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Era e a
Revolução
Cultural -
Fritjof
Capra &
Antonio
Gramsci
Olavo de Carvalho
3ª edição revista e
comentada
A Nova Era e a Revolução Cultural -- Fritjof Capra &
Antonio Gramsci
3a edição,
revista e aumentada.
Índice
* Introdução geral à Trilogia
* Prefácio à Segunda Edição e Nota prévia [da 1ª Edição]
* Capítulo I: Lana Caprina, ou: A sabedoria do Sr. Capra
* Capítulo II: Sto. Antonio Gramsci e a salvação do Brasil
* Capítulo III: A Nova Era e a Revolução Cultural
* Apêndices:
o I. As esquerdas e o crime organizado
o II. O Brasil do PT
Observações finais
INTRODUÇÃO GERAL À TRILOGIA
MANUAL DO USUÁRIO
de O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras
e dos volumes que o antecederam: A Nova Era e a Revolução Cultural:
Fritjof Capra & Antonio Gramsci e O Jardim das Aflições: De Epicuro à
Ressurreição de César - Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil.
Texto lido no Lançamento de O Imbecil Coletivo. Faculdade da Cidade,
Rio de Janeiro, 22 de agosto de 1996.
Nesse primeiro volume, a forma adotada inicialmente não podia ser mais
clara e foi imposta pela natureza mesma do assunto: uma introdução, um
capítulo para Capra, outro para Gramsci, um retrospecto comparativo e
uma conclusão inescapável: as ideologias, quaisquer que fossem, estavam
sempre limitadas à dimensão horizontal do tempo e do espaço, opunham
o coletivo ao coletivo, o número ao número; perdida a vertical que unia a
alma individual à universalidade do espírito divino, o singular ao
Singular, perdia-se junto com ela o sentido de escala, o senso das
proporções e das prioridades, de modo que as ideologias tendiam a
ocupar totalitariamente o cenário inteiro da vida espiritual e a negar ao
mesmo tempo a totalidade metafísica e a unidade do indivíduo humano,
reinterpretando e achatando tudo no molde de uma cosmovisão
unidimensional.
As notas e apêndices, que aparentemente colocam alguma desordem na
forma do conjunto, servem aí a dois propósitos opostos e
complementares: de um lado, indicar as bases mais gerais que o
argumento conservava implícitas, mostrando ao leitor que a análise de
Capra e Gramsci era apenas a ponta visível de uma investigação muito
mais ampla que, àquela altura, só meus alunos conheciam através das
aulas e apostilas do Seminário de Filosofia, mas que, nas condições de
uma vida anormalmente agitada, eu não estava certo de poder redigir por
completo algum dia; de outro lado, indicar que minhas análises não
pairavam do céu das meras teorias, mas que se aplicavam à compreensão
de fatos políticos que se desenrolavam na cena brasileira na hora mesma
em que eu ia escrevendo o livro - daí as arestas polêmicas que dão a
trechos desse ensaio uma aparência de jornalismo de combate. Se alguns
leitores não viram no livro mais que essa superfície - como outros não
verão em O Imbecil Coletivo senão a crítica de ocasião a certos figurões
do dia e em O Jardim das Aflições um ataque ao establishment uspiano -
, não posso dizer que perderam nada, pois o restante e o melhor do que se
contém nesses livros não foi feito realmente para esses leitores e é bom
mesmo que permaneça invisível aos seus olhos.
Se no primeiro volume permiti que a idéia central fosse apenas esboçada
em fragmentos, um tanto à maneira minimalista, para que o leitor, antes
pressentindo-a do que percebendo-a, tivesse o trabalho de ir buscá-la no
fundo de si mesmo em vez de simplesmente pegá-la na superfície da
página, no segundo, O Jardim das Aflições, segui a estratégia inversa: ser
o mais explícito possível e dar à exposição o máximo de unidade,
obrigando o leitor a seguir uma argumentação cerrada, sem saltos ou
interrupções, ao longo de quatrocentas páginas. Mas, para não dar a
ilusão de que essa forma completa abrangesse a totalidade do meu
pensamento a respeito do tema, espalhei ao longo do texto centenas de
notas de rodapé que indicavam os pressupostos teóricos implícitos, as
possibilidades de aprofundamentos por realizar ( ou já realizados só
oralmente em aula ), e mil e uma sementes de desenvolvimentos
possíveis e interessantes, que eu realizaria se tivesse uma vida sem fim,
mas que os leitores inteligentes bem podem ir realizando por sua conta.
A unidade de argumentação de O Jardim das Aflições, que na minha
intenção, confirmada por alguns leitores, dá a esse livro não obstante
pesadíssimo e complexo a legibilidade de um romance policial, mostra
assim não ser a unidade cerrada de um sistema, mas a unidade de um
holon, como diria Arthur Koestler: algo que, visto de um lado, é um todo
em si, e, de outro lado, é parte de um todo mais vasto. Esta homologia de
parte e todo repete-se, por sua vez, na estrutura interna do livro, onde o
evento aparentemente insignificante que lhe serve de ponto de partida já
contém, na sua escala microcósmica, ou microscópica, as linhas gerais da
interpretação global da história do Ocidente, que é apresentada nos
capítulos restantes. Aqueles leitores que se queixaram de que um livro
tão substancioso começasse pelo comentário polêmico de um
acontecimento menor, mostraram não compreender bem uma das
mensagens principais do livro, que é a de que, à luz de uma metafísica da
História, não há propriamente acontecimentos menores - o grande e o
pequeno estão coeridos na unidade orgânica de um Sentido que tudo
pervade. Aquilo que nada pesa na ordem causal pode muito revelar na
ordem da significação.
E, na verdade, se houvesse acontecimentos perfeitamente
insignificantes, que nada merecessem senão o desprezo e o silêncio, o
terceiro volume da série, O Imbecil Coletivo, não poderia sequer ter sido
escrito: pois o que nele apresento é um mostruário comentado de
banalidades culturais que muito significam precisamente na medida em
que não valem nada. E, se decidi reuni-las num volume, dando-lhes a
dignidade de serem lembradas quando seus autores já nada mais forem
senão sombras no Hades, que é o sepulcro do irrelevante, foi
precisamente porque entendi que, partindo de cada uma delas, e girando
em círculos concêntricos cada vez mais amplos, se poderia chegar a
visões de escala universal semelhantes àquela em que, partindo de uma
picuinha cultural ocorrida no Museu de Arte de São Paulo em 1990,
mostrei aos leitores de O Jardim das Aflições o combate de Leviatã e
Behemot no horizonte inteiro da história Ocidental. E, não podendo
refazer tamanho esforço hermenêutico a cada nova babaquice cultural
que lesse nos jornais, decidi reunir algumas e oferecê-las aos leitores
como amostras para fins de exercício. O Imbecil Coletivo é, portanto, o
livro de tarefas que acompanha o texto-base trazido em O Jardim das
Aflições, ficando A Nova Era como abreviatura para principiantes.
Quem leia assim O Imbecil Coletivo, buscando ali as lições de casa para
reconstituir, desde três dezenas de exemplos, os lineamentos da visão da
História e do método interpretativo exposto nos volumes anteriores, e
buscando sempre a unidade orgânica entre a parte e o todo, entre a visão
filosófica de uma cultura milenar e as amostras da incultura
momentânea de um país esquecido à margem da História, esse terá
conquistado para si a melhor parte do que lhe dei. Pois é assim que se
lêem os livros dos filósofos, mesmo quando se trate apenas de um
filosofinho como este que lhes fala.
Admito que, se em qualquer dos três livros tivesse adotado uma forma
expositiva mais ao gosto acadêmico, eu não precisaria estar agora
chamando a atenção para uma unidade de pensamento que
transpareceria à primeira vista. Mas essa visibilidade custaria a perda de
todas as referências à vida autêntica e o aprisionamento do meu discurso
numa redoma lingüística que não combina nem com o meu
temperamento nem com a regra que me impus alguns anos atrás, de
nunca falar impessoalmente nem em nome de alguma entidade coletiva,
mas sempre diretamente em meu próprio nome apenas, sem qualquer
retaguarda mais respeitável que a simples honorabilidade de um animal
racional, bem como de nunca me dirigir a coletividades abstratas, mas
sempre e unicamente a indivíduos de carne e osso, despidos das
identidades provisórias que o cargo, a posição social e a filiação
ideológica superpõem àquela com que nasceram e com a qual hão de
comparecer, um dia, ante o Trono do Altíssimo. Estou profundamente
persuadido de que somente nesse nível de discurso se pode filosofar
autenticamente.
Ademais, existe algum mérito pedagógico em não ser bem arrumadinho,
em poder dispor os dados não na ordem mais costumeira em que os
desejaria o espectador preguiçoso, mas em desarrumá-los
inteligentemente de modo a obrigar o leitor a tomar parte ativa na
investigação. E há um prazer imenso em misturar os gêneros literários
quando se é autor de um livreto que antes os distinguiu e catalogou com
requintes de rigidez formal1.
Estou imensamente satisfeito de ter podido concluir esta trilogia e de
poder estar aqui hoje, nesta celebração que para mim é menos a do
lançamento de um livro que a da conclusão de uma parte, de uma etapa
da tarefa que me cabe nesta vida. Tarefa que é, em essência, a de romper
o círculo de limitações e constrangimentos que o discurso ideológico tem
imposto às inteligências deste país, a de vincular a nossa cultura às
correntes milenares e mais altas da vida espiritual no mundo, a fazer em
suma com que o Brasil, em vez de se olhar somente no espelho estreito
da modernidade, imaginando que quatro séculos são a história inteira do
mundo, consiga se enxergar na escala do drama humano ante o universo
e a eternidade. Tarefa que é, no seu mais elevado e ambicioso intuito, a
de remover os obstáculos mentais que hoje impedem que a cultura
brasileira receba uma inspiração mais forte do espírito divino e possa
florescer como um dom magnífico a toda a humanidade.
22/08/96
NOTAS
1. V. Os Gêneros Literários: Seus Fundamentos Metafísicos ( Rio, Stella
Caymmi / IAL, 1993 ) Voltar
NOTAS
1. V. José Arthur Gianotti, "Conversa com Richard Rorty", Jornal do
Brasil, 26 de maio de 1994. É no mínimo estranho que um homem como
Gianotti, tão valente ao expor idéias políticas mesmo quando lhe atraiam
a ira dos sumos-sacerdotes da esquerda nacional, se cubra de cautelas ao
criticar um pensamento tão vulnerável como o de Rorty. Explica-se,
talvez, pela crônica timidez uspiana, inibição intelectual que se tornou,
em versão fetichizada, a caricatura tupiniquim do "rigor" ensinado pelos
primeiros mestres - franceses - fundadores da USP. O "rigor" uspiano é
na verdade moleza, tremor da geléia terceiromundana ante a autoridade
dos ídolos da moda - compensação junguiana pela petulância ante o
legado espiritual do passado. Mesmo em sua versão original européia,
herdeira de nobres tradições filosóficas, um rigorismo acadêmico
inibitório torna-se muitas vezes o refúgio comunitário onde o intelecto
mal dotado vai abrigar-se contra os perigos da investigação solitária -
vale dizer, contra o exercício mesmo da filosofia. O verdadeiro rigor
filosófico, ao contrário, é pura coragem interior, não se curva senão ante
a evidência e não tem nada de temor reverencial adolescente ( ou
colonial ) ante os prestígios acadêmicos do dia. Com a ascensão da
intelectualidade paulista ao primeiro plano da vida nacional, a inversão
uspiana do rigor, que devota ao prestígio o culto que nega à verdade,
ameaça contaminar o pensamento brasileiro como um todo, selando a
morte da inteligência nesta parte do mundo. Nada vai aqui contra
Gianotti, homem capaz e correto, que só peca por admirar quem não
merece - ou por fingir admirar, talvez, já que o floreio bajulatório
involuntariamente irônico é outra marca registrada do estilo uspiano,
onde faz as vezes de polidez acadêmica. Voltar
2. O Imbecil Coletivo. Atualidades Inculturais Brasileiras, Rio, IAL &
Stella Caymmi Editora, 1994, que forma, com o presente volume e com
O Jardim das Ilusões. Epicuro e a Revolução Gnóstica, que também virá
a público em breve, uma trilogia dedicada ao estudo da patologia cultural
brasileira na presente fase da nossa História. Voltar
3. Um deles foi Fernando Henrique Cardoso ( Jornal do Brasil, 11 nov. 93
), um homem que conhece as esquerdas muito bem e que, por isto
mesmo, sentiu o dever de se opor a elas no momento em que mais
poderia ajudá-las. O outro foi Oliveiros da Silva Ferreira, que vem
explorando o assunto em vários artigos publicados em O Estado de S.
Paulo. Voltar
4. O mito da Revolução Brasileira é um componente ativo do pathos
esquerdista desde a década de 30. "Fadado a um grande destino, o Brasil
seria a terceira grande revolução neste século. A primeira, a União
Soviética, segunda a República Popular da China, e a terceira, a
República Democrática Popular do Brasil" ( Luís Mir, A Revolução
Impossível, São Paulo, Best Seller, 1994, p. 10 ). Voltar
5. Nada retirei nem alterei do original nesta Segunda Edição, apenas
corrigi erros de grafia, acrescentei este Prefácio, uns quantos adendos, e
adendos de adendos, e muitas notas de rodapé. O leitor austero achará
que são excrescências complicatórias, mas gosto delas justamente por
isso, porque eliminam do texto a enganosa linearidade e lhe dão aquele
aspecto vivente de rede nervosa, de trama vegetal, que faz com que,
precisamente, um texto seja um texto. Voltar
6. Limito-me ao estudo da estratégia e, mais brevemente, de alguns
aspectos da gnoseologia, sem tocar por exemplo na sociologia
gramsciana, que mereceria - não por seu valor científico, mas pela força
persuasiva da sua alucinante falsificação da realidade - um exame mais
atento. Prometo fazê-lo no livro O Antropólogo Antropófago. A Miséria
das Ciências Sociais, a sair no ano que vem. Também não pude senão
mencionar de longe as concepções estéticas e literárias de Gramsci, tão
influentes até hoje, mas sobre as quais não pretendo escrever nada
nunca, se os deuses me pouparem esse castigo. [ Nota da 2a. ed. ] Voltar
I
LANA CAPRINA,
OU: A SABEDORIA DO SR. CAPRA
Enquanto essas edições não aparecem, o sr. Capra já vai tratando, por
conta, de introduzir no pensamento chinês umas modificações mais
sérias. Ele diz, por exemplo, que na civilização chinesa o homem não
procura dominar a natureza, mas integrar-se nela. Novamente, a
sabedoria chinesa do sr. Capra pegou a China desprevenida: um chinês
nem mesmo entenderia essa frase, pela razão de que na sua língua não há
uma palavra que signifique "natureza" no sentido ocidental, isto é, ao
mesmo tempo o mundo visível e a ordem invisível que o governa (
ambiguidade que as línguas modernas herdaram do grego physis ). O
chinês é nisto, com o perdão da palavra, mais "analítico": tem um termo
para designar o mundo visível ( khien ), e um outro ( khouen ) para a
ordem invisível. Para compensar, o mundo visível ou khien abrange,
"sinteticamente", tanto a natureza terrestre quanto a sociedade humana.
O sr. Capra não diz a qual das duas "naturezas" o homem deveria
integrar-se, mas é claro que ninguém poderia integrar-se em ambas
simultaneamente e de um mesmo modo. Os antigos chineses já haviam
advertido isto, e resolveram a contradição propondo uma dualidade de
atitudes para fazer face a esse duplo aspecto da natureza: o sábio, diz o I
Ching, deve buscar ativamente integrar-se na ordem invisível ou khouen
( chamada por isto "perfeição ativa" ) e contornar suavemente as
exigências da natureza terrestre ( khien ou "perfeição passiva" ). Dito de
outro modo: integrar-se na ordem celeste, integrando em si e superando
dialeticamente a ordem terrestre ( e portanto absorvendo-a, por sua vez,
na ordem celeste ). O "celeste" e o "terrestre", nesse sentido, identificam-
se respectivamente ao dharma e ao kharma da tradição hindu. O homem
não se "integra" no kharma, porém "absorve-o" na medida em que se
integra no dharma: livra-se do peso da terra na medida em que atende ao
apelo celeste. Exatamente no mesmo sentido diz o cristianismo que o
homem vence a necessidade natural na medida em que segue as vias da
Providência. Não é bem o que diz o sr. Capra.
O ideograma Wang ( "o Imperador" ) esclarece isso melhor. Ele
constitui, por si, um compêndio de cosmologia chinesa. Compõe-se de
três traços horizontais - o Céu em cima, a Terra em baixo, o Homem no
meio, formando a tríade Tien-Ti-Jen, "Céu-Terra-Homem" - cortados
por um traço vertical, o Tao, que se traduz um tanto convencionalmente
por Lei ou Harmonia. A Harmonia consiste em que cada coisa fique no
lugar que lhe cabe, de modo que, por trás de todas as mudanças por que
passa o mundo, a ordem suprema não seja violada ( embora neste mundo
de aparências ela o seja necessariamente, pois, como dizia o Evangelho,
"é necessário que haja escândalo"; mas no fim todas as desordens parciais
são reintegradas na ordem total ).
Na Tríade chinesa, o homem é chamado "filho do Céu e da Terra".
Sendo o Céu o pai, já se vê, pelo hexagrama 37, quem é que manda. O
homem governa portanto o mundo visível, mas não o faz por arbítrio
próprio, e sim em nome de uma ordem transcendente. Tien não significa
o "céu" no sentido material, mas a "perfeição celeste" ou mais
propriamente a "vontade do Céu"; em inglês, que o sr. Capra
compreende melhor, não o sky, mas o heaven, morada do Espírito Santo.
O sábio ou imperador apreende no invisível a vontade do Céu e a põe em
execução na Terra. Na sala central do seu palácio, ele cumpre
diariamente ritos de um complexo simbolismo geométrico e
numerológico ( similar ao do pitagorismo ), mediante os quais os
arquétipos celestes "descem" ( exatamente como na missa "desce" o
Espírito Santo ) para trazer à Terra a ordem e a harmonia. Se o
imperador pára de fazer os ritos, a Terra - sociedade e natureza ao
mesmo tempo - entra em convulsão, espalham-se por toda parte a
ignorância, o medo, a violência, a fome, a peste.
Não era só a interrupção dos ritos que podia trazer a catástrofe. "O
imperador - escreve Max Weber em A Religião da China - tinha de se
conduzir segundo os imperativos éticos das escrituras clássicas. O
monarca chinês permanecia basicamente um pontífice. Ele tinha de
provar que era mesmo 'filho do Céu', o regente aprovado pelos Céus,
para que o povo, sob o seu governo, vivesse bem. Se os rios
arrebentavam os diques ou a chuva não caía apesar de todos os ritos, isto
era prova - acreditava-se expressamente - de que o imperador não tinha
as qualidades carismáticas requeridas pelo Céu."
O homem governa a Terra, mas em nome do Céu. Governa como
pontifex, "construtor de pontes", que liga a Terra ao Céu através do Reto
Caminho, o Tao. Caso se afaste do Reto Caminho, ele perde de vista a
Vontade do Céu e já não pode governar senão em nome próprio, como
tirano e usurpador. Aí, num choque de retorno, ele perde seu poder e cai
sob o domínio das potências terrestres que antes comandava. Como a
Terra designa ao mesmo tempo a natureza física e a sociedade humana, o
choque pode significar tanto uma revolução civil ou golpe militar,
quanto uma tempestade ou terremoto. O monarca que cai representa, por
analogia, qualquer homem que, rompendo com a ordem celeste, perca de
vista o seu destino ideal e caia presa das paixões abissais. É a situação
descrita no hexagrama 36, O Obscurecimento da Luz: "Primeiro ele
subiu ao Céu, depois mergulhou nas profundezas da Terra." O
comentário tradicional, resumido por Richard Wilhelm, é o seguinte: "O
poder da treva subiu a um posto tão alto que pode trazer dano a quantos
estejam do lado do bem e da luz. Mas no fim o poder das trevas perece
por sua própria obscuridade."
Já se vê que o conselho do sr. Capra, afetado pela ambiguidade da palavra
"natureza", pode ter dois significados opostos: com "integrar-se",
pretende ele que obedeçamos à Vontade do Céu ou que mergulhemos nas
profundezas da Terra? As falas dos profetas, quando obscuras, merecem
interpretação. Interpretemos.
Na versão do sr. Capra, o Céu não é mencionado. A tríade fica reduzida
a uma dualidade: de um lado o homem, de outro a natureza visível. O
macho e a fêmea. O yang e o yin. A cada um só resta a alternativa de
subjugar o outro ou "integrar-se" nele. O homem da civilização
industrial optou pela primeira hipótese. O sr. Capra advoga a segunda.
É verdade o que diz o sr. Capra, que a civilização ocidental optou por
dominar a natureza. Mas é verdade também que, desde o Renascimento
ao menos, ela apagou ( exatamente como o sr. Capra ) toda referência a
uma ordem transcendente ( Tien ) e deixou o homem sozinho, face a
face com a natureza material. Desde então a história das idéias
ocidentais tem sido marcada por uma oscilação pendular entre as
ideologias da dominação e as ideologias da submissão: classicismo e
romantismo, revolução e reação, historicismo e naturalismo,
cientificismo e misticismo, ativismo prometéico e evasionismo quietista,
marxismo e existencialismo e, last not least, revolução cultural socialista
versus ideologia da "Nova Era".
É neste último par de opostos que reside a chave para a compreensão do
nosso profeta. O sr. Capra acerta na mosca ( nenhum profeta pode
realizar o prodígio de errar sempre ) ao dizer que sua visão da história
cultural é uma alternativa ao marxismo. Para Marx e seus epígonos, a
natureza nada mais é que o cenário da história humana. Está aí não como
um ser, uma substância ontológica que o homem deva contemplar e
respeitar em sua constituição objetiva, mas como matéria-prima a ser
apropriada e transformada livremente segundo o arbítrio humano. A
natureza, em Marx, é ancilla industriae. O marxismo prossegue a
tradição de prometeanismo revolucionário do Renascimento,
potencializando-a mediante a submissão completa e explícita da natureza
à história. A isto é que se opõe a ideologia da Nova Era.
Mas ela não se opõe somente ao marxismo em geral, e sim a uma forma
específica de marxismo, que também, como ela, quis operar uma
"mutação", um giro de cento e oitenta graus na orientação do
pensamento humano. O fundador desta corrente marxista foi o ideólogo
italiano Antonio Gramsci ( 1891-1937 ). O gramscismo propõe uma
revolução cultural que subverta todos os critérios admitidos do
conhecimento, instaurando em seu lugar um "historicismo absoluto", no
qual a função da inteligência e da cultura já não seja captar a verdade
objetiva, mas apenas "expressar" a crença coletiva, colocada assim fora e
acima da distinção entre verdadeiro e falso. É a total submissão do
"objeto" ( natureza ) ao "sujeito" ( humanidade histórica ). Neste novo
paradigma, a ênfase da atividade científica já não cai no conhecimento
objetivo da natureza ( descrição exata da sua aparência visível e
investigação dos princípios invisíveis que a governam ), mas sim na sua
transformação pela técnica e pela indústria, a isto correspondendo, na
esfera das idéias, uma espécie de "revolução permanente" de todas as
categorias de pensamento a suceder-se numa aceleração vertiginosa do
devir histórico.
Contra isto levantou-se a ideologia da Nova Era. Ao prometeanismo
revolucionário, ela opõe a "integração na natureza"; à aceleração da
história, o equilíbrio "ecológico" da Nova Ordem Mundial; e, ao
historicismo absoluto, o "fim da História". Capra é inconcebível sem
Fukuyama. Capra é a casca da qual Fukuyama é o miolo. Todo o vistoso
"esoterismo" da Nova Era, com suas iniciações secretas, seus gurus, seus
magos e seus ritos, não constitui senão o exoterismo, o aparato religioso
externo e social, cujo interior, cujo "sentido esotérico" é na verdade uma
ciência bem moderna, racional e profana: o planejamento estratégico.
Fukuyama está para Capra exatamente como o esoterismo está para o
exoterismo, como a Igreja de João está para a Igreja de Pedro. Mas
ambas, cada qual no seu plano e pelos meios que lhe são próprios,
combatem um mesmo adversário.
O gramscismo fez muito sucesso nos anos 60, inspirando a febre
passageira do eurocomunismo e revigorando algumas esperanças
comunistas. No Brasil, conquistou praticamente a esquerda inteira, e o
PT é um partido essencialmente gramsciano, admita-o ou não
explicitamente. Mas o intento de renovação foi fraco e tardio: o
comunismo acabou sendo derrotado pela ascensão mundial da ideologia
da Nova Era. Afinal, a mistura de física quântica e simbolismos
orientais, experiências psíquicas e sexo livre, promessas de paz e
miragens de auto-realização, que essa ideologia oferece, é infinitamente
mais sedutora do que qualquer "historicismo absoluto". O Brasil, sempre
atrasado, é um dos poucos lugares do mundo onde o combate ainda
prossegue, com um feroz núcleo de remanescentes gramscianos
oferecendo uma quixotesca resistência local aos exércitos triunfantes da
Nova Era.
Mas, se o prometeanismo revolucionário representou o máximo da
hybris, da avidez dominadora do homem sobre a natureza, a ideologia da
Nova Era não é outra coisa senão o choque de retorno anunciado pelo I
Ching.
A Nova Era venceu a revolução gramsciana. Mas foi uma teratomaquia:
um combate de monstros. Diriam os chineses que foi um combate
suicida: que, sem a obediência comum a Tien, a luta entre Ti e Jen só
pode terminar pelo "Obscurecimento da Luz". A vitória da Nova Era
prenuncia, portanto, o próximo passo do ciclo das mutações: a
humanidade vai cair da autoglorificação prometéica na passividade
inerme; vai integrar-se, "ecologicamente", no equilíbrio da Nova Ordem
Mundial, onde o conformismo coletivo será assegurado mediante a justa
repartição dos meios de satisfazer as paixões mais baixas e mediante um
arremedo de religiosidade externa que dará a essas paixões uma aura
lisonjeira de "profundidade" e "autoconhecimento".
Pode-se interpretar isso psicanaliticamente. Gérard Mendel, no seu livro
La Révolte contre le Père, uma das mais importantes contribuições das
últimas décadas à psicanálise freudiana, diz que, ao longo da história, o
impulso do homem para superar o pai tem sido, como pretendia Freud,
um dos mais potentes motores do progresso. Mas este impulso,
prossegue ele, pode tomar duas direções: ou o homem supera e vence o
pai carnal integrando-se na ordem racional representada pelo pai ideal,
ou manda logo às urtigas a ordem ideal para, livre de toda trava moral,
matar o pai carnal e tomar posse da mãe. Esta última alternativa é a
revolta prometéica, a que se segue, num choque de retorno, a queda no
irracional, a regressão uterina, a "integração" do homem nas trevas. Daí,
segundo Mendel, a importância antropológica, e também
psicoterapêutica, das palavras da mais célebre oração cristã: a "revolta
contra o pai" só é saudável e frutífera quando empreendida "em nome do
Pai". Trocando em miúdos chineses: o pai carnal é, para o homem adulto
( Jen ), nada mais que um aspecto de Ti, a Terra. É preciso submetê-lo à
ordem celeste, Tien ou pai ideal, para aí então poder assumir, sem
usurpação nem violência, o governo justo e harmônico da Terra. Sempre
achei que o dr. Freud tinha algo de chinês.
Nos termos de Mendel, a revolução gramsciana é a revolta destrutiva
contra o pai, e a ideologia da Nova Era, com seus apelos à fusão das
consciências individuais numa sopa de miragens holísticas, é a regressão
uterina que se lhe segue. Todas as regressões uterinas anunciam-se pela
exacerbação da fantasia, pelo chamamento hipnótico das esperanças
insensatas, pela antevisão mediúnica de delícias sem fim. Todas
terminam na escravidão abjeta, na passividade inerme ante a agressão
das forças abissais, no obscurecimento da luz.
É inevitável que haja escândalo. A Nova Era venceu o prometeanismo
gramsciano, e sai de baixo: lá vem o hexagrama 36. There's coming a
shitstorm e Fritjof Capra é o seu profeta. Mas, no fim, que por certo não
se anuncia breve, o poder das trevas sucumbirá por força da sua própria
obscuridade.
O sr. Capra, como se vê, pouco entende dos assuntos em que exerce, para
um público multitudinário, uma autoridade profética. Ele prima pela
carência de informação elementar sobre a cosmologia chinesa, na qual
diz basear sua visão da história cultural, bem como sobre a história
cultural mesma, que ele procura, mediante generalizações grosseiras, e
escandalosas alterações da cronologia, encaixar à força num modelo
preconcebido.
Não questiono, aqui, a validade da proposta holística em geral. Reservo-
me o direito de fazê-lo num outro trabalho. Apenas creio que ela deve ter
defensores um pouco mais qualificados do que o sr. Capra.
Meu propósito foi dar um testemunho sobre um fato de relevância
mundial, que acontece bem diante das nossas barbas, e de cuja realidade
as gerações vindouras terão o direito de duvidar. Pois, para a razão e o
bom-senso, não é verossímil que milhares de intelectuais de prestígio,
em seu juízo perfeito, possam aceitar e aplaudir como um marco da
história do pensamento uma obra como O Ponto de Mutação, que não
atende sequer aos requisitos mínimos de informação fidedigna, de
autenticidade das fontes e de rigor conceptual que se exigem de uma tese
de mestrado. Dentre tantos outros defeitos que um livro pode ter, este
padece do único que não se pode tolerar em hipótese alguma: a ignoratio
elenchi, a ignorância completa do assunto. O sr. Capra define o seu livro,
pretensiosamente, como um novo modelo de história cultural baseado
nas concepções chinesas do homem e do universo. Mas ele não estudou o
suficiente nem a história cultural nem as concepções chinesas para que
sua opinião a respeito possa ter qualquer importância objetiva, fora do
seu círculo de convivência pessoal. O conteúdo de sua propalada
sabedoria do assunto é pura lana caprina.
O sucesso deste livro só pode ser explicado por um único fator,
inteiramente alheio ao seu valor intrínseco: sua oportunidade. Ele diz o
que as pessoas desejam ouvir, no momento em que o desejam. Ele
oferece uma perspectiva sedutora a um público que pede para ser
seduzido.
Que esse público não inclua somente populares incultos, mas intelectuais
de projeção, e que estes se prontifiquem a aceitar as promessas do autor
sem pedir-lhe sequer as credenciais científicas que se exigem de um
estudante de faculdade, é realmente um acontecimento inverossímil.
Mas, dizia Aristóteles, não é mesmo verossímil que tudo sempre se passe
de maneira verossímil. O inverossímil aconteceu. Ele atesta que, após
séculos de fúria iconoclástica voltada contra todas as crenças do passado
e os valores de outras civilizações, a opinião letrada do Ocidente enfim
se cansou de ser arrogante; mas, em vez de um arrependimento sincero,
está encenando diante de nós um arremedo de conversão, que deixa à
mostra todas as marcas do fingimento histeriforme. Estonteada pela
visão súbita de suas próprias culpas, ela abjurou de toda precaução crítica
como quem repele um vício do passado; e entregou-se, inerme e crédula,
ao culto do primeiro ídolo que lhe ofereceu uma promessa de alívio. Ela
pensa ou finge pensar que esse ídolo é o seu salvador. Na verdade é a sua
Nêmesis.
Mas não é só ela que está enganada. O profeta do engano também se
engana: ele imagina trazer ao mundo a sabedoria, quando traz o
obscurecimento e a confusão. Imagina trazer uma nova profecia, quando
traz o cumprimento de uma velha maldição.
Mas não posso encerrar estas considerações sobre o profeta da Nova Era
sem fazer, também eu, uma profecia: nos séculos vindouros, quando
puderem encarar o nosso tempo com alguma objetividade, o fenômeno
da Nova Era será considerado um escândalo que depõe contra a
inteligência humana.
É forçoso que venha o escândalo. Nada se pode fazer para evitá-lo. Nem
mesmo vou sugerir, como Jesus, que se amarre ao seu portador uma
pesada pedra, para jogá-lo ao fundo do mar. Pois, como diria o
hexagrama 36, ele já está no fundo. Tudo o que posso fazer é deixar à
posteridade, se vier a ter notícia destas páginas, um testemunho pessoal
destes tempos obscuros: Nem todos, nem todos acreditaram no falso
profeta9.
Adendo
Há no livro do sr. Capra uma infinidade de erros e contra-sensos, além
dos mencionados. Apontá-los e corrigi-los todos requereria um
volumoso comentário: uma lei constitutiva da mente humana concede ao
erro o privilégio de poder ser mais breve do que a sua retificação.
Mas vale a pena dar mais algumas amostras, para que o leitor veja
quanto um erro nas premissas pode ser fértil em consequências:
l. O sr. Capra combate o uso da energia nuclear, mesmo para fins
pacíficos, mas, ao mesmo tempo, faz da física moderna um dos
fundamentos do "novo paradigma" que propõe. Ele separa a física
enquanto modalidade de conhecimento teórico e a natureza das suas
aplicações práticas, como se uma não decorresse da outra
necessariamente.
O sr. Capra é, nisto, perfeitamente inconsequente com o método
holístico que advoga. Para o holismo, toda separação estanque entre uma
idéia e suas manifestações práticas é nada mais que um abstratismo.
Holisticamente falando, o efeito benéfico ou destrutivo dos engenhos
nucleares tem de estar arraigado no próprio modus cognoscendi que os
produziu. Se o sr. Capra enxerga ligações até mesmo entre o
mecanicismo e a estrutura da família patriarcal, como pode ser cego para
as relações, muito mais próximas, entre o conteúdo teorético de uma
ciência e suas aplicações práticas?
2. Em nossa sociedade, afirma o sr. Capra, o trabalho entrópico ( trabalho
repetitivo que não deixa efeitos duradouros, como por exemplo cozinhar
um jantar que será consumido imediatamente ) é desvalorizado, e por
isto é atribuído às mulheres e aos grupos minoritários. Esta
desvalorização, diz ele, é típica da sociedade industrial.
Nesse caso, deveríamos considerar sociedades industriais as tribos do
Alto Xingu, as cidades-Estado da antiga Grécia, a sociedade européia da
Idade Média. Não existiu jamais uma sociedade em que os serviços
entrópicos fossem mais valorizados que os outros.
Mas, segundo o sr. Capra, existiu. Ele dá como exemplos os mosteiros de
monges budistas e cristãos, onde cozinhar é uma honra e limpar as
privadas um mérito invejável. Será preciso explicar ao sr. Capra que uma
ordem monástica não constitui uma "sociedade", mas uma comunidade
minoritária que pressupõe em torno a existência de uma sociedade a
cujos valores possa se opor? Se, dentro de um mosteiro, o trabalho
entrópico tem valor, é justamente porque não o tem na sociedade maior
em torno. Os trabalhos humildes adquirem ali dentro um valor espiritual
e disciplinar justamente na medida em que no "mundo" têm pouco
prestígio social ou valor econômico. A desvalorização social do trabalho
entrópico não é característica da sociedade industrial, mas da sociedade
humana em geral; inversamente, a sua valorização espiritual é um traço
distintivo das minorias espiritualizadas envolvidas em alguma forma de
rejeição religiosa do "mundo".
3. "Tradições como o vedanta, a ioga, o budismo e o taoismo
assemelham-se muito mais a psicoterapias do que a filosofias ou
religiões", diz o sr. Capra. Bem, se há um traço característico do
Ocidente moderno, que o distingue radicalmente das tradições orientais,
é justamente o desenvolvimento, nele, de uma psicologia como ciência
independente de qualquer referência mística ou religiosa; e, em
decorrência, o esforço para dar uma explicação "psicológica" de todos os
fenômenos espirituais. Ao englobar as tradições espirituais do Oriente
no conceito de "psicoterapia", o sr. Capra mostra a típica incapacidade do
cientificista moderno para apreender tudo quanto há nelas de puramente
metafísico e não-psicológico.
Dizer, ademais, que essas tradições "se baseiam no conhecimento
empírico e, assim, apresentam mais afinidades com a ciência moderna" é
pretender enquadrar à força as idéias orientais numa moldura ocidental e
moderna, para torná-las aceitáveis ao provincianismo acadêmico.
Acontece que, nessa operação, tudo que há nelas de essencialmente
oriental se perde por completo. O vedanta, por exemplo, afirma
categoricamente que a experiência não pode trazer conhecimento
espiritual de espécie alguma, e esta afirmação é mesmo um dos pontos
basilares da doutrina, que o sr. Capra parece desconhecer
completamente: toda experiência é ação, e a ação, não sendo o contrário
da ignorância, não pode destruí-la ( cf. Brihadaranyaka Upanishad, livro
10 ).
Por esse exemplo, vê-se que o sr. Capra está muito mais preso a
esquemas mentais de acadêmico ocidental médio do que desejaria deixar
transparecer. Alguém mais próximo da perspectiva oriental jamais
procuraria explicar as doutrinas sapienciais da Índia ou da China à luz da
moderna psicologia ocidental, mas, ao contrário, emitiria sobre esta, em
nome delas, um julgamento bastante severo ( v., por exemplo, Wolfgang
Smith, Cosmos and Transcendence, New York, l970, ou Titus
Burckhardt, Scienza Moderna e Sagezza Tradizionale, Torino, l968 ).
4. Após realçar o sentido holístico das concepções fisiológicas de
Hipócrates, o sr. Capra insinua que esse sentido desapareceu
completamente da medicina ocidental e agora temos de ir buscá-lo na
tradição chinesa: "A noção chinesa do corpo como um sistema
indivisível de componentes inter-relacionados está muito mais próxima
da moderna abordagem sistêmica do que do modelo cartesiano clássico."
Se o sr. Capra não seguisse o hábito ocidental moderno de saltar direto
do pensamento grego para o Renascimento, teria reparado que a mesma
concepção holística domina todo o pensamento médico e biológico do
Ocidente medieval, com destaque para Sto. Alberto Magno e Roger
Bacon. Na verdade, as concepções chinesas são muito mais parecidas
com as da Idade Média que com a "moderna abordagem sistêmica".
5. Ao explicar a psicoterapia de Arthur Janov, o sr. Capra diz que,
segundo este eminente psiquiatra, as neuroses são tipos simbólicos de
comportamento que "representam as defesas da pessoa contra a excessiva
dor associada a traumas de infância". Quem quer que tenha lido Janov
sabe que, na teoria deste, a etiologia das neuroses não é de ordem
traumática, mas reside na frustração constante e habitual de necessidades
básicas, frustração que às vezes não é sequer percebida no nível
consciente. Um trauma, na psicopatologia de Janov, nada mais é que um
fator superveniente. A minimização da importância etiológica dos
traumas é justamente o que singulariza o sistema de Janov. Embora
conhecendo o assunto de orelhada, o sr. Capra não se inibe de opinar a
respeito com ar professoral: "O sistema conceitual de Janov não é
suficientemente amplo para explicar experiências transpessoais..." O que
certamente não é amplo é o conhecimento que o sr. Capra tem do
sistema de Janov.
Sugestões de Leitura
Além das obras citadas no texto, o leitor poderá consultar com proveito
as seguintes:
l. Quem aprecie o holismo e deseje ter uma informação séria a respeito,
sem aberrações caprinas e com mais ensinamento valioso, leia o livro de
Joël de Rosnay, Le Macroscope. Vers une Vision Globale ( Paris, Le
Seuil, l975 ). O prof. de Rosnay ensinou no MIT e trabalha no Instituto
Pasteur de Paris. É interessante ler também as obras de Edgar Morin,
que foi aliás quem lançou a expressão "novo paradigma". V.
especialmente La Méthode, em dois tomos ( I, La Nature de la Nature,
Paris, Le Seuil, l977; II, La Vie de la Vie, id., 1980 ).
2. O I Ching tem três traduções ocidentais famosas: a de James Legge (
versão brasileira de E. Peixoto de Souza e Maria Judith Martins, São
Paulo, Hemus, l972 ), a de Richard Wilhelm ( versão inglesa de Cary F.
Baynes, London, Routledge and Kegan Paul, l95l, várias reedições; versão
brasileira de Lya Luft e Alayde Mutzembecher, São Paulo, Nova
Acrópole ), e a de P.-L. F. Philastre: Le Yi:King. Livre des Changements
de la Dynastie des Tsheou. Annales du Musée Guimet, t. huitième, 2
vols. ( Paris, Adrien Maisonneuve, l975 ). Um estudo sério do assunto
requer o exame das três. A de Wilhelm é mais didática e fácil de
consultar. Legge enfatiza muito as ligações estruturais entre as partes e
abre para um estudo mais aprofundado. Das três a de Philastre é de longe
a mais interessante, pois é a única que transcreve integralmente e pela
ordem as glosas das dez "gerações" de comentaristas chineses.
3. Sobre os símbolos da tradição chinesa, v. o livro clássico de René
Guénon, La Grande Triade ( Paris, Gallimard, 1957 ). Convém recorrer
ainda, quanto aos ideogramas, à obra monumental do Pe. L. Wieger,
Chinese Characters. Their Origin, Etimology, History, Classification
and Signification. A Thorough Study from Chinese Documents, transl.
by L. Davrout, s. j. ( New York, Dover, 1965; a primeira edição é de 1915
).
4. Sobre o pensamento chinês é ainda indispensável, a quem deseje
aprofundar o assunto, estudar: quanto às concepções cosmológicas,
Marcel Granet, La Pensée Chinoise ( Paris, Albin Michel, l968 ) e La
Réligion des Chinois ( Paris, Payot, 1980 ). Quanto às instituições e ao
governo, Granet, La Civilisation Chinoise ( Paris, La Renaissance du
Livre, 1929 ). Sobre a moral, o direito e as classes sociais, Max Weber,
The Religion of China, transl. by H. H. Gerth and C. Wright Mills (
New York, The Free Press, 195l ).
5. Um "novo modelo de história cultural" baseado em concepções
orientais é algo que já estava realizado pelo menos desde l945, em Le
Règne de la Quantité et les Signes des Temps, de René Guénon ( Paris,
Gallimard ). Um monumento de sabedoria.
6. Sobre a disputa Leibniz-Newton pode-se ler: José Ortega y Gasset, La
Idea de Principio en Leibniz y la Evolución de la Teoría Deductiva ( em
Obras Completas, t. 8, Madrid, Alianza, 1983 ); Paul Hazard, La Crise de
la Conscience Européenne 1660-1715 ( Paris, Gallimard, 1961 ); Edwin A.
Burtt, As Bases Metafísicas da Ciência Moderna, trad. José Viegas Filho
e Orlando Araújo Henriques ( Brasília, UnB, 1983 ).
NOTAS
7. Escrito em setembro de 1993. Voltar
8. Livro I, Cap. III. Voltar
9. Tendo enviado a Frei Betto uma cópia deste capítulo antes de sua
publicação em livro, recebi dele uma resposta em duas linhas, que é um
singular documento psicológico. Ela diz: "Apesar das suas reservas, o
evento [ NB: recepção ao sr. Capra ] foi bom para quem lá esteve." Deve
ter sido mesmo um barato, imagino eu. Mas o ilustre frade não me
compreendeu. Longe de mim depreciar o evento em si - a organização do
programa, o serviço de som ou o tempero dos salgadinhos. O que eu
disse que não presta é a filosofia do sr. Capra, subentendendo que
celebrá-la num congresso de intelectuais é jogar dinheiro fora; e quanto
melhor o evento, mais lamentável o desperdício. Caso, porém, o
missivista tenha pretendido alegar a qualidade do evento como um
argumento em favor do sr. Capra, isto seria o mesmo que dizer que o
preço da vela prova a qualidade do defunto. Além disso, que opinião se
poderia ter de um pensador que argumentasse em favor de uma filosofia
mediante a alegação de que ela lhe dá a oportunidade de freqüentar
lugares agradáveis? [ N. da 2ª ed. ] Voltar
II
STO. ANTONIO GRAMSCI
E A SALVAÇÃO DO BRASIL
Se nos perguntamos, agora, como foi possível que uma filosofia assim
grosseira alcançasse no Brasil tão vasta audiência a ponto de inspirar o
programa de um partido político, a resposta deve levar em consideração
três aspectos: primeiro, a predisposição da intelectualidade brasileira;
segundo, as condições do momento; terceiro, a natureza mesma dessa
filosofia.
Ao longo da nossa história intelectual, somente três correntes de
pensamento lograram exercer uma influência duradoura e profunda
sobre as camadas intelectuais brasileiras: o positivismo de Augusto
Comte, o neotomismo de Leão XIII, o marxismo. O que há de comum
entre elas é que não são propriamente filosofias, mas programas de ação
coletiva, destinados a moldar ou remoldar o mundo segundo as
aspirações de suas épocas e de seus mentores. O positivismo parte da
constatação de que a Revolução Francesa, derrubando as concepções
cristãs, deixou sua obra pela metade, na medida em que não pôs no lugar
delas uma nova religião; o positivismo constitui esta nova religião, com
templo, calendário dos santos, ritual e tudo o mais; e as teorias filosóficas
não são senão a sustentação do novo Estado teocrático que Comte
pretende fundar. O neotomismo é a reação que, ao novo Estado
teocrático, opõe um apelo ao retorno do antigo, devidamente revisto e
atualizado. Finalmente, o marxismo é o programa de ação do movimento
socialista. Nos três, as idéias, as teorias, não têm um valor intrínseco
mas servem apenas como retaguardas psicológicas da ação prática. Os
três não querem interpretar o mundo, mas transformá-lo. ( Cabe uma
ressalva com relação ao neotomismo: não confundi-lo com o tomismo, se
por esta palavra se entende a filosofia de Sto. Tomás de Aquino. O
tomismo é filosofia no sentido pleno; o neotomismo é, ao contrário, um
movimento cultural e político - ideológico, em suma - votado à difusão
dessa filosofia, tomada como solução pronta de todos os problemas e,
portanto, esvaziada de boa parte de sua substância filosófica. Afinal,
tudo o que é neo-alguma-coisa é, por definição, apenas uma nova casca
da qual essa coisa é o miolo. Observações semelhantes poderiam fazer-
se, com reservas, também do positivismo e do marxismo: em ambos há
na raiz algo de filosofia autêntica, sufocada pelo desenvolvimento
hipertrófico de um programa de ação prática, dela deduzido aos
trambolhões. )
Filosofias que recuam da especulação teorética para a proposição de ações
práticas são filosofias da decadência; marcam as épocas em que os
homens já não conseguem compreender o mundo e passam a agitar-se
para escapar de um mundo incompreensível. A sofística nasce, na
Grécia, do fracasso das primeiras especulações cosmológicas de Tales,
Anaximandro, Anaximenes, Parmênides e Heráclito; incapaz de resolver
as contradições entre as teorias, ela transfere o eixo das preocupações
humanas para a vida prática imediata: para a política do dia. Os sofistas
são professores de retórica, que ensinam aos jovens políticos os meios de
agir sobre as consciências. À sofística opõe Sócrates a dialética e o ideal
da demonstração apodíctica que orientará os esforços gregos em direção
ao saber científico. Cinco séculos mais tarde, após o esquecimento das
grandes sínteses teoréticas de Platão e Aristóteles, tornam-se novamente
dominantes as escolas praticistas: os cínicos, os cirenaicos, os megáricos
e, em parte, os estóicos. E assim prossegue a história do pensamento
Ocidental, numa pulsação entre o empenho da compreensão teorética e a
queda no ceticismo praticista. O fundo comum de onde emergem o
positivismo, o marxismo e o neotomismo é a dissolução do racionalismo
clássico, levado a um beco sem saída pela crítica kantiana e que tem no
idealismo alemão o seu canto de cisne. Positivismo, marxismo e
neotomismo são as filosofias de uma época que não tem filosofia
nenhuma; de uma época que anseia por transformar o mundo na medida
mesma em que é incapaz de desempenhar o esforço teorético necessário
para compreendê-lo.
Num texto clássico - Crise da Filosofia Ocidental ( l874 ) -, o filósofo
russo Vladimir Soloviev previu que a filosofia, como atividade
intelectual essencialmente individual, oposta ao pensamento coletivo da
religião e da ciência, estava em vias de acabar, para ceder lugar a algo de
totalmente diferente. Ele esperava o advento de uma grande síntese, mas
o que se viu foi o advento do "século das ideologias". Ora, o Brasil entra
no curso espiritual do mundo justamente no momento em que Soloviev
faz esse diagnóstico: recebemos maciçamente o impacto das novas
ideologias, antes de termos podido vivenciar a tradição filosófica que as
antecedeu. Nosso contato com as fontes filosóficas da civilização do
Ocidente continuou superficial, ao passo que nos entregávamos de corpo
e alma às retóricas coletivistas. Passado mais de um século, ainda não
temos uma boa tradução de Aristóteles, mas publicamos, já na década de
60, as obras completas de Antonio Gramsci.
De outro lado, toda tentativa nossa de penetrar mais fundamente no
campo da filosofia mesma ficou limitada pela timidez, pela insegurança,
que nos fazia apegar-nos como crianças à proteção de algum superego
estrangeiro da moda. Cinco décadas de atividade filosofante na USP
foram resumidas no título acachapante do livro recém-publicado de
Paulo Arantes: Um Departamento Francês de Ultramar. Escritórios de
importação, representantes autorizados, imitação, pedantismo, oscilação
entre a falsa consciência e a consciência de culpa marcam todos os nossos
esforços filosóficos universitários no sentido de um pensamento
independente. No fim, o intelectual com pretensões filosóficas só
encontra alívio quando desiste delas e recai no pensamento coletivo;
quando, abdicando de interpretar o mundo, se alinha, contrito e
obediente, numa das correntes que professam transformá-lo: as
conversões ao catolicismo, ao comunismo e às ideologias cientificistas
originadas do positivismo constituem - independentemente dos motivos
pessoais em cada caso - um melancólico ritornello na história dos
fracassos das nossas ambições filosóficas. A queda no pensamento
coletivo é vivenciada como um retorno da ovelha desgarrada, como uma
libertação das culpas, como um reencontro com a infância perdida. Ao
reintegrar-se numa comunidade ideológica o ex-filósofo arrependido
encontra ainda um alívio para o isolamento que cerca o intelectual no
meio subdesenvolvido, e o ingresso no grupo solidário arremeda a
descoberta de um "sentido da vida".
A intelectualidade brasileira estava, por todos esses fatores, fundamente
predisposta ao apelo gramsciano, onde a vida intelectual deixa de ser o
esforço solitário de quem cherche en gémissant, para tornar-se a
participação num "sentido da vida" amparado pela solidariedade coletiva.
O Partido é às vezes chamado por Gramsci "intelectual coletivo". É o
abrigo dos fracos. Aí a ascensão ao estatuto de intelectual é barateada: já
não custa a penosa aquisição de conhecimentos, a investigação pessoal, a
luta direta com as incertezas. Obtém-se pelo contágio passivo de crenças,
de um vocabulário comum, de cacoetes distintivos13. A sociedade em
torno legitima a paródia: diante dessas marcas exteriores, o brutamontes
de direita acredita piamente estar na presença de um intelectual. A mídia
faz o resto.
Adendos
1
O número dos adeptos conscientes e declarados do gramscismo é
pequeno, mas isto não impede que ele seja dominante. O gramscismo
não é um partido político, que necessite de militantes inscritos e eleitores
fiéis. É um conjunto de atitudes mentais, que pode estar presente em
quem jamais ouviu falar de Antonio Gramsci, e que coloca o indivíduo
numa posição tal perante o mundo que ele passa a colaborar com a
estratégia gramsciana mesmo sem ter disto a menor consciência.
Ninguém entenderá o gramscismo se não perceber que o seu nível de
atuação é muito mais profundo que o de qualquer estratégia esquerdista
concorrente. Nas demais estratégias, há objetivos políticos determinados,
a serviço dos quais se colocam vários instrumentos, entre eles a
propaganda. A propaganda permanece, em todas elas, um meio
perfeitamente distinto dos fins. Por isto mesmo a atuação do leninismo,
ou do maoismo, é sempre delineada e visível, mesmo quando na
clandestinidade. No gramscismo, ao contrário, a propaganda não é um
meio de realizar uma política: ela é a política mesma, a essência da
política, e, mais ainda, a essência de toda atividade mental humana. O
gramscismo transforma em propaganda tudo o que toca, contamina de
objetivos propagandísticos todas as atividades culturais, inclusive as
mais inócuas em aparência. Nele, até simples giros de frase, estilos de
vestir ou de gesticular podem ter valor propagandístico. É esta
onipresença da propaganda que o singulariza e lhe dá uma força que seus
adversários, acostumados a medir a envergadura dos movimentos
políticos pelo número de adeptos formalmente comprometidos, nem de
longe podem avaliar.
Um detalhe que assinala bem as diferenças é a atitude do gramscismo
perante a arte engajada. Outras estratégias exigem do artista que ele
imprima às suas obras um sentido político determinado, ou que, pelo
menos, sua visão do mundo, expressa em cada obra, seja coerente com a
interpretação marxista. A literatura engajada do leninismo, do
stalinismo ou do maoismo, é portanto uma coleção de obras das quais
cada uma, por si, é uma peça de propaganda, com valor autônomo. Já no
gramscismo o que interessa é apenas o efeito de conjunto da massa de
obras literárias em circulação. Esse efeito de conjunto deve tender à
mudança do senso comum desejada pelo Partido, pouco importando que
cada obra, tomada isoladamente, nada tenha de marxista ou seja mesmo
destituída de qualquer valor propagandístico.
Graças a isto, o julgamento gramsciano de cada obra é muito menos
rígido e dogmático que o de outras correntes marxistas - o que muito
contribuiu para elevar o seu prestígio entre intelectuais ansiosos por
conciliar seus ideais marxistas com seu desejo pessoal de liberdade.
No gramscismo, qualquer obra literária pode contribuir para a
propaganda marxista, dependendo apenas do contexto em que é
divulgada - tal como num jornal o teor das notícias tomadas
individualmente interessa menos do que sua localização na página, ao
lado de outras notícias cujo efeito de conjunto imprime um novo sentido
a cada uma delas.
O objetivo primeiro do gramscismo é muito amplo e geral em seu
escopo: nada de política, nada de pregação revolucionária, apenas operar
um giro de cento e oitenta graus na cosmovisão do senso comum, mudar
os sentimentos morais, as reações de base e o senso das proporções, sem
o confronto ideológico direto que só faria excitar prematuramente
antagonismos indesejáveis.
As mudanças aí operadas podem ser, no entanto, muito mais profundas e
decisivas do que a mera adesão consciente de um eleitorado às teses
comunistas. Mudanças de critério moral, por exemplo, têm efeitos
explosivos. Essas mudanças podem ser induzidas através da imprensa,
sem qualquer ataque frontal e explícito aos critérios admitidos. Um caso
que ilustra isto perfeitamente bem, e que demonstra o alcance da
estratégia gramsciana no Brasil, é o do noticiário sobre corrupção. A
campanha pela Ética na Política não surgiu com um intuito moralizador,
mas como uma proposta política antiliberal. Numa entrevista ao Jornal
do Brasil, um dos fundadores da campanha, Herbert de Souza, o
Betinho, deixou isso perfeitamente claro. A campanha surgiu numa
reunião de intelectuais de esquerda em busca de uma fórmula contra
Collor, muito antes de que houvesse qualquer denúncia de corrupção no
governo. Mais tarde, estas denúncias vieram a dar à campanha uma força
inesperada, trazendo para ela a adesão de massas de classe-média
moralista que, politicamente, teriam tudo para se opor a qualquer
proposta explicitamente esquerdista. Ora, a campanha exerceu uma
influência decisiva na direção do noticiário nos jornais e na TV. Essa
influência foi tal que introduziu nos julgamentos morais uma mudança
profunda. Impressionado pelo conteúdo escandaloso das notícias, o
público nem de longe reparou que a edição delas subentendia essa
mudança, que, conscientemente, ele não aprovaria. Ela consistiu em
fazer com que os crimes contra o patrimônio público parecessem
infinitamente mais graves e revoltantes do que os crimes contra a pessoa
humana. P. C. Farias, um trêmulo estelionatário incapaz de dar um
pontapé num cachorro, era apresentado como um Al Capone, ao mesmo
tempo que se minimizava a gravidade do banditismo armado. Se de um
lado jornalistas de esquerda promovem um ataque maciço aos criminosos
de colarinho branco e de outro lado intelectuais de esquerda lutam para
que os chefes de bandos de assassinos armados sejam reconhecidos como
"lideranças populares" legítimas, o efeito conjugado dessas duas
operações é bem nítido: atenuar a gravidade dos crimes contra a pessoa,
quando cometidos pela classe baixa e aproveitáveis politicamente pelas
esquerdas, e enfatizar a dos crimes contra o patrimônio, quando
cometidos por membros da classe dominante. Eis aí a luta de classes
transformada em supremo critério da moral, desbancando o preceito
milenar, arraigado no senso comum, de que a vida é um bem mais
sagrado do que o patrimônio.
Para que essas duas operações ocorram simultaneamente, produzindo
um resultado unificado, não é preciso que emanem de um comando
central organizado. Basta que os intelectuais envolvidos numa e noutra
comunguem ainda que vagamente de um espírito revolucionário
gramsciano, para que, numa espécie de cumplicidade implícita, cada qual
realize sua tarefa e todos os resultados venham a convergir na direção
dos fins gramscianos. Isto não exclui, é claro, a hipótese de um comando
unificado, mas, para o sucesso da estratégia gramsciana, a unidade de
comando, ao menos ostensiva, é bastante dispensável na fase da luta pela
hegemonia.
É interessante saber que, na Constituição do Estado soviético, o
homicídio doloso era punido com apenas dez anos de cadeia e os crimes
contra a administração pública sujeitavam o culpado à pena de morte.
Nem poderia ser de outro modo, dado o pouco valor que, na perspectiva
marxista, tem a vida individual quando não posta a serviço da revolução.
Ora, o noticiário sobre corrupção conseguiu introduzir na mente
brasileira o hábito de julgar as coisas segundo uma escala moral
soviética; e o fez com muito mais eficiência do que lograria em anos e
anos de debates explícitos. Uma vez explicitada, essa mudança seria
rejeitada com horror por um povo em que ainda são vivos, no fundo, os
sentimentos cristãos. Introduzida por baixo, como critério subjacente,
ela penetra às ocultas no senso comum e o perverte até a raiz,
preparando-o para aceitar passivamente, no futuro, aberrações maiores
ainda, que venham a ser impostas por um Estado socialista14.
A atuação espontânea, aparentemente inconexa, de milhares de
intelectuais - no sentido gramsciano - em setores distintos da vida
pública, pode ser facilmente dirigida para onde o deseja a revolução
gramsciana, não sendo necessário para isto nem mesmo um oculto
Comitê Central de super-cérebros a comandar o conjunto da operação.
Basta que uma cumplicidade inicial se estabeleça entre certos grupos,
para que, sobretudo na ausência de qualquer confronto crítico com outras
correntes, o gramscismo avance como sobre trilhos azeitados, na estrada
que leva à conquista da hegemonia. Ele já penetrou fundo, por esse
caminho, na mentalidade brasileira. Quando um partido político assume
publicamente sua identidade gramsciana, é que a fase do combate
informal - a decisiva - já está para terminar, pois seus resultados foram
atingidos. Vai começar a luta pelo poder. O que marca esta nova fase é
que todos os adversários ideológicos já foram vencidos ou estão
moribundos; nenhum outro discurso ideológico se opõe ao gramscismo, e
os adversários políticos que restam lhe dão ainda maior reforço, na
medida em que, não possuindo alternativa mental, pensam dentro dos
quadros conceituais e valorativos demarcados por ele e só podem
combatê-lo em nome dele mesmo. Isto é hegemonia.
2
Gramsci jura que é leninista, mas como ele atribui a Lênin algumas
idéias de sua própria invenção das quais Lênin nunca ouviu falar, as
relações entre gramscismo e leninismo são um abacaxi que os estudiosos
buscam descascar revirando os textos com uma paciência de exegetas
católicos. Uma dessas idéias é a de "hegemonia", central no gramscismo.
Gramsci diz que ela foi a "maior contribuição de Lênin" à estratégia
marxista, mas o conceito de hegemonia não aparece em parte alguma dos
escritos de Lênin. Alguns exegetas procuraram resolver o enigma
identificando a hegemonia com a ditadura do proletariado, mas isto não
dá muito certo porque Gramsci diz que uma classe só implanta uma
ditadura quando não tem a hegemonia. As relações entre Gramsci e
Marx também são embrulhadas, como se vê no uso do termo "sociedade
civil": para Marx, sociedade civil é o termo oposto e complementar do
"Estado", e, logo, se identifica com o reino das relações econômicas, ou
infra-estrutura. Em Gramsci, a sociedade civil, somada à sociedade
política ou Estado, compõe a superestrutura que se assenta sobre a base
econômica.
Essas e outras dificuldades de interpretação do pensamento de Gramsci
decorrem, em parte, do caráter fragmentário e disperso dos seus escritos.
Talvez elas possam ser resolvidas, mas o que é realmente espantoso é
que, alguns anos após revelada ao mundo a maçaroca dos textos
gramscianos, e antes mesmo que algum sério exame produzisse uma
interpretação aceitável do seu sentido, ela já fosse adotada como norma
diretiva por várias organizações, começando a produzir efeitos práticos
sobre os quais ninguém, nessas condições, poderia ter o mínimo controle.
Essa adesão apressada a uma idéia que mal se compreendeu assinala uma
tremenda irresponsabilidade política, um desejo ávido de atuar sobre a
sociedade humana sem medir as consequências. É claro que ninguém
adere a Gramsci com outro propósito que não o de implantar o
comunismo em alguma parte do mundo. Mas, sendo o gramscismo um
pensamento obscuro e às vezes incompreensível, não há nenhum motivo
para crer que sua aplicação deva produzir nem mesmo esse resultado,
lamentável o quanto seja. Pode acontecer, por exemplo, que a estratégia
gramsciana não gere outro efeito além de tornar os burgueses ateus,
retirando os freios que a religião impunha à sua cobiça e ao seu
maquiavelismo. Algo muito parecido aconteceu na própria terra de
Gramsci: é impossível não haver conexão entre a decadência da fé
católica e a transformação da Itália numa Sodoma capitalista. A nova
cultura materialista e gramsciana que dominou a atmosfera intelectual
italiana desde a década de 60 muito contribuiu para esse resultado;
apenas, não se vê que vantagem os comunistas puderam tirar disso. Os
esquerdistas brasileiros deveriam pensar na experiência italiana antes de
atirar-se a aventuras gramscianas que, na educação como na política,
podem levar a resultados tão confusos quanto as idéias que as inspiram.
3
O termo "Estado ético" é ele mesmo um dos primores de ambiguidade
que se encontram na mixórdia gramsciana. Ora ele designa o Estado
comunista, ora o Estado capitalista avançado, ora qualquer Estado. De
modo mais geral, Gramsci denomina "ético" todo Estado que procure
elevar a psique e a moral de seus cidadãos ao nível atingido pelo
"desenvolvimento das forças produtivas", subentendendo-se que o
Estado comunista faz isto melhor do que ninguém. A idéia é
intrinsecamente imoral: consiste em submeter a moral às exigências da
economia. Se, por exemplo, um determinado estágio do
"desenvolvimento das forças produtivas" requer que todos os habitantes
de uma região sejam removidos para o outro extremo do país, como
aconteceu muitas vezes na União Soviética, torna-se "ética" a conduta de
um garoto que denuncie o pai às autoridades por tentar fugir para uma
cidade próxima. A asquerosa admiração que os brasileiros vêm
demonstrando nos últimos tempos pelos irmãos que delatam irmãos,
pelas esposas que delatam maridos, é índice de uma nova moralidade,
inspirada em valores gramscianos. Não há dúvida de que o novo critério
é "ético" no sentido gramsciano, isto é, economicamente útil, já que a
delação generalizada de pais, irmãos, maridos e amantes pode ressarcir
alguns prejuízos sofridos pelo Estado. Mas isto não atenua sua
imoralidade intrínseca.
415
Em cursos e conferências, venho falando do gramscismo petista desde
1987 pelo menos, para platéias em que não faltaram jornalistas. Mas a
imprensa brasileira, refratária a tudo quanto seja novo, só em 1994
informou ao público a inspiração gramsciana do petismo, quando ela não
era mais uma tendência latente e já se havia externalizado no programa
oficial do partido. O primeiro a dar o alarma foi Gilberto Dimenstein, na
Folha de S. Paulo, logo após a publicação deste livro que aliás nem sei se
ele leu; mas limitava-se a mencionar o nome do ideólogo italiano, sem
nada dizer do conteúdo de suas idéias. Não teve a menor repercussão.
Mais tarde li duas ou três frases alusivas a Gramsci, em outros jornais e
em Veja. Tudo muito sumário, num tom de quem contasse com a
compreensão de uma platéia versadíssima em gramscismo. É o velho
jogo-de-cena do histrionismo brasileiro: dar por pressuposto que o
ouvinte sabe do que estamos falando é um modo de induzi-lo a crer que
sabemos do que falamos. Na verdade, fora dos círculos do petismo
letrado, só sabem de Gramsci uns quantos acadêmicos, entre os quais
Oliveiros da Silva Ferreira, que defendeu uma tese sobre o assunto numa
USP carregada de odores gramscianos, na década de 60. Gramsci
continua esotérico, lido só em família, a salvo de qualquer crítica exceto
amigável - uma crítica dos meios, conivente com os fins, numa
atmosfera de culto e devoção que raia a pura e simples babaquice. Mas
pelo mundo civilizado circulam críticas devastadoras, que
provavelmente jamais chegarão ao conhecimento do público brasileiro.
Assinalo as de Roger Scruton16 e Alfredo Sáenz17, que tomam o assunto
por lados bem diferentes daquele que abordo neste livro, mas chegam a
conclusões não menos reprobatórias.
Devo apontar como exceção notável, ainda que tardia, um artigo de
Márcio Moreira Alves18. Ele resgata parcialmente a honra da imprensa
brasileira, mostrando que há nela pelo menos um cérebro capaz de saber
de Gramsci algo mais do que o nome e pelo menos um repórter que não
foge da notícia. Ele explica em linhas gerais a estratégia gramsciana e o
estado presente de sua aplicação pela liderança petista, levando à
conclusão de que, em vez de criar uma democracia como o partido
promete, ela vai produzir aqui a ditadura de uma capelinha de
intelectuais. É lamentável, apenas, que no reduzido espaço de sua coluna
o sempre surpreendente Moreira Alves não pudesse abranger assunto tão
vasto senão em abreviatura pesadamente técnica, de difícil assimilação
pelo público. O Globo deveria dar-lhe duas páginas inteiras para trocar
em miúdos os ensinamentos ali contidos, talvez os mais importantes e
urgentes que a imprensa brasileira transmitiu ao público nos últimos
anos.
Particularmente oportuna é ali a observação de que o programa mesmo
do PT reconhece - oficialmente, por assim dizer - a hegemonia da
esquerda, principalmente no campo cultural mas também na política, na
medida em que proclama o ingresso atual do Brasil num novo "bloco
histórico" ( sistema cerrado de relações entre a economia e a
superestrutura cultural, moral e jurídica ). É digna da maior atenção, no
programa do PT, a parte referente à "revolução passiva". A passagem ao
novo "bloco histórico" será feita pela elite ativista com base no "consenso
passivo" da população. Isto quer dizer, sumariamente, que o povo não
precisará manifestar seu apoio ao programa do PT para que este se sinta
autorizado a promover a transformação revolucionária da sociedade. A
simples ausência de reação hostil, para não dizer de rebelião, será
interpretada como aprovação popular: quem cala consente, em suma. A
proposta é de um cinismo descarado. Ela investe o PT do direito divino
de agir em nome do povo sem precisar ouvi-lo, já que o silêncio se
tornará aplauso. Durante sete décadas o silêncio de um povo oprimido
foi interpretado como "aprovação passiva" pelo governo da URSS. Em
linguagem técnica mas incisiva, Márcio Moreira Alves mostra que por
esse caminho não se pode chegar a uma democracia. Discordo dele só
num ponto: ele acha que a estratégia petista é uma traição aos ideais de
Gramsci, e eu estou seguro de que ela é a mais pura encarnação do
gramscismo universal19.
O mais lamentável em toda essa história é que a massa dos militantes do
PT não tem a menor condição intelectual de compreender as sutilezas da
estratégia gramsciana, e vai se deixando conduzir sonambulicamente
pelos guias iluminados, sem fazer perguntas quanto à verdadeira meta da
jornada.
NOTAS
10. Para Karl Marx, aqueles que captam o sentido do movimento da
História e representam as "forças progressistas" ficam ipso facto
liberados de qualquer dever com a "moral abstrata" da burguesia; seu
único dever é acelerar o devir histórico em direção ao socialismo, pouco
importando os meios. Baseado nesse princípio, Lênin codificou a moral
partidária, onde o único dever é servir ao partido. Esta moral, por sua
vez, deu origem ao Direito soviético, que colocava acima dos direitos
humanos elementares os deveres para com o Estado revolucionário. A
delação de corruptos ou traidores, por exemplo, era na União Soviética
uma obrigação básica do cidadão. Mas não é só na teoria que o
comunismo é imoral. No Estado socialista, todos são funcionários
públicos, e basta isto para que a corrupção se torne institucional. Na
União Soviética ninguém conseguia tirar um documento ou consertar
uma linha telefônica sem soltar propinas: ao socializar a economia,
socializa-se a corrupção. A desonestidade desce das camadas dominantes
para corromper todo o povo. O mesmo aconteceu na China, país que
ademais se notabilizou por ser o maior distribuidor de tóxicos deste
planeta. A justificativa, na época, era que os tóxicos enfraqueceriam a
"juventude burguesa" e facilitariam o avanço do socialismo, sendo,
portanto, benéficos ao progresso humano. As drogas só se tornaram um
problema de escala mundial graças ao comunismo chinês, que, com isto,
se tornou culpado de um crime de genocídio pelo qual, até hoje, ninguém
teve coragem de acusá-lo.
Que tudo isso possa ser um enorme tecido de coincidências, que não haja
nenhuma conexão intrínseca entre todos esses horrores e a ideologia
socialista, é somente mais uma mentira propagada por intelectuais
ativistas cuja formação marxista os tornou para sempre cínicos,
hipócritas e incapazes de qualquer sentimento moral.
"Enquanto um menino dormia, um rato bebeu o leite que a mãe lhe havia
preparado. Quando o menino acordou, pôs-se a chorar porque não
encontrou o leite; a mãe, por seu lado, também chora. O rato tem
remorsos, bate a cabeça contra a parede, mas finalmente percebe que
aquilo de nada serve. Então, corre à cabra para conseguir mais leite. Mas
a cabra diz ao rato que só lhe dará leite se tiver capim para comer. Então,
o rato vai até o campo, mas o campo é árido e não pode dar capim se não
for molhado antes. O rato vai à fonte, mas esta foi destruída pela guerra
e a água se perde; é preciso que o pedreiro conserte a fonte. O pedreiro
precisa das pedras, que o rato vai buscar numa montanha, mas a
montanha está toda desmatada pelos especuladores. O rato conta toda a
história e promete que o menino, quando crescer, plantará novas árvores
na montanha. E assim a montanha dará as pedras, o pedreiro refará a
fonte, a fonte dará a água, o campo dará o capim, a cabra fornecerá o leite
e, finalmente, o menino poderá comer e não chorará mais." ( Laurana
Lajolo, Antonio Gramsci. Uma Vida, trad. Carlos Nelson Coutinho, São
Paulo, Brasiliense, 1982. )
III
A NOVA ERA E A REVOLUÇÃO CULTURAL
AS IDÉIAS de Capra e de Gramsci são puras ficções, mas nem por isto
as semelhanças entre elas são mera coincidência. A simples listagem
basta para por à mostra uma raiz comum:
1 - Ambas essas correntes são radicalmente "historicistas" - quer dizer:
para elas, toda "verdade" é apenas a expressão do sentimento coletivo de
um determinado momento histórico. O que importa não é se esse
sentimento coletivo capta uma verdade objetivamente válida, mas, ao
contrário, ele vale por si como único critério do pensamento correto.
2 - Em ambas, o sujeito ativo do conhecimento não é a consciência
individual, mas a coletividade. Elas divergem somente, na superfície,
quanto à delimitação desse místico "sujeito coletivo": para Capra, é "a
humanidade", ou, mais vagamente ainda, "nós" ( é característico dos
doutrinários da Nova Era, como Capra ou Marilyn Ferguson, dirigir-se a
um auditório universal na primeira pessoa do plural, de modo que não
sabemos se quem fala é um Autor divino ocultando sua supra-
personalidade num plural majestático, ou se é a autoconsciência coletiva
da humanidade ). Para Gramsci, o sujeito coletivo é o "proletariado", ou,
mais propriamente, o conjunto dos intelectuais orgânicos que o
"representam", isto é, o Partido.
3 - Ambas insistem menos em provar alguma tese do que em induzir
uma "mudança de percepção", uma virada repentina que faça as pessoas
sentirem as coisas de um modo diferente. Com Capra e Gramsci
ninguém pode discutir, tese por tese, demonstração por demonstração: a
conversão tem de ser integral e súbita, ou não se realiza jamais: capristas
e gramscistas são "convertidos" ou "renascidos", que num determinado
instante de suas vidas "viram a luz" mediante uma rotação instantânea
do eixo de sua cosmovisão. O decisivo, em ambos os casos, não é a
argumentação racional, mas uma adesão prévia, volitiva ou sentimental:
o sujeito "sente-se" de repente, como um todo, identificado com a Nova
Era ou com a causa do proletariado, e em seguida passa a ver os detalhes
de acordo com o novo quadro de referência.
4 - Ambas são "revoluções culturais". Pretendem inaugurar um novo
cenário mental para a humanidade, no qual todas as visões e opiniões
anteriores serão implicitamente invalidadas como meras expressões
subjetivas de um tempo que passou. Como, de outro lado, a nova
cosmovisão também não se apresenta como verdade objetivamente
válida e sim apenas como expressão de um "novo tempo", já não se pode
confrontar as idéias de hoje com as de antigamente para saber quem tem
razão: o critério de veracidade foi substituído pelo da "atualidade", e
como toda época é atual para si mesma, cada qual constitui uma unidade
cerrada, com suas idéias que só são válidas subjetivamente para ela.
Platão tinha as idéias do "seu tempo"; nós temos a do "nosso tempo" -
cada um na sua.
5 - A dimensão "tempo" é assim absolutizada, reinando sozinha num
mundo de onde foi extirpado todo senso de permanência e de eternidade.
Em Gramsci, a amputação é explícita; em Capra e na Nova Era em geral,
implícita e disfarçada pela verborréia mística. Após essa cirurgia, a
mente humana torna-se incapaz de captar o que quer que seja das
relações ideais que, para além do real empírico, apontam para a esfera do
possível, da infinitude, do universal. O empírico, o fato consumado, o
horizonte imediato das preocupações práticas - pessoais ou coletivas -
torna-se o extremo limite da visão humana. O "cosmos" de Capra e a
"História" de Gramsci são campânulas de chumbo que prendem a
imaginação humana num mundo pequeno, artificialmente engrandecido
pela retórica.
6 - Com o senso da eternidade e da universalidade, vai embora também o
senso da verdade, a capacidade humana de distinguir o verdadeiro do
falso, substituída por um sentimento coletivo de "adequação" ao "nosso
tempo". A "supra-consciência" da Nova Era e o "intelectual coletivo" de
Gramsci têm em comum a mais absoluta falta de inteligência. Para
ambos vale o que o jornalista Russel Chandler disse de um deles:
"A maior capacidade da mente humana é a sua habilidade de discriminar
entre o que é verdadeiro e o que é falso, distinguir o que é real do que é
ilusório ou aparente. Mas a 'supraconsciência' da Nova Era está
programada para ignorar essas distinções."
7 - Dissolve-se também a autoconsciência reflexiva e crítica, pela qual o
indivíduo humano é capaz de sobrepor-se às ilusões coletivas e julgar o
seu tempo. Fechado na redoma do momento histórico, é vedado ao
indivíduo enxergar para além dele, exercer os privilégios de uma
inteligência autônoma, ter razão contra a opinião majoritária - seja ela a
opinião conservadora do establishment ou o anseio coletivo dos
ambiciosos insatisfeitos.
8 - A depreciação da consciência individual vem com a negação do
critério da evidência intuitiva como base para julgar a verdade. Reduzida
a seu aspecto psicológico, imanente, a intuição torna-se apenas uma
experiência interna como qualquer outra, incapaz de evidência
apodíctica. Confunde-se com o sentimento, com o pressentimento, com
a vaga impressão e com a fantasia. Daí a necessidade de um novo
critério, que será, na Nova Era, a fantasia mesma, adornada com o título
de intuição mística, e na Revolução Cultural de Gramsci o sentimento
coletivo do Partido, detentor profético do sentido da História.
Apêndice I.
As esquerdas e o crime organizado
Apêndice II.
O Brasil do PT
Nota
Aos que, lido este apêndice, enxergarem no autor um hidrófobo
antipetista, advirto que votei em Lula para presidente e o faria de novo,
com prazer, se ele tomasse as seguintes providências:
l. Banir do seu partido o elenco de vedettes intelectuais que, formadas
numa atmosfera marxista, e apegadas a ela como um bebê à saia da mãe,
insistem em manter aprisionado nela o movimento socialista que anseia
por novas idéias. Exorcizar de vez os fantasmas de Marx, Lênin, Débray,
Althusser, Gramsci e tutti quanti, e permitir que a idéia socialista cresça
livre de gurus e totens. Quando Lula diz que nossas elites viveram "com
os olhos voltados para a França e a bunda voltada para o Brasil", não
percebe ele que isso é uma descrição exata da elite intelectual petista, e
esquerdista em geral?
2. Reprimir o uso de táticas de movimento clandestino e revolucionário,
que são indecentes num partido que professa conviver democraticamente
com outros partidos num Estado de direito. Infiltração, espionagem,
delação, boicote moral podem ser necessários e inevitáveis a um
movimento de oposição que queira sobreviver numa ditadura. Em
regime de liberdade, são práticas intoleráveis, principalmente em
políticos que posam de professores de ética. Quando os apóstolos da ética
citam como um exemplo para o Brasil o que os americanos fizeram com
Nixon após o caso Watergate, esquecem de dizer que Nixon não caiu
por causa de um desvio de verbas, mas por causa da prática de
espionagem. Se a corrupção é um crime, a espionagem é um ato de
guerra, que destrói, pela base, o edifício democrático.
Lula é um homem decente e, como disse Francisco Weffort, é alguém
maior do que o seu partido. Se ele se utilizar da tremenda força do seu
prestígio para exterminar esses dois vícios, o marxismo e o
clandestinismo, o Partido dos Trabalhadores se transformará naquilo
que seu nome promete, deixando de ser apenas o partido da nostalgia
comunista.
Observações finais