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TransLFonn/Ação, São Paulo

3 : 105-14, 1980.

FE UERBACH E STIRNER: Algumas considerações sobre


linguagem e política

Roberto Romano *

I TRANS/FORM/AÇÃO/25 I
ROMANO, R . - Feuerbach e Stirner : algumas considerações sobre a linguagem e
políti.ca. Trans/Fonn/Ação, São Paulo, 3 : 1 05-14, 1980.

RESUMO : " Habitualmente não se presta 'atenção ao fato de que a Primeira


Parte da Ideologj.a Alemã ( " Feuerbach" } foi a última a ser redigida por Marx. °
texto, tal como nos aparece hoj e, encobre portanto a gênese da crítica ao Huma­
nismo. Esta última, como este pequeno ensaio pretende indica,r, só poderia brotar
do contacto meticuloso com o texto do único e sua Propriedade. Após a leitura
de Stirner, Marx pôde se lacreditar liberado deste último fantasma especulativo e
ideolpgico : o Homem. "

UNITERMOS : Universalidade abstrata. Razão e Estado. Representação. Conceito e


Visada. Inversão da dialética da SINNLICHE GEWISSHEIT. O Aqui e o Agora :
progresso técnico e mudança radical da sociedade. A ideologia do MITTELSTAND.

"a Lógica tem ( . . . ) segundo He­ são elementos que propiciam muita maté­
gel, a natureza inteira fora d e si. A ria à reflexão dos que ainda não dobra ­
natureza começa para ele onde cessa ram- se à chantagem da "prática" e do
o lógico. Por isso, para ele, a na" "concreto", estes disfarces da Raison
tureza em geral é ainda apenas a d'État, sob a marca registrada do revolu­
agonia do conceito" cionarismo militante. De fato, nunca co"
(Schelling ) * * mo agora a tese XI sobre Feuerbach, foi
Em artigo recente, o Prof. Ge.!�rd tão citada para garantir a misologia e pa ­
Lebrun ( 9 ) expõe de maneira clara as ra assegurar o domínio de uma certa in­
pressuposições universalizantes do pensa­ terpretação do social, e seu conseqüente
mento progressista, novamente em vigor controle da política.
entre nós. O desfalecimento da crítica Em nome do sacrossanto concreto,
diante do genérico, a reiteração do temp o os intelectuais progressistas brasileiros,
como continuidade inelutável, a retomada cujo discurso é o mais abstrato possível ,
da educação popular como adestramento, arrogam"se a dignidade quase sacerd otal

* Professor Colaborador a nível de Assistente Doutor junto ao Departamento de


Filosofia da Faculdade de Educação, Filosofia, Ciências Sociais e da Documentação da
UNESP - Campus de Marília.
** Em 17, p. 3 32.

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ROMANO, R. - Feuerbach e Stirner : algum as considerações sobre linguagem e polí­
tica. TransjFonnjAção, São Paulo, 3 : 1 05-14, 1 980.

de mediadores entre o Todo e o parti ­ solver definitivamente o enigma religioso,


cular, levando ( até hoje!) a "verdadeira a partir de sua intimidade. Mesmo para
consciência" às classes "em si", dando­ alguns contemporâneos, Feuerbach não
lhes a conhecer seu Destino real, colocan­ foi considerado um simples anatomi'sta do
do- as em seu lugar no espaço da nacio­ cristianismo, ma s da própria r eligião em
nalidade. Intelectuais orgânicos auto-pro­ geral * * . E, no juizo de Feuerbach sobre
movidos, os novos condutores da velha si mesmo, vemos não ter s id o outro o
política científica refazem a interpretação objetivo de todo seu trabalho. Para ele ,
do domínio ao interpretar os dominados . com efeito , a Essência do Cristianismo
Nada há neste universo de representações seria uma primeira elucidação radical do
que não seja uma retomada moderna da fenômeno religioso e cristão. ( 1 , p. 348 ) .
fala teológico-polític a , nad a que não pos­ A imagem do anatomista no entanto,
sa ser submetido à demolição espinosana não dá conta de toda posição explícita de
dos fins e do milagre. Enquanto isto, eles sua filosofia. Na realidade, e para utilizar
próprios, sujeitos práticos, estão mergu­ ainda a linguagem médica corrente, ela
lhados até os ossos no objetivo final. A buscou ser uma patologiJ� e uma terapêu.
este leitor seria bom lembrar que a críti­ tica.
ca da fantasmagori a racionalizante, vili­
p endiada pelo jovem Marx, longe de estar A tarefa de elucidar o verdadeiro
apartada da prática, constitui-se num dos fundamento, o real, atravessando as ilu­
seus elementos fundamentais. Sem ela, o sões e fantasmas das representações hu­
nnmdo é de fato transformado, mas em manas care ntes de ciência, foi considera­
que propriamente e em proveito de quem?
da como condi tio sine qua non para a saí­
Á falta de responder questões semelhan­ da de alienação d a qual os homens se­
tes * , as práticas só retomam a s grandes riam produtos e produtores ( 1 9, p. 236) .
certezas que s ão, na verdade as grandes Ser livre, nes·t e sentido, seri a ser
ilusões cujo fim, e corolário, é substituir liberto de um sistema englobante de jus­
o rompimento efetivo com o status-quo tificação do mundo e dos homens : o cris­
pelo parco alimento das reformas e da tianismo. E ser radicalmente livre, romper
comunidade das consciências, frutos do com os últimos resquícios de perversida­
imaginário e do senso comum "como se de racionalizante, reunidos na filosofia
não existisse nada mais infeliz do que absoluta de Hegel.
um homem dominado por sua imagina­
ção" ( 1 4, p. 7 ; 1 3 , p. 8 55 ) . A cultura ocidental sofreria uma
doença singular : nela, a liberdade indi.
A obra feuerbachiana não pretendeu vidual estaria permanentemente em cho­
ser apenas mais uma crítica à religião qEe com a liberdade de todos os homens.
cristã. Em todos os momentos buscou re- A súmula desta contradição sentida e

*
Na realidade, com a recusa de se refletir sobre o fundamento e as pressuposições
da ação, terminou' se nO pensamento progressista por assumir a figura escolástica do Mestre,
em cujos textos se ençontraria a pura doutri �a que "ao ser produzLda já preconteria a
virtude e os princípios de solução para 'resolver todos os problemas futuros' ( . . . ) . Sorte
extremada da modalidade 'vis a tergo', as injunções da ortodoxia marxista ombreiam neste
particula'r com o tradicionalismo exacerbado ao estilo de De Bonald, De Maistre, Gustavo
Corção" (1 5 ) .
**
"Peuerbach ist ( . . . ) der A nafom des Ch ristenthums, der Religion überhaupf' ( 8 ,
p . 88- 8 9 ) .

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expressa como sentimento, seria o cris­ O erro de Feuerbach repercutiria no


tianismo. Pensada e exposta racIonalmen­ fracasso de sua crítica ao cristianismo.
te, o idealismo alemão. O tratamento dado Feuerbach, aceitando o que este diz de
às relações entre indivíduo e gênero mos· si mesmo, não chegaria até o mais fundo
tra a ambigüidade política da filosofia na negação da transcendência cristã ( o
feuerbachiana : na Essência do Cristianis­ que seria imprescindível para su a supres­
mo, o indivíduo foi considerado como são definitiva ) . Postular uma essência do
uma ilusão, e, exatamente, o que empres­ gênero humano, acima e anteriormente à
taria ao cristianismo o sentido de uma particularidade, seria reproduzir uma que ­
doença, é ser nele a individualidade vivi­ bra entre o necessário ( Gênero ) e o in­
da como absolutamente dobrad a s obre si significante ( indivíduo ) . Seria po r como
mesma, deleitando-se num a falsa existên­ ilusória justament e a atividade do indiví­
cia, jogada numa existência falsa ( 2, p. duo, abrindo novamente as portas para a
4 1 , nota 3; p. 2 6 4 e 242 ) . contemplação, a teoria e a passividade.
Em outros termos, matar a liberdade em
O grande erro do idealismo seria sua fonte p rópria.
justamente fundar-se neste Eu recebido
acriticament e do espírito cristão , sem Caso contrário, como seria possível
perceber que é apenas como relação que para Feuerbach criticar o cristianismo
a egoidade pode possuir algum sentido contemporâneo? É conhecido o itinerário
racional ( 3 , p. 1 85 ; 1 , X, p. 1 89 ) . Para da Essência do Cristianismo : o cristianis ­
assegurar um sentido à liberdade indivi­ mo atual, não sendo "clássico" não é
dual Feuerbach foi obrigado a pensar o "verdadeiro" ( 2 , p . 1 4 ) . Também 'a
gênero humano cOmo um limite de har' moral, a política, a ciência de seu tempo,
mania e realização possível, dentro do seriam apenas "aparições" ( 2 , p. 1 5) fan­
qual ficaria assegurada, pela natureza tasmáticas, desprovidas de força essencial .
comum, a coexistência de todos os ho­ Mas, porque Feuerbach necessitaria con­
mens ( 3 , p. 1 65 , 1 66, 1 67, 1 68) * sagrar esta divisão en tre o essencial e o
aparente?
Ora, o que ocorreria se mesmo esta
totalidade limite fosse denunciada e c om ­ Por estar preso ao círculo da cons ­
preendida como sobrevivência do próprio ciência ide alist a e cristã, esposando seu
supersticioso e cristão? * * desdém pelo valor da particularid ade. De'
Postular um Todo, fundante em re· tendo-se longamente sobre o Amor, repre­
lação às partes, como único foco infinito sentado por Feuerbach como uma potên­
de liberdade seria repor uma tran scen­ cia que sobrepassari a e uniria os indiví'
dência intolerável e abafante para a úni­ duos no Gênero, Stirner mostra que,
ca existência efetiva: a particular. Tal é mesmo recoberto sob nomes laicos tais
todo o sentido do Onico e sua Proprie' como "sociedade", "pátri a", "bem públi­
dade . co", etc, a afirmação do amor para além

* Cf. também 1 9, p. 267 "para o Feuerbach do segundo período, o � ê�e � o humano


devia ser o horizonte de pensamento e de completude de todo homem mdIvIdual e as
mediações para alcan çar o gênero humano eram as ativid ades da inteligên cia, d a vontade,
do amor".
**
Responder positivamente a esta questão foi, como s e sabe, o ponto d e partida da
filosofia política anarquista em seus primeiros choques CGm o pen s amento liberal e, no
l i mite so cial ista
, .

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da fonte individual que lhe daria sentido teúdo. Ela não tem valor, é permlssao
é pura recaída e mascaramento de uma inútil, par a quem não sabe empregá.la ;
transcendência cuj a expressão não é a quanto a o modo d e emprego depende d e
liberdade real do indivíduo, mas pelo minha particularidade" ( 1 8, p. 209 ) * *
contrário, sua mais completa dominação : Ainda mais : a própria liberdade, se
"as relações que fundam- se na Essência for determinada, será auto- negação. Sem.
�ão relações c om o fantasma, n ão com o pre que se procura est ar livre de alguma
real. Se me relaciono com o Ser Supremo, coisa, inadvertidamente, p or exemplo, dar
não é comigo que o Eu se relacion a e se à seus defensores o nobre sentimento de
me relaciono com o ser'do-Homem não que combatiam pela liberdade, em ver'
me relaciono com o homem" ( 1 8 , p. 327- dade foi apenas porque se visava uma
328) * liberdade determinada, logo uma nOva do.
minação, a "soberania da Lei" ( 1 8, p.
A falácia do amor universal mos­ 2 1 3 ) . A liberdade pois, é apenas um
traria todo seu pes o político no ato mes· momento negativo, o qual perde todo
mo da revolução : se o indivíduo aceitasse sentido se for considerado em si e que
um instante sequer a existência de um se transforma em domínio se for deter­
ponto absoluto para além de si mesmo, minado. A pergunta correta para Stir­
aceitari a também imperceptivelmente t o. ner, é aquela, sobre quem deve ser livre.
da uma carga de deveres, m oral, religião, A partir daí ter- se-á a indicação daquilo
pouco importando o nome que portassem. que ele deve ser. Ora, "Quem deve ser
( 1 8, p. 3 35 ) . livre? Tu, Eu, Nós ; e livres de que? De
Haveria um caminho direto entre a tudo aquilo que não é Tu, Eu, Nós. Eu
postulação da identidade metafísica do sou pois, o núcleo, que deve s er liberado
"real" e a impotência a que estaria con­ de todos os seus invólucros" ( 1 8 , p.
denado de antemão o indivíduo que nela 216).
acreditasse. Se minha fonte de identidade Deste modo, uma vez chegados ao
está fora de mim e me transcend!!, se, Eu livre, a liberdade entendida como um
retirado dela, perco aquilo mesmo que universal, perde todo o sentido, é ape­
me caracteriza essencialmente, se a li. nas uma palavra, nada tendo a oferecer
berdade somente tivesse sentid o par a o ( 1 8, p . 2 1 6) . Ela só se realiza quando está
infinito do Gênero, também su a realidade ligada ao poder do Eu. E a história real
seria, para mim, adiada ao infinitto . Ela se funda não em "palavras vazias" ( 1 8 , p.
seria mesmo, o fantasma dos fantasmas 2 1 9) como a "liberdade dos pov os" mas
uma vez que "a liberdade não tem con- em individualidades vivas. * * *

* Também 1 8, p. 3 32 : "deste modo o amor é, p o r essência razoável. É isto o qu e


Peuerbach pensa, mas o cre nte , também pensa que é, e por essência igualmente-crente".
* * Cf. também 1 8, p . 2 1 4: "Por que não quereis ter a coragem de vos tomar, a vós
mesmos, absolutamente como ponto central e objeto essencial? Por que quereis tolher a
liberdade, vosso sonho? Não interrogueis de início vossos sonhos, vossas representações ,
vossas idéias, tudo isto é apenas "teoria vazia".
*** Cf. 1 8 , p . 2 1 9 : "Nero, u m imperador da China, um pobr e escritor". Como em todo
o Unico, este passo é muito claramente urna versão da astúcia da Razão e do papel da
grande individualidade. Tanto pela recusa da determinação, quanto pelo papel fundante
dado ao Eu, Stirner estará atacando o raciocínio idealista presente nas filosofias de Feuer­
bach, Bruno , Bauer, Marx. Infel izmente não poderemos nos deter aqui neste ponto ( cf. 6,
p. 467 ) .

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A liberdade do Todo é pois, uma O indivíduo livre e soberano só po­


palavra vazia. E o discurso de Feuerbach deria se revelar ali onde termina radical­
sobre ele, apenas uma transmutação de mente toda e qualquer distância entre o
fantasmas. O cristianismo tem razão con­ EU e o EU uma vez que "a consciência
tra Feuerbach, ao desejar a liberdade do geral aind a é muito cristã para não ser
indivíduo : "Devemos, porque a liberd�de t omada de medo e recuar diante de tudo
se revela como um ideal cristão , renun­ o que não o é, como diante de algo im­
ciar a ela? Não, nada deve ser perdido, perfeito ou mau. Eis porque o "interesse
nem a liberdade ; mas ela deve tornar-se pessoal tem tão péssim a reputação" ( 1 8 ,
nossa, nosso bem próprio, o que ela não p. 221 ) .
pode ser sob a forma de liberdade" ( 1 8 ) . Operar com a linguagem como se
ela pudesse revelar imediatamen te o real ,
Bem longe d e realizar uma crítica ao sem atentar para a diversidade das signifi­
cristianismo a partir do mascaramento que cações que a atravessam é cair, neces­
este faz da individualidade, Feuerbach sariamente, no postulado de uma identi­
está preso à maneira pela qual é posta pe­ dade d o geral e do real. Mas a identidade,
la religião cristã a relação entre o indiví­ por exemplo, entre os interesses do indiví­
duo e o mundo. Feuerbach é tão incapaz duo e os do Estado é mais do que pro­
quanto o cristianismo de reconhecer o in­ blemática : é contraditória. Se a iden­
divíduo, único e livre, a partir do instante tidade fosse anterior a todo exercíci o par­
em que o compreende cOmo dependente ticular da liberdade, a polític a mais exata
do Gênero. seria a liberal. E que outra coisa é o libe­
ralismo senão a última metamorfose da
Feuerbach aceita a prosa moral cris­ religião cristã? Ele é a "religião do E s­
tã sem verificar o desvio que ela impõe à tado livre" ( 1 8, p. 226 ) . Esta religião
linguagem humana : o interesse pelo par­ presta ao Es tad o o mesmo serviço que
ticular, entendido como "egoismo" a ser a piedade filial à família : "se esta última,
superado, partilharia da operação secreta com efeito, deve ser reconhecida e man­
pela qual a língua moderna se "confor­ tida em sua integridade por todos os seus
mou ao ponto de vista cristão" ( 1 8, p. membros é preciso que a ligação de san­
22 1 ) . gue lhe seja sagrada e que ela seja hon­
rada e respeitada como aquilo que to rna
Assim, a cultUra moderna, longe de cada parente sagrado a seus olhos . Do
ser apenas uma aparência de cristianismo mesmo modo, a comunidade estatal deve
como postulava Feuerbach na Essência, é ser sagrada para cada cidadão e a Idéia ,
sua própria verdade, Feuerbach, crítico que é para o Estado a Idéia suprema,
do cristianismo, é sua própria vítima e deve sê-la também para ele" ( 1 8, p. 227) .
seu itinerário se fecha dentro dos limites A corrosão, pela filosofi a de Stirner,
imposto s pel a ideologia cristã. ( 1 8, p. da linguagem universalisante cristã e idea­
427 ; 1 9 ) . lista * não deixou de causar c onsequên·

,. "É apenas a partir do momento em que de Ti nada pode ser anunciado, em que
tu podes ser apenas nomeado, que tu és reconhecido como Tu. Enquanto se enuncia alguma
coisa de Ti, tu és reconhecido apenas como alguma coisa ( homem, espírito, cristão, etc. ) .O
único nada enuncia porque ele é apenas um nome, ele nada mais faz do que dizer que Tu és
ru, nada mais do que Tu, que Tu és um Tu único ou Tu me s mo . Então tu não tens predicado,
e não tens ao mesmo tempo determinação, vocação, lei, etc." ( 1 8 , p . 403 ) .

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cias na prosa feuerbachiana. Ela lhe ser­ ra compreender cada indivíduo em sí"
viu como um cadinho no trato das rela­ ( 1 8 , p. 403 ) .
ções indivíduo- gênero. De tal modo que
a figura do segundo vai perder, em textos Dominação polític a e justificação
posteriores à Essência do Cristianismo a ideal não estão pois separados mas se
anterioridade metafísica face aOs indiví­ constituem num movimento simultâneo de
duos : ele será substituído pela nature­ universalização e esfacelamento da par­
za *, nova garan ti a contra a qued a na ticularidade, não havendo nenhuma razão
armadilha do espírito t eológico. Enquanto para na crítica ao cristianismo, deixar sub­
na Essência, o indivíduo era compreendi­ sistir qualquer pretensão à universalidade
do como ilusão, na obra posterior de intocada, quer seja carregada pela políti­
Feuerbach se afirmará que só o indivíduo ca, pela religião ou pela moral .
existe "não se podend o reificar" os
predicados genéricos, pois caso co ntrário
Caberia perguntar sobre a possibili­
se recairia justamente na ilusão do espí­
dade desta crítica radical de t odas as re­
rito teológico" ( 20, p. 242-243 ; 1 , VIII,
presentações positivas que se apresentam
p. 1 52ss ; 1 , X, p. 1 0 1 ) . Natureza e sen­
ao Onico : não são poucos os c omentado ­
sibilidade passam a servir como operado ­
res que apontam para um retorno d o
res científicos verificáveis e visíveis e não
pensamento de Stimer à filosofia de
mais como fundamentos meramente ra­
Fichte * * no que seguem Marx e sua crí­
cionais de compreensão do mundo ( 1 1 , p.
tica do Onico na Ideologia A lemã * * *.
2 8 3 ss, 1 6, p . 3 40 ) .
Embora não rejeitando o que haveria de
Se a crítica do uso especulativo da verdadeiro neste "retorno", seria interes­
noção de Gênero humano como essência sante notar a originalidade do modo pelo
levou Feuerbach a re-orientar sua com­ qual Stimer compreende sua tarefa
preensão da individualidade, ao mesmo de crítica filosófica, o que nos poderia
tempo atacou irremediavelmen te o libera­ ser útil na busca da compreensão das
lismo feuerbachiano e permitiu denunciar representações autoritárias aludidas no
no Estado o port ador de uma raciona­ início deste artigo.
lidade cujo sentido seria a homogeiniza­
ção das individualidades, acarretando seu Certo, a auto-reflexão do Eu é . o
acomodamento político ( 1 8, p. 376-377 ) . elemento fundament al da busca de Sbr­
Esta crítica ao caráter autoritário do Es ­ ner, no sentido de uma liberdade ra­
tado liberal passa pelo interior da crítica dical. No entanto, está suposto, nesta sua
à filosofia especulativa, a qual, tanto maneira de experimentar o discurso sobre
quanto o Estado, teria como projeto a in­ a liberdade, um rompimento absoluto
tegração de todos os indivíduos sob si : c om o discurso idealista, objetivo e sub­
"a especulação tinha por fim encontrar jetivo. Assim, suas diatribes também se
um predicado que fosse bastante geral pa- dirigem contra o ideal da determinação

*
A qual, no entanto, será negada o caráter de Ser universal, abstraída das "coisas
reais, personificada e mistificada". ( cf. 1 , I, p. 4 1 0 ) .
**
Entre outros, Lukacs ( cf. 1 0 , p. 2 1 2 e 238 ) .
***
"É pois, apenas a manifestação de uma velha atitude de introspecção e de contri­
ção cristã sob a forma germano-especulativa a atitude da fraseologia idealista, segundo a
EJ.ual, não devo transformar a realidade, o que só posso fazer - com os .outros, mas transformar
a mim mesmo, no fundo de mim mesmo" ( 12, p. 240 ) .

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completa, de conexão sistemática dos ele­ berdade não podend o ser retido concei­
mentos do saber. Stirner recusa justa­ tualmente, também não pode e não deve
mente qualquer sistema perfeito e fecha­ ser repetido posteriormente, o que poria
d o em si mesmo, conforme a expressão em perigo a direção discursiv a que na
do "Comunicado Claro como o Sol . . . " Fenomeno logia do Espírito serviu como
de Fichte ( 5 , p. 79). itinerário do Saber ( 7, p. 83).
"O que Stirner diz é uma palavra , O novo ponto de partida de Stirner,
uma idéia, um conceito ; o que ele pelo contrário, leva à negação do itine­
visa não é nem palavra, nem idéi a s rário discursivo e da repetição : o conteú­
nem conceito. O que ele diz não do d o Único "não pode se repetir" ( 1 8, p .
corresponde àquilo que ele visa e 402 ) pois se ele pudesse ser repetido sa­
aquilo que ele visa é indizível ( 1 8, p . biamente, não mais estari a ele presente,
400 ) . A torsão operada na dialética da mas apenas sua expressão discursiva e
Sinnliche Gewissheit é notória : tomando fantasmática ( 1 8, p . 40 1 ) .
o partido da visada, da opinião ( Mei­ A aparição do Único no discurso fi­
nung) Stirner procura, não pela pri­ losófico seria a última transmutação n a
meira vez na seqüência das críticas à filo­ ordem da palavra humana : ele é a Lógica
sofia absoluta, restaurar a dignidade do que devora seus princípios ( 1 8 , p. 404 )
aqui e do agora, e denunciar o desvio e no horizonte de Stirner, ele é um
lingüístico do "concreto" para o "abstra­ "enunciado que se transmuta em visada
to". A subjetividade, longe de ser o pon­ ( Meinung ) ". :É a própri a ordem da Ra­
to a ser determinado posteriormente pelas zão que deve ser subvertida, não a partir
vária s exposições prosaicas seria, pelo do exterilor mas da denúncia de que a ra­
contrário, a fonte mesma da indetermi­ cionalidade é superstição e fantasmagori a
nação e, como tal, d a liberdade, no Ato e sua expQsição discursiva, frase morta ,
e na Palavra. determinada, escrava * .
Buscando uma "indeterminaçã o com­ O Único é uma tarefa provocado ra :
pleta" ( 1 8, p. 400- 40 1 ) S tirner indica confrontados com ele o completamente
que justamente, a individualidade apa­ desprovido de conteúdo, as grandes fra­
recia como o máximo de abstração na ses estouram do interior. Que significado
filosofia anterior, porque se tentava teria para minha particularidade a m ar­
compreendê-la a partir daquilo que ela cha triunfal do Espírito na História, o in­
não é, ou seja, uma essência passível teresse dos pov os, da Pátria, do Partido?
de ser fixada pelo Conceito e arramada Se todas estas "realidades" ultrapassam o
às leis do Gênero ( 1 8 , p . 40 1 ) . particular e não podem ser recolhidas por
Ora, o Único é a presença da pró ­ ele, não sendo sua "propriedade", é p o r­
pria liberdade : nada d aquilo que poderia que sua resistência é puramente formal.
ser deduzido a priori faz parte de seu O predicado "homem" por exemplo, "não
conteúdo. Ou melhor : o único não é sus­ omite do sujeito sua subjetividade não
cetível de nenhum conteúdo. Ele é : "a dizendo quem, mas apenas aquilo que o
própria indeterminação" ( 1 8 , p . 40 1 ) _ sujeito é?" ( 1 8 , p. 403 ) .
Esta liberdade em ato arrasta con­ Recolhidos os direitos do "agora" se
sigo uma reviravolta no plano das rela­ compreende o porque d a crítica de Stir­
ções entre palavra e temp o : o ato de li- ner à separação feita por Feuerbach entre

*
Para uma ou tra postura crítica quanto às relações entre "posição e exposição", ( cf .
4, p . 5 8 ) .

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o c;ris tianismo autêntico, do passado, e comum compartilhado por Marx, mas


o falso cristianismo do presente : Stirner porque alguns aspectos do processo de
acredita poder estourar com a pretensão dominação que ela denuncia foram jus­
do cristianismo atual (e seus c ontinuado­ tamente assumidos pel os recitadores do
res laicos e ateus) à qualquer sentido: en­ Corão marxista.
quanto se puder mostrar que um det er­ É a partir da crítica dos pressupos­
minado discurso se instala na distância tos dos discursos autoritários, que se auto­
do EU ao EU, ele é expressão residual apresentam como redentores dos oprimi­
de uma postura supersticiosa. O salto en­ dos que se manifesta a urgência de uma
tre o EU inicial e o EU final só poderia reflexão sobre a discordância entre a
ser dado formalmente ou religiosamente, política que pregam, como se esta fosse
último c�minho que, como se sabe, será expressão imediata do "real", e o su ­
o escolhido por Kierkegaard. jeito a que se referem. Quando passamos
O Único pretende ser poi s a redu­ pelo crivo da análise as entidades em que
ção de todo discurso ao seu grau zero, à se apoiam, como por exemplo, o "povo",
frase absolutamente desprovida de con­ "as classes assalariadas", etc. , temo s sem­
teúdo. Colocando-se metódicamente no pre como resultado que o sujeito nã o
interior dos discursos com pr etensões ao manifesto, mas operante, é o Estado e
conteúdo, ele denunciará o resto univer­ seus partidos, e a liberdade alardeada é,
salizante que os assalta do interior. O finalmente, exclusiva propriedade destes
Único seria em "seu despojamento e nu­ agente s e não dos indivíduos e das clas­
dez" a manifestação de que a maior frase ses efetivas.
é aquela que se dá como palavra saturada Certo, a crítica do Capital pretende
de sentido e conteúdo ( 1 8, p. 402 ) . Des­ estourar o próprio princípio da proprie­
te modo, é tão desprovida de sentido a dade, enquanto Stirner procura apontar
salvação oferecida pelo cristianismo, pas­ para os truques de magia que transferem a
sado e contemporâneo, quanto qualquer propriedad e para o Estado, para a Nação
manifestação piedosa sobre o Bem Co­ e não para os indivíduoos e classes efeti·
mum, as tarefas espirituais do Estado, o vas dentro d a sociedade capitalista. Mas,
progresso da civilização e da democracia : pergunta- se : qual discurso "marxista" ou
todas estas frases, na medida mesma em materialista histórico de hoje, enuncia cla.
que encobrem a rejeição e o domínio da ra e distintamente a ruptura com toda pro.
subjetividad e são insignificantes. Aquele priedade privada? Se examinarmos os tex­
que as carrega consigo é doente de uma tos e programas dos realistas brasileiros
idéia fixa no sentido em que, de indeter­ ( e mesmo europeus, etc., ) veremos que
minação mesma e fonte da liberdade, ele em nome da fatal etapa democrático,
se toma colhido conceitualmente e fixado burguesa, única vi a possível para a pas­
na Idéia, tornando-se apagado e impo­ sagem indolor para o socialismo, se "es­
tente no interior d e uma generalidade quece" estes aspectos incômodos da fi·
qualquer. losofia marxista. Então, qual a diferença
Após demasiado tempo de predomí­ entre o jovem hegeliano pequeno burguês
nio, n o campo do saber a uto-complacente e os repetidores da letra do Capital?
do marxismo, de uma leitura dos jovens Por mais que se :possa mostrar a fra­
hegelianos como meros "idealistas peque­ queza e o abstrato da política anarquista
no.burgueses" , parece importante reto r. de Stimer, o mod o pelo qual ele critica
nar à reflexão sobre a crítica po r eles as representações universalizantes postas
instaurada. Não só porque ela é o solo em movimento pelo intelectual racionali-

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ROMANO, R. - Feuerbach e Stirner : algum as considerações sobre linguagem e polí­
tica. Trans/ Fonn /Ação São Paulo, 3 : 105-14, 1980.
,

zador do Estado moderno e burguês, po ­ mostra bem que a mentalidade instrumen­


de se constituir em fonte heurística, dan­ tal é o determinante dos novos liberta­
do ocasião para se indicar a inconsis­ dores.
tência de discursos polític os que partem Para terminar, apesar das ironias da
"ingenuamente" da missão civilizatória do Ideologia A lemã, à propósito do método
Estado, e do progresso político que se stirneriano "para ver fantasmas", não en­
seguiria necessariamente ao progresso contramos ainda no 18 Brumário a re­
econômico e social : o "bom" progresso, cusa da repetição da política em história?
aquele que seria dirigido pelos "bons" E o que fariam os que ainda a creditam
intelectuais ( orgânicos ) é o supra-sumo nas "liçõe s do passado" das quais, habi­
da fantasmagoria. tualmente, livram-se por uma boa auto­
crítica sacramental, da denúnci a de toda
Sobretudo, é preciso voltar-se con­ idéia fixa que pretenda colocar o passado
tra a identificação metafísica entre pro­ como continuação tranquila no presente
gresso técnico e social e mudança radical e no futuro?
da sociedade. O mito da técnica neutra, Na obra de Marx, o "paraíso dos di­
que permitiria o milagre de, por exemplo, reitos humanos", o mundo do mercado e
colocar como libertador o processo de da sociedade civil não serão ainda pos ­
dominação mecânica d a consciência, des­ tos como fetiche e fantasmagoria? Assim,
de que esteja na s mãos dos ilus trados há muito que meditar sobre as relações
progressistas, tem junto a si a marca entretecidas pelo Onico e sua proprie­
permanente da Instauratio Magna : do­ dade e o Capital. A menos qu e os novos
mina-se a natureza como meio para se mediadores e guias da consciência, os
dominar os demais homens. Claro que propugnadores do ideal prosaico do
como todo bom discurso ideológico, o Mz'ttelstand, os intelectuais o rgânicos,
dominador é o que se apresenta como não tenham definitivamente entrado na
fonte de libertação. A corrida dos pro­ dança do progresso e jogad o os últimos
gressistas (e da Igrej a ) aos meios de in­ resquícios da crítica marxista, com toda
fluência e comunicação de massa (TV, alegri a e inocência prática na lata de
grande imprensa, cultura popular, etc ) lixo d a História.

I TRANS/FORM/AÇÃO/25

ROMANO, R . - Feuerbach and Stirner : some considerations on language and po­


litics. Trans/Form/Ação, São Paulo, 3 : 1 05-14, 1980.
SUMMAR!Y : Usually no attention is paid to the fact that the First Part
of Gennan Ideology ( " Feuerbach" ) was the last one written by Marx. As it appears
to us today the text therefore covel'S the genesis Df the criticism Df humanismo
This criticism, as this short essay intends to point out, could only spring from a
dose contact with the text Df The Unique and Its Property. After reading Stirner,
Marx could believe himself freed from this last speculative and ideological ghost :
Man.
UN ITERMS : Abstract universality ; reason and state ; representation ; Concept
and Sight ; inversion Df the diaJectics of Sinnliche Gewissheit ; the Here and the
Now : technical progress and radical change of society ; the ideology Df the
Mittelstand.

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ROMANO . R. Feuerbach e Stirner : algum as considerações sobre linguagem e polí­
-

tica. Trans/Fonn/ Ação, São Paulo, 3 : 105-14, 1 980.

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