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HISTÓRIA, MEMÓRIA E PATRIMÔNIO HISTÓRICO

Jônatas Ferreira de Lima1

História e memória

A história e a memória, desde os primeiros passos da humanidade, caminham juntas.


Tal afirmação pode ser justificada quando voltamos a tempos passados e lembramos como se
contavam histórias. Como se sabia da história? Nossos “antigos pais” contavam essas
histórias quando eram questionados sobre uma dúvida de como algo ocorreu, por exemplo.
Buscavam em suas lembranças o que viram e ouviram, e repassavam essas informações como
sendo o que “de fato ocorreu”. Essa lembrança está alojada na memória. Então, para se contar
uma história, buscamos em nossa memória, lembranças correspondentes ao que nos interessa.
Por muito tempo assim se construiu a história. No entanto, no século XIX de nossa
era, os homens tentaram separar história da memória. Homens que não viam mais nos
acontecimentos memorizados uma verdade ocorrida. Nesse século, o homem estava buscando
tornar as ciências humanas mais próxima das ciências naturais, cujas leis traziam um método
e um objeto de estudo, ou seja, tornar as ciências humanas em exatas e para isso, buscar leis
para regê-las. Um desses homens era Fustel de Coulanges (1830-1889). Era historiador
francês que segundo José Carlos Reis (historiador brasileiro) foi considerado o primeiro dos
historiadores franceses a realizar uma obra histórica plenamente “científica”; ele sustentava
que a história era “ciência” pura e não arte (Reis, 2003). O que isso que dizer? Para
historiadores como Fustel, a história só existia nos documentos da corte real, isto é, escritos
oficiais e esses documentos eram estudados através de uma série de métodos (por
historiadores metódicos “ditos” positivistas). Mas onde ficou a memória nessa história? A
memória foi estuda fora da história. Homens também estudaram essa memória e um deles é
Maurice Halbwachs (1877-1945). Halbwachs foi um sociólogo judeu-francês da escola
durkheimniana que escreveu uma tese sobre o nível de vida dos operários, e sua obra mais
célebre é o estudo do conceito de “memória coletiva”, que ele criou. Enquanto historiadores
defendiam seus métodos, Halbwachs trabalhava essa memória que foi separada como algo
que não transmitia a verdade buscada pelos “positivistas”. Para ele, a memória está
inteiramente do lado vivido, enquanto os “acontecimentos históricos desempenham o mesmo

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Graduado em História pela UFRN (2013), estagiário do TRE-RN durante os anos de 2011 e 2012. Artigo
produzido, originalmente, sob a orientação da Prof. Drª Margarida Maria Dias de Oliveira, em 2008 (disciplina
de Memória e Patrimônio Histórico).
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papel que as divisões do tempo marcadas sobre um relógio ou determinadas pelo calendário”.
Ele traz um conceito de que a memória é viva e a história esta presa em métodos, longe do
meio social.

[...] A memória coletiva apresenta-se como um rio que alarga seu leito ao
longo de seu curso sobre uma linha contínua, enquanto a história corta,
recorta períodos e privilegia as diferenças, as mudanças e outras
descontinuidades: ‘No desenvolvimento contínuo da memória coletiva não
há linhas de separação nitidamente traçadas, como na história’
(HALBWACHS apud DOSSE, p. 281)

Vale lembrar que a história abordada por Halbwachs, é a que “reinava” no século XIX,
isto é, a história dita “positivista”. Para François Dosse, em seu livro “A história”, esse seria o
melhor método de trabalho com a história para “fazer valer os direitos da nova sociologia
durkheimniana de abarcar todo o campo social”, ou seja, apresentar a “história como lugar da
objetividade absoluta, da não-implicação do sujeito histórico, da simples transcrição do que
estava apenas no plano factual” (Dosse, 2003). Mais uma vez vemos como Halbwachs afirma:
“a história é separada do senso comum de uma sociedade e a memória é essa representação
viva dessa sociedade”.
No entanto, nos primeiros anos do século XX, Freud (1856-1939) como seus estudos
sobre o inconsciente humano e os tipos de memória (psicanálise), leva sociólogos e
historiadores a repensarem seus conceitos referentes à relação história/memória.
Pierre Nora, historiador francês do século XX-XXI, idealizador do conceito: “lugares
de memória”, em 1984, ainda trabalhado com a oposição história/memória, diz que

[...] A memória é a vida, sempre levada por grupos vivos e, nesse sentido,
ela está em evolução permanente, aberta à dialética da lembrança e da
amnésia, inconsciente de suas sucessivas deformações, vulneráveis a todas
as utilizações e manipulações, suscetíveis de longas latências e súbitas
revitalizações. A história é a reconstrução problemática e incompleta do que
não é mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um vinculo vivido no
presente eterno; a história, uma representação do passado. Por ser efetiva e
mágica, a memória só se contenta com detalhes que a confortam: ela se
alimenta de lembranças opacas, globais, ou flutuantes, particulares ou
simbólicas, sensível a todas as transferências, censuras, telas ou projeções.
[...] A memória instala a lembrança no sagrado, a história a desaloja [...]
(NORA apud DOSSE, p. 282-283).
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Muitos estudiosos historiadores e/ou sociólogos tiveram como objeto de estudo essa
relação entre história e/ou memória, dentre os quais destacamos: Henri Bergson, Marc Bloch,
Eric Hobsbawm, Jacques Le Goff e Michael Pollak.
Neste novo século, onde os métodos positivistas já foram quase que inteiramente
postos em escanteio, para se trabalhar a questão das problematizações, sabe-se, depois desse
longo período de estudos, discussões e análises, que a memória influencia diretamente na
escrita da história e a própria história, mesmo trabalhando em conjunto com outras ciências,
não se separa das questões sociais, sendo seu objeto principal o “homem ou os homens no
tempo”. O historiador deste tempo, constrói, reconstrói e problematiza nas lacunas da história
e para isso, as memórias são de bastante ajuda. Aí se tem a importância de se compreender e
estudar as memórias coletivas de uma sociedade: valores, comportamentos, continuidades. Ou
seja, cabe ao historiador, perceber esses conflitos de memórias que pode haver em um mesmo
ambiente e saber que na história não existe distinções entre “vilões” e/ou “bonzinhos”. E, se
tratando de o que é verdade ou não na história, como já dito anteriormente, isso não é mais
prioridade do historiador, seu principal compromisso é com o fazer historiográfico. Sendo
assim o historiador precisa analisar todas as fontes, seja ela escrita, oral ou de outro tipo, ou
seja, não há uma fonte mais segura do que outra. Sobre esse historiador, Eric Hobsbawm
orienta que

[...] História não é memória ancestral ou tradição coletiva. É o que as


pessoas aprenderam de padres, professores, autores de livros de história e
compiladores de artigos para revistas e programas de televisão. É muito
importante que os historiadores se lembrem de sua responsabilidade, que é,
acima de tudo, a de se isentar das paixões de identidade política – mesmo se
também as sentirmos. Afinal de contas, também somos humanos
(HOBSBAWM, p. 19-20).

História e memória: Monumento e Patrimônio histórico

Os homens criaram monumentos, sejam edificações, bustos, etc., para lembrar,


rememorar algo, ou comemorações de fatos ou pessoas, ritos, sacrifícios ou crenças
“importantes”.
O mundo antigo nos “deixou” vários vestígios de ruínas, uns bem conservados e
outros em péssimo estado. Sabemos que estes monumentos, ou o que sobrou deles, era em
homenagem a algo, porque em grande parte havia neles inscrições em dialetos antigos, sendo
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que muitos deles no século XIX foram traduzidos. Um destes homens foi Grotefend (1775-
1853), importante assiriólogo de seu tempo. Ele decifrou inscrições vindas do sítio localizado
na antiga cidade persa de Persépolis que fazia menção aos grandes reis Persas como Dário,
Xerxes e Histapo (Garelli, 1982).
O Conceito de monumento, fundamentado durante os séculos XVII e XVIII, estão
sofrendo, assim como quase tudo neste “novo” século (XXI), mudanças e alargamentos, ou
seja, o seu uso vem sendo questionado principalmente pelas novas gerações de arquitetos. Um
desses questionamentos seria: Qual o sentido de construir um monumento para as sociedades
(principalmente as ocidentais) do século XXI? Na verdade antes, monumento já foi
considerado tudo que vinha de sociedades antigas, como também edificações ligadas a
lembranças de “coisas” já usadas. Mas hoje, ocorre um alargamento dessa condição. Seriam
também monumentos: a arte, fotos, escritos, gravações (que são coisas que rememoram
lembranças).
Contudo, monumentos, hoje, não são construídos somente para lembrar, rememorar.
Eles necessitam estar ligados à sociedade, ou seja, também ter uma função de utilidade para as
comunidades que os rodeiam. Como exemplo, praças públicas, que podem homenagear ou
rememorar algo ou alguém, como também ter utilidade no meio social.
Mas quando monumento é patrimônio histórico? Monumento nem sempre é
patrimônio. Patrimônio é uma “coisa” instituída da sociedade (lado cultural), isto é, necessita
de reconhecimento, título, registro oficial.
A humanidade (no ocidente) instituiu os primeiros conceitos de patrimônio em fins do
século XIX, quando a Europa passava por uma série de transformações ideológicas,
econômicas, religiosas e político-sociais, consequentes da revolução industrial e da revolução
francesa e nesse momento também ocorria, em partes da Europa, a organização dos Estados
Nacionais nos moldes atuais.
Em 1837, acontece a Primeira Comissão de Monumentos Históricos na França. Aí se
tem o primeiro conceito de monumento, que em resumo, seriam os edifícios remanescentes da
antiguidade e da Idade Média (igrejas e alguns castelos).
Nos Estados Unidos, em 1870, fixa-se também a preservação aos patrimônios naturais.
No ano de 1931, ocorre a I Conferência Internacional para Conservação dos
Monumentos Históricos em Atenas na Grécia, somente para países europeus. Em 1933, com a
elaboração de novas políticas de arquitetura e urbanismo, cria-se a “Carta de Atenas”, que
visava “preservar os monumentos antigos sob condições (de higiene e de comodidade),
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destinando à destruição do tecido menor que os envolve criando áreas livres para
transformações”.
Todavia, após a Segunda Guerra Mundial, com o medo do fim da humanidade (dos
seus princípios ético-morais e de uma guerra nuclear) e a criação da ONU – Organização das
Nações Unidas –, ocorre um surto de preservação de monumentos.
Na década de 1950, dar-se uma ampliação do conceito de monumento. Todas as
formas de construção – incluindo a arte – mas que sejam ligadas a arquitetura são
considerados monumentos.
Em 1964, é realizado a II Conferência Internacional, desta vez em Veneza e com a
participação de mais países (Tunísia, México e Peru, além dos europeus). A chamada “Carta
de Veneza” buscou regulamentar uma política-base de conservação e restauração, mas que
poderia ser adaptada com as especificidades de cada país e sua respectiva cultura. Uma
valorização do testemunho histórico é realçada na carta. O monumento histórico deve ser uma
rememorização da sociedade.
No ano de 1979, Oitenta (80) países dos cinco continentes haviam assinado a
Convenção do Patrimônio Mundial.
Patrimônio, hoje, é conceituado da seguinte forma:

São obras e obras-primas das belas artes e das artes aplicadas, trabalhos e
produtos de todos os saberes e saber fazer dos seres humanos (patrimônios
materiais e imateriais).

Então, desta vez, além de edifícios arquitetônicos – chamados patrimônios materiais –


entram os patrimônios imateriais como a cultura de uma sociedade.
Assim como os monumentos, os patrimônios também estão entrando em meio às
“crises” surgidas no século XXI. Hoje em dia, tudo pode ser patrimônio? A prática do
Turismo é amigável ou danosa aos patrimônios? Podem-se construir novos patrimônios? Ou
devemos nos conformar apenas com os “antigos”?

As políticas de conservação de monumentos estão em crescimento na nossa


sociedade. A conservação de um suposto passado é uma forma de produzir
lembranças e esquecimentos. O prolongamento da vida do monumento ou
sítio possibilita deslizar nas ruas do tempo. Criam-se os “Patrimônios da
humanidade”. Elementos vivos por uma concepção de tempo. Brinca-se
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com o tempo. Transforma-se com o invisível. Recria-se o passado.


Reinventa-se a memória. Apagam-se os erros2.

Enfim, a concepção de patrimônio está diretamente ligada à questão das memórias


coletivas e individuais de uma sociedade, através de suas mentalidades, suas continuidades e é
o estudo da História, o conhecimento histórico que dará crédito, o passaporte necessário para
a consolidação dessa relação memória e patrimônio com a história.

REFERÊNCIAS

DOSSE, François. Uma história social da memória. In:____. A História. EDUSC, 2003.

GARELLI, Paul. Oriente Próximo Asiático: das origens às invasões dos Povos do Mar. São
Paulo: EDUSP, 1982.

HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

REIS, José Carlos. A escola metódica, dita “positivista”. In:____. A História entre a
filosofia e a Ciência. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

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Retirado do texto: Identidades: História, memória e patrimônio. XIII Encontro de História Anpuh-Rio.

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