregado os afins virtuais, aqueles entendidos como cônjuges
preferenciais; primos cruzados
tchaue’ne: termo de parentesco para se referir ao irmão; aos filhos da irmão do pai
tchaueya: termo de parentesco para se referir à irmã e à filha da irmão da mãe e à filha do irmão da
mãe
tchaue’ya rü bumee: modo que ego feminino trata a sua irmã mais nova

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Traduz literalmente, em relação a mim, “tchaueya” - aquelas mulheres casadas ou não nas posições
dentro desse núcleo extenso (Z,FBD,MZD), rü indica que estado (é/está) bu- prefixo que compõem bué
(criança) mee (apenas soube que refere-se a algo bom, bonito (me-). Aos meus irmãos putativos
empregava “tchauene” aos (B,MZS,FBS).
tchautanü’ü: meu grupo de parentes crescido
tchibué: comer
tchinü: vagina, vagina, “vagina dela” tüma tchinü; “minha vagina” “tchautchinüû”, manifestando
claramente o uso pronominal relativo a uma propriedade individual. cf. ngeatchare
tchire cü ni'i: casar errado
tchorü: é o pronome possessivo de primeira pessoa
tchorü tchiūra”: minha senhora. Onde, tchorü (infra), tchiūra é a adaptação ticuna ao pronome de
tratamento senhora. De algumas mulheres nessa mesma classe de idade, ouvi usarem “tchorü cori”.
Cori refere-se a termos de tratamento aos pastores ou missionários homens aqui capturado pela moral
do respeito que contém, se entendi bem.
tchutá: feitiço
ti’tia: vocativo para referir-se à irmã do pai, com clara influência do português e do espanhol;
do ponto de vista do ego masculino, à irmã do pai (FZ), emprega-se “tchautucü”, que descreve tcha –
possessivo 1° pessoa, -tucü ou na variação tukü) indica a posição relacional; ao irmão do pai (FB)
“tcha’unepü”; à irmã da mãe (MZ) do reverso, ao ego feminino, o termo empregado à irmã da mãe
(MZ=M) é parece-me ser o mesmo que à mãe (ma’ma ou numa forma que dizem ser apenas os “bem
antigos que sabem” emprega-se -e, tchauo’e, algo do qual nunca ouvi referencia, posto que
diariamente, se não é o nome pessoal, ti’tia que é usado. E ao irmão da mãe costuma-se “oé” ou
“tchaucuta” (ou na variação –kuta), sendo o primeiro o usual.

- tü: é morfema que conforma o termo para sogro.


A explicação etnográfica é a seguinte em relação ao termo de referência a ele empregado (cumatü,
neste caso “sogro dele): “sogro não é pai por isso para falar de meu pai uso o natü ou pa’pa, assim
como minha esposa usa para o pai dela. Mas eu digo sogro para ele”. E o termo de referencia para
sogra e mãe, diferentemente, é o mesmo, “ma’ma” ou “tcha’é”. O que nos possibilita propor que não
haveria uma relação de assimetria entre elas, como aparentemente, há entre o sogro e o genro, que além
de não se tratarem reciprocamente enquanto consanguíneos, afinal são afins, aquele para casar, precisa
“fazer teste”, demonstrar “que é bom partido”. Trataremos de exemplos ao longo da tese. Essas notas
complementam a nota anterior sobre o mesmo termo, natü aplicado ao agregador do grupo extenso e
familiar, exclui o genro da “proteção” referida. Meu pai putativo afirmou: “quando minha filha era viva
e casada, o marido dela morava aqui. Eu não tratava ele como meus filhos; ele é aliado; quando ele
chegou aqui para morar com ela, ele já sabia os conselhos do pai e do avó dele. Não foi formado antes
por mim, começa quando casa e fica aqui”.

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tü: fios; linhas; aqui empregado como “fios de pensamento”; –tü compõe a palavra “fio”, “contorno”,
conforme aprendi, a partir destes exemplos: matü (desenho grafismos contidos nos cestos trançados,
como o do tipo “wotüra”, de armazenamento, “não de roça”. O mesmo morfema compõe a palavra que
expressa o ciclo dos jovens púberes, “ngetüü”, cuja glosa mais recorrente é “solteiro, aquele homem
sem esposa”. Este morfema compõem ainda outra referencia relevante ao Ticuna, Tatü, rio Solimões.
Tatü, dizem estes interlocutores “é o eixo” do cosmos.
Santos Angarita (2014) propõe que “os tü envolvem e entrecruzam os corpos e estão conectados a
distintas entidades humanas e não humanas visíveis e não visíveis que alimentam positivamente o maǚ
(vitalidade, principio corporal com o qual funcionam os signos vitais de desenvolvimento; estilo de
vida, identidade pessoal, a forma de atuar, de viver da pessoa), naē (pensamento, princípio de
conhecimento; capacidade de captar e aprender, escutar, falar, trabalhar; com esse princípio se aprende
as regras clânicas), kuã (conhecimento) e pora (força, energia, poder). Todo na (ser), igualmente pode
alimentar-se de maldade com são os fios feiticeiros” (2014:332/342-343, tradução minha.).
tügümucü: “tügümã ta niīgü” (ou noutra grafia, niigü) expressa a ideia de casal, cujas partes
constitutivas são de sexo oposto, “casal de homem e mulher”. tügü traduziram-me como noção de
vínculo, “estar junto, fazer algo junto, parceiros”; tü refere-se ainda aos fios de pensamentos
conformadores da pessoa ticuna; -mã compõe uma ideia corpo, suporte, eixo; ta indica ação de terceira
pessoa não inclusiva plural; niī verbo ser/estar, cuja raiz compõe também o verbo casar (-nī), gü
coletivizador inclusivo.
tu’e: mandioca
to'ü: antiga figura masculina de chefia da maloca
uaü: sovinar
ucane: pele, capa, proteção;
ucaǖ: adjetivo que qualifica qualquer ato ou ação desvalorizada
ui: farinha de mandioca
ü: empreender ações, verbo fazer, predicado
ü’ünegü: primeiros ancestrais; está composto do morfema ǜ “indicador ação, fazer, executar
algo”; ü é uma “partícula temporal, finito”; [cabendo notar a diferente grafia empregada por ele e
meus interlocutores, mantendo-se, ainda assim, mesmo conteúdo semântico]. Gü refere-se a uma
partícula pluralizadora inclusiva, distantemente daquela –ta não inclusiva.
Na etnografia de Goulard (1998, 2009), para os ticuna existem seres com “aparência humana”,
que similar às narrativas de Ernesto e Pedro interlocutor da introdução, o etnólogo francês
denomina “imortais”: “O termo ü’üne [inclui as espécies animais, varias espécies de vegetais que
igual aos humanos são strictu sensu seres que perderam seus traços de aparência humana que
haviam tido em estado anterior]. Se trata de espécies antropomorfas que possuem todos os
atributos humanos incluindo corpo físico, visível aos que são os yunatü em certas ocasiões
(2009:65)”.
üwa: contaminar, contaminação
ǔwae: falta de ciúmes, não ter ciúmes

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we’e: ciúmes
we’ena’ã: ciúmes; poder ser também expresso “na’ã”; nuwe’e, por exemplo traduz mulheres
ciumentas
woca: clã de boi/vaca, inserido na metade “sem pena”; glosa também “misturado”, “tiucnado” posto tal
clã é atribuído à filho/as de pais não Ticuna
womãtchi: incesto clânico ou consanguíneo; também emprega-se para uma categoria do que dizem ser
“sexo malfeito”; 0nde wo é trançado/enrolado; também opera como intensificador, como aprendi “é
quando é grande; como a wotchine (sumaúma pristina)”; -mã é traduzido como raiz de carne,
materialidade corpórea, suporte; “assim aquilo que tem na pessoa, no corpo dela, assim a carne de
bicho, carne de gente yunatü”; -tchi, notemos que é raiz formadora termos negativos como tchi'é (“não
está bom, perigoso”), natchi'i (alma de mau morto, sombra, susto); -ma, por sua vez, está na
composição do conceito de agente/pessoa (mã’ǖ), coração (mã'ũne).
wotchine: samaúma primordial
wotüra: cesto
worecü: púbere
wova: virgindade; está composta do morfema wo que é um prefixo intensificador (“muito, bastante”), e
denota também tamanho, quantidade, extensão (“grande”, “imenso”), como sugere, por exemplo, seu
uso em wone (samaúma), onde -ne é tronco, morfema que já vimos, também corresponder a uma
imagem, figura, desenho, algo referente ao ser, entidade (Santos Angarita, 2013, 2014). –ne é
indicativo ainda, de corpo, substâncias, formas de vivenciar, “os jeitos de ser”.
wiyae: cantar
yagü: velhos, anciões, onde ya- morfema que indica tempo passado; indica velhice; gü- pluralizador
inclusivo
yatücü rü nügürü'u yatücüma na ni'i: homem casado com homem
yatümare: amantes
yaumare: palavra empregada por alguns interlocutores para referirem-se à mulheres cujos filhos não
têm pai reconhecido
yeguma: “naquele tempo”; usado no texto para referir-se ao tempo primordial; é uma expressão
espaço-temporal que aprendi referir-se à um tempo passado, sem necessariamente estar datado.
yetaï: é uma expressão em língua ticuna que corresponde a ação de intercurso sexual sem
compromisso conjugal efetivado pelo casamento. Ela muitas vezes foi traduzida ao português
como namorar.
yi’è'má: odores
yora: figura de poder masculino correspondente ao efeito dos processos de transformações mediados
pelo casamento, explicando que ao adquirir o estatuto de casado, já como pai, um homem se torna
“tanütü” de seu grupo de consanguíneo e afins.
yue: estado de morto
yute'e: viuva

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yunatü: traduz literalmente yu- prefixo que designa estado de morte, -natü designa “pais”,
“agregadores”. Se “yunatü” inclui todos os mortais, em contrapartida aos seres primordiais,
“yunatü ticuna” seria “todos os ticuna do tempo de hoje”. Ademais tal categoria de “yunatü”
inclui, por consequência classificatória, não indígenas e coletivos indígenas distintos.
yunatü ticuna: variação da autodenominação, onde, yu- morfema indicativo do estado de mortalidade;
natü- pai
yuǖcü: xamã, pajé;
yuǖcü ya mecü: corresponde ao seu homólogo espúrio “pajé do mal”.
yuǖcü ya ngõ’cüwaécü: refere-se ao “pajé do bem”
yö’ǚ: dançar
Seres primordiais: Taé, Mowichina, Ngutapa, Mapana

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