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3 : 105-14, 1980.
Roberto Romano *
I TRANS/FORM/AÇÃO/25 I
ROMANO, R . - Feuerbach e Stirner : algumas considerações sobre a linguagem e
políti.ca. Trans/Fonn/Ação, São Paulo, 3 : 1 05-14, 1980.
"a Lógica tem ( . . . ) segundo He são elementos que propiciam muita maté
gel, a natureza inteira fora d e si. A ria à reflexão dos que ainda não dobra
natureza começa para ele onde cessa ram- se à chantagem da "prática" e do
o lógico. Por isso, para ele, a na" "concreto", estes disfarces da Raison
tureza em geral é ainda apenas a d'État, sob a marca registrada do revolu
agonia do conceito" cionarismo militante. De fato, nunca co"
(Schelling ) * * mo agora a tese XI sobre Feuerbach, foi
Em artigo recente, o Prof. Ge.!�rd tão citada para garantir a misologia e pa
Lebrun ( 9 ) expõe de maneira clara as ra assegurar o domínio de uma certa in
pressuposições universalizantes do pensa terpretação do social, e seu conseqüente
mento progressista, novamente em vigor controle da política.
entre nós. O desfalecimento da crítica Em nome do sacrossanto concreto,
diante do genérico, a reiteração do temp o os intelectuais progressistas brasileiros,
como continuidade inelutável, a retomada cujo discurso é o mais abstrato possível ,
da educação popular como adestramento, arrogam"se a dignidade quase sacerd otal
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Na realidade, com a recusa de se refletir sobre o fundamento e as pressuposições
da ação, terminou' se nO pensamento progressista por assumir a figura escolástica do Mestre,
em cujos textos se ençontraria a pura doutri �a que "ao ser produzLda já preconteria a
virtude e os princípios de solução para 'resolver todos os problemas futuros' ( . . . ) . Sorte
extremada da modalidade 'vis a tergo', as injunções da ortodoxia marxista ombreiam neste
particula'r com o tradicionalismo exacerbado ao estilo de De Bonald, De Maistre, Gustavo
Corção" (1 5 ) .
**
"Peuerbach ist ( . . . ) der A nafom des Ch ristenthums, der Religion überhaupf' ( 8 ,
p . 88- 8 9 ) .
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da fonte individual que lhe daria sentido teúdo. Ela não tem valor, é permlssao
é pura recaída e mascaramento de uma inútil, par a quem não sabe empregá.la ;
transcendência cuj a expressão não é a quanto a o modo d e emprego depende d e
liberdade real do indivíduo, mas pelo minha particularidade" ( 1 8, p. 209 ) * *
contrário, sua mais completa dominação : Ainda mais : a própria liberdade, se
"as relações que fundam- se na Essência for determinada, será auto- negação. Sem.
�ão relações c om o fantasma, n ão com o pre que se procura est ar livre de alguma
real. Se me relaciono com o Ser Supremo, coisa, inadvertidamente, p or exemplo, dar
não é comigo que o Eu se relacion a e se à seus defensores o nobre sentimento de
me relaciono com o ser'do-Homem não que combatiam pela liberdade, em ver'
me relaciono com o homem" ( 1 8 , p. 327- dade foi apenas porque se visava uma
328) * liberdade determinada, logo uma nOva do.
minação, a "soberania da Lei" ( 1 8, p.
A falácia do amor universal mos 2 1 3 ) . A liberdade pois, é apenas um
traria todo seu pes o político no ato mes· momento negativo, o qual perde todo
mo da revolução : se o indivíduo aceitasse sentido se for considerado em si e que
um instante sequer a existência de um se transforma em domínio se for deter
ponto absoluto para além de si mesmo, minado. A pergunta correta para Stir
aceitari a também imperceptivelmente t o. ner, é aquela, sobre quem deve ser livre.
da uma carga de deveres, m oral, religião, A partir daí ter- se-á a indicação daquilo
pouco importando o nome que portassem. que ele deve ser. Ora, "Quem deve ser
( 1 8, p. 3 35 ) . livre? Tu, Eu, Nós ; e livres de que? De
Haveria um caminho direto entre a tudo aquilo que não é Tu, Eu, Nós. Eu
postulação da identidade metafísica do sou pois, o núcleo, que deve s er liberado
"real" e a impotência a que estaria con de todos os seus invólucros" ( 1 8 , p.
denado de antemão o indivíduo que nela 216).
acreditasse. Se minha fonte de identidade Deste modo, uma vez chegados ao
está fora de mim e me transcend!!, se, Eu livre, a liberdade entendida como um
retirado dela, perco aquilo mesmo que universal, perde todo o sentido, é ape
me caracteriza essencialmente, se a li. nas uma palavra, nada tendo a oferecer
berdade somente tivesse sentid o par a o ( 1 8, p . 2 1 6) . Ela só se realiza quando está
infinito do Gênero, também su a realidade ligada ao poder do Eu. E a história real
seria, para mim, adiada ao infinitto . Ela se funda não em "palavras vazias" ( 1 8 , p.
seria mesmo, o fantasma dos fantasmas 2 1 9) como a "liberdade dos pov os" mas
uma vez que "a liberdade não tem con- em individualidades vivas. * * *
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,. "É apenas a partir do momento em que de Ti nada pode ser anunciado, em que
tu podes ser apenas nomeado, que tu és reconhecido como Tu. Enquanto se enuncia alguma
coisa de Ti, tu és reconhecido apenas como alguma coisa ( homem, espírito, cristão, etc. ) .O
único nada enuncia porque ele é apenas um nome, ele nada mais faz do que dizer que Tu és
ru, nada mais do que Tu, que Tu és um Tu único ou Tu me s mo . Então tu não tens predicado,
e não tens ao mesmo tempo determinação, vocação, lei, etc." ( 1 8 , p . 403 ) .
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cias na prosa feuerbachiana. Ela lhe ser ra compreender cada indivíduo em sí"
viu como um cadinho no trato das rela ( 1 8 , p. 403 ) .
ções indivíduo- gênero. De tal modo que
a figura do segundo vai perder, em textos Dominação polític a e justificação
posteriores à Essência do Cristianismo a ideal não estão pois separados mas se
anterioridade metafísica face aOs indiví constituem num movimento simultâneo de
duos : ele será substituído pela nature universalização e esfacelamento da par
za *, nova garan ti a contra a qued a na ticularidade, não havendo nenhuma razão
armadilha do espírito t eológico. Enquanto para na crítica ao cristianismo, deixar sub
na Essência, o indivíduo era compreendi sistir qualquer pretensão à universalidade
do como ilusão, na obra posterior de intocada, quer seja carregada pela políti
Feuerbach se afirmará que só o indivíduo ca, pela religião ou pela moral .
existe "não se podend o reificar" os
predicados genéricos, pois caso co ntrário
Caberia perguntar sobre a possibili
se recairia justamente na ilusão do espí
dade desta crítica radical de t odas as re
rito teológico" ( 20, p. 242-243 ; 1 , VIII,
presentações positivas que se apresentam
p. 1 52ss ; 1 , X, p. 1 0 1 ) . Natureza e sen
ao Onico : não são poucos os c omentado
sibilidade passam a servir como operado
res que apontam para um retorno d o
res científicos verificáveis e visíveis e não
pensamento de Stimer à filosofia de
mais como fundamentos meramente ra
Fichte * * no que seguem Marx e sua crí
cionais de compreensão do mundo ( 1 1 , p.
tica do Onico na Ideologia A lemã * * *.
2 8 3 ss, 1 6, p . 3 40 ) .
Embora não rejeitando o que haveria de
Se a crítica do uso especulativo da verdadeiro neste "retorno", seria interes
noção de Gênero humano como essência sante notar a originalidade do modo pelo
levou Feuerbach a re-orientar sua com qual Stimer compreende sua tarefa
preensão da individualidade, ao mesmo de crítica filosófica, o que nos poderia
tempo atacou irremediavelmen te o libera ser útil na busca da compreensão das
lismo feuerbachiano e permitiu denunciar representações autoritárias aludidas no
no Estado o port ador de uma raciona início deste artigo.
lidade cujo sentido seria a homogeiniza
ção das individualidades, acarretando seu Certo, a auto-reflexão do Eu é . o
acomodamento político ( 1 8, p. 376-377 ) . elemento fundament al da busca de Sbr
Esta crítica ao caráter autoritário do Es ner, no sentido de uma liberdade ra
tado liberal passa pelo interior da crítica dical. No entanto, está suposto, nesta sua
à filosofia especulativa, a qual, tanto maneira de experimentar o discurso sobre
quanto o Estado, teria como projeto a in a liberdade, um rompimento absoluto
tegração de todos os indivíduos sob si : c om o discurso idealista, objetivo e sub
"a especulação tinha por fim encontrar jetivo. Assim, suas diatribes também se
um predicado que fosse bastante geral pa- dirigem contra o ideal da determinação
*
A qual, no entanto, será negada o caráter de Ser universal, abstraída das "coisas
reais, personificada e mistificada". ( cf. 1 , I, p. 4 1 0 ) .
**
Entre outros, Lukacs ( cf. 1 0 , p. 2 1 2 e 238 ) .
***
"É pois, apenas a manifestação de uma velha atitude de introspecção e de contri
ção cristã sob a forma germano-especulativa a atitude da fraseologia idealista, segundo a
EJ.ual, não devo transformar a realidade, o que só posso fazer - com os .outros, mas transformar
a mim mesmo, no fundo de mim mesmo" ( 12, p. 240 ) .
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completa, de conexão sistemática dos ele berdade não podend o ser retido concei
mentos do saber. Stirner recusa justa tualmente, também não pode e não deve
mente qualquer sistema perfeito e fecha ser repetido posteriormente, o que poria
d o em si mesmo, conforme a expressão em perigo a direção discursiv a que na
do "Comunicado Claro como o Sol . . . " Fenomeno logia do Espírito serviu como
de Fichte ( 5 , p. 79). itinerário do Saber ( 7, p. 83).
"O que Stirner diz é uma palavra , O novo ponto de partida de Stirner,
uma idéia, um conceito ; o que ele pelo contrário, leva à negação do itine
visa não é nem palavra, nem idéi a s rário discursivo e da repetição : o conteú
nem conceito. O que ele diz não do d o Único "não pode se repetir" ( 1 8, p .
corresponde àquilo que ele visa e 402 ) pois se ele pudesse ser repetido sa
aquilo que ele visa é indizível ( 1 8, p . biamente, não mais estari a ele presente,
400 ) . A torsão operada na dialética da mas apenas sua expressão discursiva e
Sinnliche Gewissheit é notória : tomando fantasmática ( 1 8, p . 40 1 ) .
o partido da visada, da opinião ( Mei A aparição do Único no discurso fi
nung) Stirner procura, não pela pri losófico seria a última transmutação n a
meira vez na seqüência das críticas à filo ordem da palavra humana : ele é a Lógica
sofia absoluta, restaurar a dignidade do que devora seus princípios ( 1 8 , p. 404 )
aqui e do agora, e denunciar o desvio e no horizonte de Stirner, ele é um
lingüístico do "concreto" para o "abstra "enunciado que se transmuta em visada
to". A subjetividade, longe de ser o pon ( Meinung ) ". :É a própri a ordem da Ra
to a ser determinado posteriormente pelas zão que deve ser subvertida, não a partir
vária s exposições prosaicas seria, pelo do exterilor mas da denúncia de que a ra
contrário, a fonte mesma da indetermi cionalidade é superstição e fantasmagori a
nação e, como tal, d a liberdade, no Ato e sua expQsição discursiva, frase morta ,
e na Palavra. determinada, escrava * .
Buscando uma "indeterminaçã o com O Único é uma tarefa provocado ra :
pleta" ( 1 8, p. 400- 40 1 ) S tirner indica confrontados com ele o completamente
que justamente, a individualidade apa desprovido de conteúdo, as grandes fra
recia como o máximo de abstração na ses estouram do interior. Que significado
filosofia anterior, porque se tentava teria para minha particularidade a m ar
compreendê-la a partir daquilo que ela cha triunfal do Espírito na História, o in
não é, ou seja, uma essência passível teresse dos pov os, da Pátria, do Partido?
de ser fixada pelo Conceito e arramada Se todas estas "realidades" ultrapassam o
às leis do Gênero ( 1 8 , p . 40 1 ) . particular e não podem ser recolhidas por
Ora, o Único é a presença da pró ele, não sendo sua "propriedade", é p o r
pria liberdade : nada d aquilo que poderia que sua resistência é puramente formal.
ser deduzido a priori faz parte de seu O predicado "homem" por exemplo, "não
conteúdo. Ou melhor : o único não é sus omite do sujeito sua subjetividade não
cetível de nenhum conteúdo. Ele é : "a dizendo quem, mas apenas aquilo que o
própria indeterminação" ( 1 8 , p . 40 1 ) _ sujeito é?" ( 1 8 , p. 403 ) .
Esta liberdade em ato arrasta con Recolhidos os direitos do "agora" se
sigo uma reviravolta no plano das rela compreende o porque d a crítica de Stir
ções entre palavra e temp o : o ato de li- ner à separação feita por Feuerbach entre
*
Para uma ou tra postura crítica quanto às relações entre "posição e exposição", ( cf .
4, p . 5 8 ) .
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REFEttNCIAS BIBLIOGRAFICAS
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