A obra de arte é um desafio tanto ao seu criador quanto
àquele que a observa; não a explicamos propriamente, ajustamo-nos a ela. O ato de interpretarmos a obra é de ímpar possibilidade, já que a fazemos no substrato daquilo que enxergamos e pensamos do mundo. É partindo da experiência contemplativa que o futuro artista tem, seja no grupo a que pertence ou ainda antes de pertencer propriamente a uma escola, que o novo artista busca sua própria experimentação estética passando a ser autor e criador de sua própria arte. Para que ocorra esta experiência estética autônoma, faz-se necessário que exista uma contemplação desinteressada e sem nenhuma espécie de preconceitos. Isto leva o artista a observar a obra de arte como é em si mesma, sem apego e mantendo um certo distanciamento dela. Os sentidos devem estar livres para receber aquilo que, a priore, não é muito familiar. Por fim, é com esta espécie de sentimento procurando encontrar o belo em todo e qualquer espaço da cultura humana que é gerado e em seguida nasce o artista bem como aquele que “transgredindo”, trará o “novo”.
A ruptura em ação
Muitas são as teorias sobre a arte, se ela é uma imitação ou
representação da natureza, das ideias e da ordem. Na Grécia antiga Platão afirmou que a arte nada mais era do que “cópias” imperfeitas que a alma trazia consigo de outras dimensões da realidade. A criação artística seria assim uma redescoberta ou um reencontrar-se com a beleza, que na verdade já estaria dentro de nós. Tudo já está na alma do artista, apenas vindo a tomar forma conforme fatores e influências externas. Aristóteles, entretanto, apresenta o conceito de mímesis: a arte não é uma imitação da natureza, ela é uma prática que vai à fronteira do imaginário, corrigindo-a, ampliando-a, dando-lhe novas caras, fazendo- lhe parecer e ser outra coisa. É, então, dentro deste conceito de maior liberdade, de existir por si só, que a arte invade todo o espaço humano nas suas mais diversas representações artísticas e é justamente por ser assim que a arte gera filhos e que estes filhos rompem com velhas estruturas de representação, para apresentarem as suas criações próprias. A arte busca um abandono das amarras do passado e a adoção de um novo mundo. O artista parece um rebelado com a realidade circundante. Às vezes dá-nos a impressão de estar completamente envolvido em uma realidade psíquica considerada não usual. É uma viagem ao imaginário; é como dizia Boris Vian: “Essa história é uma história verdadeira, pois eu a inventei do início ao fim”. É por este motivo que o artista dentro de seu próprio “gueto” isola-se e passa de mero observador ou compartícipe, a produtor de uma arte própria e peculiar que receberá sua digital. É este supremo instante em que a arte perde um Narciso. Nascido, então, desta ruptura, tal como um filho que depois de nove meses alimentando-se no ventre materno tem que vir à luz e estrear. Sim! Decorrido o tempo em que é apenas um ente recebedor passivo, doravante irá mostrar sua cara, suas formas, dizer a que veio; e tendo a capacidade de atrair olhares e, sendo possuidor de um carisma, tornar-se-á como aquela criança que, para além da beleza estética, atrai o olhar e a apreciação de todos. Este, na verdade é o lado mais onírico da ruptura, já que o eu artístico é fundamentalmente formado com base em identificações colhidas dos outros artistas(é o seu DNA); ou seja, não se pode desprezar, em momento nenhum, os antecedentes que tornaram-se substrato ou base para o que se pode chamar de novo. Poderíamos imaginar uma arqueologia do artista onde ocorrem sedimentações de tempo e espaço, bem como de eventos aleatórios que constroem e reconstroem cidades imaginárias e reais, dando às atuais uma arquitetura amplamente diversa da que lhe serviram de substrato. O que se forma e aparece como resultado hoje, é o que faz acender o olhar à obra do novo artista, que apesar de não seguir uma ordem linear; é de lá que ela vem, é daquele momento aparentemente distante e sem ligação que ela (a obra de arte) surgiu. Mas a entrada do novo artista em cena não se dá apenas pelo desligamento de seus antecessores, tudo isto ocorre de forma bem gradativa, a aceitação nem sempre é instantânea. Há um jogo de sedução entre a obra e a aceitação desta. É como deixa bem claro a leitura da obra de José Ramos Coelho: “No mundo da arte só há senhor e escravo, sedutor e seduzido, quem não é nem um nem outro, não é nada”. Permitir-se ao novo, ao que veio de uma ruptura é quase uma conversão; não se pode olhar o memorável ícone do modernismo “O Obaporu”, de Tarsila do Amaral, sem que sejamos tomado de um estranhamento, ao mesmo tempo em que existe nele um convite à sua aceitação e que, meio sem saber porque, aquela tela cheia de uma nova estética passa a preencher um espaço de arte que achava-se vago: o inusitado, o diferente, o disforme, daquilo que nem sequer existia e agora é moderno. Um outro prisma do artista ou da arte em si é que ela surge da ruptura, da quebra daquele viés chamado tradição, que é um carimbo do tempo; é o fato de que no jogo da sedução onde estão imersos emoções e sentimentos, a regra parece não ser a mais convencional e sim o deixar-se enganar, consentir a permissividade, deixar-se imergir em toda a nova retórica. Mas na história também é assim, basta observar a reforma, os modelos econômicos que se alteram e etc. Antes, porém, que se dê a ruptura, dar-se-á a filiação, pois como já foi dito: ninguém vem ao mundo sozinho, faz-se necessário que o artista, antes de assim o ser, no sentido mais amplamente estético e filosófico da palavra, congregue-se a uma escola e dela abstraia, observe, consuma e beba tudo quanto for possível e da forma mais variada, fazendo ainda uma auto crítica (uma verdadeira auto-análise), decorrendo disto que, como um broto de uma árvore vítima de alguma mutação genética, surja uma nova árvore com fruto diverso daquele outrora existente, rompendo paradigmas de cores, sabores, formas, odores de tudo aquilo que se conhece. Para constituir-se à ruptura o novo artista que ainda bebe em sua família, passa a buscar alguma falha em todo aquele arcabouço ao qual se filiou. Ele busca, como um garimpeiro no meneio de sua bateia, encontrar o ouro para separá-lo das demais coisas e é, simbolicamente, nestas coisas faltantes que ele passa a construir sua arte, pois se já é ouro nada mais lhe vale. Passa a construir o edifício de sua Arte. Tudo isto porque a mente artística sempre é incrédula com a possibilidade de um todo perfeito e acabado, que não mereça retoques e complementos. Mas também, não se pode deixar de mencionar a situação vivida pelo artista, visto que a arte surge em qualquer ambiente, seja num planalto onde existem lagos límpidos e cachoeiras tranqüilas ou nos charcos de um pântano, é lá que a flor de lotus nasce. A vida sempre responde com arte em qualquer situação, não fosse assim não constataríamos belas obras de arte pelas mãos de quem se quer as tinha em perfeição; a exemplo disso deixou-nos grande obra de escultura em pedra sabão o mestre Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. É notável que no ser humano e, especialmente na mente artística, parece existir a capacidade de, nos reveses da existência, surgirem inexplicavelmente motivação para construção de um mundo belo e perfeito ou pelo menos contestá-lo de forma bela, trazendo para si aquele contentamento natural da arte, que não explica, mas que preenche espaços. Ainda no processo deste hiato, que é natural nas artes, fazemos uma analogia com os seres humanos, cujos filhos, cedo ou tarde, separam- se, erguendo suas próprias casas e vidas; às vezes tão distintas daquelas que a precederam durante toda a vida. Aqui, como na arte, busca-se o diverso, mas dentro desta construção sempre encontramos vestígios do passado ao qual esteve intimamente ligado. “como nossos pais(...)”, interpretado magistralmente por Elis Regina, depõe a favor disto. É, portanto, na instauração da obra de arte, na poiética, que se observa toda semelhança ou não que o artista consegue extirpar ou conservar em sua obra. É como montar um quebra cabeça das semelhanças deixando passar por um veio o que há de original. É como diz, dentro do mesmo diapasão, Tania Rivera: A arte nasce de um embuste fundamental, e o artista, de uma idealização forçada. Segundo Jean Florence, o criador forma, ao lado do delirante e do criminoso, a tríade de figuras da transgressão nas quais o homem não pode deixar de reconhecer obscuramente seus duplos, gigantes grandiosos ou inquietantes, aos quais a humanidade razoável deve sua precária lucidez. Nasce, então a obra tão esperada do artista. Seja música, poesia, pintura ou escultura, naquele instante é que ele olha e ver todo o seu eu ser consubstanciado numa abstração perfeita, que para aquele que a desfrutar será uma verdade, ainda que seja lamento, riso ou espanto. Mas o que dizer desta criatura que ao ser gerada parece ter tomado conta de si mesma, que parece ter criado vida própria, é como afirmou Freud: “dentre as várias liberdades do escritor, há igualmente a de escolher à vontade o seu mundo de representação, de tal maneira que este coincida com a realidade que nos é familiar, ou dela se distancie de uma maneira ou de outra”. Mas retornando àquele instante confuso da ruptura, onde o artista ainda não está plenamente constituído de si mesmo no que diz respeito as suas ideias autônomas e ainda percebendo que existe um ente faltante a quem ele busca e que ao mesmo tempo é atraído por ele, é então que nasce a culpa ou sentimento análogo de que a coisa faltante na verdade é um reflexo de si próprio e que isto, compreenda ou não, o levará à ruptura e conseqüente construção de seu novo mundo. Mas como abandonar o pai poeta, o pai artista? Se foi através dele que tudo recebemos, que em sua escola, bem como naquelas que lhe influenciaram, tudo absorvemos e, idolatradamente o amamos e a ele nos filiamos! Sim! Este é um difícil momento. É quando corta-se o cordão umbilical. Mas há um caminho e este é o da atividade poiética, visto que esta altera e reestrutura profundamente as relações do artista com tudo que já foi produzido. Como disserta José Ramos Coelho: “ao criar uma obra, o artista reconfigura e ressignifica as suas relação com o outro, remodelando o seu próprio Édipo. Como um Dimiurgo, ele imprime vida à massa informe de suas criações, dando corpo à sua fantasia criadora”. E é claro que isto se dá de forma muito mais perceptível no instante da ruptura. Por fim, vencidas todas estas etapas de gestação, culpa e cisão, chega-se ao prazer de ser o que é, ou seja, ser ele próprio, nome e sobrenome, conhecido e identificado como tal, autor de uma singularidade, ainda que por pouco tempo. É o momento mais livre e auspicioso vivido pelo artista, que por outro lado poderá levá-lo a dizer tal como cantava em sua angustia artística o “maluco beleza” Raul Seixas, (...) Eu devia estar contente porque eu tenho um emprego sou dito cidadão respeitável e ganho quatro mil cruzeiros por mês, eu devia agradecer ao Senhor por ter tido sucesso na vida como artista (...) e agora me pergunto: e daí? Eu tenho uma porção de coisas grandes pra conquistar e eu não posso ficar ai parado. E assim seguirá a arte, neste eterno começo e ruptura, contrariando Marcel Duchamp que em seu movimento de arte conceitual ousou prever a morte da arte tradicional de tela e moldura e daqueles artistas ícones que se colocavam na posição de super-homens, postura esta a que ele próprio foi elevado.