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30/06/2020 Aventuras na História · O mistério dos tambores falantes africanos

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O MISTÉRIO DOS TAMBORES FALANTES AFRICANOS


Em 1842, um explorador britânico descobriu um insólito meio de comunicação,
que deixou os europeus perplexos
FÁBIO MARTON PUBLICADO EM 06/06/2019, ÀS 08H00

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Crédito: Shutterstock

Em 24 de maio de 1842, o capitão inglês William Allen comandava um vapor próximo à foz do Rio Níger, na
atual Nigéria. Era o nal da catastró ca expedição organizada pelo parlamentar Foxwell Buxton com o nobre
propósito de convencer os chefes tribais a pararem de vender escravos - e o não tão nobre assim de mapear
a região para exploração e início de acordos comerciais.

Um terço da tripulação europeia havia padecido, quase todos por doenças tropicais. Em sua cabine, Allen
fazia perguntas sobre o rio a um navegador nativo, a quem, sem conseguir pronunciar o nome original,
apelidou de Glasgow. Ouviu-se então o som dos tambores, o que costumava ser enervante para os
europeus.

Eles não só achavam a música rústica e desconcertante como sabiam, desde os primeiros contatos com os
povos da região - pelos portugueses no século 15 -, que podiam ser usados como um chamado de guerra.

Glasgow cou emudecido ao ouvir a música. Abordado pelo capitão, ele respondeu num inglês quebrado:
“You no hear my son speak?” (algo como “Você não escuta meu lho falar?”). Perplexos, os ingleses disseram
não ouvir voz nenhuma. Glasgow continuou: “Drum speak me, tell me come up deck” (“tambor fala mim, diz
mim subir ao deque”).

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Surpreso, o capitão foi ao convés e deixou o africano na cabine, descobrindo que a música vinha de uma
canoa ao lado do navio. Pediu então a seus intérpretes que dissessem ao nativo na canoa para transmitir
mais mensagens. Glasgow entendeu e repetiu tudo perfeitamente.

Mistério por um século

Logo a notícia do telégrafo da selva correria por toda a Europa. “Esses europeus falavam da 'mente nativa' e
descreviam os africanos como 'primitivos' e 'animísticos'. Ainda assim, acabaram vendo que eles haviam
atingido um antigo sonho de qualquer cultura humana. Ali estava um sistema de mensagens que era mais
rápido que qualquer mensageiro a cavalo”, a rma o americano James Gleick, autor de A Informação.

É bem verdade que os europeus tinham ouvido esses tambores pela primeira vez quase quatro séculos
antes. E igualmente tinham escutado inúmeras vezes os nativos dizerem que aqueles instrumentos falavam.

A questão é que ninguém tinha se dado conta de sua real capacidade. "Frequentemente, camos surpresos
ao descobrir que o som do trompete é tão bem entendido em nossas evoluções militares; mas quão
pequeno é isso perto do resultado atingido por esses selvagens sem educação”, registrou o capitão William
Allen.

A descoberta corresponde ao início da era do imperialismo tardio, a Corrida pela África, na qual as potências
europeias dominaram todo o continente, exceto por Etiópia e Libéria. Logo, milhares de missionários,
comerciantes e militares tomaram contato com os diversos povos da África Ocidental, como os do Congo e
Camarões, que faziam uso dos tambores.

Entre 1823 e 1874, os ingleses sofreram diversas derrotas para o Império Ashanti, de Gana - porque era
quase impossível surpreendê-los diante da comunicação via tum-tum-tum. Em 1885, a notícia da derrocada
inglesa em Cartum, no Sudão, já era comentada um dia depois no outro lado do continente, em Serra Leoa.

Em 1901, missionários e o ciais caram admirados com africanos em áreas remotas prestando suas
condolências pela morte da rainha Vitória, poucos dias depois do ocorrido.

CaptionIorubá e os "tambores falantes" / Crédito: Wikimedia Commons

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Mas o “código” dos tambores permaneceu um mistério. Não que os nativos zessem segredo. Quase todos
conseguiam entender as mensagens sem di culdade e, ao serem questionados, prontamente explicavam o
que eles “falavam”.

Tambores tagarelas

E não só falavam. Eram bem eloquentes. Em 1935, o missionário Roger T. Clarke registrou um anúncio de
um funeral por tambores, no Congo Belga: 

De manhã, ao amanhecer, não queremos reuniões para o trabalho, queremos um encontro de música na
beira do rio. Homens que moram em Bolenge, não saiam para a oresta, não saiam para pescar. Nós
queremos um encontro no rio, de manhã, ao amanhecer.

Clarke esteve próximo de decifrar aquela prévia rudimentar de mensagem instantânea. Para ele, não se
tratava de transmissão de sílabas, mas do tom da linguagem. O tom é bem limitado nos idiomas ocidentais.

Quando fazemos uma pergunta (há um leão no arbusto?) mudamos a frequência (isto é, falamos mais no)
e pronunciamos de modo diferente de uma a rmação (há um leão no arbusto). Em línguas como o
mandarim, cantonês e as da família nígero-congolesa, da África Ocidental, o tom é usado para diferenciar
palavras formadas pelas mesmas sílabas. No lokele, do Congo, a frase “alambaka boli” pode signi car “ele
olhava da beira do rio” ou “ele fervia sua sogra”, conforme a tonalidade.

Uma mensagem assim, convenhamos, é ambígua demais para fazer sentido. Por isso, Clarke foi recebido
com ceticismo. Foi preciso alguém tonar-se “nativo” para nalmente entender o mistério. O missionário
inglês John F. Carrington chegou ao Congo Belga em 1938 e passou a viver entre os lokeles.

Ele se tornou tão pro ciente naquela linguagem - e nos tambores - que os locais passaram a dizer que
Carrington só podia ser um deles encarnado num branco por acidente. A partir de 1944, o missionário
publicou os primeiros livros de nitivos sobre os instrumentos falantes, corroborando a tese de Clarke.

As mensagens funcionam, sim, graças ao tom, mas com um adendo importante: elas precisam ser prolixas,
verborrágicas. O recado “venha para cá”, em lokele, era transmitido assim: Faça seus pés voltarem pelo
caminho que vieram, faça suas pernas voltarem pelo caminho que vieram, plante seus pés e pernas abaixo,
na vila que pertence a nós.

Tambores eram usados como forma de comunicação / Crédito: Wikimedia Commons

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Os tamboristas usavam frases feitas, quase sempre muito rebuscadas, para evitar a imprecisão. Uma
palavra quase sempre era acompanhada de uma frase decorada. Os tambores “são uma forma de literatura,
não música”, a rma a antropóloga Ruth Finnegan, da Open University (Reino Unido). Um gênero bastante
peculiar, “frequentemente subestimado”, de acordo com a pesquisadora. E bastante efusivo.

Por mais de um século, os ocidentais ouviam as batidas e sabiam que queriam dizer algo, porém não
conseguiam notar o óbvio: que elas transmitiam a língua falada diretamente. Não existia, portanto, um
“código”.

Vindos de uma cultura na qual o tom não é importante no falar e a escrita é a principal forma de
comunicação a distância - sem contar que tinham inventado um código percussivo próprio, o morse -, os
europeus estavam surdos diante da simplicidade e ciente do método milenar africano.

Pena que tenham entendido tão tarde. “Logo havia pessoas para quem o caminho da tecnologia das
comunicações saltou direto do tambor ao telefone celular”, a rma James Gleick. Hoje, a maioria dos
habitantes da África Ocidental não entende mais os tambores, e é difícil encontrar jovens dispostos a
manter viva a tradição.

Saiba mais

A Informação, James Gleick, Companhia das Letras, 2013.

Oral Literature in Africa, Ruth Finnegan, Open Book Publishers, 2012.

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