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O enigma de Lautréamont

NELSON ASCHER

Isidore Ducasse (1846-70), conhecido como Conde de Lautréamont, é, desde os "Cantos de Maldoror"
(1868), um dos mais clássicos enigmas literários. Um enigma, a rigor, composto de outros tantos. Primeiro:
quem era ele de fato? Segundo: como um rapaz de 20 e poucos anos pôde compor uma obra tão estranha
quanto original? Terceiro: de onde vem sua obra, quais suas fontes?
A estes enigmas juntam-se alguns detalhes curiosos e, entre estes, nada há de irrelevante no fato de ter
nascido não na França, mas no Uruguai. Assim, além de ser um talento precoce como Rimbaud (1854-91) e
de participar da seleta plêiade de autores que surgiram num momento de apogeu da poesia francesa -período
balizado pela publicação de "As Flores do Mal", de Baudelaire (1857), e composição de "Um Lance de
Dados", de Mallarmé (1898)-, ele se inscreve também na companhia peculiar de dois outros grandes poetas
franceses nascidos às margens do Rio da Prata: Jules Laforgue (1860-1887) e Jules Supervielle (1884-1960).
Embora reconhecidamente importante (a ponto de ser considerada uma influência decisiva pelos
surrealistas), sua obra está, segundo os críticos mais equilibrados, aquém do que de melhor produziram seus
principais contemporâneos. Ainda assim, ela talvez possa ser considerada a mais inesperada, a menos
previsível do período, fato que só alimenta seu perpétuo mistério. Desta forma, para dar um importante passo
adiante na sua elucidação, reuniram-se dois críticos cujo "background" é substancialmente distinto: o
uruguaio Emir Rodríguez Monegal, morto em 85, e a brasileira Leyla Perrone-Moisés.
O primeiro, um dos grandes intelectuais da América hispânica, destacou-se sobretudo como estudioso da
literatura latino-americana moderna, foi o "descobridor" de Severo Sarduy e Manuel Puig e tem na grande
biografia de Borges a sua obra máxima. Perrone-Moisés, por sua vez, é a mais conceituada estudiosa
brasileira da literatura francesa, tendo sido responsável, entre outras coisas, pela apresentação ao público
nacional do "nouveau roman" e de críticos como Roland Barthes e Michel Butor. Autora também de um belo
livro sobre Fernando Pessoa, escreveu um estudo importante sobre as limitações e os paradoxos da recepção
crítica de Lautréamont. Cabe acrescentar que, se bem que o interesse da brasileira por Ducasse antecedesse a
colaboração, o do uruguaio não derivava apenas de uma questão de coincidência de origens nacionais. Se
Monegal, no final da vida, voltou sua atenção para o autor de "Maldoror", desviando-se aparentemente de
seus interesses originais, isso deveu-se também por se encontrarem no período em questão muitas das raízes
da literatura atual deste nosso continente.
O resultado desse trabalho conjunto saiu, em espanhol, em Montevidéu, dez anos após a morte de Monegal e
pode ser considerado um verdadeiro ponto de inflexão nos estudos lautreamontianos. A razão parcial disso
decorre de algumas descobertas singelas, ou seja, o achado de dois livros que pertenceram a Ducasse: uma
tradução da "Ilíada" e um manual de retórica, ambos em espanhol. Ora, sob olhos menos atentos que os dessa
dupla de críticos, esses achados não significariam muito. Sob seu escrutínio, porém, uma das principais e
mais surpreendentes raízes do autor nos é revelada: o barroco espanhol.
O percurso pelo qual se chega a ele é, no entanto, complexo. Os autores começam esmiuçando a natureza, a
história e a influência do tratado em questão, demonstrando o uso extenso que o poeta fez de suas
prescrições. Tratando-se de um tratado tipicamente neoclássico e, portanto, obsessivamente antibarroco, um
tratado, além do mais, utilizado por um poeta que trabalhava numa língua geralmente pouco afeita a toda a
tradição barroca, não deixa de ser curioso que o resultado final, "Os Cantos de Maldoror", fosse uma obra
barroquizante. Mas a verdade, como mostram Monegal e Leyla, é que o uso que Ducasse fez do manual era
basicamente perverso e, mesmo quando buscava aplicar literalmente suas regras, ele o fazia de uma forma
particularmente excessiva -e, como se sabe, o excesso é uma das marcas registradas do barroco.
Lautréamont, no entanto, não se contenta em perverter seu manual neoclássico de retórica e alcançar
justamente aquilo que este buscava negar, mas também se vale desta mesma operação para subverter as
sacralidades literárias da língua na qual escrevia, o francês. Estranhas essas suas operações: por um lado,
retorna ao barroco por meio de sua imagem em negativo; por outro, entronizando a leitura pelo avesso como
seu principal recurso, torna-se um daqueles que apontaram os caminhos para a literatura do presente.
Realizou ambas operações complementares, além disso, no contexto de uma terceira, que só viria a ser
corriqueira no século seguinte, isto é, no século de Borges, Nabokov, Beckett. Esta terceira operação consiste
na subversão de uma determinada literatura, escrita numa certa língua, pela inserção violenta de
características da literatura de uma outra língua, uma operação diferente do conjunto normal de influências
estilísticas e outras que transitam entre as distintas tradições nacionais. Esta última operação só poderia ter
sido decifrada e comprovada por críticos que, dispostos não apenas a constatar como também a reconhecer a
centralidade do bilinguismo de Ducasse, estivessem trabalhando fora do quadro algo provinciano da crítica
francesa, que frequentemente se mostra incapaz -contra evidências tão fortes quanto as declaradas por
ninguém menos que Baudelaire e Mallarmé- de buscar influências fora do contexto de sua própria tradição.
Uma característica que nunca é demasiado realçar em "Lautréamont Austral" é a sua extrema legibilidade.
Em outras mãos esse mesmo trabalho poderia ter-se materializado num tedioso esmiuçamento de fontes.
Monegal e Leyla conseguiram converter uma tarefa sumamente técnica em algo que, sem deixar de ser
crítica da melhor qualidade e história literária rigorosa, assume foros de novela detetivesca. Graças a ambos,
pode-se entender melhor como Lautréamont fez o que fez, o que o torna -técnica e historicamente- menos
misterioso, mas só o faz -literariamente- mais enigmático. 

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