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Famílias multiespécie: direitos e deveres relacionados ao animal não humano


por ocasião da dissolução do vínculo matrimonial ou rompimento da união
estável

Há 20.000 anos, um jovem perde-se de sua tribo em meio a uma caçada.


Gravemente ferido, procura de todas as formas sobreviver e retornar ao grupo, mas
são muitas as adversidades. Em certo ponto, ameaçado por uma matilha, fere
seriamente um dos lobos. Ao invés de sacrificar o animal, entretanto, escolhe fazer
dele seu parceiro na jornada de retorno ao lar e, juntos, mais fortes, enfrentam
diversos obstáculos.

Em que pese essa seja tão-só a narrativa de um filme – Alfa1 –, poderia


muito bem representar a simbiose entre animais humanos e não humanos ao longo
do tempo. Hoje, de regra, não é mais preciso lutar pela sobrevivência do grupo;
porém, é fato que as relações estabelecidas entre animais humanos e não humanos
permanecem, tornando-se cada vez mais sólidas e, inclusive, dando origem a nova
categoria familiar: a família multiespécie.

Em verdade, o conceito de família multiespécie relaciona-se com o conceito


de família eudemonista, a qual “tem por fito a busca da felicidade, de modo que o
vínculo entre os integrantes desta entidade é afetivo e não somente jurídico ou
biológico. Nessa espécie de família, existe a busca da realização plena de seus
membros, mediante a adoção do afeto recíproco, norteado pelo respeito mútuo entre
seus membros”2.

Atualmente, não há dúvida de que os laços familiares podem ser formados


por consanguinidade ou afinidade. Também é certo que, ao adotar animais não
humanos, criam-se vínculos afetivos bastante representativos, e todos passam a
integrar a unidade familiar. Por família multiespécie, pois, compreende-se aquela

1ALFA. Direção: Albert Hughes. Produção: Studio 8. Estados Unidos: Columbia Pictures, 2018. DVD.
2 NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; VARELA, Ana Maria Alves Rodrigues. Família, família,
cachorro, gato, galinha: a família multiespécie e a guarda compartilhada dos animais de estimação,
após a ruptura do vínculo conjugal no Brasil. Family, family, dog, cat, chicken: the multispecies family
and the shared. Guard of pets, after the break of themarital bond in Brazil. Revista Internacional
Consinter de Direito, nº VI, 1º semestre de 2018, p. 409.
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formada a partir da convivência entre animais humanos e não humanos, fundada


nos vínculos de afeto e carinho daí decorrentes.

Em razão disso, não mais se justifica o tratamento previsto para os animais


não humanos pelo Código Civil, que deles trata essencialmente no Livro III da Parte
Especial, destinado ao Direito das Coisas. Pelo contrário, animais não humanos são
seres sencientes, dotados de emoção e sentimento.

A propósito, destaca-se a lição de OLIVEIRA JÚNIOR3:

Fica cada vez mais evidenciada a realidade dinâmica que reveste o Direito.
Na medida em que novas interpretações são feitas às normas jurídicas,
incluindo nelas recentes valores ligados à cultura social, há um notável
avanço da civilização. Com o novo status, os animais ficam equiparados, no
tocante à sensibilidade, aos homens, porém cada um carregando as
diferenças específicas relacionadas a seus interesses e necessidades. O
ser humano é dotado de inteligência, volição para se definir diante das
circunstâncias, com capacidade suficiente para projetar seus objetivos e
traçar metas para atingi-los. O animal, por sua vez, deixa a categoria de
coisa e ingressa na especial de seres sensíveis, com capacidade suficiente
para demonstrar emoções, como o sofrimento e angústia, além de receber a
tutela necessária de proteção à vida, à segurança e ao seu bem-estar.

Então, é razoável que, uma vez rompida a união estável ou dissolvido o


vínculo matrimonial, a tutela jurídica dos animais não humanos que integram a
família multiespécie não mais receba o tratamento dispensado aos animais pelo
Código Civil, como se fossem meras “coisas”. Nesse sentido, questões relevantes
como os direitos de convivência e visitação e o dever de sustento dos animais não
humanos recebem, cada vez mais, atenção da doutrina e dos Tribunais pátrios.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do


REsp nº 1.713.167/SP, de relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão reconheceu o
direito de visitas a animal de estimação de um ex-casal, destacando que “a ordem
jurídica não pode, simplesmente, desprezar o relevo da relação do homem com seu
animal de estimação, sobretudo nos tempos atuais”. Ainda segundo o Ministro
Relator, “deve-se ter como norte o fato, cultural e da pós-modernidade, de que há

3 OLIVEIRA JÚNIOR, Flávio. Animais são seres sencientes. Migalhas: 2019. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/depeso/309993/animais-sao-seres-sencientes. Acesso em: 02 de maio
de 2021.
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uma disputa dentro da entidade familiar em que prepondera o afeto de ambos os


cônjuges pelo animal. Portanto, a solução deve perpassar pela preservação e
garantia dos direitos à pessoa humana, mais precisamente, o âmago de sua
dignidade”. Por fim, foi destacado que “os animais de companhia são seres que,
inevitavelmente, possuem natureza especial e, como seres sencientes - dotados de
sensibilidade, sentindo as mesmas dores e necessidades biopsicológicas dos
animais racionais -, também devem ter o seu bem-estar considerado”4.

4 RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. ANIMAL DE


ESTIMAÇÃO. AQUISIÇÃO NA CONSTÂNCIA DO RELACIONAMENTO. INTENSO AFETO DOS
COMPANHEIROS PELO ANIMAL. DIREITO DE VISITAS. POSSIBILIDADE, A DEPENDER DO CASO
CONCRETO.
1. Inicialmente, deve ser afastada qualquer alegação de que a discussão envolvendo a entidade
familiar e o seu animal de estimação é menor, ou se trata de mera futilidade a ocupar o tempo desta
Corte. Ao contrário, é cada vez mais recorrente no mundo da pós-modernidade e envolve questão
bastante delicada, examinada tanto pelo ângulo da afetividade em relação ao animal, como também
pela necessidade de sua preservação como mandamento constitucional (art. 225, § 1, inciso VII -
"proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função
ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade").
2. O Código Civil, ao definir a natureza jurídica dos animais, tipificou-os como coisas e, por
conseguinte, objetos de propriedade, não lhes atribuindo a qualidade de pessoas, não sendo dotados
de personalidade jurídica nem podendo ser considerados sujeitos de direitos. Na forma da lei civil, o
só fato de o animal ser tido como de estimação, recebendo o afeto da entidade familiar, não pode vir
a alterar sua substância, a ponto de converter a sua natureza jurídica.
3. No entanto, os animais de companhia possuem valor subjetivo único e peculiar, aflorando
sentimentos bastante íntimos em seus donos, totalmente diversos de qualquer outro tipo de
propriedade privada. Dessarte, o regramento jurídico dos bens não se vem mostrando suficiente para
resolver, de forma satisfatória, a disputa familiar envolvendo os pets, visto que não se trata de simples
discussão atinente à posse e à propriedade.
4. Por sua vez, a guarda propriamente dita - inerente ao poder familiar - instituto, por essência, de
direito de família, não pode ser simples e fielmente subvertida para definir o direito dos consortes, por
meio do enquadramento de seus animais de estimação, notadamente porque é um munus exercido
no interesse tanto dos pais quanto do filho. Não se trata de uma faculdade, e sim de um direito, em
que se impõe aos pais a observância dos deveres inerentes ao poder familiar.
5. A ordem jurídica não pode, simplesmente, desprezar o relevo da relação do homem com seu
animal de estimação, sobretudo nos tempos atuais. Deve-se ter como norte o fato, cultural e da pós-
modernidade, de que há uma disputa dentro da entidade familiar em que prepondera o afeto de
ambos os cônjuges pelo animal. Portanto, a solução deve perpassar pela preservação e garantia dos
direitos à pessoa humana, mais precisamente, o âmago de sua dignidade.
6. Os animais de companhia são seres que, inevitavelmente, possuem natureza especial e, como ser
senciente - dotados de sensibilidade, sentindo as mesmas dores e necessidades biopsicológicas dos
animais racionais -, também devem ter o seu bem-estar considerado.
7. Assim, na dissolução da entidade familiar em que haja algum conflito em relação ao animal de
estimação, independentemente da qualificação jurídica a ser adotada, a resolução deverá buscar
atender, sempre a depender do caso em concreto, aos fins sociais, atentando para a própria evolução
da sociedade, com a proteção do ser humano e do seu vínculo afetivo com o animal.
8. Na hipótese, o Tribunal de origem reconheceu que a cadela fora adquirida na constância da união
estável e que estaria demonstrada a relação de afeto entre o recorrente e o animal de estimação,
reconhecendo o seu direito de visitas ao animal, o que deve ser mantido.
9. Recurso especial não provido.
(REsp nº 1.713.167/SP, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, STJ, Quarta Turma, julgado em 19/06/2018,
publicado no DJe de 09/10/2018)
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Com efeito, não só o direito de convivência deve ser preservado. A rigor,


podem e devem ser definidas outras questões também relevantes, como guarda
compartilhada ou unilateral e dever de sustento do animal não humano, observadas
as possibilidades dos ex-cônjuges ou ex-companheiros.

O Direito das Famílias, mais que qualquer outro ramo do Direito, molda-se
constantemente à realidade, atualizando-se conforme vão se estabelecendo novas
formas de os indivíduos relacionarem-se entre si e com animais não humanos,
inclusive. A família multiespécie é realidade e está cada vez mais presente na
sociedade, de modo que é dever dos operadores do Direito oferecerem tutela
jurídica efetiva a essa nova forma de estabelecimento do vínculo familiar, seja
editando leis específicas, seja analisando profundamente a questão nos Tribunais
pátrios.

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