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A prevalência do critério médico na cobertura contratual de terapias


multidisciplinares para beneficiários de planos de saúde suplementar
diagnosticados com transtorno do espectro do autismo

O transtorno do espectro do autismo é um transtorno neurológico


caracterizado pelo comprometimento na interação social, comunicação verbal e não
verbal e comportamento restritivo e repetitivo1. A pessoa com transtorno do espectro
do autismo é considerada pessoa com deficiência para todos os efeitos legais,
consoante dispõe o art. 1º, § 2º, da Lei nº 12.764/2012. Seus direitos estão
especificados no art. 3º do mesmo diploma legal, dentre os quais está arrolado, no
inc. III, o acesso a ações e serviços de saúde, nestes termos:

Art. 3º. São direitos da pessoa com transtorno do espectro autista: [...];
III - o acesso a ações e serviços de saúde, com vistas à atenção integral às
suas necessidades de saúde, incluindo:
a) o diagnóstico precoce, ainda que não definitivo;
b) o atendimento multiprofissional;
c) a nutrição adequada e a terapia nutricional;
d) os medicamentos;
e) informações que auxiliem no diagnóstico e no tratamento; [...].

Por sua vez, o Estatuto da Pessoa com Deficiência prevê, em seu art. 5º,
parágrafo único, proteção incrementada às crianças com deficiência, consideradas
especialmente vulneráveis. E seu art. 8º determina que é dever do Estado, da
sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a
efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à dignidade, ao respeito, entre
outros, inclusive aqueles decorrentes da Constituição da República, da Convenção
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis
e de outras normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico.
Ao encontro da proteção legal, a moderna ciência defende que o diagnóstico
e a intervenção precoce são importantíssimos para a boa evolução dos pacientes
diagnosticados com transtorno do espectro do autismo, pois, quanto mais cedo são
introduzidas novas práticas e rotinas terapêuticas capazes de estimular o

1 O que é autismo ou Transtorno do Espectro do Autismo (TEA)? Disponível em:


https://tismoo.us/saude/o-que-e-autismo-ou-transtorno-do-espectro-do-autismo-tea/. Acesso em 19 de
outubro de 2020.
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funcionamento do cérebro, mais os neurônios podem ser treinados a superar as


limitações decorrentes do distúrbio2.
Nesse aspecto, os atendimentos multidisciplinares (v.g., fonoterapia, terapia
ocupacional, psicoterapia, psicopedagogia, psicomotricidade, equoterapia,
musicoterapia) são fundamentais para o desenvolvimento psicoterapêutico e
neurológico dos pacientes diagnosticados em tenra idade com transtorno do espectro
do autismo, e a prescrição médica deve ser rigorosamente observada pelas
operadoras dos planos de saúde suplementar.
Tanto é assim que o Código de Ética Médica prevê expressamente, seja no
item XVI do Capítulo I, seja no art. 52 do Capítulo VII, que não pode haver limitação
do critério médico na escolha do tratamento:

XVI - Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de


instituição, pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios
cientificamente reconhecidos a serem praticados para o estabelecimento do
diagnóstico e da execução do tratamento, salvo quando em benefício do
paciente.

É vedado ao médico: [...].


Art. 52. Desrespeitar a prescrição ou o tratamento de paciente, determinados
por outro médico, mesmo quando em função de chefia ou de auditoria, salvo
em situação de indiscutível benefício para o paciente, devendo comunicar
imediatamente o fato ao médico responsável.

Deve prevalecer o entendimento de que a Resolução Normativa nº 428/2017


da Agência Nacional de Saúde, a qual atualizou o Rol de Procedimentos e Eventos
em Saúde, constitui referência básica para cobertura assistencial mínima nos planos
privados de assistência à saúde contratados a partir de 1º de janeiro de 1999. Como
já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, desde que haja cobertura para a doença,
deverá haver também cobertura para os procedimentos necessários para assegurar
seu tratamento3. Além disso, o Código de Defesa do Consumidor contém normas cuja
índole é de ordem pública e interesse social, sendo indisponíveis e inafastáveis, pois
resguardam valores básicos e fundamentais da ordem jurídica do Estado Social,
conforme disposto em seu art. 1º4.

2 Neuroplasticidade e o cérebro no TEA. Disponível em: https://neuroconecta.com.br/neuroplasticidade-


e-o-cerebro-no-tea/. Acesso em 19 de outubro de 2020.
3 AREsp nº 1.001.663/RJ, Superior Tribunal de Justiça, Quarta Turma, Relator Ministro Raul Araújo,

julgado monocraticamente em 18/10/2016, publicado no DJe em 07/11/2016.


4 REsp nº 586.316/MG, Superior Tribunal de Justiça, Segunda Turma, Relator Ministro Herman

Benjamin, julgado em 17/04/2007, publicado no DJe em 19/03/2009.


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Quaisquer restrições de direitos ao consumidor devem estar expressas,


legíveis e claras no contrato, sob pena de caracterizar-se prática ilegal e abusiva, além
de implicar falha grave no dever de informação ao consumidor, direito previsto no art.
6º, III, do Código de Defesa do Consumidor5. Especialmente no que diz respeito às
relações de consumo estabelecidas em contratos de adesão, o princípio pacta sunt
servanda deve ser mitigado, a fim de não frustrar a expectativa do consumidor de
efetivamente usufruir a cobertura oferecida pelo plano de saúde contratado.
Assim, eventual recusa administrativa das operadoras dos planos de saúde
suplementar em oferecer cobertura contratual para terapias multidisciplinares
prescritas por médicos assistentes de beneficiários diagnosticados com transtorno do
espectro do autismo não só configura prática abusiva, mas restringe direitos e
obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, em evidente afronta ao
que prevê o art. 51, caput, IV, e § 1º, II, do CDC6.
O direito à saúde é um direito social, elencado no art. 6º, caput, da
Constituição da República7, e está diretamente ligado ao princípio da dignidade da
pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil8. Portanto, sempre
que se estiver diante de prescrição médica para realização de terapias
multidisciplinares, é patente a necessidade e o dever de ampliação da cobertura
contratual mínima estipulada pelo Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde e pelas
Diretrizes de Utilização da Agência Nacional de Saúde.

5 Art. 6º. São direitos básicos do Consumidor:


III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta
de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os
riscos que apresentem; [...].
6 Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de
produtos e serviços que: [...];
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em
desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade; [...].
§ 1º. Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: [...];
II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a
ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual; [...].
7 Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte,
o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de
2015)
8 Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e

do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...];
III - a dignidade da pessoa humana; [...].

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