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Quem nos governa, afinal?

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 05 de julho de 2008

O plano de transição para o governo mundial, que Arnold Toynbee expôs mais de
meio século atrás e que mencionei brevemente nesta coluna, já está em
avançadíssima fase de implantação, ao ponto de que não há nenhum exagero em
dizer que a Nova Ordem globalista-socialista é um fato consumado, irreversível.
Que a maioria dos seres humanos ignore isso por completo e ainda tenha a ilusão
de poder interferir de algum modo no curso das coisas por meio do “voto”, eis aí a
prova de que Toynbee tinha toda a razão ao dizer que a nova estrutura de poder
não seria democrática, nem democrática a transição para ela. Não há estado de
sujeição mais completo do que ignorar a estrutura de poder sob a qual se vive.

É verdade que a mera complexidade crescente da administração estatal moderna


já era, por si, conflitiva com as pretensões democráticas de transparência,
informação acessível, “voto consciente”, enfim, com as presunções da
“cidadania”. Mas o que vem acontecendo no último meio século é o
aproveitamento deliberado e sistemático da complexidade burocrática para criar,
acima do governo representativo, uma nova estrutura de poder que o domina, o
estrangula e acaba por eliminá-lo. A maior parte das nações já vive sob o controle
dessa nova estrutura global sem ter disso a menor consciência e acreditando que
continua a desfrutar das garantias e meios de ação assegurados ao eleitor pelo
antigo sistema de governo representativo, hoje reduzido a um véu de aparências
tecido em torno do poder mais centralizado, abrangente e incontrolável que já
existiu ao longo de toda a história humana.

Não só essa transição já aconteceu, mas ela foi realizada sob a proteção de um
conjunto de pretextos retóricos altamente enganosos, criados para dar à
população a idéia de que a mudança ia no sentido da maior liberdade para os
cidadãos, da maior participação de todos no governo e de mais sólidas garantias
para a empresa privada. Todos os termos-chave dessa retórica – “governo
reinventado”, “parcerias público-privadas”, “terceira via”, “descentralização” –
significam precisamente o contrário do que parecem indicar à primeira vista.

Os dois diagramas que acompanham este artigo tornarão isso bastante claro. As
flechas aí indicam a origem do poder e o objeto sobre o qual se exerce. No antigo
sistema representativo, o eleitorado escolhia o governo segundo os programas
que lhe pareciam os mais convenientes, e o governo eleito – executivo e
parlamento – repassava esses planos aos órgãos da administração pública, para
que os executassem. No novo sistema de “parcerias público-privadas”, a
administração pública é só uma parcela do órgão executor. A outra parcela é
escolhida por entidades sobre as quais o eleitorado não tem o menor controle e
das quais não chega às vezes a ter sequer conhecimento. Tal como apresentado
na sua formulação publicitária, o novo sistema é mais democrático, porque reparte
a autoridade do governo com “a sociedade”. Mas “a sociedade” aí não
corresponde ao eleitorado e sim a ONG’s criadas sob a orientação de organismos
internacionais não-eletivos – ONU, UE, OMS, OMC, etc – e subsidiadas por
bilionárias corporações multinacionais cuja diretoria não é mesmo conhecida do
público em geral.

A orientação geral dessas ONG’s reflete um conjunto de novas concepções


socioculturais e políticas que jamais foram postas sequer em discussão, e que por
meio delas são implantadas do dia para a noite, sem que o eleitorado chegue a
saber nem mesmo de onde vieram. A própria velocidade das transformações é
tamanha, que serve para reduzir as populações ao estado de passividade atônita
necessário para tornar inviável não só qualquer reação organizada, mas até uma
clara tomada de consciência quanto ao que está acontecendo. Paralelamente,
muito do poder de decisão do parlamento é transferido aos órgãos burocráticos,
que, agindo já não como braços do eleitorado, mas como agentes a serviço de
parcerias controladas pelo triunvirato de ONG’s, corporações e organismos
internacionais, passa então a introduzir na sociedade mutações radicais que, no
sistema de governo representativo, jamais seriam aprovadas nem pela população,
nem pelo parlamento.

Ao desfazer-se de uma parte das suas prerrogativas, sob as desculpas de


“privatização”, “democratização”, “descentralização”, “desburocratização” etc., o
governo não as transfere ao povo, mas a um esquema de poder global que
escapa infinitamente à possibilidade de qualquer controle pelo eleitorado. As
ambigüidades decorrentes, que desorientam o público, são então aproveitadas
como instrumentos para gerar artificialmente novas “pressões populares”, que não
são populares de maneira alguma, mas que refletem apenas a vontade da
chamada “sociedade civil organizada”, isto é, da rede de ONGs criadas pelo
próprio esquema de poder global.

Subsidiadas pelas grandes corporações e fundações, essas ONGs, prevalecendo-


se da “parceria” que têm com órgãos do governo, passam então à parasitagem
voraz de verbas públicas, somando aos recursos que as alimentam desde fora o
sangue extraído do próprio eleitorado que as ignora e que elas falsamente
representam. Essa nova estrutura de poder não é um plano, não é um objetivo a
ser alcançado: ela já é o sistema de poder sob o qual vivemos, construído sobre
os escombros do antigo governo representativo, que hoje em dia só subsiste
como aparência legitimadora da transformação que o matou.

Uma ambigüidade especialmente irônica e por isto mesmo proveitosa da situação


é que um dos instrumentos principais para a implantação do novo esquema reside
na rede mundial de ONG’s e movimentos esquerdistas, desde os mais radicais até
os mais brandos e inofensivos em aparência. Ao mesmo tempo, como a violência
e rapidez das mutações gera toda sorte de desequilíbrios, temores e
insatisfações, essa rede de organizações esquerdistas é usada por outro lado
como megafone para lançar a culpa de todos esses males no velho capitalismo
liberal, apontado como beneficiário maior das mesmas transmutações que o
esmagam. Os sintomas colaterais mórbidos da transformação servem eles
próprios como pretextos para acelerá-la e aprofundá-la, canalizando em favor dela
as dores que ela gerou.

Numa obra memorável, “Du Pouvoir. Histoire Naturelle de Sa Croissance”,


Bertrand de Jouvenel mostrou que a história da modernidade não é a história da
liberdade crescente, como pretendia Benedetto Croce, mas a história do poder
crescente do Estado avassalador.

Esse livro é de 1945. Desde então, o curso da História tomou um rumo que o
confirma na medida mesma em que aparenta desmenti-lo. A “descentralização”
dos governos nacionais, simulando em escala local uma vitória do liberal-
capitalismo sobre as tendências centralizadoras e socialistas, foi posta a serviço
da construção do Leviatã supranacional que, inacessível e quase invisível,
controla dezenas de Estados reduzidos à condição de entrepostos da
administração global. Não só o eleitorado foi submetido a essa gigantesca
mutação sem a menor possibilidade de interferir nela ou de compreendê-la, porém
até mesmo alguns dos mais intelectualizados porta-vozes do liberal-capitalismo,
enxergando apenas o fator econômico e recusando-se a investigar a nova
estrutura de poder político por trás da globalização comercial, colaboraram
ativamente para que o processo de centralização mundial se implantasse
pacificamente, sob a bandeira paradoxal da liberdade de mercado.

O camponês antigo, o servo da gleba e até mesmo o escravo romano gemiam


sob o tacão de um poder incontrastável, mas pelo menos tinham uma idéia clara
de quem mandava neles e compreendiam perfeitamente o funcionamento do
sistema que os governava. O cidadão da “democracia de massas” está cada vez
mais submetido a decisões que não sabe de onde vieram, implantadas por um
sistema de governo que ele nem conhece nem compreende. O globalismo é a
apoteose do processo de centralização do poder, centralizando até o direito de
conhecer o processo.

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