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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE EDUCAÇÃO
CURSO DE LICENCIATURA

KAREN CECILIO TAKAHARA MARCELINO


10328216 - NOTURNO

TRABALHO FINAL (ESTÁGIO)


O aluno produto da pandemia de COVID-19

DISCIPLINA: EDF 0292 – PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E EDUCAÇÃO


Profa. Teresa Cristina Rego
28/07/2021

SÃO PAULO
2021
INTRODUÇÃO
É possível dizer com clareza que uma determinada classe, ou uma categoria
(estudantes, metroviários, professores, etc), não constitui um bloco homogêneo, uma vez que
cada indivíduo a partir das constantes interações sociais que vivenciam dão as bases para seu
desenvolvimento e, portanto, para sua singularidade existir, isto é, o indivíduo singular é
constituído socialmente derivado de suas próprias experiências proporcionadas pela cultura.
Sendo assim com base na teoria de Vygotsky podemos entender que "cada sujeito é único,
ativo e interativo no seu processo de conhecimento” (REGO, 1998, p. 64), sendo um “produto
de seu contexto social, mas também um agente ativo na criação desse contexto "(REGO,
1998, p. 60). Diante disso, a escola ganha uma centralidade, uma vez que é nela que ocorre a
transmissão de conhecimentos de um cultura, ou seja, "a apropriação pelo sujeito da
experiência culturalmente acumulada" (REGO, 1995, p. 103), não apenas por introduzirem
novos modos de operações intelectuais, mas também dada pelo fato de modificarem suas
relações cognitivas com o mundo (REGO, 1995, p. 104), sendo nela também que é possível
notar as singularidades, ligadas não por suas aptidões, qualidades, etc, mas sobretudo a partir
de sua influência e interação com a cultura, tendo em vista seu contexto social e as dinâmicas
internas escolares; essas diferenças na escola podem aparecer como o sucesso ou fracasso
escolar.
Dado o papel insubstituível cumprido pela escola em relação à cultura, durante a
pandemia de COVID-19 foi necessário que houvesse adaptações para que os dias letivos não
fossem ainda mais interrompidos, diante disso o formato encontrado foi dado através da
utilização de tecnologias. No entanto, é essencial que se possa compreender os problemas
estruturais do Brasil, bem como a questão da democratização do ensino, para assim analisar as
consequências de um ensino remoto com base em tecnologias.
Assim, este trabalho propõe uma análise do contexto de um estudante de escola
pública situada na Zona Sul da Cidade de São Paulo durante a pandemia de COVID-19 no
Brasil. A divisão da pesquisa será feita em uma apresentação do perfil da entrevistada, a
transcrição da entrevista e uma análise dos dados coletados durante a entrevista.
A entrevista, então, cumpre aqui um papel fundamental para esta pesquisa, uma vez
que torna-se o instrumento principal para a coleta de dados e para a modelação do objeto de
estudo, ao passo que firma uma maior compreensão do social. Para a realização da entrevista
foi levado em consideração a realidade heterogênea dos estudantes, sendo estes de escolas
públicas ou particulares, ou ainda de uma mesma escola, por isso ao entrevistar apenas uma

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aluna é notório que há limitações para uma análise concreta da realidade material escolar de
um grupo determinado de estudantes.
Para uma maior clareza do que estão sendo as consequências de um ensino remoto
com base em tecnologias no Brasil, a escolha do entrevistado foi baseada nos seguintes
critérios. I) A democratização do ensino no Brasil sempre foi um desafio, em linhas gerais, o
ensino brasileiro está baseado em uma lógica de que para se ter um bom rendimento escolar é
preciso que antes haja um investimento do capital econômico e cultural previamente
transmitido pela família, ou seja, "o rendimento escolar da ação escolar depende do capital
cultural previamente investido pela família e que o rendimento econômico e social do
certificado escolar depende do capital social - também herdado - que pode ser colocado a seu
serviço" (BOURDIEU, 1998, p. 74), assim a partir da relação intrinsecamente ligada entre o
capital cultural e o capital econômico, há a garantia do valor em dinheiro do capital escolar.
Assim, o capital cultural explica como a educação garante benefícios específicos para crianças
de classes diferentes e, desta forma, perpetuando desigualdades. Diante disso, era preciso que
o entrevistado fosse um representante desta desigualdade a partir do capital cultural. II) Após
a promulgação da portaria Nº 343 pelo MEC, a qual dispõe sobre a substituição das aulas
presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do Novo
Coronavírus - COVID-191 ao passo que cerca de 4,1 milhões de alunos da rede pública não
têm acesso a internet2, é notório que os alunos de escolas públicas durante a pandemia de
COVID-19 enfrentaram dificuldades maiores do que os alunos de redes privadas e terão
consequências mais duras, diante disso tornou-se pertinente que o entrevistado estudasse em
escola pública. III) No entanto para a pesquisa foi necessário que o aluno tivesse acesso à
internet e que estivesse participando recorrentemente das aulas e atividades da escola, para
que fosse possível o aluno avaliar o ensino remoto durante a pandemia e realizar comparações
com o ensino presencial. IV) O critério do aluno fazer parte do ensino médio foi dado não
apenas pelo fato do senso crítico mais desenvolvido, mas também diante da questão de como
a pandemia poderia prejudicar o futuro acadêmico, tendo em vista a continuação dos
vestibulares. V) O aluno deveria ainda querer prestar ao menos o ENEM vislumbrando a
entrada em uma universidade pública, para que assim fosse possível analisar as dificuldades

1
Informação disponível em:
https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=603&pagina=1&data=19/03/2020&totalArqui
vos=1 Acesso em: 23 de jul de 2021.
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Informação disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2021/04/segundo-ibge-43-milhoes-de-estudantes-brasileiros-entraram-
na-pandemia-sem-acesso-a-internet.shtml Acesso em: 23 de jul de 2021.
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enfrentadas para isso, uma vez que não houveram a paralisação de vestibulares e provas
nacionais.
Tendo em vista estes cinco critérios, o aluno foi selecionado para a realização da
entrevista, esta entrevista dada através de um modelo qualitativo, e mais especificamente foi
realizado uma entrevista compreensiva, esta que "não tem uma estrutura rígida, isto é, as
questões previamente definidas podem sofrer alterações conforme o direcionamento que se
quer dar à investigação" (ZAGO, 2003, p. 295), isto é, mesmo havendo um roteiro pronto, a
partir do dinamismo da entrevista não houve uma linearidade nas questões e até mesmo
surgimento de algumas durante a conversa. A entrevista foi pensada no sentido de
compreender a realidade concreta do que a sistematização de uma informação. A questão da
neutralidade, talvez uma das mais importantes e complexas, pois foi com a não utilização da
minha total neutralidade que foi possível adquirir a confiança necessária para o entrevistado
dar de fato sua opinião, tal qual a dificuldade também sobre isso é o fato de que as "diferenças
entre as condições e, particularmente, o temor do desprezo de classe que, quando o sociólogo
é percebido como socialmente superior, ver frequentemente redobrar o receio muito gerai,
senão universal, da objetivação" (BOURDIEU, 2001, p. 699). Um outro adendo é de que
diferentemente de como ocorreria presencialmente não houve uma consulta sobre o local em
que desejaria ser entrevistado, uma vez que diante da pandemia o mais seguro à nível do
isolamento social seria a realização a partir de plataformas virtuais de reunião. Assim, a partir
de uma determinada plataforma era possível gravar a reunião, apesar dela ter sido gravada
com a permissão do entrevistado, houve um medo relacionado ao que Bourdieu alerta: a
produção de um efeito de censura dado pela presença do gravador. Apresento aqui também a
dificuldade com a transcrição da entrevista, tendo em vista que ironias, olhares, entonação,
pausas, gestos, etc, não puderam ser transcritos em palavras. Dito isso, é possível resumir que
a entrevista com duração de cerca de duas horas foi de troca e de grandes observações a partir
do que era colocado pelo entrevistado.
O título do relatório "O aluno produto da pandemia de COVID-19" possui a
fundamentação na teoria de Vygotsky, dado pela relação de que o indivíduo, no caso os
estudantes, em um determinado contexto sócio-histórico, em linhas gerais permeados pela
pandemia de COVID-19, continuam ativos e são influenciados durante seu processo de
conhecimento e de interações sociais, ou seja, como explicado por Rego (2002):
O indivíduo, agora contextualizado (histórico e socialmente), pode ser
desnudado e estudado dialeticamente com relação às leis de sua evolução
biológica e às leis de seu desenvolvimento sócio-histórico (p. 102)

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Assim, poderíamos afirmar que o aluno após enfrentar uma série de dificuldades
com ensino durante a pandemia de COVID-19, este viria a ser, a partir de suas interações
sociais, um produto de seu contexto social.

PERFIL DO ENTREVISTADO
O estudante escolhido a partir dos critérios apresentados é uma menina de dezessete
anos que estuda no período noturno de uma escola pública na Zona Sul da Cidade de São
Paulo, cursando o terceiro ano do médio. Ela que mora em uma casa na mesma zona da
cidade, divide a residência com sua mãe (dona de casa), seu pai (motorista particular) e seu
irmão de 14 anos. A família possui internet em casa e possui uma renda mensal de até três
salários mínimos. No início de 2020, ela transfere-se de uma escola pública para outra.
Durante a pandemia, ela tornou-se menor aprendiz em uma empresa de localidade na mesma
zona da cidade, com o intuito de poder pagar um cursinho pré-vestibular, após ela observar
que não teve em sua escola todos os conteúdos, diante disso passou a estudar no período
noturno. A estudante prestou ENEM pela primeira vez ano passado. Ela quer fazer faculdade,
mas ainda não se decidiu em relação à escolha do curso.

ENTREVISTA TRANSCRITA
A entrevista foi realizada no dia 05 de julho de 2021, tendo duração de cerca de duas
horas de conversa. Trechos referentes à intervenções que indicam confirmação da pergunta,
surpresa, afirmação ou confirmação de uma informação foram suprimidos a fim de facilitar o
entendimento, assim como as conversas informais que ocorreram durante o período de
conversa também não foram transcritas. Serão utilizadas a seguir as predefinições dadas pela
letra A para indicar as respostas da aluna, entrevistada, que aceitou o convite para participar
da entrevista, e a letra K, de Karen, corresponderá ao entrevistador.

Aluna: Meu nome é [nome ocultado], tenho dezessete anos e estou no terceiro ano do ensino
médio, cursando em escola pública no noturno. Criei um grêmio na minha escola do Ensino
Fundamental, fiz a primeira votação de chapas e a minha chapa ganhou. Ainda não sei qual
faculdade eu vou fazer, ainda não me decidi. Estou bem confusa em relação a essa parte, mas
estou bem tranquila, não pretendo correr e uma hora sei que eu vou descobrir. Vai dar tudo
certo.

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Karen: Como disse, separei algumas perguntas para fazer. Então, a primeira, pensando nesse
momento de pandemia e comparando com antes. Quais são as maiores facilidades e maiores
dificuldades que você tem encontrado nesse momento de estudar online, desde o ano passado.
Você poderia compartilhar essa sua experiência?

A: Bom, eu me mudei de escola no começo de 2020, quando começou a pandemia. Então eu


estava em um ambiente totalmente estranho, não conhecia ninguém. Para além das próprias
dificuldades da pandemia, isso fez com que fosse bem mais difícil, porque os professores não
me conheciam, não conheciam o meu jeito, a minha personalidade de estudo. Então acho que
encontrei muita dificuldade neste aspecto, de me mostrar que eu estava ali para aprender.
Para além disso, no começo do bimestre eu tive um grande problema com notas, por exemplo,
notas que não eram minhas apareciam como se fossem minhas. Eu entregava um monte de
trabalhos, e os professores não me devolviam. Eu tinha que ter a compreensão de que muitos
dos meus professores idosos ou com uma certa idade não têm o costume de utilizar
tecnologia, então eu tinha que ter esta compreensão de que eles estavam no mesmo patamar
que eu. Acho que até um pouco pior, porque nós, jovens, já temos uma ideia de tecnologia, e
eles não. Na escola utilizamos uma plataforma nova de estudos e as mesmas dificuldades que
eu estava passando, eles também estavam, então acho que tem que ter a compreensão dos dois
lados. Mas era realmente muito difícil, porque acabou me prejudicando muito, meu boletim
do primeiro e segundo bimestre vieram notas que não eram minhas, mas aí eu penso que a
compreensão não ajuda muito, porque como vou olhar para uma faculdade e falar: então, eu
fui compreensiva com o meu professor e por isso as notas que estão aí não são minhas.
Uma outra coisa foi o método de explicar as atividades - não explicavam, o professor dava
uma atividade e a gente não tinha uma base, dava um exercício e nem mesmo falava sobre a
matéria, eu acho que esse negócio foi muito difícil.
Sobre as facilidades, eu acho que não tem lado bom. Estudar online não tem lado bom. Talvez
o lado bom seja que não tem conversas na sala, nas escolas públicas, muitos alunos não
querem saber de estudar, então acabam atrapalhando quem realmente quer, esta é a diferença
entre a [escola] particular, como você não paga a pública, nada não está saindo do seu bolso,
não tem muito interesse dos alunos. Em 2020 foi o meu primeiro ano estudando à noite, e é
impressionante a quantidade de gente que não quer saber de nada da vida que estuda à noite,
se de manhã já era ruim, à noite é pior. Então estudar online não tinha a distração de colegas,
e eu pude me concentrar mais no que o professor passa de aula, o ruim é que não tinham
explicação. Eles davam exercícios, principalmente muita coisa do YouTube, então eu posso
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falar que eu só consegui nota por conta do YouTube, porque pelos professores estava
realmente complicado.

K: Você não teve aulas síncronas?

A: No começo do ano, como estava novo para todo mundo, ficamos acho que uns quatro
meses parados, mas com atividade na plataforma. Depois o governo implementou o CMSP
(Centro de Mídias São Paulo), que tem aquelas aulas ao vivo. Mas também tinha muita coisa
que não se encaixava, que eu via que eu estava perdendo tempo. Não perdendo tempo, porque
conhecimento nunca é demais, mas tinha alguma coisa que não fazia sentido, sabe? E aí os
professores acabavam passando outra coisa, por exemplo, a professora de química do CMSP
estava passando ligações químicas e a minha professora estava passando química orgânica. E
aí eu pegava para estudar ligações químicas e quando chegava na aula mesmo era química
orgânica. Não seguia o roteiro para todo mundo, entendeu? Eu acho que todo mundo, os
professores principalmente pensavam no deles. Tinham alguns professores que passavam
umas coisas muito simples para falar que passou. Então aquelas notas dez que vinham no
boletim, não eram aqueles dez gostosos que você recebe, sabe? Que você se esforçou, que
você correu atrás, como era no meu nono ano. Vinha um dez pra mim que não era mérito meu,
e eu corro atrás da nota que eu mereço. No ensino fundamental a nota que vinha, era a minha
nota, porque, diferente de agora, eu não tinha que ficar preocupada se a professora recebeu
minha atividade, se corrigiu a minha atividade certa, porque não tinha isso. Mas no ensino
médio, a preocupação com nota foi muito grande, além de ter a preocupação de tentar
aprender e passar de ano, eu tinha que ter essas preocupações. E isso é muito chato, porque eu
acabava me colocando em um papel de um profissional capacitado que estudou para isso, e aí
eu penso: é tão difícil assim você corrigir minha atividade? Se eu não mereço um dez, não
quero aquele dez, mas se eu merecia um nove e me deu cinco, como finca? Essa parte de
cobrar nota é muito assustadora, acho que eu nunca pensei que passaria por isso.
Uma outra coisa é que eu nunca tive uma aula cara a cara, que eu podia ligar a câmera e
participar, minhas amigas que estão em escola particular têm isso todo o dia, com os
professores abrindo uma lousa virtual, ensinando, etc. O mais próximo disso foram dois
professores nesse ano que se disponibilizaram a estar em determinados dias da semana em tal
horário, o que aconteceu foi que na minha aula de química, eu sou a única aluna dela. A
professora manda convite para todo mundo, e eu sou a única que entra durante dois meses. Na

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verdade, em um dia destas oito aulas que tiveram, outras duas meninas também apareceram,
mas nunca voltaram a entrar.

K: Para além destas questões apresentadas, como está sendo estudar online na sua casa? Você
tem um ambiente tranquilo e adequado? Você consegue empenhar seu tempo de maneira
eficiente?

A: No começo da pandemia foi bem difícil, bem conturbado. Eu nunca tive um lugar para
estudar em casa e a internet também foi um problema, o modem fica na sala e meu quarto é
mais afastado, então a internet não chegava no meu quarto. Então no começo eu tinha que
estudar na cozinha com a minha mãe fazendo comida, fazendo suco no liquidificador. Foi
uma loucura. Aí depois de muito tempo, um pouco mais de um ano que a gente conseguiu
adaptar internet, mais para cá, e eu consegui colocar também uma mesa mais espaçosa aqui no
meu quarto. Depois de um ano realmente consegui me adaptar com o lugar para estudar,
porque até então no começo, acho que todo mundo pensou que ia durar uns dois ou três
meses, e ia passar, então eu falei que não ia me preocupar e que ia me virar. Eu cheguei até a
estudar no banheiro, para você ter noção, eu peguei um banquinho sentei lá e fiquei estudando
no banheiro, porque não tinha silêncio, era uma sexta à noite que estava tendo aula no CMSP,
que é ao vivo, e eu não tinha espaço na sala, já que meu pai e meu irmão estavam assistindo
TV, na cozinha minha mãe estava fazendo comida, e no quarto não pegava internet. Depois
disso conversei com meus pais para que a gente pudesse adaptar a internet. E aí eu penso que
se pra mim já foi difícil que tenho condições de ter internet em casa, um quarto só para mim,
de ter um computador, de ter uma mesa, eu fico imaginando as pessoas que não têm
condições. Isso me deixa ainda mais brava, porque é realmente uma situação que ninguém
deveria passar. Acho que todos os alunos devem ter condições de ter um ambiente tranquilo
em casa, mas infelizmente acho que a grande maioria não tem isso. É muito triste.

K: Poderia falar um pouco mais sobre o convívio com sua família durante esse período de
pandemia.

A: Aqui somos quatro, meu pai, minha mãe, meu irmão e eu. Realmente é muito tranquilo,
todo mundo aqui é muito compreensível. A questão da convivência mesmo afetava, porque
meu pai chegava do serviço, cansado, ele tinha um dia estressante e queria ver TV. Então eu
também não me sentia a vontade de tirar ele da sala, que era onde era o sossego dele. Acho
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que eu não me sentia nesse direito. Agora com a internet no meu quarto está bem mais
tranquilo.

K: Sua família costuma te ajudar com a questão dos estudos, tanto antes como agora na
pandemia. Como é essa sua relação com a família, se eles te ajudam nas tarefas, no
acompanhamento das suas notas, etc. Como é o acompanhamento da sua família na sua
realidade de estudo?

A: Meu pai sempre trabalhou muito, até quando eu era bem pequenininha. Nunca fui tão
próxima em questão do dia a dia com o meu pai, eu via ele à noite e de manhã quando eu saia
pra escola. Então quem me acompanhava mais era minha mãe, ela sempre foi um anjo para
mim. Minha mãe é minha melhor amiga. Foi ela que me ajudou muito, por exemplo, eu
lembro que eu não entendia matemática, e ela sentava comigo para ensinar. Ela só parou de
me ajudar quando ela não sabia a matéria, nem mesmo com as pesquisas e estudos que ela
fazia antes de me ensinar, por exemplo no oitavo ano com álgebra, ela já não conseguia me
ajudar mais. Ela sempre foi minha segunda professora em casa. Trabalho de escola, maquete,
pinturas, etc, ela também me ajudava. Meu pai é motorista particular e minha mãe é do lar, ela
fica aqui com a gente.

K: Como é o contato com amigos e essas relações com isso antes e agora na pandemia, isso
influencia ou atrapalha em algo nos estudos?

A: Na minha outra escola, eu e meus amigos sempre sentávamos na frente e prestávamos


muita atenção. Nunca colei ou tentava copiar algo dos meus amigos, a gente se ajudava.
Então, por exemplo, eu faço curso de inglês aos sábados, e o que a gente estava vendo na
escola era muito básico, eu já tinha aprendido faz tempo, por isso eu ajudava todos os meus
amigos. Meu melhor amigo me ajudava em matemática, eu sempre fui muito ruim, eu nunca
copiei nada dele, mas ele sentava e me falava tudo que sabia. Eu e meus amigos nunca
faltamos às aulas, todos os professores tinham muita intimidade e conversa com a gente, então
os demais alunos sabiam que se precisassem, a gente explicaria, mas sem copiar caderno.
Nessa escola que estou hoje, eu não tive tempo para fazer amigos, fiquei um mês na escola e
começou a pandemia, fiz amizade com quatro pessoas e fizemos um grupo de WhatsApp,
para tentar se apoiar nos estudos. Sinto falta do meu grupo antigo, porque a gente se ajudava
demais, às vezes eu tinha uma dúvida e era só perguntar para eles.
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K: Você comentou comigo que começou a trabalhar agora, então fiquei pensando sobre seu
tempo de estudo. Quantas horas de estudo você consegue desempenhar por dia? Como
organiza seus horários com as aulas à noite?

A: Era para eu ter começado a trabalhar em 2020 e foi isso que me fez mudar de escola e ter
mudado para o noturno, porque era o único horário que eu tinha, já que eu tinha que trabalhar
de manhã e à tarde. Eu fiquei um pouquinho desesperada, um pouquinho com medo, porque a
minha vida sempre foi de manhã, acho que apenas um ano eu estudei de tarde, isso no
prézinho. A minha vida foi toda de manhã, então foi realmente um baque, já que tive que
mudar toda minha rotina. Mas por conta da pandemia, eu comecei a trabalhar há duas
semanas. Eu sinceramente não consegui me organizar, mas eu estou levantando às 9 horas da
manhã, o mesmo horário que começa meu trabalho, e vai até às 16 horas. O que tem me
ajudado é o trabalho estar remoto, assim não preciso me preocupar com o tempo gasto para ir
até lá, então eu tenho tempo diminuindo por causa do trânsito. Então fico das 9h às 16h, dou
uma pausa de 1h e começo a estudar das 18 horas às 22 horas. Como eu não estou tendo
muito apoio das matérias, porque as matérias que eu tô vendo agora não me ajudam no
ENEM, até porque os exercícios não me preparam pra isso, só servem pra eu passar de ano.
Então, eu assinei um cursinho online, que eu tô fazendo. Por isso, eu estou estudando das 18h
às 22h e trabalhando de 9h às 16h. Está um pouco complicado porque eu também tenho
trabalhos para entregar da escola, então eu realmente não consegui me organizar. No sábado,
por exemplo, eu virei a noite, porque acabei um trabalho às 6h da manhã e fui até as 10h que é
a hora que acaba meu curso de inglês. Eu nunca fui de acumular trabalhos de escola, mas por
conta do meu trabalho que eu comecei há duas semanas, no qual eu sou jovem aprendiz, e
nunca tinha trabalhado antes, tive muitos cursos preparatórios para fazer, assim, acabei
ficando uma semana sem ver o meu e-mail de escola e eu tinha 30 trabalhos para entregar em
uma semana.
Esta é uma outra coisa, na escola presencialmente, os professores tinham uma organização:
dar o livro, escrever na lousa, fazer exercícios. Tudo isso em 40 minutos. No online os
professores esqueceram que a aula deles têm 40 minutos, porque eles mandam conteúdos de
uma semana e esperam que a gente entregue em dois dias ou no máximo na outra semana.
Visivelmente dá pra ver que os professores não preparam as aulas, é uma coisa preguiçosa,
eles pegam da internet, por exemplo, tive um exercício: respondam 20 questões sobre um
determinado tema, eu peguei uma questão que não entendi e procurei no Google, por surpresa
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eu achei um site que tinha exatamente as mesmas questões, inclusive na mesma ordem. Era na
cara dura. Eu fiquei chateada, eu realmente pego o meu tempo e tento realmente aprender,
enquanto o professor simplesmente pegou da internet, copiou e colou jogado para os alunos.
Na minha opinião, eu estou me esforçando, e o professor não, fico pensando: você está
recebendo para fazer o quê? Pra copiar da internet? Eu tento ser compreensiva ao máximo,
mas é impossível não ficar frustrada com isso. Sei que é difícil você se dispor a fazer uma
aula, e a única aluna ser eu, imagino que seja difícil ter alunos desinteressados. Então nos
exercícios, do mesmo jeito que eu vi que ele copiou e colou, eu sei que os professores também
têm a capacidade de ver que os alunos apenas copiaram e colaram a resposta de algum site
para responder o exercício. No ano passado, eu cheguei a mandar e-mails gigantescos, porque
eu fazia todos os exercícios e eles não corrigiam e davam qualquer nota no final. E eles,
quando eu cobrava, não sabia porque tinham me dado aquela nota. Sem contar que eles não
corrigiram o exercício depois, eu não tinha respaldo nenhum.

K: Como você enxerga a questão dos vestibulares durante a pandemia?

A: Então, muitos alunos não têm computador nem internet em casa, isso é muito triste e
prejudica muito. No meu caso, eu sinto que os quatro meses parados e os exercícios não
explicados e não corrigidos certo, e os professores que não ensinam com amor e que passaram
coisas só por passar com coisas copiadas da internet, atrapalhou quando prestei ENEM. E
meu foco agora é o ENEM, então, minha professora de portugues poderia todo mês estar
passando uma atividade de redação, mas não está, a professora de química poderia focar mais
nos temas que mais caem no ENEM, mas não faz. Probabilidade cai no ENEM, e o professor
de matemática nunca ensinou isso. Os professores não ensinam, não fazem com que a gente
tenha vontade de estudar. Ano passado foi a primeira vez que prestei ENEM, eu fiz como
treineira. Depois da prova, eu cheguei em casa e falei para minha mãe, "mãe eles vão zerar
minha redação", eu não sabia como fazer, mas eu tirei 500 pontos. Eu fiquei feliz, para mim
foi uma boa nota, eu que nunca fiz ENEM, mas sei que não é uma boa nota para entrar em
uma faculdade, mas é aquilo agora só falta mais 500 para chegar em 1000. Estou preocupada
com o meu futuro.

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ANÁLISE
Diante da entrevista da aluna é necessário que primeiramente possamos entender o
papel ativo e ao mesmo tempo produto do indivíduo a partir das interações sociais, proposta
dada com base na teoria de Vygotsky. Sobre isso Rego (1995) escreve:
Vygotsky entendia que a compreensão do ser humano não dependia do
estudo do processo de internalização das formas culturalmente dadas de
funcionamento psicológico. Foi a partir dessa premissa que tentou explicar a
transformação dos processos psicológicos elementares relacionados aos
fatores biológicos do desenvolvimento, em processos superiores, resultantes
da inserção do homem num determinado contexto sócio-histórico (p. 100)

Por isso, como a realidade concreta é fundamental para um determinado tipo de


desenvolvimento, a escola possui uma valorização neste mesmo sentido. Mas não
necessariamente uma criança que frequenta a escola apropria-se do conhecimento cultural
impresso na escola ou nas atividades educativas sistemáticas. Diante disso, Rego ao analisar a
abordagem Vygotskiana para a educação complementa que:
O acesso a esse saber dependerá, entre outros fatores de ordem social e
política e econômica, da qualidade do ensino oferecido. Nesse sentido, o
pensamento de Vygotsky traz uma outra implicação: contribui para suscitar a
necessidade de uma avaliação mais criteriosa de como essa agência
educativa vem desempenhando sua tão relevante função (1995, p. 105)

Desta forma, a qualidade pedagógica está associada ao desenvolvimento, então é


necessário que se diferencie desenvolvimento e aprendizagem, quanto a aprendizagem
"desperta vários processos internos de desenvolvimento, que são capazes de operar somente
quando a criança interage com pessoas em seu ambiente e quando em cooperação com seus
companheiros" (VYGOTSKY, 1991, p. 117-118), após internalizados tornam-se parte do
desenvolvimento da criança, e também é "um aspecto necessário e universal do processo de
desenvolvimento das funções psicológicas culturalmente organizadas e específicamente
humanas" (VYGOTSKY, 1991, p. 118). Dado que o processo de desenvolvimento e a
aprendizagem não serão realizados em igual medida ou paralelo, uma vez que o
desenvolvimento é mais lento, a partir disso surgem as zonas de desenvolvimento proximal.
Assim, se é necessário a criação de melhores condições na escola para que todos
possam efetivamente aprender, esta questão durante a pandemia torna-se mais latente, tendo
em vista as maiores e novas dificuldades enfrentadas pelos estudantes de escolas públicas.
Uma debilidade neste sentido é dada pelo fato de que a função pedagógica da escola,
caracterizada assim por ser um local de transmissão de conhecimentos de uma cultura,
segundo um determinado contexto sócio-histórico, tem os professores como mediadores entre
o conhecimento de uma cultura e a criança, ao passo que estes possibilitam que "a criança
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construa conhecimentos (acerca do mundo físico e social e de si mesma), e, como
consequência, propiciar, desafiar e facilitar o desenvolvimento infantil (REGO, 1998, p. 51).
No entanto durante a pandemia de COVID-19 os professores tornam-se não mediadores, mas
sim dispositivos protocolares da escola, tal qual é possível observar isto em algumas
passagens na entrevista, como em "os professores não ensinam, não fazem com que a gente
tenha vontade de estudar" e diz também que "visivelmente dá pra ver que os professores não
preparam as aulas, é uma coisa preguiçosa, eles pegam da internet". Por isso é necessário
também uma atenção especial às formações de professores durante o processo de
aprendizagem do professor. Uma outra questão é de que a internet que passa a cumprir o papel
de mediação entre o conhecimento acumulado de uma sociedade e o aluno, como a aluna
explica "Eles davam exercícios, principalmente muita coisa do YouTube, então eu posso falar
que eu só consegui nota por conta do YouTube, porque pelos professores estava realmente
complicado", desta forma é importante salientar que:
exige não confundir acesso à informação on-line com educação, já que essa
última implica docentes e alunos, entre outros sujeitos, uma ação social
prolongada, convívio e conhecimento mútuo e relações face a face, num
entorno que é muito mais do que um simples contexto, antes constituindo um
ator educativo e cultural complexo e heterogéneo (LIMA, 2020, p. 3)

Desta forma pode parecer que uma mudança, um maior envolvimento ou uma
transformação do professorado faria com que a escola pública, neste caso durante a pandemia,
pudesse obter um maior sucesso escolar, mas nesse sentido a escola e o sistema de ensino se
isentam de uma avaliação interna ou até mesmo da culpada pelo fracasso escolar. No entanto,
o movimento que se observa no Brasil é o que Bourdieu (1998) chama de capital cultural, isto
é, em que o rendimento escolar depende do capital cultural previamente investido pela família
para que possa ser reversível, ou seja, garantindo o valor em dinheiro do capital escolar. Tal
qual as diferenças, antes existentes e motivo de debate a respeito da democratização do
ensino, hoje sobretudo mais sobressalentes já que como colocado em entrevista "eu nunca tive
uma aula cara a cara, que eu podia ligar a câmera e participar, minhas amigas que estão em
escola particular têm isso todo o dia, com os professores abrindo uma lousa virtual,
ensinando, etc", isto é, os alunos de escolas públicas que possuem acesso a internet e podem
participar ou fazerem regularmente as atividades oferecidas pela escola mesmo assim
encontram-se mais defasados em questão de ensino e aprendizagem quando comparado às
escolas particulares.
Diante disso, é possível presumir que tanto a rotina dos alunos, sobretudo pelo fato
de que não vão mais ao menos cinco dias da semana para a escola, bem como a dinâmica de

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estudos modificaram-se. Como coloca Guizzo (2020) há em uma tentativa de manter o
"normal" diante de um momento de uma singularidade única, dada por três estratégia, sendo:
primeira dimensão, qual seja, das alterações impostas sobre a relação das
famílias com as tecnologias (apontando para as adaptações que os processos
de ensinar e de aprender vêm sofrendo); em seguida, destacamos uma
segunda dimensão, no caso, ligada à relação das famílias com a escola (e
aqui buscando pensar a sustentação da máxima de que “a educação não pode
parar”, que parece ganhar lugar privilegiado mediante as alterações das
formas de a escola fazer-se presente nos espaços privados do lar) [...]
apresentamos também uma terceira seção, visando a discutir a relação das
famílias com suas crianças, porém, agora no que tange ao modo como o
deslocamento de que falamos vem acompanhado de uma necessidade de
redefinição daquilo que parece não encontrar nem na casa, nem na escola,
orientações seguras e previamente determinadas. Mais precisamente,
tratamos de uma terceira dimensão implicada com a reinvenção de novas
práticas do espaço, na qualidade de “maneiras de frequentar um [ou dois]
lugar [lugares]” (CERTEAU, 1998, p. 58). (p. 4)

Seguindo as três sessões propostas por Guizzo. A primeira sessão implica no já


colocado antes neste trabalho: "pandemia do coronavírus é a primeira que se vive no tempo
on-line" (DESLANDES, 2020, p. 2481), em que se tenta manter um cotidiano pré pandemia
durante o isolamento social à partir da internet, no entanto teve que haver uma reinvenção do
cotidiano com base no uso excessivo de tecnologias. Assim, Guizzo (2020) escreve que "o
que vemos nos casos de grande parte das escolas privadas do Brasil é que a proposição de
uma espécie de estudos domiciliares intermediados por recursos tecnológicos levou a outra
forma de reinvenção do cotidiano, tal como vimos discutindo nesta seção" (p. 6). O mesmo
movimento, explicado por Guizzo, ocorre também nas escolas públicas, em que de forma
súbita os estudantes passam a não poderem frequentar mais as escolas, e que, de acordo com a
entrevistada, "no começo do ano, como estava novo para todo mundo, ficamos acho que uns
quatro meses parados, mas com atividade na plataforma", porém as dificuldades com a
adaptação dos processos de ensino e aprendizagem perpassaram por, como dito em entrevista,
questões como:
Eu tinha que ter a compreensão de que muitos dos meus professores idosos
ou com uma certa idade não têm o costume de utilizar tecnologia, então eu
tinha que ter esta compreensão de que eles estavam no mesmo patamar que
eu. Acho que até um pouco pior, porque nós, jovens, já temos uma ideia de
tecnologia, e eles não. Na escola utilizamos uma plataforma nova de estudos
e as mesmas dificuldades que eu estava passando, eles também estavam,
então acho que tem que ter a compreensão dos dois lados. Mas era realmente
muito difícil, porque acabou me prejudicando muito.

Isto é, Lima (2020) explica esta problemática envolvida com a modificação de rotina
com base em tecnologias, uma vez que:

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Mediada pelas desigualdades sociais, a maneira como o contexto de
pandemia tem afetado as escolas e os sujeitos partícipes do processo acentua
ainda mais a já desigual oferta educacional. A falta de acesso aos recursos
digitais e às habilidades necessárias para seu uso; a sobrecarga de trabalho
docente, com a introdução desses recursos; o custo pessoal dos envolvidos
para sua implementação; a falta de tempo ou de condições objetivas dos
estudantes e suas famílias para o acompanhamento das atividades propostas;
e o sofrimento causado pelo isolamento social e por todo o contexto de risco
à saúde e à vida são alguns dos aspectos que complexificam e questionam as
respostas que vêm sendo dadas à questão. (LIMA, 2020, p. 3)

A segunda, ligada à máxima "a escola não pode parar" é dado para as escolas
públicas "em uma lógica meritocrática que se vale da potência da crise para fazer emergir as
qualidades de cada estudante na busca da superação dos desafios que a quarentena impõe.
Ora, que tipo de educação, afinal, não pode parar?" (p. 9). Assim exemplificado este
movimento com a aluna entrevistada que ao ver que não está aprendendo na escola, com o
objetivo de ter um diploma de graduação no futuro (capital cultural no estado
institucionalizado) passa a trabalhar para pagar um cursinho pré-vestibular e conseguir
competir com os alunos de escola privada para uma vaga em uma universidade pública. A
aluna na entrevista diz que:
Como eu não estou tendo muito apoio das matérias, porque as matérias que
eu tô vendo agora não me ajudam no ENEM, até porque os exercícios não
me preparam pra isso, só servem pra eu passar de ano. Então, eu assinei um
cursinho online, que eu tô fazendo. Por isso, eu estou estudando das 18h às
22h e trabalhando de 9h às 16h.

Assim é colocado a dificuldade para reiventar o cotidiano, no sentido de que as


mesmas desigualdades já presentes anteriormente no sistema escolar, agora com a pandemia,
o isolamento social e com o uso de tecnologias continuam apesar de que houve necessidade
de modificar a rotina e cotidiano dos estudantes, no entanto essa modificação é feita através
das mesmas contradições e problemáticas estruturais da sociedade, isto é, "emerge com o uso
de velhas ferramentas para novos problemas" (GUIZZO, 2020, p. 10).
A terceira, então, com a questão do espaço, colocada algumas vezes na entrevista,
como na passagem a seguir:
Eu nunca tive um lugar para estudar em casa e a internet também foi um
problema, o modem fica na sala e meu quarto é mais afastado, então a
internet não chegava no meu quarto. Então, no começo eu tinha que estudar
na cozinha com a minha mãe fazendo comida, fazendo suco no
liquidificador. Foi uma loucura. Aí depois de muito tempo, um pouco mais
de um ano que a gente conseguiu adaptar internet, mais para cá, e eu
consegui colocar também uma mesa mais espaçosa aqui no meu quarto.
Depois de um ano realmente consegui me adaptar com o lugar para estudar,
porque até então no começo, acho que todo mundo pensou que ia durar uns
dois ou três meses, e ia passar, então eu falei que não ia me preocupar e que

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ia me virar. [...] e eu não tinha espaço na sala, já que meu pai e meu irmão
estavam assistindo TV, na cozinha minha mãe estava fazendo comida, e no
quarto não pegava internet.

E diante da entrevista é possível analisar que a reinvenção do cotidiano a tática da


família para adaptar-se ao novo normal foi justamente trocar o modem da internet de local
facilitando que a aluna pudesse estudar em seu quarto. Um outro tipo de reinvenção é a
própria questão do tempo, uma vez que o tempo escolar já tem delimitado a hora de chegada e
partida, pausas para lanches, etc, enquanto este novo tempo tenta trazer este tempo escolar
para dentro de casa. Assim, Guizzo explica este movimento como:
A reinvenção do cotidiano tem a ver com novas conjunções de espaço e de
tempo. Na quarentena, existe quase que exclusivamente uma única ilha: a
casa. O espaço físico, pois, não parece mais dividir de modo tão evidente
crianças e adultos. Há circulação na e não fora de casa. Por tudo isso,
reiteramos o reencontro radical. E é sobre o que está acontecendo entre
famílias e crianças que paira a nossa curiosidade, esta, parcialmente satisfeita
quando passamos a ter acesso a mensagens de áudio anônimas que circulam
e que viralizam em aplicativos de mensagem e redes sociais. (2020, p. 12)

No entanto, a própria questão do tempo escolar em uma transposição para dentro da


casa dos estudantes acaba por modificá-lo e o que ocorre é o relatado pela aluna: "na escola
presencialmente, os professores tinham uma organização: dar o livro, escrever na lousa, fazer
exercícios. Tudo isso em 40 minutos. No online os professores esqueceram que a aula deles
têm 40 minutos, porque eles mandam conteúdos de uma semana e esperam que a gente
entregue em dois dias ou no máximo na outra semana".
Assim, como Rego (1995) diz que:
Os postulados de Vygotsky parecem apontar para a necessidade de criação
de uma escola bem diferente da que conhecemos. Uma escola em que as
pessoas possam dialogar, duvidar, discutir, questionar e compartilhar saberes.
Onde há espaço para transformações, para as diferenças, para o erro, para as
contradições, para a colaboração mútua e para a criatividade. Uma escola em
que professores e alunos tenham autonomia, possam pensar, refletir sobre o
seu próprio processo de construção de conhecimentos e ter acesso a novas
informações. Uma escola em que o conhecimento já sistematizado não é
tratado de forma dogmática e esvaziado de significado. (p. 118)

Durante a pandemia de COVID-19, a escola, sobretudo a escola pública, afasta-se


ainda mais do que Vygotsky propõe, uma vez que não se leva em conta a heterogeneidade do
grupo de estudantes e coloca-se deliberadamente a culpa do fracasso escolar ou ao menos a
culpa das dificuldades enfrentadas ao universo social, isto é, na pobreza, na composição
familiar, no ambiente em que vive, etc, ao passo que isenta a escola, ou o próprio sistema
escolar, de uma avaliação e balanço. Tornando-se ainda mais uma questão latente, uma vez
que é no contexto social, na dinâmica interna da escola, que traz as desigualdades do
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desempenho escolar, e impede a aprendizagem e o desenvolvimento de determinados
estudantes por optar pela não democratização da educação e do seu acesso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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(orgs.) Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998.

DESLANDES, Suely Ferreira, & COUTINHO, Tiago. (2020). O uso intensivo da


internet por crianças e adolescentes no contexto da COVID-19 e os riscos para violências
autoinflingidas. Ciência & Saúde Coletiva, 25(Suppl. 1), 2479-2486. Epub June 05,
2020. https://doi.org/10.1590/1413-81232020256.1.11472020

GUIZZO, Bianca Salazar, et al. (2020). A reinvenção do cotidiano em tempos de pandemia.


Educação e Pesquisa, 46, e238077. Epub 10 de agosto de 2020.
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LIMA, Licínio Carlos Viana da Silva et al. Confinar a experiência escolar num ecrã? Educ.
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REGO, Teresa. C. Educação, cultura e desenvolvimento: o que pensam os professores sobre


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prática de pesquisa. In: ZAGO, N. CARVALHO, M. e VILELA, R. A. (Orgs.) Itinerários de
pesquisa: perspectivas qualitativas em Sociologia da Educação. São Paulo: DP&A, 2003.

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