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D.

PEDRO GASALDALIGA

CREIO
NA JUSTIÇA
E NA ESPERANÇA
PROFISSÃO DE FÉ

Este livro encerra ampla profissão de fé.


Da parte de seu autor, que nunca descuidou
do princípio ético-religioso fundamental de
sua crença: o compromisso do pastor é com
seu rebanho, e não com os lobos que o
ameaçam. E da parte de seus editores, que
jamais deixaram de acreditar na necessidade
da livre expressão de idéias como. uma das
condições do bem-estar da sociedade.

D. Pedro Casaldáliga, espanhol radicado


no Brasil, bispo de São Félix do Araguaia,
em Mato Grosso, alcançou ampla notoriedade
em nosso país pelas corajosas posições
que assumiu em defesa do povo daquela
região — atitude a que está obrigado
no cumprimento de seu dever de religioso
e de homem solidário com seus semelhantes.
D. Pedro pagou um preço elevado:
voltaram-se contra ele todos os poderosos,
oficiais ou não, e todos os representantes
dcs setores mais conservadores da Igreja.
A pecha de “subversivo” caiu sobre ele
numa campanha que foi, no gênero, das
mais tenazes e implacáveis a que já se assistiu.
Providências mesmo foram tomadas
visando a expulsá-lo do País. Se nada se
conseguiu, foi porque sua inocência era patente
e em sua defesa vieram os intelectuais
mais esclarecidos da Nação e os setores
mais competentes da Igrejà Romana. Mas
para os arrogantes, os maliciosos e os simplesmente
tolos, ele continuou a ser um
“padre comunista”. Já é mais que tempo
de se enterrar esse rótulo falso no arquivo
morto das más consciências. Não se pode
compreender um religioso, uma pessoa que
Creio na Justiça e

na Esperança
Título do original em castelhano:

Yo creo en la Justicia y en la Esperanza

Copyright © 1977 by D. Pedro Casaldáliga

Capa:

Eugênio Hirsch

Diagramação:
Léa Caulliraux

Revisão:

Nilo Fernandes

Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela


EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
Rua Muniz Barreto 91-93,

RIO DE JANEIRO — RJ,

que se reserva a propriedade desta tradução.

1978

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
D. Pedro Casaldáliga

Creio na Justiça e na
Esperança

Tradutores:

Laura Ramo
Antonio Carlos Moura
Hugo Lopes

civilização

brasileira
Sumario

Dedicatória 7

Carta a Pedro Casaldáliga 9

Introdução 13

I — A Vida que tem Dado Sentido ao meu Credo 17

II — O Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo 175

III — A Igreja, Povo de Deus Sacramento de Salvação 195

IV — A Causa do Homem Novo 221

V — A Esperança Total 241


Dedicatoria

Àquela Igreja do Brasil


que nasce do Povo,
pelo Espírito,

na cidade, no campo, nos povoados

— Terceira Igreja, neste Terceiro Mundo


da América Latina.

A todos os que vêm acompanhando


com fraterna comunhão

— vivos ou mortos ou presos ou expulsos ou perseguidos —


esta nossa pequena Igreja

que nasce do Povo, pelo Espírito,

nas lutas e na Esperança da Igreja da Amazônia.

A quantos crêem na Justiça


e, por isso, lutam e esperam.

E sobretudo
aos companheiros,
mais que irmãos,

que formam comigo nas dores e alegrias do nosso Povo


a equipe pastoral da Prelazia de São Félix.
Carta a Pedro Casaldáliga

Meu querido Pedro

Você deixou a meu critério procurar ou não um prólogo


para seu livro. Mas o seu Credo não precisa de prólogo.

A gente bem sabe de você e da sua sofrida Igreja do povo


em São Félix. E neste livro qualquer leitor descobrirá você sem
apresentador, sem guia. Você vive a fé de coração aberto e,
ao confessá-la, você nada omite: venceu toda inibição e agora
ilumina as suas palavras na mais livre liberdade cristã.

Muitos se assustarão de que um bispo fale como você fala.


Uns se escandalizarão com as suas opções, com as suas denúncias,
com o maravilhoso realismo crítico de sua fé. Outros julgarão
que você tem uma praxis demasiadamente “sagrada” e
suas opções são pouco táticas, insuficientemente políticas. Haverá
quem rasgue as vestes, quem se ofenda, quem se irrite.

Ninguém poderá negar que você tem fé e que você ama.


“Declaro tudo isso com tanta paixão — você diz — porque me
dói muito esta Igreja que tanto amo.” E “a vida que tem dado
sentido a seu Credo”, descarnada e cruel, nesse sertão brasileiro,
radicalizou sua fé, tornou-a essencial, insubornável, dura.
Mas os que desvirtuam o amor e a fé com a água morna das
conveniências, acham terríveis, exagerados e insultantes a fé
e o amor sem paliativos. Nosso mundo, Pedro, não suporta o
amor, e uma fé sem medida veio a ser, inclusive na Igreja, tão
rara quanto perigosa.

Para certa gente de Igreja, seu Credo é exageradamente


cristão.
(Você bem sabe que Aquele que dá nome à sua fé e à sua
Esperança — Jesus Cristo — escandalizou escribas, letrados,
fariseus e sacerdotes, decepcionou os que esperavam dele uma
liderança política e irritou autoridades religiosas e civis. Se êle
voltasse hoje, aconteceria o mesmo, inclusive em nossa Igreja.
Não estará Ele voltando em certos fiéis que são perseguidos?
Não nos avisou Ele claramente que assim sucederia?)

Penso que suas críticas, suas denúncias mais duras e o que


mais pode assustar a certo tipo de pessoas já são “evidências”.
Evidências que em todas as partes contamos uns aos outros em
voz baixa. Evidências comuns.

Não é porém comum (ainda e infelizmente) que os Bispos


digam em voz alta as coisas tais como são. Porque já não
é norma na Igreja (o foi nos seus primeiros dias) essa liberdade
com que você fala. Falta-nos, à imensa maioria dos cristãos,
a liberdade do amor nascido da fé. E porque você é dos
“muitos poucos verdadeiramente livres”, sua voz nos compensa
dos silêncios de muitos e muitos superiores, bispos, arcebispos,
cardeais, núncios, e nos acusa de nossos próprios silêncios.
Deveríamos todos, fraternalmente, levantar a voz com o amor
da liberdade que pode fazer na Igreja consciência comum e
conversão, a partir das mencionadas “evidências”. Essa liberdade
daria veracidade à nossa fé. Nisto a liberdade cristã é
irreversível porque movida pelo Espírito da Verdade.

Porque este Espírito atua, não faltarão aqueles a quem esse


seu Credo libertará como voz e amor de sua própria fé, de sua
agonia, de sua esperança e suas terríveis tentações de desespero.
Cristãos, consciências honestas, comunidades, o povo, os simples,
os pobres, os que mais sofrem. E estes, Pedro, são o selo
do Espírito de Deus...

E existimos nós, os muitos cristãos insuficientemente convertidos


para quem sua insubordinável Fé na Justiça e na Esperança
será apelo e força.

Nenhum dos artigos do seu Credo me é estranho ou alheio.


Mas ao lê-los compreendi melhor o processo radicalizante e
purificador da sua fé. Novas são, para mim, certas ressonâncias
íntimas do que você tem vivido. Você as tinha confiado ao
seu Diário do qual nos oferece agora alguns pedaços que nos
mostram o que veio a ser a essência de sua fé, de sua dor e
de sua esperança nesse sertão e selva e rio, nesses índios e
peões sertanejos, vítimas todos (terras e homens) de um capitalismo
tão voraz como injusto.

Eu não sabia que você estava sofrendo da vista com essa


catarata prematura. Já foi operado? Não lhe pedirei para não
se expor tanto, pois (embora não o saiba por experiência própria)
percebo que para quem vive numa irrestrita oblação pou-
par-se seria negar a si mesmo. Mas toda recuperação possível
é um dever para ter condições de servir melhor a esse povo.
Por isso, tome cuidado.

Termino desejando que esta autobiografia de sua fé não


perca a integridade literária e que de sua leitura brote maior
liberdade cristã para o crescimento de uma fé autêntica, realista
e conseqüente.

Seu, como todos os amigos, “neste Reino da morte e da


esperança”, onde você grita os silêncios do povo.

Teófilo Cabestrero, cmf.


Introdução

Nesta Introdução, devo repetir quase tudo que disse na


Introdução à edição espanhola deste livro. Com mais alguma
palavra própria de uma edição brasileira.

A Fé que se tem é a mesma Fé, em brasileiro ou em


espanhol, mas tem seu lugar peculiar a nossa Fé, seu lugar e
sua hora. E a minha, tão espanhola quanto brasileira é, talvez,
mais definitivamente brasileira...

É no Brasil, no meio de seu Povo, no coração verde e


agitado deste País querido, que a gente amadureceu a própria
Fé; comprometendo-a na vontade daquela encarnação que,
para ser verdadeiramente cristã, é sempre histórica.

Como a Encarnação de Jesus, o Senhor.

Nesta hora concreta da Igreja do Brasil, nesta concreta


hora continental da nova Igreja da América Latina.

Meu livro, se alguma coisa vale, é pela história que narra


de um Povo sofrido e de uma Igreja pequena, naquelas terras
virgens e publicitariamente invadidas da Amazônia Legal. É
pela teimosa Esperança que a Igreja desse Povo está vivendo.

Sei das críticas, das ameaças. Conhecemos, inclusive, graças


a Deus, o cárcere e o sangue, tingindo de martírio a frágil
alvorada da nossa Igreja.

Cremos, porém, na Justiça e na Esperança que têm, para


nós, nome de gente, nome de Deus-, O nome do índio, do Posseiro,
do Peão; “o Nome que está acima de todo nome”: jesús
CRISTO RESSUSCITADO.

É por Ele que cremos nos Homens, no futuro melhor dos


Homens, todos, no “outro dia” que será amanhã, apesar de
tantos pesares, para o Indio, para o Lavrador, para o Operário,
para o Povo do Mato Grosso, de São Paulo, do Nordeste, desta
América.

Por Ele, mesmo “fazendo escuro”, nós cantamos.

Esta pequena historia da Esperança de uma Igreja nascente


já foi mal contada no Brasil. Este livro já apareceu truncado
nas páginas dos jornais, instrumentalizado assim pelas forças
do interesse e da Repressão e incompreendido por algum
setor reacionário da própria Igreja.

É justo então que este livro apareça na íntegra, também e


sobretudo no Brasil, para que possa ser lida toda inteira a palavra
da nossa Esperança.

O primeiro livro foi publicado em 1975 pela Editorial Española


Desclée de Brouwer, de Bilbao, na coleção de testemunhos
de Fé, “El Credo que há dado sentido a mi vida”. A
coleção interessou a muitos, porque são muitos, ainda mais nesta
hora, que gostam de ouvir a Fé dos irmãos “confessada”.
Esse interesse ultrapassou as fronteiras, porque a Fé não é estrangeira
em lugar algum. Inclusive, meu Credo já foi publicado
na Itália, pelos cadernos asal, de Roma, e está sendo traduzido,
na França, pelas Editions du Cerf.

No mais, repito aqui o que disse na Introdução à edição


espanhola de meu Credo:

“...José Maria de Llanos (jesuíta, escritor, sinal de contradição


e de esperança nos últimos trinta anos da Igreja espanhola)
que quis apadrinhar (meu livro) desde o princípio, dizia-
me que ‘muitos estão à espera de que lhe fale um bispo que
vive entre os marginalizados no Brasil’. Pedia-me um livro
‘todo coração e lembranças’ e ‘desnudando-se um pouco’. Porque
—• acrescentava — ‘os cristãos já não estão nessa de livros
de espiritualidade, mas querem, sim, testemunhos como estes.
Querem saber como e em que acreditam os outros, especialmente
um bispo’.”

Os livros anteriores desta coleção me fizeram bem e me


motivaram. Cremos com os que crêem. A Fé é confissão. Às
outras, eu somo esta minha confissão.
Como bispo e pelas incidências peculiares desta Prelazia de
São Félix, colocado um pouco ou no candelabro ou no cada-
falso, pareceu-me que podia, que devia mesmo dar “a razão da
minha Esperança” publicamente.

Dando-a, eu; desabafava.

E respondia a tantos amigos que acompanham a gente


generosamente.

Talvez ajudasse um pouco alguém a crer. Na Liberdade


e com fome de Justiça.

É provável que decepcione a alguns; talvez escandalize a


outros. Peço para me lerem sem ilusões e com liberdade. Um
bispo não deixa de ser um simples cristão que recebeu a graça
e a responsabilidade de servir simplesmente aos seus irmãos.

Meu Credo é rematadamente clerical porque toda a minha


vida tem sido clerical. Aos amigos que não “têm” Fé, aos que
me aceitam por outras razões — que talvez no fundo sejam as
mesmas —, aos que nunca foram clericais ou já não o são,
peço-lhes que saibam distinguir entre o meu clericalismo com
suas ironias e minha Fé cristã.

Quase todo o livro está no capítulo I: “A vida que tem


dado sentido ao meu Credo.” Como recebi a Fé em tal vida.
Como a vida me ensinou a crer. Como tentei viver o que cria.
Como, crendo, eu conseguia viver. Como, vivendo, fui crendo
melhor, mais ou simplesmente crendo.

Deus foi cuidando da vida da gente, fazendo-se presente e


dando a Graça de responder: sim. “A verdadeira maneira humana
de dar a Deus consiste em acolher o seu dom” (Durr-
well). Tive ainda o que outros não tiveram: um explícito encontro
com Deus, em Jesus Cristo, dentro da comunidade de
Fé que é sua Igreja. E este é um mistério que me esmaga e
que me obriga a crer que Deus é maior do que nosso coração
e nossos dogmas e nossa comunidade.

Porque falo de minha Fé, falo sem rubor; e com uma


emocionada gratidão. Também com certo desembaraço e até
com alguma raiva: a Igreja é minha casa; minha Fé é assunto
de família.

Com licença de Javier Domínguez e de José Maria Diez


Aleg ia (autores editados na mesma coleção), eu “creio — também
— na Justiça e na Esperança! Todos os que vamos professando
nossa Fé aqui nesta coleção, ao final das contas racionais,
cremos no mesmo. (Não nos vá acontecer como às
criancinhas daquela escola que o bispo visitou. A professora as
preparou muito bem para recitar ao sr. bispo todo o Credo,
artigo por artigo e em fila. O sr. Bispo, menos pedagógico ou
menos realista [— que é um mal freqüente nos bispos de todo
o mundo] perguntou, de sopetão, a Luizinho: — Vamos ver,
você aí, diga: “Creio em Deus...”. — Quem crê em Deus é o
Joãozinho, esse primeiro, sr. Bispo... — atalhou Pedrinho, socorrendo
em tempo a Hierarquia).

Copio várias páginas do meu Diário porque elas já esta-


vam escritas anteriormente e dão, com mais franqueza a autenticidade,
o pão quente de cada dia.

O livro está cheio de referências a nomes, lugares, histórias


e estórias espanholas que, pelo contexto, se podem entender
facilmente ou não são de maior importância para entender o
cerne do texto.

Acrescento ainda um número considerável de páginas à


edição original, as quais começam no intercapítulo 21 do Capítulo
I, desta edição. Elas recolhem os últimos acontecimentos,
as vivências últimas que mais afetaram a mim e à nossa Igreja
de São Félix.

Aproveito a ocasião para dizer que considero bem vivido


tudo o que foi vivido porque, no fim, tudo terá sido Graça. E
recolho aqui, de passagem, o saudável conselho de um boletim
da Fraternidade de Foucauld que pedia “certo bom
humor” para poder mexer-nos convenientemente no meio dos
atuais solavancos da Igreja. Não estou dizendo que creio na
Esperança?

E coloco este livro, como todas as minhas coisas, nas mãos


já ressuscitadas daquela pobre mulherzinha do Povo, Mãe de
Jesus Cristo, o Libertador dos Homens, que é bem-aventurada
porque creu com uma Fé totalmente livre.
A Vida que tem Dado
Sentido ao meu Credo
Nasci às margens do rio “tecelão” Llobregat em 1928 e em
uma leiteria. (“Maldito seja o latifúndio, salvos os olhos de
suas vacas”). De uma família católica e direitista, o que naqueles
tempos eram uma coisa só. Com a pujante raiz da terra,
pelo lado de meu pai, na solarenga fazenda de Candáliga.
Pelo lado de minha mãe, com a vista e a palavra e o dinamismo
de uma longa dinastia de “marchantes”.

Em casa, falava-se de Gil Robles e da Ceda. Na paróquia


se falava de Fejocismo e Vanguardismo (movimentos juvenis
católicos da Catalunha).

Eram os tempos da ditadura boa: a ordem e as direitas


eram, por princípio, o bem.

A Revolução de 36 me pegou na zona vermelha. E meu


tio Luís, sacerdote, foi morto pelos vermelhos, juntamente com
dois companheiros, quando já estavam alcançando o esconderijo
providencial perto de Mas Lladó.

“Com meus oito anos sagazes — escrevi em Memória


autobiográfica de um aspirante a jornalismo — a guerra
me convocou para sua inexorável escola de jornalismo
superior. Com a guerra, aprendi a ouvir os mais velhos
que comentavam coisas muito graves e até aprendi a calar
com eles. Na velha casa solarenga de meu pai, habitada
então pelo “herdeiro”, meu tio Josepet e os seus,
muitas vezes tive que silenciar — diante dos milicianos,
ébrios de vinho e de perguntas -— o paradeiro das Irmã-
zinhas do meu primeiro colégio ou o esconderijo dos “de-
sertores” ou a passagem de qualquer padre ou frade com
nome trocado e indumentária suspeita...

Aprendi a perguntar também. Por que tinha eu de


sair para levar o leite, de noite e com frio, e não podia
sair uma pessoa mais velha? Por que havíamos de ter
sempre as persianas fechadas? Por que cochichavam tanto
os grandes? E por que durava tanto aquilo tudo?

Sem escola, durante. a semana, porque a escola era mista


e atéia e a professora, socialista, era uma “porca” — conforme
o despachado qualificativo de minha mãe —; sem Missa nem
catecismo aos domingos; sem a possibilidade do cinema público
que me estava proibido como a escola mista... primos e
amigos criamos um bando prematuro. E em bando percorremos
todos os montes e regatos da comarca, algumas hortas também
e os dois castelos “mouros” que cercavam a aldeia. E
nessas excursões piratas e nas prolongadas estadas nas fazendas
de Candáliga e de El cortés dei Pi apaixonei-me definitivamente
pela natureza livre. Daqueles dias, trago a imagem de uma
árvore que queimamos involuntariamente, como quem carrega
o remorso de um homicídio. Digo isto para explicar como me
doíam, à minha chegada ao Mato Grosso, os infinitos tocos das
“queimadas” do latifúndio.

Durante a guerra, confessei-me em estábulos e alpendres


e ajudei a Missa em Eucaristias de catacumba. Nos pinhais,
seguia, com os “desertores”, os noticiários “nacionais” pela rádio
galena clandestina. E recebi os “nacionais” em minha cidade,
em janeiro de 1939 — bombardeadas as pontes e deportados
os rebanhos de meu tio e com eles minha cabritinha cinza —
com uma eufórica atitude de vingança pelos três anos de silêncio
opressor.

Trouxemos para o cemitério da cidade os restos mortais de


meu tio mártir. E mais tarde minha mãe me prenderia na
camiseta, dentro de um saquinho verde de tricô, um dente-relí-
quia do padre.

A guerra tinha terminado.

Eu era coroinha, agora publicamente. Ao compasso de


suas agulhas de fazer meias e de suas trituradas Ave-Marias,
minha avó Francisca (que tinha a pele da mão quente e fina
como um seio) me perguntava insistentemente: “Por que não
vais ser padre, Pedro?” — “Porque não, mulher; deixa-me.”
“Deixa-o”, acrescentavam, discretos, os mais velhos. E no entanto
ela, já no Céu, com o tio sacerdote mártir e os amigos
“desertores” mortos tragicamente num campo de concentração
que me tinham prometido para depois da guerra um presente
excepcional — uma máquina Pate-Baby, quem sabe — conseguiram-
me, penso, o toque da vocação.

Era uma tarde de outono e chuviscava sem retóricas. Detrás


dos vidros, na varanda, havia alguns gerânios como testemunhas
e, no horizonte, sobre o Llobregat, a ermida da Mare
de déu dei Castell. Minha mãe limpava seu quarto e eu arrumava
na cozinha uma gaveta da cômoda. Era sábado, dia da
rosca e daquele chocolate diferente do costumeiro “Arumi”. Era
uma boa hora para a confidência.

Eu, que me considerava requeté (carlista) —- porque isto,


nos comentários adultos, tinha sabor de oposição —, estava
cantando nostalgicamente a canção falangista dos Flechas:
“Lánzate al cielo, flecha de España, que un blanco has de encontrar.
Busca el Império que ha de llevarte por cielo, tierra
y mar...”

Entrei no quarto de meus pais, tantas vezes sob os véus


dos pequenos altos mistérios, atirei-me ao pescoço de minha
mãe, surpresa, e rompi em pranto.

— “Vull ser capellá, mare...! ”

Estudei o primeiro ano de Latim, em casa, com o vigário


da cidade em um ensebado Miguel. E no verão seguinte entrei
no seminário de Vic onde meu tio estudara; no novo seminário
da Gleva, mais precisamente, às margens do rio Ter. Foi um
ano de frios e de provas. Mas ali se fortaleceu minha vocação
sacerdotal, prematura e já consciente. Ali cantei muitas vezes
canções de Yerdaguer e ali lancei no mercado meus primeiros
versos, em defesa de Manresa, minha comarca, contra uns arrogantes
Igualadinos. “Serei poeta”, disse em minha casa naquelas
férias. E sei que meu pai se emocionou, veladamente,
porque ele tinha dentro de si muitas vocações truncadas, desde
que fora dois anos seminarista, em Vic também.

“Os silêncios de meu pai e suas esperas tolhidas”, os quinze


anos de enfermidade de Parkinson que o levou à morte —
que eu assisti como filho-sacerdote — marcaram-me profundamente.
Meu pai era uma vida em austera penumbra. Traba-
lhava muito. Fazia qualquer trabalho caseiro que fosse preciso,
durante a doença de minha mãe. Calava muito. Algumas
noites, depois de “ajeitar” as vacas, ia (por evasão?) ao cinema.
Seguia os acontecimentos políticos no El Correo de Cata-
lán e comentava-os longamente sobretudo com um amigo íntimo
do qual me lembro como um emblema da amizade e que
vi morto, jovem ainda, alto e formoso, com uma barba crescida
como as dos santos.

No seminário, um pequeno grupo brincávamos de missionários,


dos de verdade, perseguidos e martirizados. Era a versão
seminarística dos “Lladres y civils” de nossas cidades. Estes
brinquedos, as visitas ao túmulo de Santo Antonio Maria Cla-
ret, em Yic e as conversas de conchavo — um pouco a despeito
dos superiores “seculares” — me despertaram para a vertente
última de minha vocação sacerdotal: seria Missionário.

— “Vols dir, Pere?” — perguntou minha mãe. — “Pensa


bem!” — disse meu pai sobriamente. — “Deixa-o! — dogmati-
zou meu tio Jaime, o maior marchante de toda a dinastia Pia
— Quando ele diz alguma coisa, quando ele quer...”

Minha mãe despediu-se de mim na estrada, antes de chegar


à estação do “Carrilet”. Meu pai levou-me até Cervera de
la Segarra, junto à ex-universidade, filipina e tão claretiana. E
depois de um escasso mês em Cervera fui para Alagón, com
s'ua poeira e o rio Ebro, as colméias do Castellar e a ilhota.
Fora de Cataluña, no grande mundo fora de casa. E depois
Barbastro e o Noviciado, de novo em Vic, e Solsona e Valls.
Em 1952, por ocasião do congresso eucarístico de Barcelona,
na relva olímpica do Estádio de Montjuich, fui ordenado sacerdote
pelo santo arcebispo de La Paz, D. Abel Antesana.

Dos meus “anos de formação” podia dizer o que já tantos


disseram, em livros e revistas e nesta mesma coleção. Porque
todos os seminários e noviciados, durante longos anos obscurantistas
e heróicos, foram quase iguais em todas as partes.

Guardo do “curso” — Humanidades, Filosofia, Teologia —


a saudosa lembrança de alguns companheiros, agora espalhados
pelo mundo, com quem partilhei as crises da juventude, da
obediência, do estudo mais ou menos lúcido; com quem discuti
a Igreja e a Congregação; com quem tramei fazer revolução
“de dentro”. Guardo a mesma lembrança de tantos formadores,
às vezes desacertados, porém quase sempre magníficamente
generosos, alguns dois quais me marcaram providencialmente.

Tratando-se de iniciativas culturais, artístico-recreativas


ou de movimentos de espiritualidade “comprometida” ou de entusiasmos
apostólicos, eu estava em todas. Fundei e dirigi várias
revistas colegais de exemplar único e escrevi apontamentos
e comecei a sonhar seriamente, apostólicamente com a imprensa,
o rádio e o cinema. Mais de uma vez repeti aos companheiros,
nessas confidências vocacionais que pungem e incendeiam
tantas horas de seminário, meu propósito indeclinável de
escrever. Mais de uma vez também senti a vida-ministério de
escritor como uma vida laicizante. A literatura tinha má fama
na boca dos nossos diretores espirituais. Da poesia, concretamente,
despedi-me em muitas dolorosas ocasiões como alguém
que se despede de uma amiga impossível.

Renunciei oficialmente ao “catalão” porque era preciso


optar por “uma” língua. Depois haveria de renunciar ao castelhano
também, para me entregar ao português. Ou, menos
dramaticamente, ficaria com as três línguas irmãs, mas cada
uma por sua vez e em sua medida incerta, sempre com uma
boa dose de sentimento de castração para quem fez da palavra
uma arma primordial. (Tudo isto, mesmo que não pareça, faz
parte da minha Fé que sempre me complicou a vida, nas suas
conseqüências.)

A “piedade”, o “dever”, a “mortificação”, o “ideal”, a


“perfeição” e a “santidade” encheram meus cadernos espirituais
e o esforço sincero, brutal, às vezes, dos meus anos de
curso.

Aprendi a meditar sobre as coisas de Deus. Aprendi a rezar


“muito”, já não sei se muito bem. Aprendi a amar Nossa Senhora
sentimentalmente e mariologicamente. E, no curso de
Filosofia, descobri Jesus Cristo e seu Mistério na Bíblia, em
S. Paulo, mais concretamente. E na Teologia, o descobri como
Eucaristia Pascal. Descobri, com deslumbrada emoção, a esperançosa
perspectiva da Escatologia. E espreitei a Igreja; simplesmente
a espreitei.

Eu sempre quis ir para as Missões. Mas acho que foi por


ocasião da visita ao Seminário de Salsona de D. Folgued, Pre-
feito Apostólico na China, aragonés da melhor cepa, com barba
e palavras místicas, que fiz a “opção” pelas “Missões”, teimosamente
mantida até minha chegada neste Mato Grosso.

Foi também por aqueles deliciosos tempos do curso que


comecei a pedir o martírio, como se pede um lugar no Tercio
(pelotão).

O mundo era mau. Fora da Igreja não havia salvação. E


o zelo — temperamento, formação e Graça — me abrasava.
A definição de missionário claretiano que o fundador nos legara
pedia isto: “um homem que arde em caridade, que abrasa
por onde passa...”

Com meus 24 anos, sob as chamas de Pentecostés e do verão,


celebrei nervosamente feliz a primeira Missa, no Santuário
do Coração de Maria em Barcelona. E depois de 12 anos
de ausência, voltava à minha casa, à minha aldeia, feito
sacerdote.

Meu primeiro destino “provisório” durante seis anos foi


Sabadell. Por precisarem de mim, os superiores interromperam,
apenas começado, meu último ano de formação, o ano de Pastoral
— em Baltar, de Galicia, naquela proa de marés que fazem
o verde Cantábrico e o Atlântico, lá nos confins da terra —
e me mandaram para Sabadell, para as galeras de um colégio.

Sabadell foi meu primeiro amor, no ministério, minha primeira


forja em muitos aspectos da vida. A Sabadell das fábricas
de tecidos e das ruas intermináveis; das barracas de Can
Oriach, de Dam Puiggener e de Torre Romeu; das retirantes
famílias “murcianas” e dos aprendizes e do mundo operário e
da migração. A Sabadell das classes, do confessionário angustiante,
da direção espiritual prematura, do intrincado das colocações
e das moradias dos antigos Congregados Marianos e
dos novíssimos e excomungados Cursilhistas de Cristandade.

Aqueles jantares às pressas, comendo couve-flor fria, depois


de dez horas de aula, e plantão, depois de três horas de
confidências excessivas. Aqueles programões de rádio, escritos
às duas da madrugada, na sacristía sigilosa. O Breviário, inevitável,
que eu tinha de rezar antes de uma da madrugada, an-
dando pelo refeitório e com o qual esbarrei mais de uma vez,
adormecido, contra as paredes. As intensas noites de encerramentos
de cursilhos, em branco. O sono violento que me dobrava,
na aula, diante dos olhos infantilmente compreensivos
dos meus alunos. Minhas amizades e confusões de “padre dos
malandros”. A revista Euforia que um grupo de audaciosos
fundamos e dirigimos e que morreu, rebelde, no oitavo número,
sem mácula e sem dinheiro. Aquela vida de comunidade, heterogênea,
tão sincera talvez quanto artificial, impossível. Aquela
primeira solidão de jovem sacerdote. Aquela vontade cega de
reformar o Instituto, a Igreja, o Mundo.

De Sabadell fui designado para Barcelona. Para uma comunidade


ainda mais incompativelmente heterogênea: Colégio,
Igreja, Casa Provincial, Juventudes... E em Barcelona completei
mais universalmente, mais brutalmente a humana experiência
da migração, do trabalho, da família, da chamada sociedade,
do vício, do remorso, da dor e das ilusões. O homem
em massa eu descobri em Barcelona, nas manadas do metrô, das
fábricas e das ruas. Pelo local da sede da Juventude Claretia-
na que eu dirigia, Rua Nápoles, 365, começou a desfilar diariamente
à noite, arriscando a obediência o jantar e a paz, por
sua causa, um doloroso cortejo de suspeitos: envelhecidos com
barba, rapazes esquálidos, mulheres grávidas ou muito deslumbrantes,
operários desempregados ou sem casa, doentes sem dinheiro,
crianças famintas, “espertalhões”, malandros, delinqüentes.
No meu escritório dormiram alguns. E no teatro adjacente
dormiram outros e comeram envergonhadamente e se lavaram
de muitas coisas. E graças a esse desfile real, dessa transposição
da tela para a carne viva, os jovens “normais” e eu
passamos a entender muito melhor os filmes sociais do nosso
Cine-Forum...

Estando em Barcelona, continuei com os Cursilhos de


Cristandade, já naquela época em plena tensão de duas linhas:
uma mais primitiva, livre; a outra mais clerical ou hierárquica,
usando os cursilhos como instrumento de Ação Católica.
Também em Barcelona, escrevi o programa de rádio, mariano
e semanal, transmitido por onze emissoras de segunda divisão,
que mais tarde daria origem ao volume que ppc publicou em
suas “Coisas de Deus”, com umas ilustrações inefáveis de Francisco
Izquierdo e com o título de “Nuestra Señora del siglo XX”.
Foi ali que colaborei com “Universidad 61”, em “Otro Cine”,
em outras revistas. E ali escrevi poemas e um romance voca-
cional, uma autobiografia coletiva do tempo de formação que
eu tinha vivido...

Estando em Barcelona, fui chamado a implantar os Cur-


silhos de Cristandade na África, em Guiné, que ainda era espanhola.
Com Eduardo Bonnin, com Vidal, com Casas: três
nomes muito queridos entre as centenas de nomes inesquecíveis
que os cursilhos gravaram em minha vida.

No momento, era imensamente estimulante porque, naquela


data, vivíamos o despertar sangrento do Congo Belga, como
um sintoma álgido do “despertar da África”. Contra a respeitável
opinião de alguns honrados colonizadores, fizemos cursilhos
“mistos” para brancos e pretos. Ou “café com leite” ou
nada, dizíamos. Senti fisicamente a África, colonizada e catequizada,
com o golpe do ar tropical que me invadiu os pulmões
no aeroporto caiado da Nigéria, tão bem arrumada debaixo da
“demasiada paz britânica”. Senti furiosamente a realidade e o
chamado do Terceiro Mundo. E quando regressei, véspera de
Reis, com minha batina branca deliciosamente ridícula, naquele
janeiro de Madri, trazia para sempre, no coração, confusamente,
como um feto, a África, o Terceiro Mundo, os Pobres
da Terra e essa nova Igreja — a Igreja dos Pobres —, assim
denominada mais tarde, a partir do Concilio.

Meio ano depois, em 1961 — depois de três anos de ministério


em Barcelona — com a passagem da Ibéria já tirada para
voltar a Guiné, chegou-me o “destino” com uma reviravolta:
seria Prefeito do Seminário Claretiano de Barbastro. Tinha de
pegar a Renfe, a “Burreta” no último trecho do trajeto e seria
então o responsável pelos seminaristas claretianos de curso médio
naquele canto de Huesca, quase nas fraldas do Pirineu Aragonés,
no sopé de El Pueyo das oliveiras e das amendoeiras de
Nossa Senhora, sob as sombras ainda presentes dos cinqüenta
e tantos irmãos mártires de 36...

A sujeição e a responsabilidade quase obsessiva do cargo


de formador — eu devia ser exemplo dos meus formandos —,
a quieta solidão do velho casarão da Rua Conde — o mais des-
trambelhado seminário que podia existir por aquelas calendas
na Espanha pós-tridentina — foram para mim um segundo
noviciado bem mais consciente e não menos austero e apaixonado.
Voltei à oração intensa, à fidelidade às pequenas coisas,
aos cilicios e disciplinas, às vigílias noturnas e aos jejuns. Tive
contudo de me arriscar também a uma revisão, comprometida
com a prática, sobre os moldes da vida religiosa e apostólica,
porque eu era um formador. Um formador iconoclasta. Para
começar, queimei todas as flores de plástico do seminário, retirei
vários santos acumulados no altarzinho da capela e, outra
vez a contragosto dos superiores — paciente, virgiliano, Padre
Mir! —, revolucionei horários e costumes, rezas, leituras, orientações
e perspectivas.

Eram chegados os bons tempos do Vaticano II. As crônicas


e as notícias do Concilio, as intervenções renovadoras na
sala das reuniões, as opiniões livres dos peritos, o que o
Concilio era de fato e o que a gente desejava que ele
fosse para o futuro da Igreja enlouqueciam-me de entusiasmo
e de generosidade.

Por essas alturas, estava eu acampado com os meus seminaristas


no amado Pirineu, quando me chegou a nova destina-
ção: era designado para Madri, para a capital. Lá, iria dirigir
a centenária revista cordimariana El Iris de Paz. Parecia-me
esse novo posto terrível e alucinante. Em Madri, eu poderia
fazer muitas coisas: na imprensa, nos cursilhos, com os universitários
negros da Guiné, nos submundos que já me eram familiares
desde Sabadell e Barcelona. Eu então sonhava com tudo
aquilo e obedecia com a mesma automática precisão. Se bem
que, para o subdiretor do Instituto, eu era na realidade um
homem de “fatos consumados” e saía sempre com as minhas
treze na frente das doze dos outros...

Dediquei o primeiro número da revista, antes da renovação


que começaria no início do ano novo, a Nossa Senhora da
Guarda-Civil. Era outubro, as comemorações da Virgem do
Pilar e não sei que aniversário da Benemérita. Acontecia que
na Guiné, com os guardas-civis de lá, entre forçados e heróicos,
malandros e isolados — e em Huesca — com os guardas de
trânsito especialmente, por aquelas estradas de neve e os retiros
románicos do Capitán Martin, que depois se ordenou
padre — e agora em Madri — com guardas e oficiais e cadetes
da maior boa vontade —, por causa dos cursilhos e pela cadeia
que se faz inevitavelmente dos amigos com os amigos dos amigos,
eu acabei sendo um grande amigo dos “verdes”, quase um
“Capelão” extra-oficial e até “tenente honorário” para um grupo
de malandros convertidos, em Bata. Como fui amigo de
muitos outros militares, pelas mesmas razões. Saudosas e contraditórias
amizades, agora que sou um ogro ou um alérgico
às “fardas”, como depois tentarei explicar.

Sem muito respeito, desnudei a veterana revista, chamando-


a apenas de íris. Com um pretensioso subtítulo: “Revista de
Testemunho e Esperança”. E com o novo formato, os desenhos,
as matérias e os critérios, enfrentei a cerrada oposição
das forças tradicionais internas e externas. Finalmente atraí
sobre minha cabeça um decreto de demissão dos meus superiores
de Roma porque me permiti qualificar de “uma declaração
decepcionante”, na contracapa, não sei que texto social do
episcopado espanhol.

Em torno da revista e das outras atividades em Madri,


tinha-se formado um grupo de companheiros claretianos, já
antes amigos, mais amigos agora, com quem venho partilhando
a vida em total comunhão: “companheiros da alma”, companheiros
das horas decisivas, imprescindível caravana de viagem
desde então e para o futuro: Fernando Sebastián, Teófilo Cabestrero,
Maximino Cerezo Barredo, Santi, Velasco etc.

O Capítulo Geral de Renovação se realizou nos fins de


1967. Fui chamado a participar nele como representante da
Província de Aragão. Foi uma dura batalha aquela — honesta,
piedosa, teimosa, jurídica, carismática — entre as duas tendências
do Instituto Claretiano que manteve durante três meses um
clima de celtibética paixão na plácida “ottobrata” romana da
Via Aurélia. A cela onde o grupo de jovens nos reuníamos e
tramávamos começou a ser chamada de Sierra Maestra e eu ganhei
o apelido comprometedor de Che Guevara. De fato,
naquele Capítulo, a Congregação sentiu com lucidez a verdade
do carisma claretiano e penso que todos, os jovens e os menos
jovens, saímos dele um tanto marcados para uma renovada vida
religiosa e apostólica. O “anúncio da Palavra” era nossa missão
na Igreja. Devíamos viver o Vaticano II. Havia chegado
a hora de ou renovar-se ou morrer...

Foi durante esse Capítulo de Renovação que eu fiz minha


opção pelo Mato Grosso. Tinha chegado também para mim,
pessoalmente, uma hora decisiva. Entre outras coisas que já
foram ditas, Che Guevara acabava de ser morto e seu testemu-
nho leigo era um novo chamado vindo da América. Aliás duvidei
entre a Bolívia e o Brasil, porque uma Missão de Índios no
planalto boliviano pedia a presença de missionários voluntários
e a Bolívia acabava sendo sempre a borralheira desprezada. Foi
o próprio Padre Schweiger quem ajudou a decidir-me pelo Brasil.
A Santa Sé, por meio da Nunciatura no Rio vinha pedindo,
havia quatro anos, que a Congregação Claretiana — que tinha
missionado os sertões centrais de Goiás — se encarregasse da
região norte do Mato Grosso que estava desatendida.

Livrei-me da ameaça de ser provincial da região de Ara-


gão e me vi assim — outra vez como. “fato consumado”, em
meu “haver”, — com a licença e o compromisso de fundar a
Missão Claretiana no Mato Grosso. No dia 26 de janeiro de
1968, Manuel e eu trocávamos os 11 graus abaixo de zero de
Madri pelos 38 graus acima de zero do aeroporto do Galeão,
Rio de Janeiro. Era um pulo no vazio do outro mundo. Eu
tinha conseguido, finalmente, o que tinha sonhado e pedido e
procurado, raivosamente, durante todos os dias de minhp. vida
de vocação: “as Missões”, um clima heróico para viver heroicamente
— dizia-me então para mim mesmo, ingênuo e obstinado
e talvez fiel.

O Brasil vivia em plena gloriosa Revolução de 64 e com


as quentes características de 68. O cenfi — Centro de Formação
Intercultural — com 60 missionários, homens e mulheres,
de diferentes nacionalidades e das mais díspares orientações, era
uma forja de liberdade contrastante. Revisava-se tudo, vivia-se
em estado de crítica. Desde o grupo neo-eclesiástico holandês,
com liturgias espontâneas e uma atitude contestatária em relação
ao Vaticano, e os professores brasileiros do cenfi, seculares
ecléticos ou clérigos “secularizados” — à primeira vista, para
um claretiano espanhol — até os integérrimos bretões, ainda em
latim, encontrava-se ali toda a gama de espíritos de uma Igreja
em evolução e na América Latina e no Brasil.

As conferências — do P. Luis Ségundo, por exemplo —


as conversas — com universitários, ex-militantes ousados da
jec e da juc — as visitas — à Volta Redonda de D. Valdir, às
fazendas da baixada fluminense ou às favelas — os espetáculos
selecionados — Morte e Vida Severina, para citar um que me
marcou — as sessões alucinantes de Umbanda, os comentários
da imprensa diária com os subterfúgios da repressão e as diferentes
“igrejas” do país expostas ao claro, as próprias celebrações
— dessacralizadas (!), diferentes, conscientizadoras — o
Breviário preterido às vezes “sem pecado”... tudo contribuía
para fazer revisar e repensar a formação recebida/ a piedade
herdada, as austeras distâncias do sexo, o apostolado em riste,
a fácil e convicta dicotomía com que, no Velho Mundo, vivíamos
a missão da Igreja em face da política e da sociedade em
geral...

Aqueles quatro meses do cenfi, no outono de nossa transição


europeu-americana, remotamente imperial, de Petrópolis,
valeram por um noviciado abrupto e saudável de secularização
e de crítica cautelosa. Arriscado mais útil. Vir da Espanha diretamente
para o Mato Grosso, sem passar pelo cenfi, teria
sido um mergulho fatal. Em todo caso, não poderíamos ter
tido uma visão com perspectiva do Brasil e da Igreja brasileira.

Depois do cenfi, passamos um mês e meio na monstruosa


S. Paulo. Visitando hospitais e o centro ofídico de Butantã,
fazendo um minicurso sobre doenças tropicais e acumulando
previamente, na fantasia, todos os possíveis males que com certeza
a Amazônia nunca nos proporcionaria juntos, por mais
que se nos apresentasse, um a um, no dia a dia. Aquelas semanas
que precederam nossa vinda para a Missão foram de
uma disponibilidade heróica... Iniciávamos a “marcha para o
Oeste” desconhecido — sete dias de caminhão de Rio Claro em
S. Paulo até o Araguaia — na fé de Abraão. (Poucos dias depois,
a leitura de Deiss em Maria, Filha de Sião me confirmaria
basicamente nesta despojada atitude do Patriarca daqueles
que saem de si em busca de uma terra-missão que o Senhor
lhes indicou.

Foi em julho de 1968.

Chegávamos a um mundo sem retorno.

A Missão tinha 150.000 km2 de rios, sertões e florestas, no


nordeste de Mato Grosso, dentro da Amazônia chamada “legal”,
entre os rios Araguaia e Xingu, abrangendo também a
Ilha do Bananal, que é a maior ilha fluvial do mundo. Sem
outra “base” eclesiástica senão nossa casa de 4 por 8m, à beira
do Araguaia, maravilhoso e turvo; sem saber por onde começar;
sem saber sequer quem habitava a região onde as distân-
cias de toda espécie justificavam todas as indecisões. A única
estrada que existia, vermelha e poeirenta, estava ainda em
construção e na selva e descampados que acabávamos de atravessar
a “onça”, materialmente concreta, tinha pleno direito de
nos cruzar o caminho à frente do caminhão.

Não havia um só médico na área. Não havia correio nem


luz elétrica, nem telefone nem telégrafo. Três jipes velhos eram
os únicos carros em toda S. Félix. A professora mais qualificada
era uma generosa preta com apenas um ano e meio de
escola, que às vezes bebia. Já tinha dado aulas protegida contra
as onças e contra os índios por homens armados, postados
à porta da escolinha de palha.

No dia 15 de agosto, eu começava o meu Diário:

“Talvez porque aqui vou precisar mais do que nunca


do diálogo interior, em meio a tantos silencios — escrevia
eu. Chegamos à Missão no dia 30 de julho e já pensei
e senti e temi e esperei e gozei muitas coisas. Dos
homens, da natureza e de Deus...”

Nos primeiros meses, Manuel e eu viramos enfermeiros,


guiando-nos, um pouco às cegas, pelas bulas dos remédios. Pudemos
comprovar de perto a presença múltipla, avassaladora,
da doença e da morte na região. Verminoses, desidratação, malária,
hepatite, tétano umbilical, toda espécie de doenças da
pele. Subnutrição, a doença crônica... Na primeira semana da
nossa estada em São Félix, morreram quatro crianças e passaram
por nossa casa em caixas de papelão, como sapatos, em
direção daquele cemitério sobre o rio, onde posteriormente haveríamos
de enterrar tantas crianças — cada família conta três,
quatro filhos mortos — e tantos adultos — mortos ou matados
— talvez sem caixão e até sem nome.

“Esta gente escuta — escrevia também no Diário —,


sorri às vezes, cala quase sempre. A que distância estarão
minhas palavras da sua alma simples, elementar, endurecida
pelo sofrimento e pelo abandono?

... gentes de aluvião, levados e trazidos pela maré da


pobreza, da so'idão, do crime próprio ou alheio... (do
crime coletivo da injustiça social!)... gente simples, gente
que carrega a cruz... Estes são, apesar de tudo que se
queira dizer em contrário, os pobres do Evangelho.”
Impunha-se uma revisão total de critérios e de programas.
Por onde começar? Que é que o povo pedia? O que podíamos
fazer? O que significava ser Igreja ali?

Tínhamos uma igrejinha de barro e brasilite à mercê das


ventanias. E muita superstição. E o velho costume das “desobrigas”
ou visitas de preceito pascal que os padres faziam nos
sertões do Norte e do Centro-Oeste, de onde vinham os moradores
da região. Nós mesmos tivemos de prosseguir com essas
desobrigas durante o primeiro ano e meio de Missão, para conhecer
o terreno e o povo que tínhamos recebido como herança
sacerdotal. Mesmo não acreditando na eficácia apostólica
dessas desobrigas, onde se acumulavam cento e tantos animais,
.trezentas pessoas, casamentos sem fim, batizados, confissões,
raptos de moças, bebedeira, facadas, tiros...

Foi então, nessas desobrigas, que começamos a sentir o


problema da terra. Ninguém tinha terra própria. Ninguém
tinha um futuro garantido. Todo mundo era “retirante”, emigrante
de outras áreas do país já castigadas pelo latifúndio. Todos
vinham descendo do Nordeste, do Norte, com seus oito ou
dez filhos às costas, procurando as terras “gerais” sem dono e
atravessavam um dia o Araguaia, como quem atravessa o Mar
Vermelho em busca da Terra Prometida.

“Pontinópolis foi, mais uma vez, a sensação viva da pobreza,


do abandono, da injustiça humana, da necessária
(ainda que incomprovável) providência de Deus sobre todos
os seus pobres filhos da terra.

Impressionou-me muito verificar como a maioria desta


gente, vinda do Maranhão, do Pará, do Ceará, do Norte
em geral, se deslocava de suas terras à procura da ‘bandeira
verde’ preconizada pelo iluminado Padre Cícero Ro-
mão, de Juazeiro do Ceará, por volta dos anos trinta e
tantos. Aquele demagogo ou fanático ou profeta ou sei
lá — venerado ‘Padrinho’, Moisés dos nordestinos castigados
pela seca e pela miséria — profetizou dias duros, secas
irreparáveis, fome... Para o povo nordestino, morador
de uma região ingrata que o cinema brasileiro apresentou
em alguns filmes expressivos, todas essas profecias
eram bem fáceis de acreditar porque se confirmavam com
passadas e constantes experiências.

A ‘bandeira verde’ seria a mata, a floresta verde do


Mato Grosso, da Amazônia... E assim começou a cara-
vana de ‘retirantes’ que agora são nossos missionados, o
povo com o qual vivemos, pelo qual, Senhor, a gente desejaria
morrer”... (Diário, setembro, 12).

Mato Grosso era e ainda é uma terra sem lei. Alguém o


tinha classificado como o “Estado-curral” do Brasil. Não encontramos
nenhuma infra-estrutura administrativa, nenhuma organização
trabalhista, nenhuma fiscalização. O Direito era do
mais forte ou do mais bruto. O dinheiro e o “38” se impunham.
Nascer, morrer, matar, esses sim, eram os direitos básicos,
os verbos conjugados com uma assombrosa naturalidade.

A sede do município de São Félix está, ainda hoje, a


700 km daqui, em Barra do Garças. Às vezes parece-nos que
não existimos... *

Predominava o analfabetismo. E a educação dos filhos


interessava mais ao povo do que o próprio direito de ter terra
e comer, como saída para um sonhado futuro diferente do triste
destino dos pais. Desde o primeiro momento de nossa chegada,
choveram pedidos: íamos dar aulas, construiríamos um
colégio, organizaríamos internato, podíamos ficar com os filhos
alheios, adotá-los e educá-los. Não se concebia a presença de
padres ou de freiras sem abordar esse problema.

Era tal o imperativo de suplência social que, de fato, tivemos


de construir — com a ajuda econômica dos amigos de
Espanha — um “ginásio”, o Ginásio Estadual Araguaia, de
tantos amores e dores. Seria oficial e do Povo, porque não
queramos que nem a Congregação nem a Prelazia tivessem
edifícios e instituições. Teríamos a responsabilidade da direção
e do professorado, faríamos do colégio um centro diferente e
total de formação...

Começaram a chegar à Missão, como professores, os primeiros


rapazes e moças e chegou uma comunidade de religiosas
de S. José. (Na aldeia dos índios Tapirapé, perto de Santa
Teresinha, no Norte da Prelazia, viviam, havia 15 anos, as Ir-
mãzinhas de Jesus, com uma vocação de simples presença, de
encarnação na pobreza e na cultura indígena, de testemunho
evangélico).

São Félix passou a sede de município em maio de 1976.


Tínhamos de enfrentar também, pelo mesmo imperativo de
suplencia, o problema sanitário. E transformamos a pequena
casinha da beira do rio em ambulatório. As irmãs, enfermeiras,
tinham um grande campo aberío à sua caridade. Em Santa
Teresinha, que pertencera até então à Prelazia de Conceição do
Araguaia, o Padre Francisco Jentel prosseguia seu trabalho de
atendimento aos “posseiros” e aos índios Tapirapé. São Félix,
Santa Teresinha, Tapirapé, eram as três únicas comunidades
missionárias da nascente Prelazia, erigida em 1970.

Em abril de 1971, quando acabavam as chuvas (o ano


sempre quente divide-se em duas partes: de chuvas e de seca)
e se colhia o arroz que aqui é o> “pão nosso de cada dia, e
quando litúrgicamente acontecia a Páscoa, começávamos uma
nova experiência pastoral, as Campanhas Missionárias. Substituíam
as desobrigas, uma espécie de “missão popular” bem ter-
ra-a-terra. Constavam de três meses de trabalho em equipe
num lugar, com um curso de alfabetização pelo método de
Paulo Freire celebrações de missa semanais bem aproximadas
da compreensão do povo, mais como catequese ou evangeliza-
ção do que como Eucaristia (!) —, a preparação dos batismos
e outros sacramentos, o conhecimento da realidade vivida no
dia a dia, a descoberta dos líderes locais, o cultivo do fermento
das futuras comunidades...

A primeira dessas campanhas nós a realizamos em Pon-


tinópolis, povoado a 125 km de São Félix. E lá, fomos definitivamente
reconhecidos como a favor dos posseiros ou lavradores
sem terra, maltratados pelo latifúndio de Estado em Estado.
Foi nessas campanhas missionárias que nós descobrimos
— e definitivamente! — a problemática do nosso Povo, o conflito
social básico de uma região destinada oficialmente a ser
latifúndio de gado bovino, área da Superintendência do Desenvolvimento
da Amazônia (sudam), onde a bosta do boi equivale
a um carimbo de “integração nacional” e de desumana desintegração
de mdios, posseiros e peões.

Já em setembro de 1970 eu tinha redigido um informe-


denúncia da situação de escravidão em que se encontrava talvez
a terça parte dos habitantes da nossa Prelazia. Eram os
peões, carne de carregação, trabalhadores braçais, comprados
fraudulentamente no Norte e no Centro do País e descarregados
para os trabalhos de “derrubada” e plantação de pastos,
nessas infinitas fazendas de centenas de milhares de hectares,
verdadeiros campos de concentração. O informe se intitulava
Escravidão e Feudalismo no Norte de Mato Grosso. Enviei-o
às altas autoridades do País, à presidência da Conferência Nacional
dos Bispos e à Nunciatura. E o sr. Núncio, depois de
me elogiar diplomaticamente pela coragem e realismo pastorais,
pedia-me diplomaticamente que não publicasse o documento
no estrangeiro porque isso podia favorecer a campanha de
difamação que lá se orquestrava contra o Brasil...

“Acabei — Diário, 2-9-70 — o relatório sobre o Feudalismo


e a Escravidão no Norte do Mato Grosso. Espero
que o Espírito de Jesus lhe dê o tom de verdade e de
amor que eu não sou capaz de dar. Reconheço que esses
temas me inflamam e enchem de ira...”

O documento era apenas uma trágica ladainha de casos


em carne viva de peões enganados, controlados a revólver, espancados,
feridos ou mortos, cercados na floresta, em total desamparo
de qualquer lei, sem nenhum direito, sem saída
humana.

À noite do dia em que assinei o documento (era noite de


luar) saí para ver a lua grande e para respirar o ar mais frio
e me ofereci ao Senhor. Sentia então que, com o documento,
podia ter assinado também a minha própria pena de morte; em
todo caso, acabava de assinar um desafio.

Efetivamente, poucos dias depois, começou a me chegar a


advertência de um dos maiores latifundiários e garimpeiros do
Brasil, tantas vezes repetida depois por outras muitas vozes
latifundiárias, eclesiásticas, “amigas”: não devia meter-me nesses
assuntos porque poderiam acusar-me de subversivo. De
fato, a polícia federal nos estava controlando; o tenente-delega-
do de São Félix era um agente; os fazendeiros iam processar-
me; etc.

Já havíamos cortado relações com as fazendas. Não podíamos


celebrar a Eucaristia à sombra dos senhores, viajando
em seu carros ou aviões, comendo ou bebendo uísque em sua
mesa, sendo “assistidos” nas celebrações pelos que escravizavam
sistematicamente os irmãos menores: essa já não seria mais a
Ceia do Senhor! Deixávamos de ser amigos dos “grandes” e
os enfrentávamos. Nenhum explorador ou colaborador usado
pela exploração poderia ser padrinho de batismo, por exemplo.
Deixamos de aceitar “caronas” nos seus carros, esquivávamo-
nos positivamente de suas companhias, de seus sorrisos; deixamos
inclusive de cumprimentá-los nos casos mais descarados.
(Em contrapartida íamos ganhando a confiança e o amor dos
pobres e oprimidos). Foi hora de opção, dilacerada opção que
violentava o próprio temperamento, a vontade natural de estar
bem com todos, a formação de mansidão evangélica recebida,
a velha norma pastoral de “não apagar a lâmpada que ainda
bruxoleia”... Ruptura que continua deixando em tensa cruz
a vida da gente.

Sobre estes últimos anos da “vida que tem dado sentido ao


meu credo vou me permitir transcrever, nuas e amontoadas,
. monótonas talvez como a vida, várias páginas do Diário que
venho rabiscando desde que cheguei ao Mato Grosso. Isto porque
essas páginas me parecem mais espontâneas e verdadeiras
do que qualquer outra consideração posterior que pudesse elaborar
agora. Elas vão ilustrar as circunstâncias e as motivações
que nos envolveram nessas horas graves. Elas falam um
pouco de tudo e assim, de passagem, falarão também de minha
Fé em Deus, em Cristo, na Igreja, no Homem, no Mundo. De
minha Fé na Justiça e na Esperança:

“Dois jornalistas — um deles do Los Angeles Time —


entrevistaram-me sobre o escândalo da Codeara e de ou
tras fazendas destas regiões que últimamente apareceram
em primeira página na imprensa do país. Falo-lhes sem
muita preocupação em ser discreto. O repórter de Los
Angeles, advertindo-me de que não é católico, disse com
muita razão que a Igreja é a única voz que se pode levantar
hoje no Brasil para denunciar essas injustiças e acrescentou:
no futuro, a História a julgará...” (2-3-71).
“Pelas dez da manhã, trazem da ilha uma mulher morta
de malária desde domingo... E meia hora depois me
comunicam a morte de um peão baleado à queima-roupa
pelo novo sargento Edson da Polícia Militar. Acabamos
de enterrar o desconhecido total. — É cearense, dizia o
capitão, a título de identificação. — Parece que você nunca
enterrou ninguém! — falava um dos peões-coveiros a
um outro mais ou menos açodado. — Aqui, quem é que
nunca foi coveiro?

Ontem, na Três-Marias, um peão atravessou o outro


com uma faca.

Mais se morre e mata do que se vive. Morrer ou matar


é mais fácil aqui, mais ao alcance de todos do que
viver”.

Enquanto eu estava escrevendo estas linhas, chegou um


capataz da Suiá-Missú (já não é um peão anônimo) com o
olho arrebentado por um galho. A fazenda, a poderosíssima
fazenda, o maior latifúndio de gado da América Latina, deu-
lhe apenas umas gotas de colírio e se negou a assinar-lhe a
carteira de trabalho, despedindo-o com seus oito filhos.

“No almoço — 1-10-70 — falamos das Companhias,


da Funai, do Brasil oficial. Este tema nos machuca. Para
onde irá a Missão? Que futuro espera a essa gente? Por
onde nós deveríamos começar, profética e humildemente?”

“Leio — 3 — de não sei que escritor comunista que


‘o amor ou é político ou não existe’. De acordo, acrescento:
ou é total (para o homem todo e para todo homem,
para a terra e para o céu) ou não é...”

“No Furo-de-Pedras, segunda-feira, dia 12, festa de


Nossa Senhora Aparecida, tive um bom encontro pastoral
com aquela gente simples. E ali também nos encontramos
com a Codeara. Seus dois advogados — Olímpio
Jaime com um imenso revólver na cintura — tentavam
estes dias arrancar assinaturas e declarações dos posseiros
para não sei que indenização.
Pelo meio-dia, ao voltar para casa, encontro um posseiro
de Tapiraguaia quase chorando: faz nove anos que
mora em seu pobre sítio e segunda-feira o gerente Camargo
— sempre demolidor — ameaçou de chamar a polícia
se ele tentasse fazer roça. Ele não tem outra saída.
Mora com sua mãe viúva e três sobrinhozinhos órfãos.

O céu está nublado e os mosquitos alfinetando. Preciso


de uma luz, uma fidelidade arrojada, uma caridade
comprometida e respeitadora ao mesmo tempo. Sou como
uma torturada impotência em pessoa!

Mas tudo é Missão. A fé — diz uma sugestiva tradução


de Teixeira-Mesters — consiste em realizar o que
se espera (Heb. 11, 1) (14-10-70).

“Os grandes da Codeara e das outras fazendas da


região estão em reunião e churrasco. A liturgia de hoje
fala de servir e de beber o cálice” (18-10-70).

7 de janeiro de 197,1

“Outro peão jovem de apenas 19 anos, vindo também


da Codeara anteontem, foi enterrado hoje. Morreu de malária.
Desde julho até anteontem trabalhou na Codeara
e recebeu — como salário póstumo — 100 miseráveis cruzeiros.
Cem ‘contos’ e a morte. Celebrei missa por ele,
de corpo presente, debaixo do teto da igreja estragado
pelo vento e por chuvas. Outra vítima do latifúndio. Não
me teria doído muito morrer no seu lugar”.

Dia 31

“Ontem, a uma da tarde, morreu o peão Antônio


Barbosa de S. Miguel do Araguaia, aquele rapaz de 21
anos que a Irmãzinha e o Didi levaram a Sta. Isabel.
Morreu de malária, com tifo. parece. E tivemos de enterrá-
lo urgentemente, enquanto caía a tarde... Eu tinha
enrolado o cadáver com panos que sobraram dos uniformes
do Ginásio e que tinham servido de cortina e de
tela. Levamos Antônio de jipe ao cemitério. Acompanharam-
nos um boiadeiro, “o Cearense” e dois peões. Pedi,
a eles e aos coveiros, que nos sentíssemos pais, irmãos,
amigos, daquele pobre moço abandonado que ia ser enterrado
até mesmo sem caixão. Enquanto eu rezava a
oração da sepultura, a passarada do piquizeiro começou
a cantar. Todo um acúmulo de sentimentos — ira, compaixão,
esperança, pobreza — me subiu à garganta e a
voz se me quebrou em pranto. Ficava no ar da tarde,
ameaçante de nuvens e relámpagos, urna poderosa verdade:
Eu sou a Ressurreição e a Vida... Joguei terra
sobre o cadáver. Eu queria solidarizar-me com Antonio,
com iodos os peões, com todos os injustiçados do mundo.
Contra o supersticioso costume desta região de sepultar
com o rosto virado para o rio, Antonio foi enterrado
de cara para as fazendas. Como uma acusação. De
cara para o morro e para o céu também...”

Fevereiro, dia 3
“A notícia que o P. Francisco trazia desta vez era
de epopéia. O P. Henrique foi posto a premio, ao preço
de 500 cruzeiros, ‘taxa de cinco léguas de estrada’. Quem
comprava a vida do Padre era o gerente Plínio da fazenda
Frenova, contrariado em seus planos de invasão porque
o P. Henrique tinha dado conselhos aos posseiros...”

Santa Teresinha, fazia algum tempo, era uma área de conflito


com a Companhia Codeara — Companhia de Desenvolvimento
do Araguaia —, propriedade de banqueiros de São Pau-
(lo. O povoado de Serra Nova, na Serra do Roncador, a uns
170 km de São Félix, seria um novo campo de batalha até hoje
sem vitória, sem perspectiva. Eu tinha assistido muito de perto
ao seu nascimento. Eu mesmo sugeri o nome do lugar. Antigos
posseiros daqueles arredores tinham sentido a necessidade
de se agrupar em “patrimônio”, para ter seu “comércio”, sua
escola, sua igreja, sua rua — como dizem expressivamente neste
interior. A fazenda Bordon, S.A., Agropecuária da Amazônia,
poderosa sociedade anônima do frigorífico do mesmo nome,
com o Ministro da Fazenda, Delfim Neto, o homem do “milagre
brasi'eiro” como escora, decidiu cortar, a um quilômetro
e meio do povoado, a terra de lavoura, e com isso estrangulou
para sempre o futuro daqueles lavradores. Esse corte, essa
picada tem sido, em muitas ocasiões, um risco de desafio e con-
flito, como outras “picadas” foram e continuam sendo noutros
lugares destas terras.

No dia 2 de maio de 1972, anotei no Diario:

“Dia 21 de abril, Tiradentes. Uma memória de liberdade


e de sacrificio generoso.

Estou em Serra Nova, o novo patrimonio, ao pé da


Serra do Roncador. São 6,45 da manhã. Acabo de desarmar
a rede. Fui ‘ao mato’ — privada natural das matas
ocultadoras perto da casa — e, enquanto o milho rangia,
acompanharam-me alvoroçadas as galinhas de Dona
Luiza. Estou hospedado na primeira ‘casa’ do povoado,
entrando pela estrada. É a casa do Zé Raimundo. Che-
gamos, ele e eu, a cavalo ai pelas duas da tarde. Tínhamos
saído à uma e quinze de segunda-feira. Dormimos
na casa do maranhense onde, ao chegarmos, já de noite,
estavam fazendo farinha de mandioca.

Foi uma viagem de 75 km cheia de impressões, de


encontros, de notícias, de espetáculos. Uma natureza maravilhosa!
Homens sofridos, valentes, acolhedores.

Pelo caminho, Zé Raimundo e eu falamos muito.


Aprendi bastante. Entre outras coisas, soube que
‘recurso (riqueza) é o trono do orgulho’. E à medida
que íamos chegando, invadia-me o dever, a amargura, a
força solidária do problema da terra. Essa palavra crescia
em mim como um crime, como um programa. Fazia-
se urgente e santa como o Evangelho.

A primeira impressão de Serra Nova foi uma descoberta.


No coração da mata-virgem — úmida, viva, fértil
— nascia a golpes de machado um povoado de pobres generosos,
uma comunidade rural que trabalha em ‘mutirão’,
que sofreu na própria carne, de um Estado para
outro, a tragédia dos sem-terra, acuados pelos ‘tubarões’.
Visitei as famílias. E fui entrando em cor-dor, em ira,
nesse entusiasmo que os estúpidos chamariam de subversivo.
..

À noite houve reunião de todo o patrimônio, num


barracão de palha e troncos, construído num só dia, para
que com a chegada do Padre fosse a ‘casa do Povo’. Celebrei
a primeira missa numa cidade nascente. Quase com
a primitiva surpresa dos frades do Descobrimento mas
tendo nas costas muitos anos de História, instrutivos e
cautelosos.

No dia seguinte, alguns homens fomos, floresta a


dentro, até a ‘picada que um auxiliar do agrimensor
Teñes estava abrindo... A um quilômetro e pouco do povoado,
essa picada cortava impiedosamente toda esperança
de futuro. Uma vez mais, o latifúndio criminoso invadia
com a lei e o dinheiro um novo espaço livre sonhado
pelos pobres. Recolhi dados. Tomamos banho, em
simples camaradagem, num dos córregos Hmpíssimos,
frios da floresta paradisíaca e chegamos ao povoado. Era
preciso decidir. Eu iria a São Paulo, a Brasília, talvez
para tentar falar com os ‘tubarões’. O Povo se reconfor-
tou com a minha solidariedade e prometeu não esmorecer
e não se acovardar.

Regressando a São Félix — eu tivera que desviar-me


por outros caminhos com o propósito de falar possivelmente
com algum dos fazendeiros do caso —, encontrei-
me com Zé Maria e Vaime que me vinham buscar. Pe-
drito já me tinha procurado de teco-teco, no Roncador,
por duas vezes. Em Santa Terezinha, acaba de estourar
outro conflito: a Codeara e os seus e a Prefeitura vendi-
jda contra a Missão... Dediquei a segunda, a terça e a
quarta-feiras a falar, em São Paulo, com os ‘senhores’.
Não foi fácil consegui-lo. (E foi inútil.) Por mais que
Ariosto e o diretor-superintendente da Bordon S.A. me
recebessem ‘com educação’, prevenindo-me, isto sim, do
perigo de entrar nesses problemas de terra e reafirmando
seus ‘direitos’... Combinamos falar outra vez antes ou
depois do famoso churrasco de ministros e fazendeiros
que se ia realizar no Xingu por aqueles dias.

O Parque Nacional do índio, no Xingu, vai ser cortado


pela estrada BR-80. (E o foi, de fato, em sua parte
melhor, do norte, porque os fazendeiros a apeteceram,
qualificando-a de ‘o filé mignon’ da Amazônia para a pecuária.)
Os Villas Boas estão furiosos e com razão. Penso
que deixa de existir a última aparência reconhecida de
proteção e reserva do indígena...”.

No dia 21 de junho escrevia:

“Em Serra Nova, os ‘tubarões’ apertam, alarmados.


A fazenda Bordon decidiu derrubar a floresta a partir da
‘picada’ delimitadora para cortar de urna vez toda esjpe-
rança dos posseiros do lugar... Decidimos antecipar a
Campanha Missionária em Serra Nova”.

No dia 20 de julho:

“Estou em Brasília, sempre luminosa e aberta. Acabo


de sair do síni. Ontem estive no incra. Vim aqui para
tratar do problema de Serra Nova”.

Começamos a lançar nossa angústia impotente sobre os


setores da Igreja do Brasil que estavam mais ou menos ao
nosso alcance. Sabíamos de sobra que o problema não era só
nosso e que não podiam ser só nossas as tentativas de solução.
Sentíamos que pelo menos “a” Igreja do País deveria pronunciar-
se para ser fiel à hora e à sua missão.

“Em Goiânia — 7-5-71 — visitei Dom Fernando (Arcebispo


da Cidade e presidente do Regional Centro-Oeste
da cnbb) e lhe expus minhas preocupações: Transamazôni-
ca, Latifúndio, Deportação, Atendimento pastoral precário
e provisório aos grupos humanos envolvidos... Ele
aceitou minhas sugestões: pedir à cnbb nacional que patrocinasse
um estudo sobre o latifúndio no país e um
encontro dos bispos e prelados da área afetada pelo fenômeno
— Amazônia: ou por ser região amazônica como
tal ou por causa do pessoal retirante — nordes'ino, goiano,
matogrossense — que vai povoar as novas terras exploradas
— levado (?) ou alucinado pela publicidade e a
política...

O Seminário do Rio (sobre Pastoral da Amazônia)


nos dias 14, 15 e 16 foi uma boa constatação da problemática
sócio-pastoral da Amazônia. Agora a Comissão
Representativa da Cnbb que vai reunir-se em agosto terá
de se pronunciar com detalhes concretos e eficientes.

Durante o Seminário, insisti no perigo de se valorizar


mais a Transamazónica do que a própria Amazônia. Comprovamos
todos que há um certo medo da Igreja ‘oficial'
na hora de se manifestar em relação aos problemas sociais
agudos. Há muita ‘política’ chamada prudência,
talvez sincera, talvez ingênua, talvez covarde e demasiadamente
comprometida...”

No dia 18 de maio, anotei:

“Todos os habitantes de Pontinópolis e dezenas de


fanrlias vindas das proximidades (léguas e mais léguas a
cavalo, homens, mulheres e crianças) esperamos inutilmente
no domingo a vinda do sr. Ariosto aqui. Mais uma
vez, faltou à palavra. Estávamos preparados para recebê-
lo e tínhamos argumentos dentro do âmbito mesmo da lei.
— ‘Nem Deus se faz esperar assim!’ — irritado, eu disse
ao povo...

Aquela ira solidária valeu-me a confiança definitiva


dos líderes do lugar, depois de dois anos de já aparente
confiança!

Naquele dia, copiei também este conselho de Con-


fúcin:

“Se queres colher por um dia, dá de comer aos homens.


Se queres colher por um ano, planta o grão. Se
queres colher para sempre, instrui o Povo”.

A 24 de junho eu desabafava com esta afirmação:

“Coonestar a injustiça é um pecado demasiadamente


‘católico’. A Igreja é responsável desde séculos. Deve
reconhecê-lo e chorar, e se há de converter”.

Neste meio tempo, chegou-me do Vaticano a nomeação de


bispo. E eu já tinha pronta minha carta de renúncia taxativa
ao Núncio, quando passou por São Félix Dom Tomás Balduí-
no, o Bispo amigo de Goiás, pi1 oto de um aviãozinho vermelho
e branco, pássaro sempre providencial nos nossos céus. Pediu-
me insistentemente que não mandasse a carta, que conversaríamos
entre todos, por ocasião da ordenação do Manuel, no dia
7 de agosto.

“Fazem três anos que Manuel e eu chegamos a São


Félix. Três anos longos como três lustros, duros como
três noviciados, três anos bons como três Missas”... comentava
eu no Diário a 30 de julho.

Num sábado, dia 7 de agosto de 1971, Manuel Luzon, o


companheiro de primeira hora, sempre bom, fiel como uma
árvore de madeira de lei, foi ordenado Sacerdote de Cristo para
Seu Povo deste Mato Grosso, realizando assim um sonho cultivado
durante longos anos de humildade e serviço.

No domingo, dia 8, reuniram-se com Dom Tomás os padres


e as irmãs, quebrados todos os encantos do sigilo. Discutiram-
me e me aceitaram como futuro bispo. Decidiram que
era melhor o mau conhecido do que o bom por conhecer...
Então Dom Tomás me chamou. Eu, sem ilusões — já curtido
desde muito tempo —, aceitei também. Uma vez mais, expus
meus limites e idiossincrasias, “meu carisma, talvez”. E declarei
meu propósito irrevogável de seguir o Povo de Serra Nova
—t ou qualquer outro Povo da Prelazia — se um dia fosse deportado.
Sem que a trava episcopal me pudesse impedir...

A vida continuava.

”Sábado — Diário, 6-8 — saí com uns 30 homens


(de Serra Nova) para derrubar as árvores do ‘roçado’
aberto a quase 5 km daqui. ‘Uma bruta roça’, como
dizia admirado o próprio Benedito Boca-Quente. Foi um
dia de mutirão — de trabalho comunitário — maravilhoso.
Eu e um rapazinho trabalhamos de carregadores de
água para os que trabalhavam no machado. Esse dia, senti
o júbilo de ver caírem as árvores: desaprumadas, como
nadadores olímpicos, sobre as águas reunidas de todo um
povo. Abria-se uma grande porta ao sol e ao futuro e
as folhas sacudidas dançavam ao ritmo do ar como confete
de um festival de liberdade...

Está soando alguma ameaça. Ronda a angústia. E a


espera se faz, às vezes, como coagulada. A Fé está à
prova e eu quero continuar ‘sabendo’ em Quem me tenho
confiado...”

Foi nesse dia de “derrubada” que escrevi numa folha de


bananeira brava e com a ponta de meu canivete o Hino de
Serra Nova que depois, cantado em muitos setores rurais do
Brasil, chamou-se “Hino da Comunidade Rural”: “Hino da
Lavrador”.

“Somos um povo de gente


Somos o povo de Deus
Queremos terra na Terra
Já temos terra nos Céus”.

“Sinto necessidade de me confessar — prosseguia na


mesma página do Diário a 16 de agosto —, talvez de purificar-
me de qualquer modo. You ser consagrado bispo
no dia 23 de outubro. Sem pretender — quase o evitando
— será o dia de Santo Antônio Maria Claret. Alegróme
disto porque veio assim tão lhanamente a data providencial.

Estou chamando a Virgem como num acesso instintivo


de Fé e de pobreza. Nossa Senhora dos Posseiros,
acolhe, poderosa e boa, as esperanças deste patrimônio!
Santa Maria dos Apóstolos de Jesus, faz-me um bispo
conforme o Espírito de teu Filho!”

Dia 17

“Decidi não usar anel nem mitra nem báculo. Ontem


esbocei umas linhas de convite que explicariam antecipadamente
o porque dessa atitude que considero simplesmente
lógica. Não vou dar lição a ninguém. Entretanto
devo ser conseqüente.”

O convite-lembrança teria a reprodução de um berrante


e um laço pastorais das ilustrações nordestinas de
Poty e o texto rezaria assim:

“Tua mitra será um chapéu de palha sertanejo; o


sol e o luar; a chuva e o sereno; o olhar dos pobres com
quem caminhas e o olhar glorioso de Cristo, o Senhor.

Teu báculo será a Verdade do Evangelho e a confiança


do teu povo em ti.

Teu anel será a fidelidade à Nova Aliança do Deus


Libertador e a fidelidade ao povo desta terra.

Não terás outro escudo senão a força da Esperança


e a Liberdade dos filhos de Deus, nem usarás outra luva
que o serviço do Amor”.
A tensão em Serra Nova se estava agudizando com as ameaças
da Companhia Bordon de matar-me e ao Moura (o rapaz,
companheiro da campanha missionária), assim como de queimar
o povoado. Lulú — o amigo posseiro, prisioneiro duas
vezes, torturado pelo latifúndio e pela Repressão — e eu fomos
tocaiados na floresta pelo empreiteiro da fazenda, Benedito
Boca-Quente. A “boca quente” era a de seu revólver. E
durante o mês de outubro insistiram em pôr minha vida a preço
para impedir minha consagração episcopal. Conforme consta
no documento assinado pelo pretenso assassino diante da
Polícia Federal, davam por minha cabeça “mil cruzeiros, um
revólver 38 e uma passagem de viagem para onde quisesse”.

“É pesada esta luta da terra — 25-8 — porque é uma


frente de batalha ardendo por todos os lados...

A Esperança — essa terra além da ‘picada’, a estabilidade


do Patrimônio, toda a vida da Prelazia, a Paz futura,
eterna, de todos — faz-se dura como um martírio.
Esperar é morrer bastante! Por instantes, sinto a noite
fechando-se sobre mim e uma surda vontade de descansar
ao mesmo tempo que sinto o fatal apelo — soberana
fatalidade do Amor que confia em mim! — a seguir andando,
luta a dentro, noite a dentro, morte a dentro,
Cristo a dentro, em definitivo!

Dia 26

“A Esperança não decepciona — diz Paulo no ofício


de hoje. ... Eu não poderei duvidar nunca da radical
maldade das estruturas opressoras (do Capitalismo). Nem
poderei duvidar nunca de uma legítima luta da classe
oprimida para libertar-se. Não será um governo opressor
quem livrará os oprimidos! Creio ainda, cada dia mais
firmemente, que é preciso desmitificar a propriedade
privada.

Estou lendo Pobreza Evangélica y promoción huma-


na, de González Ruiz, um livro de pistas luminosas, excitantes.

Evangelizar é promover com o plus gratuito do Dom


de Cristo. Só quem evangeliza promove o homem até o
fim. Mas dificilmente evangelizará quem não ‘promover
humanamente’ ao mesmo tempo!...
...Faz dias que renovo meu oferecimento total.
•Cada dia mais pobre e despojado. Às vezes sinto que só
me resta debilidade — física e moral — os nervos destroçados
e uma ‘fatal5 esperança...”

Setembro, dia 18

“Acontece que vou ser bispo. Simples? Misterioso?


Inevitável? Cristão, em definitivo. Assim são as coisas da
Igreja. Escrevi aos mosteiros de La Oliva e de El Goloso
-— como a tantas outras comunidades e amigos — pedindo-
lhes oração. Conforta-me saber que temos essas ‘bases’
na vanguarda da retaguarda ou na vanguarda da
vanguarda mais exatamente.

Dia 24

“Diz o Cardeal Marty: ‘O bispo é o homem da Fé


para um povo. O pai que ensina uma comunidade a articular,
a professar, a dizer sua Fé; a vivê-la; pois somente
o testemunho de uma Igreja é evangelizador... Eis
por que a primeira missão do bispo é ser profeta... O
profeta é aquele que diz o que é verdadeiro diante de
todo um povo’.” (ici, l-VII-71)

Já era outubro. Eu estava atarefadíssimo com a preparação


do documento pastoral Uma Igreja da Amazônia em con-
flito com o Latifúndio e a Marginalização Social que íamos
lançar por ocasião de minha consagração episcopal.

“Sei que vai levantar contradição — escrevia no


Diário do dia 12 — mas penso que era um dever meu
escrevê-lo. Não tem sido fácil. Em si, ele mesmo é um
risco, quase um total desafio.”

Nos primeiros dias de setembro, os fazendeiros, acompanhados


pelo bom do Padre X..., tentaram impedir minha consagração
episcopal, primeiro junto aos superiores claretianos
em São Paulo e depois no Rio, junto ao próprio Núncio Apostólico.
Naqueles dias, o clã dos poderosos vinha espalhando
mais perto, entre o povo, a grande difamação: éramos subversivos,
comunistas, estrangeiros...

“Sinto a tensão ideológica e ascético-sentimental —


19-10 — entre a mansidão e a ira, cada uma — a seu
tempo e em sua dose — evangélica. Este sertão marca
e esquarteja. Espero que a morte converta em amor —
por poder retrospectivo — toda a minha pobre vida.

As advertências chegaram-me por vários caminhos:


Cuidado para não se tornar profeta por vã glória; cuidado
para não se inclinar só a favor de uns; cuidado —
como quem diz — para não se entregar à luta de classes!
... Espero que seja o próprio Espírito de Jesus quem
cuidará de mim. Vou tentar ser-lhe fiel com uma compungida
humildade e com uma liberdade cotidiana e realista.
Minha vocação como homem, como cristão e como
bispo não é a de ‘não me enganar’...”

Dia 30

“Sou bispo desde o dia 23. Minha consagração episcopal


foi na máxima simplicidade e dentro de um realismo
de compromisso e de entrega inevitáveis.

Acompanharam-me muitos amigos. E o Espírito de


Jesus esteve muito presente.

Nem grandes emoções nem temerosas responsabilidades.


Como uma nova confirmação. Como a exigência
suprema.

Sou apóstolo, bispo da Igreja de Jesus. Devo confiar


no Espírito do Senhor Ressuscitado que anima a sua,
Igreja. Devo servir ao Povo de Deus com toda liberdade
e dedicação.”

A ordenação foi à beira do Araguaia anoitecido. Um chapéu


sertanejo e um remo-borduna (caminho, caça e pesca), feito
de pau-brasil pelos índios Tapirapé foram meus emblemas
episcopais, a mitra e o báculo daquela dignidade que tinha de
ser serviço. O anel, cópia do que Paulo VI deu de presèntér
a todos os bispos no Vaticano II e que os amigos da Espanha
me tinham enviado como presente-surpresa, devolvi-o à Espanha
como homenagem filial à minha mãe. Na homilía, umâ
vez mais — mais publicamente, mais definitivamente — fiz minha
opção pelos pobres e oprimidos.

10

A pastoral-denúncia, Uma Igreja da Amazônia... — com


123 páginas de cerrada documentação nunca rebatida — saiu
efetivamente no mesmo dia de minha ordenação episcopal.
Sem furo de imprensa, claro, e sendo logo proibida pelo General
Canepa, diretor nacional da Polícia Federal. Na nota
preliminar, eu justificava a publicação do documento com as
seguintes palavras:

“Depois de três anos de ‘missão’ neste norte do Mato


Grosso, tentando descobrir os sinais do tempo e do lugar,
juntamente com outros sacerdotes, religiosos e leigos, na
palavra, no silêncio, na dor e na vida do Povo, agora,
com motivo de minha consagração episcopal, sinto-me na
necessidade e no dever de como partilhar publicamente,
como que a nível de Igreja Nacional e em termos de
consciência pública, a descoberta angustiosa, premente.

Para dar a conhecer esta Igreja às outras Igrejas-ir-


más, à Igreja. Para pedir e possibilitar, também desde
esta Igreja, uma comunhão maior, uma colegiabilidade
mais real, uma mais decidida corresponsabilidade. Talvez
também para despertar e obter repostas e vocações concretas.
..

Nenhuma Igreja pode viver isolada. Toda Igreja é


universal, na comunhão de uma mesma Esperança e no
serviço comum do amor de Cristo que liberta e salva...
‘Cada parte contribui, com seus dons peculiares, em favor
das demais e da Igreja toda, de modo que o todo e cada
parte crescem por comunicação mútua e pelo esforço comum,
em ordem a alcançar a plenitude na unidade”
(Lumen Gentiwn, vc).

O ‘momento publicitário’ de projetos e realizações


que a Amazônia está vivendo e a opção de prioridade
que a própria Igreja do Brasil fez por ela através
da CNBB justificam também, com nova razão, esta minha
declaração pública.

Se ‘a primeira missão do bispo é a de ser profeta’ e


‘o profeta é aquele que diz o que é verdadeiro diante de
todo um Povo’; se ser bispo é ser a voz dos que não
têm voz (Card. Marty) eu não poderia, honestamente,
permanecer de boca calada ao receber a plenitude do serviço
sacerdotal”.

As reações foram imediatas, no país e no exterior. O Es-


tado de S. Paulo — capitalista, liberal, conservador — dedicou
um editorial de três colunas, de cima a baixo da página, à
“má-fé e demagogia deste bispo”, tachando-me de “delirante
prelado”, “indocumentado”, “homem de má-fé”, “demagogo
farisaico”, “provocador do governo”, “inteligência tão escassa
de acuidade como de escrúpulo”. O Jornal do Brasil, entretanto,
chamou a atenção sobre o alcance da denúncia e a urgência
de averiguá-la. A imprensa do país, em geral, condicionada
pelo regime, me atacou. A imprensa do exterior destacou a
oportunidade e a significação de uma voz da Igreja que se manifestava
num terreno ainda bastante virgem para a opinião
pública. A presidência da cnbb aprovou meu documento e muitos
bispos assim como diferentes comunidades cristãs e grupos
ou individuos comprometidos com a causa social, no Brasil e
no exterior, me manifestaram sua solidariedade.

Creio que a Pastoral foi uma tomada de consciência para


muitos. E um ponto de partida.

Teófilo Cabestrero, no fraterno volume que nos dedicou


nas páginas de sua “Misión Abierta” (Una Iglesm que lucha
contra la injusticia, 1973, Madri,), trouxe abundante documentação
sobre essas reações, como em geral, sobre nossa história,
suas causas e seus ecos.

No dia 5 de novembro, eu escrevia no meu Diário:

“São Félix continua tenso. Por vários motivos. Algumas


reações contra o livro-documento. Acusações aos
Padres. Brigas. Mortes... E uma visita da Polícia Federal
que indagou muito, principalmente para saber coisas
dos padres e professores...”

Benedito Boca-Quente saíra da fazenda Bordon, depois de


pedir a cinco homens que o matassem e sem que ninguém.
graças a Deus, tivesse a suficiente “coragem” homicida. Mais
tarde, soubemos que tinha sido morto em Goiás e eu rezei muitas
vezes por esse companheiro de caminho, desesperado.

No dia 10 de novembro, o povo de Serra Nova cortou a


cerca de arame da fazenda Bordon que o estrangulava. No
dia 12, vieram ao povoado os capitães Moacir e João Evangelista,
tristemente muito conhecidos por nós. Começava o cerco
de investigações, acusações, intervenções policiais e militares,
saques e prisões... Contra a equipe pastoral da Prelazia e contra
o povo indefeso da região.

Em janeiro de 1972 eu tinha ido a Brasília para tentar o


diálogo impossível com as autoridades superiores. Por causa
dos problemas de Santa Teresinha e do P. Jentel com a Codeara
e por causa dos problemas da terra generalizados em nossa
circunscrição.

No dia 20, anoto no Diário:

“Esta manhã, tivemos uma longa hora de entrevista


Dom Ivo (o Secrefário-Geral da cnbb) e eu com o Ministro
da Justiça, Alfredo Buzaid. Em resumo, o ministro
me pediu yma trégua de silêncio. Entrementes ele-
— cabeça-de-ponte do diálogo do governo com a Igreja
oficial? — entraria em contato com os ministros envolvidos
pela problemática da Prelazia (Interior, Agricultura
e Trabalho) e mesmo com a Presidência da República.
Disse que chamará também às falas (será com certeza
a acusação) a Codeara, a Bordon e a Frenova. ‘Depois
— depois do Carnaval, frisa Buzaid — teremos outro
encontro’.

Pede-nos para não esquecermos que nò governo há,


textualmente, ‘católicos, não-católicos, anticatólicos e ma-
çons’. Diz sentir-se sinceramente impressionado por toda
injustiça. Não aceita minha condenação do latifúndio e
defende a tese oficial — mas com reservas —‘O progresso
se impõe e é preciso sacrificar alguém: os menos
possíveis, o menos possível’, diz muito timidamente...
Só reconhece como ‘latifúndio’ o latifúndio ‘improdutivo’.
Eu lhe esclareço que, para o caso, condeno tanto o latifúndio
como o minifundio. E arremato que o que me
preocupa são os homens concretos, as fanrlias tais e
quais ficando sem terra, sem direitos e sem futuro...
Aceitamos a trégua. Rezaremos, abriremos mais ainda
os olhos e o coração e esperaremos que passe o Carnaval.
Depois virá Quaresma, Paixão, a Páscoa.

Em Brasília, uns funcionários do incka tinham contado ao


P. Francisco um incidente pitoresco. O dr. Seixas, um dos donos
da Codeara e vice-presidente da Associação de Empresários
Agropecuários da Amazônia, acabava de lhes pedir apoio para
processar-me como louco...

Em São Félix, nos primeiros dias de fevereiro, tivemos um


cursinho de visão global e programação do trabalho da Prela-
zia, assessorados pela ilustre pedagoga e excelente amiga Maria
Nilde Mascelani, várias vezes processada e presa pela mesma
causa da justiça. Tinham chegado à Prelazia reforços de
padres leigos. Estávamos organizando o trabalho do ano
seguinte.

Nesse cursinho de planejamento, destacamos as seguintes


constantes encontradas na área da Prelazia:

1. Conflito entre latifundiários e posseiros.

2. Falta de atendimento básico aos problemas de saúde.

3. Situação de injustiça trabalhista que afeta a todos

(empregados de todas as categorias: barqueiros,

peões, professores).

4. 'Isolamento: estradas, correio, clima (chuvas).

5. Educação: analfabetismo, semi-analfabetismo. Falta


de preparação dos professores, falta de instrumental,
edifícios etc. Educação formal inadequada à
realidade da região.

6. Interferência monopolizadora da política (sistema


de acordos entre políticos, donos de terra, comerciantes
e outros).

7. Situação dos peões como população flutuante e sistema


de escravização e isolamento dos mesmos.

8. Sobrevivência étnica do índio.

9. Comércio monopolizador.

10. Retirantismo (sistema migratório permanente).

11. Índice elevado de irregularidade familiar e prostituição.

12. Passividade e espírito fatalista.

13. Inexistência do lazer.


14. Agricultura de subsistência, em grau mínimo.
15. Predomínio de crenças (crendices) e superstições
(Religiosidade versus Fé).

16. Padrões de conduta predominante no povo: vingança,


violência, valentia, embriaguez, indolência, prostituição.

17. Falta de mercado de trabalho: desemprego e sub-


emprego.

18. Peculiaridades culturais (linguagem, etc.).

19. Falta de infra-estrutura de est mulo cultural e pastoral.

20. Política atual do governo continuamente ameaçadora


para a sobrevivência e futuro do povo da região.

21. Grupo de trabalho vindo de fora e sua acu! tur ação.

A partir desses problemas analisados, estabelecíamos logicamente


as prioridades globais, formulávamos os programas e explicitávamos
o objetivo geral de “desenvolver um processo de
luta permanente para a libertação do homem e para o estabelecimento
das relações de Justiça” dentro do espírito e dos meios
de uma Igreja local.

Enquanto se atrasava ,o encontro com Dom Ivo e o ministro


Buza d, nascia em Goiânia, por esses dias, a idéia de um
grupo-não-grupo de bispos, sem pretensões e sem eufemismos,
comprometidos numa mesma linha pastoral, do qual sairiam
várias iniciativas — documentos, atitudes intervenções — realmente
significativas para a Igreja do Brasil, estes últimos três
anos.

11

Á Codeara, depois de seis anos de agressões e ‘mpcrtinên-


cias conria os posseiros do lugar, acabava de destruir com seu
trator o ambulatório oue a Missão estava construindo em Santa
Teresinha. E o P. Jentel veio encontrar-se comigo em
Goiânia, para me contar o novo cinismo e pedir nrnha opmião.
Eü 'me nemiei redondamente a ulteriores e infrutíferos recursos
às autoridades. Tínhamos emcado uma rec’amarão ao Juiz
de Direito da Comarca e isto (embora inútil) bastava. O
P. Francisco, sempre legalista, sentiu-se violentado. Eu deixei
que optasse. Finalmente concordou e voltou a Santa Teresinha
para retomar as obras do ambulatório...

Por essa época, um teólogo “oficial” da cnbb dizia no Rio


a um grupo de secretários dos Regionais da mesma cnbb que
eu ia “entrar numa fria” com a Santa Sé, por causa de algumas
expressões do meu documento e porque, além disso, “já
se sabia que a Pastoral tinha sido escrita por um grupo esquerdista
de São Paulo”.

Crescia a amargura e a tensão.

“São José — 19-3-72 — Brasília. Outra Brasília: a


das estruturas quadradas; ante-salas, audiências, mentiras.
Faz duas semanas que estou aqui.

No dia 3, à tarde, ante uma nova tentativa de invasão


e destruição — pela Codeara e pela polícia estadual
— um grupo de posseiros defendeu o ambulatório
de Santa Teresinha e sua própria liberdade a tiros...
Houve uns oito feridos entre os jagunços da Codeara. Faz
uns 15 dias que vão e vêm os ‘disse-que-disse’ na imprensa,
nos ministérios, nas viagens. A repressão do poder
(econômico, político, policial, militar) tem sido cínica. Há
cinco inocentes de Santa Teresinha presos em Cuiabá e 30'
ou 40 posseiros ‘largados’ por essas matas...

Quinze dias de Quaresma real. Entre a ira e a Oração.


Na Paixão do Povo. Sob a dura e luminosa Esperança
do Libertador Jesus.

Tenho aprendido muitas coisas de Política e de


Igreja.

O regime do Brasil é um esquema nazista de terror.


Os poderes econômicos impõem a lei e amordaçam a
justiça”.

Dia 21

“Brasília ainda! Ontem à noite chegou a cúpula da


cnbb. Vem principalmente por causa do assunto de Santa
Teresinha. Estão preocupados e se oferecem para o que
seja preciso ‘sempre — sublinha hoje Dom Aloísio, com
amargura — dentro dos meios de que dispomos’...

Na sexta-feira tive uma entrevista rasgada com Bu-


zaid. Diante de seu enjoativo cinismo, neguei-me a aceitar
o café que me oferecia como me neguei a aceitar
novos prazos e outras mentirosas mediações. No domin-
go, falei por telefone com o governador em Cuiabá,
sr. José Fragelli; este se manifestou agressivo: ‘Não abrirei
mão. Considero os posseiros de Santa Teresinha criminosos
comuns e asseguro que se o P. Jeníel aparecer
por Cuiabá darei ordem de prisão contra ele que é o
autor intelectual do crime’. Eu lhe respondi que o autor
sou eu mesmo e não o P. Francisco; que eu assumi e
assumo toda a responsabilidade do acontecido em Santa
Teresinha, por parte da Missão e dos posseiros...”

Abril, dia 6. “Passei uns dias em Santa Teresinha e visitei


os posseiros escondidos na mata. E colhi arroz quase
simbolicamente.”

Foi naquela circunstância que nasceu este poema:

Canção da Foice e do Feixe

Com um calo por anel


Monsenhor cortava arroz
Monsenhor “martelo
E foice”?

Me chamarão subversivo
E eu lhes direi: O sou.

Por meu povo em luta, vivo


Com meu povo em marcha, vou.

Tenho fé de guerrilheiro
e amor de revolução.

E entre Evange'ho e canção


sofro e digo quanto quero.

Se escandalizo, primeiro
queimei o próprio coração
ao fogo desta Paixão
crua do Seu mesmo madeiro.

Incito à subversão

contra o Poder e o Dinheiro.

Quero subverter a lei

que perverte o Povo em grei

e o Governo em Carniceiro.

(Meu Pastor se fez Cordeiro


Servidor se fez meu Rei.)
Creio na Internacional
das frontes levantadas
da voz de igual para igual
e as mãos entrelaçadas...

E chamo a Ordem de mal


e o progresso de mentira.
Tenho menos paz que ira
Tenho mais amor que paz.

... Creio na foice e no feixe


destas espigas caídas:

Uma Morte e tantas vidas!


Creio nesta foice que avança
— sob este sol sem disfarce
e na comum Esperança —
tão encurvada e tenaz!

“A Codeara — à sombra complacente da polícia estadual


— continua aborrecendo. Faz quinze dias, levantou
uma guarita de controle e passou uma corrente na
estrada pública que vai para as roças dos posseiros. Ali
então pede o nome de todos os que transitam. E impediu
a parsaçem do carro que nos levava. Um pequeno muro
de Berlim na floresta: ‘O colchete da vergonha’...”

Na Qu:nfa-Feira Santa concelebramos em Santa Teresinha,


Canuto e eu (O P. Antonio Canuto substituíra o P. Jentel que
teve de sair de Santa Teresinha na mesma noite do dia 3 para
me ajudar a mover as molas da cnbb e da imprensa em Brasília
e no Rio.) Estavam também conosco as irmãzinhas. Foi
uma Eucaristia muito real.

Há cinco moradores de Santa Teresinha presos em Cuiabá,


como reféns, v'timas da raiva do latifúndio, do Governador e
da po’ cia. E mais de 30 homens escondidos por aqueles arrozais
e f orestas; com água até os joelhos e naquele clima de perseguição,
a imagem de um Vietnam caseiro estala violentamente
na ían'asia...

Pedrito está em Goiânia, em Bras'lia. E continua ali o


P. Francisco. Ainda não chegou a Irmã Maria de Lurdes que
foi mandada a Cuiabá para ter notícias dos presos. E temos
de tomar uma decisão rápida sobre a sorte dos posseiros da
mata.

Ontem chegaram de teco-teco Teresinha e Tadeu com a


mulher de Maroto que está preso. Ela foi operada ¡mediatamente
e deu à luz urna menina. A criança nasceu com um
defeito na boca mas está viva e se curará. É a quarta flor da
liberdade de Santa Teresinha.

Eu dizia estes dias que o 3 de março, o dia da defesa do


ambulatório, deveria ser como uma espécie de comemoração
da “independência do sertão”; nossa pequena primavera de
Praga; uma data de Libertação pascal.

Chegam cartas e adesões. E continua a Esperança, vitoriosa,


sobre a angústia e as humanas desesperanças. Não nos têm
faltado incompreensões e bofetadas. A nota oficial da cúpula
da cnbb por exempto. (De faio, a nota que a gnbb publicou,
por causa de sua grande prudência, devida a desacordo interno
de critérios, acaba por ser ambígua e nos deixava num certo
desamparo oficial.)

Naquele mesmo dia 6 de abril, eu acrescentava:

“É preciso ser duro, sem perder nunca a ternura, dizia


o Che. É preciso lutar sem ódio, amar o inimigo,
fazer a guerra em paz, diz o Senhor. As iras, as armas
inclusive, o sangue, as repressões e agressões destes dias
me chamam a uma maior compreensão, a uma caridade
apesar-de-tudo, à Paz de Cristo, no final das contas. Talvez
o limite a que chegamos — como todo limite — seja
uma boa lição espontânea. O que não significará, de
modo algum, nem marcha à ré nem menos ainda acordo:
‘Não vim trazer a paz mas a guerra’. ‘Minha paz lhes
deixo... não como o mundo a dá.’ ‘A Paz da Páscoa.’ ”

Dia 8

“Precisamos tomar uma decisão tanto em relação a


esses cinco presos de Cuiabá como em relação aos posseiros
fugidos por estas matas. Hoje de manhã acordei cedi-
nho como que sobressaltado pela situação desses homens
do nosso Povo. A Liberdade se paga caro! ‘Quan’o mais
se sacodem as forças do dinheiro e do poder oligárquico
— liamos ontem em não sei que revista —, mais claramente
se sente sua prepotência avassaladora’...”
Dia 14

“Estou em Santa Teresinha, faz uma semana. Cortei


arroz. Tenho andado bastante por caminhos e mata e arrozais.
Tivemos encontros com os posseiros fugidos e
suas famílias. Ontem à noite e hoje de manhãzinha tive
missa no Tapirapé. Depois de vários dias sem celebrar
missa, estava com fome de Eucaristia.

Altair (um leigo da equipe que trabalhava em Porto


Alegre — um povoado quase nas nascentes do rio Tapirapé
— e em Santa Teresinha) está preso no cubículo da
delegacia daqui. Faz sete dias... A Codeara continua
impertinente: fechou as duas saídas do povoado. Não
temos nenhuma novidade de Brasília. Francisco continua
por lá. Não se pode esperar nada, a não ser o que venha
da união e teimosia do Povo. A força da desesperada
Esperança dos pobres!

Nasceu a ‘Igreja da mata’. Deus a tenha na palma


de suas mãos!”

Dia 17

“Ontem foi o domingo do doce. Pandadas de doce


de mamão e abóbora. Com as mulheres e os filhinhos
dos posseiros e missa no ‘Antonio Grosso’. E missa depois
na ‘roça grande’ com os homens fugidos... O altar
foi um toco queimado, uma espingarda apoiada nele e a
mochila de um dos posseiros pendurada. Entardecia. E
o Evangelho era sobre os dois de Emaús. Aqueles homens
perseguidos — meio famélicos, meio angustiados,
muito sofridos — escutavam abismados.

A irmã Beatriz os vacinou contra o tétano.

Rimos todos um pouco, relaxando-nos.

O crepúsculo bordava de grossa luz âmbar as grandes


nuvens precursoras, infladas por detrás da alta floresta
compacta.

Diz hoje o Salmo 83: ‘Felizes aqueles de quem Tu és


a força pois se decidem a tomar o caminho. Quando
atravessam o vale da sede, convertem-no em manancial’...
E S. Tiago aconselha na lição: ‘Falai e procedei
como quem deve ser julgado pela lei da liberdade’...”

No dia 27, “da Virgem de Montserrat, eu dedicava


uma lembrança à minha mãe, pedindo para ela ‘la liber-
lad d’esperit, la força de 1’Esperança, el sentit de la co-
munió i de la corresponsabilitat eclesial’... (Quando
falo dos meus, de casa, o Diário se me faz catalão).

O P. Francisco tem sobre sua cabeça o decreto de


expulsão. Andei pelo sni, Pol'cia Federal, Embaixada
Francesa, Nunciatura, etc... A diplomacia não coincide
com o Evangelho. E a Política não diz a Verdade nem
serve à Justiça”.

Dia 28: Continuo em Goiânia. Com febre. Pontin

(outro rapaz colaborador) está com a primeira malária


no Hospital das Clínicas...”

Já era maio. Voltei a Santa Teresinha e fui de teco-teco a


Porto Alegre, na cabeceira do Tapirapé. O presidente do incra
tinha espado incógnito, com sua mulher, em Santa Teresinha e,
em princípio, o estrito problema das terras parecia resolvido.
Cada posseiro receberia os 100 hectares estipulados para esta
região, a partir do decreto presidencial de 7 de abril, criado
precisamente por causa do conflito Santa Teresinha-Codeara.
(Mas quando escrevo estas linhas ainda não está tão claro para
todos os posseiros do lugar a consecução dos seus direitos...)
Em todo caso, o problema da perseguição dos “foragidos” e a
tentativa de expulsão do Francisco estavam em outras mãos:
nas férreas mãos arbitrárias, onipotentes, da Segurança Nacional.
O “inquérito de expulsão” do P. Francisco Jentel, que ele
e eu acompanhamos muito de perto, respondendo às acusações
e tentando criar opinião pública na medida em que se
conseguia burlar a Censura oficial, estava sendo uma verdadeira
“farsa”.

No dia 19 de maio, escrevi:

“Altair continua preso em Cuiabá. Rosa e Chico,


ainda que distantes, já estão a salvo”.

Rosa e. Chico eram um jovem casal que trabalhava em


Santa Teresinha e que, em tempo, graças a Deus, tiveram de
fugir da Missão e do Brasil. E continuam fugidos, suportando
muitos tipos de sofrimento, na condição de exiladas e trabalhando
generosamente na causa dos oprimidos...

“Nossa pequena Igreja está sendo perseguida e sofre


pelo Evangelho da Justiça que é sem dúvida — também,
pelo menos — o Evangelho de Jesus.”

Junho, dia 3

“Estou de novo em Santa Teresinha. Acabando de


viver um novo episódio de arbitrariedade.

Dom Tomás, Francisco e eu fomos a Santarém de


teco-teco. Uma surpreendente viagem sobre a Amazônia:
nuvens e mata virgem. A descoberta inesperada do Xingu
e depois, já em Santarém, o Tapajós e o grande Amazonas,
numa baía fluvial que é, afinal, todo um senhor
pedaço de mar! De regresso — umas poucas horas à noite
e de manhãzinha — conheci Belém e suas grandes
águas.

Perdemo-nos — de Marabá a Altamira — naquela


imensidão de floresta compacta. (Chovia cerrado. Tomás,
o piloto, suava. Os três sentíamos toda a inevitável
perspectiva daquelas duas leves asas sobre o abismo de
nuvens e florestas.)

Pará, nos seus tipos humanos, é característicamente


nativo. Os índios não morreram ali...

Em Santarém, durante sete dias, tivemos encontro de


Pastoral: os Regionais da cnbb Norte I e Norte II e
alguns representantes do resto da Amazônia legal. Bom
aquele encontro, embora discreto de visão e de arrancada.
Foi uma ótima oportunidade de conhecer de perto
a natureza e a hierarquia da Amazônia pura.

(Durante o encontro de Pastoral sobre a Amazônia,


em Santarém, tínhamos escutado pelo rádio o pronunciamento
do ministro da Justiça, dr. Buzaid, anunciando a
expulsão do P. Jentel. Era já então fato concreto que
depois teve que ser revisado por causa da pressão da
opinião pública sobretudo internacional.)

...Quando chegamos a Santa Teresinha, a inevitável


Codeara e sua polícia comprada estavam nos esperando.
Quiseram pegar o P. Francisco, detiveram o avião de
Dom Tomás e tivemos de planejar, responder, superar
uma nova ira, com certa coragem e paz...
Enquanto Dom Tomás conseguia sair para celebrai
missa na aldeia Tapirapé (para as Irmãzinhas de Fou-
cault), Francisco, Canuto e eu celebramos no ‘morro’ (o
morro de Santa Teresinha onde os Dominicanos da Pre-
lazia de Conceição do Araguaia construíram por volta dos
anos 30, a igreja ‘paroquial’ sólida e sóbria, dedicada à
santa missionária de Lisieux). Com muito povo. Com
uma clara e tensa alegria. O texto da Liturgia da Palavra
foi o capítulo 10 de Mateus: ‘Olhem que eu envio
vocês... Não tenham medo deles... Pois todo aquele
que se declare por mim diante dos homens’...”

Dia 9

“Festa do Coração de Jesus. Atual ou não o título,


por causa das ‘más’ lembranças, a verdade é eternamente
atual: o amor de Deus em Jesus Cristo o
‘homem que, a partir do amor do Pai, existe para os
outros homens’...

Fui a Campo Grande, a capital econômica do Mato Grosso,


sede da Auditoria Militar, onde se ventilava o futuro dos
nossos 40 “foragidos” e onde seria julgado e condenado, mais
tarde, o P. Jentel.

“Falei com o Juiz-Auditor — dia 17 — e com o


advogado com quem Francisco conversou. O processo foi
adiado para o dia 3 de julho. Queriam pegar Francisco
aqui, de surpresa, é o que parece. (Quiseram pegá-lo, de
surpresa, em Campo Grande ou em São Félix ou em Santa
Teresinha ou em Goiânia ou em Brasília ou no Rio
ou em São Paulo... Em todos esses lugares a polícia
andou, no mesmo dia, atrás de suas pegadas.) O coronel
Ivo de Albuquerque, secretário de Segurança do Estado
continua furibundo e com fome de ‘padres’ de São
Félix. Sofre de ‘segurancite aguda’ e é preciso perdoá-lo
e fugir dele ao mesmo tempo.”

Dia 22

“Barra do Garças. Poeira. Gerentes e Bancos e Armazéns.


E aquela alergia à Barra política politiqueira.

ót
Passei por Rondonópolis e Cuiabá e visitamos, com Dom
Osório — bispo de Rondonópolis, muito presí ativo — o
General (aposentado) novo secretário de Segurança Pública
do Estado do Mato Grosso e o dr. Saavedra do
iNCRA. De claro, nada. De qualquer maneira, não haverá
desapropriação de fazendas. Impõe-se a filosofia neo-
capitalista do regime. Os pobres serão atendidos com migalhas
de esmola benevolente...

Semana passada, houve um exercício militar e de


‘alerta’ em Santa Teresinha. Esse negócio de ‘alerta’ é
palavra do velho general da Segurança Pública.

Sairei para São Félix amanhã à tarde. O ônibus que


nos trouxe de Cuiabá nos deixou ‘de castigo’ desde as
quatro da madrugada até às duas da tarde. Com isso,
perdi o ônibus de São Félix.

Um encontro geográfico-cordial: de Rondonópolis a


Cuiabá, passei pelo ‘Chapadão de São Vicen'e’ onde
nasce nosso rio das Mortes. E em Cuiabá — àinda ingênua
a cidade-construção — encontrei-me de novo com
alguns restos, poucos, da época colonial. A Igreja do
Rosário, dos jesuítas, branca e marrom-avermelhada, simples
e limpa de armação externa, é uma bela estampa do
passado (talvez menos belo). ... Paulo VI — na men

sagem que dirigiu a toda a Igreja nas vésperas do Dia


Mundial de Oração pelas Vocações — definiu assim a
vocação sacerdotal: ‘Um compromisso que exige disponibilidade,
uma atitude interior e um risco, uma ruptura
com qualquer projeto futuro de esperança humana’.”

No dia 10 de julho foi ordenado sacerdote Eugenio Con-


Soli, o segundo sacerdote que se ordenava na Prelazia, o primeiro
que eu ordenava. Antes, eu tinha feho ao povo um
comunicado dessa ordenação com uma — digamos — Carta
Pastoral Sertaneja.

A ordenação foi no rancho de palha do posseiro Silvano,


na beira da estrada de São Félix a Barra do Garças. Eugênio
ia ser o “padre da estrada”. Aquela foi a liturgia mais eufóricamente
comunitária que celebramos na nossa igreja. Veio o
povo dos arredores, a pé, a cavalo, em colorida multidão. Falamos,
rezamos, cantamos à vontade. Lulú tinha dependurado
um ramo de feijão na cruz de madeira queimada que presidia
a reunião “porque o sertanejo sabe quanto lhe custa colher
uns feijões”... Eugênio, seus pais, seus companheiros, eu, o
povo, dissemos o que entendíamos daquele acontecimento, por
que queríamos Eugênio sacerdote ali e naquela hora.

12

Julho ainda.

Dia 18. “Acabo de ler — neste pátio cálido, ventilado


e luminoso de azul,da nossa casa de São Félix — o volume
autobiográfico de José Maria González Ruiz, em O
Credo que tem dado sentido à minha vida. Um itinerário
de rebeldia e fidelidade, biblicamente lúcido, humanamente
realista e conseqüente com a vida cotidiana, com
o passo e o peso da História. Um cristão de cabeça e de
coragem, admirável González Ruiz! ‘Deus é gratuito, não
é porém supérfluo’, ‘Deus está na base’. ‘Crer é se comprometer’...
Pode-se desafiar simples e jubilosamente —
a partir da Esperança gratuita — toda ideologia, todo pessimismo,
toda opressão, todo futuro...

Estou usando óculos novos. Fiquei mais mrope. (Agora


tenho cataratas já bem adiantadas no olho esquerdo
que terei de operar este ano.) É uma caducidade natural.
É preciso habituar-se a olhar mais a fundo e a pensar
mais no já visto. E a escutar, a ver com os ouvidos!...

A esperança, a certa altura da vida, cozinha-se lenta


e olorosa como um pão.”

Dia 21. “Ontem à noite, na aldeia Tapirapé, depois


de uma missa muito participada (as irmãzinhas Abigail e
Genoveva, Eugênio, Pontin, Jean Loup, Matos e eu), entre
‘ruanã’ e serão, debaixo da lua crescente, tivemos uns
bons ‘papos’... Os novos intentos da funai estão criando
um clima de tensão na aldeia. A funai quer construir
não sei que casas e uma fábrica de ‘doce de banana’
(!?)... Quer afastar da aldeia tudo o que seja Missão?
As próprias irmãzinhas constatam que o chefe do
posto ‘prescinde’ delas... Os índ;os comentam inclusive
boatos de ameaças da polícia... Um dos donos da Tapi-
raguaia (fazenda limítrofe com os Tapirapé) esteve ali
ontem e visitou a roça e, no posto, falou de não
sei que demarcações que estariam sendo encaminhadas
em Brasília...

Agosto. Dia 5. “Vindo pela estrada de Barra, senti


de novo como proliferam as fazendas, com que pressa.
Cercam tudo, invadem tudo. Contaram-me que o fazendeiro
Halim (?) de Anápolis estaria cortando, a 2 km da
aldeia, a terra dos índios Xavantes de Posto Pimentel
Barbosa...

... Comecei a leitura da Homenaje a los indios ame-


ricanos de Ernesto Cardenal. Profético, telúrico, um livro
de História viva e acusadora.

Dói-me a vista. E estou abatido — contidamente —


por várias amarguras e preocupações interferidas, acumuladas
...”

Dia 12. “Passei três dias na aldeia Tapirapé com as


irmãzinhas e com o Moura e lida que estão preparando
o ‘primeiro curso’ para os índios Tapirapé. Luís e Eunice
— e o seu filhinho que está para nascer — serão os ‘professores’
em 1973.

... O Coronel Clóvis do incra e dois topógrafos estiveram


aqui na aldeia com Canuto procurando-me. Nós
estávamos na roça a 22 km. O coronel — e o sempre
ambíguo dr. Peixoto — estão ‘ofendidos’... Não podemos
concordar com a demarcação por eles indicada para os
posseiros de Santa Teresinha que não resolve o problema
do Povo”...

Dia 17. “Um peão já acordando de sua bebedeira


acaba de tomar um chá. Sente dor no fígado. ‘Fazia três
meses que não bebia’, diz-me o coitado. Esta manhã me
encontrou na rua, perto do cemitério e me perguntou
por uns companheiros seus e me contou o mesmo que
nos vêm contando estes dias os 200 peões do Piauí trazidos
e enganados pela Codeara.

Ontem de noite chegaram sete aqui em casa. Três


deles correndo, fugindo dos tiros do ‘gato’ (capataz) Cascavel
e das brutalidades de Ubirajara, ambos acompanhados
pela polícia... Os sete comeram e dormiram aqui e
esperam a noite para fugir pela Ilha, até a Belém-Bra-
sílía: 40 léguas, 240 km a pé... O pai e sogro de dois
deles — um velho com hérnia e 72 anos — está no
ambulatorio, esperando a repetida, falsa promessa do
funcionário Décio... ou nossa benfeitora, ‘paternalista’
solução...

O pobre peão bêbado respondia muito nobremente:


‘Bebo por mágoa. A gente acha que bebendo esquece as
mágoas’...

Acabam de chegar outros três peões que querem fugir


também...

...A paz só é válida na Verdade e na Justiça. Toda


outra paz é mentira, hipócrita exploração (ou covarde
conivência). Quando Cristo dava sua Paz, acentuando
que não era ‘como o mundo a dá’ queria sem dúvida
dizer alguma coisa...!”

Dia 18. “Falamos, Canuto e eu, de reformas pastorais.


Falamos sobre os casamentos que seriam nulos (por
falta de maturidade psicológica, pelas mptivações externas
que os forçaram). Outra vez o problema básico e sempre
por resolver da Pastoral dos Sacramentos.

O que decidir? Vamos dá-los, sem tantos escrúpulos


jurídicos ou vamos prescindir deles — por lógica e honestidade
— visto que o povo não está preparado e não necessita
assim ‘tão fatalmente’ dos sacramentos?

A realidade está aí: uma quase totalidade de batizados;


uma quase maioria ignorante, ‘neutra’, ‘incapaz’ hic
et nunc (aqui e agora) da Eucaristia?... (Incapaz por
que critérios? Os sacramentos serão para os homens já
‘comprovadamente capazes’?”

Dia 19. “P. Francisco sai para Brasília, Campo Grande


etc. Um pouco nervoso ainda. Antes, celebramos antecipadamente
seus 50 anos — seria dia 29 deste — com
comida e bolo. Com gozações e verdades: Codeara,
Cooperativa, fugas, ‘politesse’ e diplomacia, relatórios e
denúncias, motores... É um menino-grande esse Francisco
lutador!

... O cansaço e o medo e a contemporização se tornam


facilmente prudência e estratégia.
A causa da justiça é incansavelmente teimosa, astutamente
lúcida, conseqüente em tudo até o fim. Como o
amor. Por amor prático aos irmãos concretos (que são
os únicos que existem).

A jusíiça não existe. Existem suas causas e suas vítimas.


Os justos. Os injustiçados e oprimidos. E o
Justo!

Ontem ‘defendi’ minha velha amizade com Teresa


Lisieux. Alegro-me de encontrá-la permanentemente em
minha vida. Como uma irmã mais velha e já feliz. Posso
contar com ela. Com suas ‘rosas’ nada fáceis e com
o conselho cru e limpo de sua vida. Obrigado, menina!
Só se caminha em companhia. Só se vive humanamente,
cristãmente em amizade.”

Dia 21. “Amanhã, ainda, é a festa do Coração de


Maria. Estou vislumbrando uma nova perspectiva da Verdade
de Maria, uma nova fase de minha fé nela e de
minha ternura por ela: a Virgem do Magníficat, a cantora
(profetiza, exemplo e garantia) dos Pobre de Jahvé.
A Virgem (‘contradita’ em cruz) da Libertação Redentora.
Em definitivo, Nossa Senhora da Páscoa!”

Setembro, dia 13. “No Rio e em São Paulo, o grupo-


não-grupo. aqueles bispos que pretendemos comprometernos
particularmente com a realidade da Igreja e do País,
tivemos três encontros.

Nesta última viagem tive vários contactos impressionantes.


Há muita boa vontade perseguida, marginalizada,
à espera de um amanhã melhor, construindo-o às apalpadelas,
com dor e sangue.

Vi Frei Caneca, um teatro atuab'ssimo: ‘Quem beber


da água das minhas canecas fica para sempre com sede
de liberdade’.”

Dia 18. “Ontem morreram de desastre de caminhão


dois homens a uma légua de São Félix. Visitei duas vezes
o hospital. As fazendas exibem nele, mesclada dolorosamente,
sua dialética de opressão e escravidão: peões e
subgerentes ou capatazes feridos, doentes, igualados na
sofrida condição humana.
Andei por essas ruas de São Félix e numa tarde de
domingo. Que faremos com esse Povo tão misturado
(prostitutas, peões, bêbados, pobres de toda espécie, exploradores,
crianças inermes, doentes, desempregados)?”

Dia 25. “Chegaram um general, o Coronel Rama-


lho — a quem Deus perdoe! —, quatro caminhões do
Exército e dois jipes. Soldados, armas, munições. Vêm
procurar terroristas, vêm fazer ‘pesquisas’?!

O coronel interpelou a vários de nossa casa em termos


grosseiros, idiotas. A mim, por exemplo: ‘Se ouvi
falar de Rio de Janeiro’, ‘se estou assustado’, ‘se gosto do
exército’... E tratou-me logo de início por tu e pelo
nome simplesmente, sem rodeios. Requisitaram uma sala
do Ginásio e dão doces e bobaginhas para as crianças.

Eugênio chegou doente de Serra Nova. Talvez insolação,


infecção intestinal...

Anteontem, foi inaugurada a luz elétrica em São Félix.


(Para as ruas importantes, claro.) E estes dias estiveram
aqui os três candidatos a prefeito, com seus adjuntos
e carros e fátua exibição...

Anteontem, o secretário estadual de Saúde fechou


nosso ambulatório e abriu oficialmente, um ‘posto de
saúde’.”

Dia 30. “Muito calor, estes dias. Mais do que nos


outros anos? Como as penas atuais, o calor presente sempre
parece maior, inédito.

Os militares contmuam em São Félix, Santa Teresi-


nha, Luciara, Xavantina, Bandeirantes. Estamos bem
acompanhados.

O coronel falou comigo, conosco, várias vezes. Já


bem mais manso. E ele e seus companheiros puderam
ver e ouvir muita realidade que desconheciam. Outro dia,
o coronel me dizia que tinha muito más informações sobre
mim. Depois disse que ‘o bispo lhe está sendo muito
simpático’, que ele ‘gosta do bispo’ por mais que o bispo
pareça não gostar dele.

Eles fazem força para dizer e mostrar que estão aqui


para ajudar, para fazer umas leves pesquisas. Sabemos
que na realidade estão buscando fantasmas: terroristas.
guerri'heiros, subversivos. E que toda esta área está sendo
‘enquadrada’ no férreo esquema da ‘Segurança Nacional’.

No sul do Pará, faz meses que de fato fervem as guerrilhas.


No mais total silêncio da imprensa, naturalmente.
E se distribuiu no País clandestinamente urna carta dos
guerrilheiros tão objetiva na descrição dos meios sociais
deste interior amazónico que nenhuma pessoa lúcida poderia
rejeitá-la passivamente.

... Tive que ir urgentemente a Pontinópolis para prevenir


o povo contra os sofismas do politiqueiro Verjão que
vinha prometendo terras. O povo soube responder à propaganda
eleitoral com um nobre ceticismo...

Chega-nos a notícia atrasada de uma visita do Papa


ao túmulo de S. Celestino. Paulo VI irá renunciar? Seria
um belo gesto, um exemplo.

Dia 2. Outubro. “Cada vez mais se perfila a urgência


de ter alguém fixo em cada lugar, uma pequena co-
munidade-fermento.”

Dia 9. “De Goiânia, Manuel passou uma mensagem


pelo rádio, reclamando a presença do P. Francisco em
Campo Grande. Não sei que novos rumos pode significar
essa convocação imprevista.

Em Santa Teresinha, havia quatro generais (quatro!)


no dia da ‘festa’. Entre eles, o perigoso comandante do
II Exército de São Paulo, Humberto de Sousa Melo. Obrigaram
o prefeito Liton a retratar o decreto de desapropriação
da área urbana...

O exército, como supúnhamos, veio efetivamente em


exercício antiguerrilha. E o capitão João Evangelista,
cínico e vendido, aproveitou a ocasião para novamente
fazer intrigas contra mim, no que se refere ao conflito
posseiros-laíifúndio.

‘Já’ é ‘inverno’. Tenho quase um ano de bispo.”

13

Dia 21. “Em Porto Alegre, há 5 ou 6 dias, os posseiros


cortaram o arame nos ‘bebedouros’ do gado e na
estrada pública do lugar, depois de avisar inúmeras vezes
e depois de suportar infinitas humilhações do gerente
Plínio, do ‘empreiteiro’ Zé Benz, do prefeito Liton, da
polícia, do dono dr. Meirelles... Hoje, cedinho, o Zé
Benz levou dois policiais para a Frenova.

Se um dia o nome de Meirelles pôde ser escrito na


lista dos que defendiam ‘O Cristo do Povo’ (no livro de
Márcio Moreira Alves), hoje é preciso citá-lo na lista
daqueles que vendem esse Cristo. Uma vez mais, o dinheiro
e o poder vendem o Senhor.”

Dia 24. “A fazenda Frenova levou a polícia de Barra


a Porto Alegre e foram por ela intimados cinco homens
do lugar. Escrevi uma carta de reclamação ao capitão
Moacir. E não sabemos ainda o resultado. Envio cópia
da carta, com respectiva carta adjunta, a várias altas autoridades
estaduais, federais e eclesiásticas.

(Enquanto escrevo estas linhas — dia 21 de abril de 1975 —


chega-me a visita do dr. Medeiros — dono da Frenova e de
outras várias grandes fazendas nesta região e um dos quatro
diretores da Associação dos Empresários Agropecuários da
Amazônia — acompanhado de um catedrático em recursos de
alimentação de Massachusetts. O dr. Medeiros pretende minha
bênção para o projeto da fazenda de criar uma cidade em Porto
Alegre, transformando em bairro da mesma o atual povoado
e, possivelmente, em peões da fazenda os seus moradores. Eu
lhe explico que o projeto é ambíguo e que, em todo caso, não
sou eu mas o povo quem tem de decidir. A perspectiva, no
entanto, é horrível. Por Porto Alegre vai passar — já está
armado o esqueleto da ponte sobre o rio Tapirapé — a grande
estrada da ‘Integração Pecuária’, ligando Mato Grosso com o
Pará...’.”

Novembro. Dia 1. “Todos os Santos. A humanidade


que Deus quis. Os que responderam a Cristo. O mundo
livre e feliz. A História dos homens encaixada na História
do amor de Deus. O céu no céu. O céu já na terra.”

Nos dias 28 e 29 tivemos o primeiro Encontro de líderes


das futuras comunidades de base da Prelazia. No sertão de
Pontinópolis. Uma interessante experiência de convivência livre.
fraterna, simples. Ponto de partida para a reflexão foi o texto
evangélico da parábola do Banquete de Bodas... O Reino dos
Céus estava já na terra e todos éramos convidados para
construí-lo.

Um fato pitoresco. Hoje se reuniram o médico dr. Jamil.


o Seixas da Codeara, Zé Benz da Frenova e um suposto elemento
do deops para apresentar seus respeitos e oferecer seus
veículos a um “amigo” de Curitiba que os padres de lá recomendaram
e que pretendia trabalhar aqui conosco. Falaram
mal do bispo, dos padres, do pessoal da Prelazia. Convencidos
de que o fulano era um elemento da Polícia Federal. Ninguém
sabe mais quem é quem...

Dia 12. “Ontem passamos o dia na aldeia Tapirapé,


fazendo uma revisão pessoal e comunitária da Fé. Todo
o grupo de Santa Teresinha, as irmãzinhas e eu.

Esses jovens viveram, vivem em parte sua crise de Fé.


Lógica e benfazeja. O compromisso humano, a realidade
temporal, os purificam de todo angelismo. A sinceridade
e o generoso entusiasmo com que trabalham por seu próximo
(o próximo é um sacramento super-eficaz) os aproximam
inevitavelmente de Jesus Cristo, o Senhor.”

Dia 16. “Quando chegamos a São Félix, dia 13, o


suposto amigo de Curitiba, Ailson, acabou de abrir o seu
jogo sujo: trata-se do capitão Ailson Munhoz da Rocha
Lopes, do ‘Comando de Repressão da Amazônia’. Veio
infiltra-se na nossa casa porque eles — os militares, o
governo, os grupos econômicos, o diabo e não sei mais
o que — estavam convencidos de que nós éramos um foco
de subversão e guerrilha.

Ele, fingindo-se dirigido espiritual e futura vocação


missionária, arrancou uma carta de apresentação do
P. V..., claretiano. de Curitiba. E conseguiu morar na
nossa casa a seu belprazer; se bem que nós desconfiássemos
de sua identidade.

Anunciou novos controles e nos ‘preveniu’ contra


represálias e julgamentos... De Porto Alegre em luta
com a Frenova fez um foco de suspeitas: teria detido ali
um ex-guerrilheiro do Vale da Ribeira — um dos que
lhe haviam arrancado as unhas naquelas guerrilhas! —
e identificou um ‘peão’ desconhecido do povo como pro-
vável incitador que teria em seu poder grande quantidade
de cianureto e uma mulher clara, diferente, como a im-
prescindvel ‘loura’ de todas as ações subversivas...

Reconheceu arrogantemente que eles, os militares,


são os donos do poder e que ‘vão mandar cada vez mais’.
‘O fim — repeliu cinicamente — justifica os meios.’ Al-
tair, o abnegado professor de Porto Alegre, teve que desaparecer
mais uma vez.

‘Ontem à noite ficamos todos com a cabeça rodando.


O Senhor nos conserve concentrada a Esperança. O povo
está, com razão, desconcertado. Afinal, quem somos
nós?’ ”

Dia 17. “Leio umas páginas magnificas de Boros


sobre a Esperança, a morte, a ressurreição. ‘Deus não dá
nenhuma resposta ao sofrimento humano’. Pretender uma
justificação racional do sofrimento é inútil, anticristão.
A Cruz não é uma categoria filosófica.”

Dia 21. “Apresentação de Nossa Senhora. Levei


para a descolorida Nossa Senhora da igreja do morro
umas florzinhas silvestres.

‘Ontem chegou o secretário estadual da Saúde, com


material e ordens para construir aqui, em Santa Teresi-
nha,N antes do fim do ano, um ‘Posto de Saúde’. Outro
ângulo do cerco que se vai fechando sobre o trabalho da
Prelazia.’

‘A Bíblia — diz Girardi — é a história da confiança


de Deus nos homens.’ ”

Dia 28. “Estou em Porto Alegre. Chegamos aqui no


dia 24 com Pontim. É um momento de extrema tensão
para o patrimônio.

Eugênio, feito um maravilhoso ‘padre rural’ — digno


de Bernanos, digno do Senhor — era evidentemente a luz,
uma rocha viva para este Povo.

De um momento para outro, esperava-se uma intervenção


violenta da Frenova. Os últimos dias tinham sido
de humilhação e de terror para este povo longamente
pisoteado.

...A fazenda trouxe aqui (a São Félix também?) o


tal de ‘capitão Ailson’. Este fez acusações de guerrilhas.
humilhou, quebrou as pobres armas do povo, deteve e
interrogou — na própria sede da fazenda — Eugênio e
vários posseiros e estimulou o clima de terror.

Neste momento — são sete e tantas da tarde — Antônio


Camilo está cantando umas fabulosas quadras de
trovador do sertão, romance de uma época e lugar que
também fazem História, palavras, música e voz dignas de
um Romanceiro da América Latina.

Ponteim voltou a São Félix ontem. Com um relatório


meu, bastante completo e pesado sobre as agressões
da Frenova, durante estes anos, contra o patrimônio de
Porto Alegre.

Acabo de assistir a uma espetacular exibição de ‘rodeio’.


Um menino de 12 anos laçando no primeiro lance
um potrinho branco que corria por aquela rua verde —
que batizamos como a ‘Avenida da Liberdade’. E o resto
da meninada domando o animal, montando-o bravo e
a pêlo, com aquela força e aquela alegria dos homens do
campo!”

Dezembro. Dia 12. “Tivemos o encontro episcopal


do Regional Centro-Oeste da c'nbb, de 4 a 7, em Anápolis.

A Prelazia de São Félix foi submetida a votação: podíamos


ou não permanecer oficialmente no Regional?
Havia uma subterrânea oposição. Dom Fernando nos defendeu
com seu generoso coração de patriarca. Motivo
do receio? Os subversivos incomodam em toda parte...

Durante o encontro, visitamos o aeroporto próximo


dos ‘Mirages’. Muito dinheiro em orgulho militar. De
16 a 18 milhões, novos, cada aparelho. Será lindo aquele
dia — será? — em que os homens tiverem podido acabar
com todo armamento. Oh mundo humano o mundo
dos homens que tivesse só ‘bases’ de rosas e de alfaces!

De 8 a 10, tivemos aqui, em São Félix, ‘Encontro


Geral’ de todos os elementos da equipe pastoral da Prelazia.
(Faltavam o perseguido Altair e Eugênio, de sentinela
em Porto Alegre.) Três dias muito densos, sinceros,
profundos. Encerramos com uma bela Eucaristia.
Absolvição comunitária, rito da paz, Comunhão plena.
Fizemos opção e definimos as linhas básicas de nossa pastoral
comprometida. Discutiu-se o alcance da Libertação,
da Pobreza, da Fé, da ação ‘ecumênica’ — um ecumenismo
sócio-político — pela Justiça. E se decidiu ter, no
fim de cada semestre, um encontro geral da equipe.

A comunidade cresce dolorosa e livre, múltipla e


unida na Causa, no Senhor. Deus está conosco e não
falta quem reze pela Prelazia.

O objetivo e linhas básicas da Pastoral da Pre-


lazia..., os definimos assim:

‘A Igreja Particular da Prelazia de S. Félix, MT, em


comunhão a Igreja do Terceiro Mundo

— por causa do Evangelho

— e interpelada pela realidade local,

— opta pelos oprimidos

e, em conseqüência, define sua Pastoral como evangeliza-


ção libertadora, segundo aquela Palavra: “O Espírito do
Senhor está sobre mim, porque me consagrou pela unção
para proclamar a Boa Nova aos pobres, anunciar aos cativos
a libertação e aos cegos a recuperação de sua vista,
para dar liberdade aos oprimidos e proclamar o ano da
Graça do Senhor” (Is. 61,1, 2; Lite. 4, 18-19).

Numa primeira análise, que não pretende ser exaustiva,


destacamos, da realidade de opressão em que vive
o Povo desta região, os seguintes pontos:

— superstição, fatalismo e passividade;

— analfabetismo e semi-analfabetismo;

— marginalização social;

— latifúndio capitalista responsável pela permanência


desta situação de opressão.

Objetivo: A Prelazia tem como objetivo desenca

dear e acelerar no Povo da região o processo


de libertação total com que Cristo
nos libertou (Cf. Gal. 5).

Meios:

1. Encarnação na pobreza, na luta e na


esperança do Povo.

2. Educação libertadora pela conscientização


e promoção humana.

3. Denúncia profética.
Compromissos:

a) Conscientes dos conflitos e implicações


que esta opção fundamental
comporta, comprometemo-nos a respeitar
as etapas do crescimento libertador
do Povo e o pluralismo de
carismas e serviços,
b) Respeitando as opções pessoais dos
diferentes membros da equipe, comprometemo-
nos também, como grupo
eclesial, a uma vivência explícita
da Fé — no testemunho de vida e
oração, particularmente na celebração
eucarística — e a uma revisão
periódica para confrontar a opção básica
e a ação concreta’.

(Esta página sobre o objetivo e linhas básicas de nossa


pastoral seria considerada depois, no nosso Inquérito Militar,
como uma peça fundamental de acusação.)

Dia 16. “Escrevo cartas. E um pequeno artigo para


‘Mission Abierta’ sobre a Conversão que Teófilo me pediu.
A gente deveria converter-se antes de escrever sobre
a conversão que é coisa radical e de cada dia, de
toda a vida do homem...

Estes dias, estou me consumindo interiormente. Preocupações,


o ‘impasse’ do problema-posseiros, a pequena
‘sollicitudo Ecclesiarum’ deste sertão. E aqueles meus silêncios
complexados ou ressentidos. E a Cruz do Senhor,
em todo caso.

Aproxima-se o Natal. Sobrio. Quase duro. Que seja


cristão...”

Dia 27. “Visitei Serra Nova ‘de tropa’ (a cavalo).


140 km ida e volta. Os amigos de sempre e a mesma sur-
da tensão. E aquela ‘teimosia’ de um povo que precisa
viver. Horas e horas a cavalo, com chuva. Livres horas
de campo e céu. E o clima de Natal penetrando tudo discretamente,
sem publicidades, sem liturgia inclusive. Na
Fé desnuda...”

1973. — Janeiro. Dia 2. “Pedrito e eu. Ontem saíram


Hélio e Moura. Hélio também não voltará este ano.
Continuará seus estudos em São Paulo. Vaime e Elmo
saíram hoje com o P. Francisco. Este leva o ‘protocolo’
que assinamos com Meirelles, em nome dos posseiros de
Porto Alegre, num difícil entendimento. Meirelles, alardeando
o seu catolicismo, se escandalizou de que eu lhe
dissesse que o capitalismo é pecado e me ameaçou de
contar tudo à presidência da cnbb. E então, precisamente
neste vaivém diplomático e nauseabundo com a Freno-
va, eu me convenci um pouco mais de que o capitalismo
efetivamente é pecado.

Começou o ano 73. Sem ilusões. Em simples holocausto.


Com a esperança sobriamente fortalecida... A solidão
cresce com a vida até o Encontro.”

Dia 7. “Ontem me visitaram o inspetor da Polícia


Federal, Wilson Bizzo, residente em Campo Grande e seu
escrivão. Visitaram vários pontos da região. Perguntaram-
me sobre a carta que enviei ao Ministro da Justiça...
em setembro de 1971, referente aos conflitos Serra Nova-
Bordon. Desde então, muitas águas já rolaram! Eles se
desculparam dizendo que as prioridades mandam... Também
não sabiam nada sobre o capitão Ailson. O inspetor
sugeriu: ‘Talvez o sNi de outro lugar’...

Medito estes dias o Número 71 de Concilium, dedicado


ao bispo e à unidade da Igreja. Cario Molari diz
coisas muito boas sobre ‘o bispo como testemunha da
Fé Apostólica’: ...‘A Fé seria igualmente apostólica se
fosse a expectação do futuro do homem fundado no amor
de Deus manifestado em Cristo, tornado hoje digno de
crédito pelo amor libertador de todos aqueles que a Ele
se unem’ (p. 13). ‘O critério do testemunho é sempre e
para todos o mesmo: a Palavra de Deus que nasce do íntimo
da vida eclesial, a ação constante do Espírito que
leva o homem à pátria da liberdade. Deste modo, o bispo,
como testemunha da Fé Apostólica, é fundamentalmente
o homem da escuta’ (p. 16).”

Dia 22. “E., antigo aluno do ginásio, escreveu-nos


uma carta magmfica, agradecido e consciente, comprometendo-
se com o futuro de ‘seu povo’, o Povo deste sertão.”

Dia 25. “Estes dias senti uma nova liberdade pelo


fato de me ter reafirmado na decisão de não ir à Espanha.
Nem por isso deixarei de sentir nem vou esquecer por
isso; mas estou como alguém que cortou as amarras. Esta
é a minha terra na Terra. Este é o meu Povo. Por ela,
com ele, caminharei até à Pátria.

Ontem meditei sobre o Céu, lendo Boros.

E repassei minha vida e meu ser, a partir dessa perene


soledade que me acompanha como uma infra-substân-
cia:

‘Eu te reclamo, Deus, por me teres feito assim.

Eu te tolero. Deus, por me teres feito assim.

Eu te perdôo, Deus, por me teres feito assim.

Eu te agradeço, Deus, por me teres feito assim.

Por me teres feito assim,


eu tento amar-te, livre,
eu espero mais em ti
e, mais apaixonado
— por me teres feito assim —
quero me saciar de ti
eternamente’.”

14

Março. Dia 6. “Passei um mês fora da Prelazia.


Goiânia, S. Paulo, Campinas, Uberlândia, Campo Grande,
Cuiabá, Barra. Milhares de quilômetros de ônibus. E
muitos encontros, algumas surpresas e alguma dor.

Em S. Paulo, tivemos a Assembléia Nacional dos Bispos.


Muito ‘concorde’. Tímida. Um pouco superficial.
Houve, por outra parte, a oportunidade de encontro —
em concilio lateranense — com muitos amigos. Posso dizer
que fui acolhido com carinho pela Assembléia em geral.
Depois, em vários encontros e conversas — jovens,
sacerdotes, religiosas, professores — tive a oportunidade
de experimentar o interesse, a esperança que desperta nossa
pequena Igreja de S. Félix. Mais uma vez. Isto humilha,
sustenta e compromete.

A rapaziada está de acordo. Uma verdadeira atitude


‘revolucionária’ só pode existir com uma radical conversão
interior. Falando-lhes, eu mesmo descobri, com uma
nova força, como as estruturas do capitalismo (econômi-
co, político, espiritual) são idolatria, estado de pecado'
e morte. É preciso ‘marginalizar-se’ para ser livre e
libertar.

(Destes encontros guardo a pungente imagem gloriosa


do jovem Alexandre Vanucchi, morto pouco depois, debaixo
de tortura, pelas mãos sádicas da repressão numa
prisão de São Paulo. Sangue novo e generoso, semente
de dias melhores para o Povo do Brasil.)

Em Uberlândia, descobri uma nova experiência de


doação: um grupo de jovens, eles e elas, alguns casados,
vivem em comunidade, no campo, desinstalados e pobres.
‘Uru’, um nome de profecia.

Fui chamado a Campo Grande para depor, como testemunha,


no processo do P. Jentel. Três horas e meia.
Na Auditoria Militar. O processo entra agora na fase de
julgamento e sentença.

A equipe trabalha espalhada pelos diversos patrimônios.


Começou o ‘curso’. Começou a nova etapa das
comunidades do sertão: uma experiência que me conforta
e que. espero, será de fecundas conseqüências para o
povo da Prelazia.

Em São Félix já estamos sem igreja. Foi preciso derrubar


a que havia para que não caísse em cima da gente.
‘Adveniat’ aceita, em princípio, ajudar-nos a construir a
igreja, casa do Povo. ‘Casa de Deus — Casa do Povo de
Deus.’

‘Deus, quando passa, fica sempre’, diz O. Mattos.


S. Agostinho dizia: ‘Timeo Jesum transeuntem’ (Tenho
medo de Jesus passando...).

Em que ficamos? Agora sei que Mattos também —


pelo menos também — tem sua razão.”

Dia 8. “Outra vez Luciara... Será enfim o ano 74


o ano de Luciara, Senhor? Afinal de contas, deveria ser.
Falei com alguns amigos do lugar. E como sempre que
passo por aqui, um tanto envergonhado. O velho Petro-
lina — que se confessa com Deus — me comunica que
ao novo prefeito ele recomendava, há pouco tempo: ‘Fale
com o b;spo. Padre é a mola de uma cidade’...

O Estado está construindo um ‘Posto de Saúde’


aqui também. Salvaguardada a grande estrutura capitalista
— ditadura, latifúndio, colonialismo externo e inter-
no —, nada impede que se mudem, propagandísticamente,
as pequenas estruturas assistenciais. É tão fácil enganar
o povo, momentaneamente, depois de lhe estrangular
a consciência, estrangulando a Liberdade!...”

Dia 13. “Santa Teresinha. Dois dias no Tapirapé.


Luís e Eunice felizes e com boa perspectiva de trabalho.
A irmãzinha Mayie Batista ajuda-os em tudo e acabam
de consultar a lingüista Ionea. O cacique Marcos e sua
mulher, em rito solene, pintaram de jenipapo o pequeno
Wampurã, como incorporando-o à tribo.

Domingo, tivemos assembléia-geral da cooperativa


dos posseiros. Eu lhes falei, insistindo no valor da força
popular unida da cooperativa e na lenta, abnegada evolução
da consciência cooperativista.

Com Canuto, visitei alguns posseiros e suas roças,


25 km a pé.

Conversei muito com Canuto estes dias. Falei muito


com vários elementos da equipe últimamente. Talvez eu
esteja descobrindo melhor minha missão de escuta e diálogo,
do estímulo e companhia. Sempre estar um pouco
com todos e em todo lugar. Apoiando sem mandar. Assumindo
sem impor.

Hoje estou escrevendo para casa. Eles estarão sofrendo


porque já sabem que não vou. Tudo é Missão. Tudo
é graça. Deus é companhia para todos; sê-lo-á particularmente
para eles. E este sacrifício de casa e povo e pátria
me fará mais povo deste meu povo. Toda renúncia pelo
Evangelho é libertadora e fecunda.”

Dia 19. “Cheguei aqui a Campos Limpos (Ribeirão


Bonito) no dia 16 com um atraso de umas sete horas. A
estrada está péssima. Ontem, mais de 50 carros atolaram
num lamaçal a 12 km de Matinha.

O lugar está em clima de espanto. Zacarias, o ‘car-


rancista’, o chefete local, em conflito com alguns posseiros
e ofendido nos seus interesses ego'stas. derrubou o
P. Manuel, ba<eu nele e o ameaçou de morte. Armado
de ‘38’ e de ‘peixeira’. Manuel, sentado à entrada de casa
e com o discreto sossego de sempre, não teve nem tempo
de aparar o go’pe. Ficou cafdo na rua e Zacarias com a
mão no revólver. A irmã Beatriz — firme e serena de
espírito — interpôs-se entre os dois e o ‘cacicão’ sentiu-se
cortado, confuso e lá se foi resmungando.

Ontem celebrei a missa, com muita gente do Ribeirão


e da Cascalheira. Aproveitei a ocasião para dar consciência
ao povo e explicar o sentido daquela agressão, um
novo episódio na luta pela libertação do nosso povo...”

Abril. Dia 1. “Serra Nova já se torna complexa.


Cresceu. E sobre seu futuro ainda paira — mais grave,
sem dúvida — a incerteza: falta terra. E a Bordon, o
latifúndio, o sistema, são prepotentes, afirmam-se na propaganda,
no ‘milagre econômico’, na plácida inconsciência
de muitos.”

Dia 3. “Esta tarde, Edgard e eu chegamos da casa de


Antônio de Freitas -— entre Serra Nova e o rio das Mortes.
Ontem à noite tivemos reunião lá com um grupo de
posseiros vizinhos. Os Abdalla estão fechando o porvir
dos pobres de S. Antônio e arredores, entre o rio das
Mortes e o Roncador.”

Dia 4. “Esta manhã, Eugênio e eu visitamos boa parte


do povoado, casa por casa. Em todas elas, o mesmo
carinho, a mesma confiança (excessiva confiança nos ‘Padres’)
e a mesma miséria (doentes, falta de higiene [!],
insegurança). O coração se encolhe de raiva e de compaixão,
numa espécie de oração tensa, num clamor.”

Dia 5. “Ontem à tarde, Alita, Eugênio, Edgard e eu


nos reunimos sobre um tronco, à beira do caminho das
roças. Fizemos análise da situação e tentamos programar.
Depois nos reunimos com um grupinho de líderes em
casa de N.

Esta manhã, visita-me o posseiro Andrelino, agredido


por Tião ‘filhote de tubarão’. É o cerco total. De longe,
será fácil pensar que vivemos na obsessão da terra.
Aqui, o problema terra é chaga viva, sensação diária.”

Dia 8. “Cheguei de Serra Nova, a pé, a cavalo, de


camioneta — descendo e subindo, empurrando e agüentando
chuva e sereno até às seis da manhã. Com crian-
ças, couros de boi salgados e dois esplêndidos porcos agitados.
Todos em comunhão. Passamos com Eugênio e
Lulú pela casa do velho Raimundo Piauí, perdido com
seus filhos e genros nas brenhas da serra do Roncador.

Chegam notícias angustiantes de Pontinópolis e Porto


Alegre. E outra vez me assalta uma desesperada vontade
de fazer alguma coisa última, sem nome ainda. Que
seja, em todo caso, a ação evangélica, serviço ao próximo.
É Quaresma. A Páscoa chega outra vez, dura e gloriosa.
É preciso ser pobre, impotente. É preciso esperar
contra toda esperança. Embora não seja nada fácil combinar
as urgentes exigências da sobrevivência deste meu
povo com a verdade ou a miragem da esperança que
trazemos dentro de uma ‘fé’ tradicionalmente considerada
cristã. A radicalidade não se controla tão facilmente. E
o amer é radical. Senhor, dirige-me! Enche de teu Espírito
os caminhos da Prelazia, como os enches de água, de
sol e de verdor.”

Dia 10. “Ontem à noite morreu o pequeno João


Paulo do Zeca de Pontinópolis. Mais um posseirinho que
alcançou a Terra Prometida. Doca, sua mãe — mãe seis
dias sem comer nem dormir —, 'teve um violento desmaio
ao saber da notícia. Todos aqui de casa sentimos essa
morte como de alguém da família. Eu pessoalmente, talvez
por um certo estado de esgotamento e pela especial
amizade que me vincula ao Zeca, senti-a com uma angustiante
mágoa. Cheguei a perguntar ao Senhor por que
haveriam de sofrer e morrer as crianças...”

Dia 18. “Ontem à tarde enterramos o pobre Zé, de


20 anos, cearense, peão, só ossos. Nenhum documento.
Morreu de anemia e malária no Hospital do índio. Zé
trabalhava na Bordon. Pegou malária como tantos. A
Bordon, estes dias, é uma trágica enfermaria. O Zé foi
mandado em estado gravíssimo ao dr. Jamil do hospital
daqui. O hospital e a fazenda o ‘despedham’. A fazenda
lhe deu 100 cruzeiros... para ‘voltar para sua terra’ (!).
Veio até nossa casa e caiu, alquebrado, à entrada. Atendemo-
lo e o levamos a Santa Isabel na Ilha. A fab não
o quis transportar, alegando tuberculose. Ficou esperando
um táxi aéreo e morreu ontem às sete da manhã. So-
zinho. O dr. Américo, do Hospital do Índio chorava. Ele
viu sair do Ceará muitos parentes seus à procura de trabalho
ou de terra também e nunca mais voltaram, diz...

O Araguaia crescia a nossos pés, quase lambendo o


cemitério. Era o caso Número mil.

Sinto-me impotente, responsável, perdido. Algumas


reações últimas da presidência da cnbb me dão uma nova
sensação de solidão. Será certa minha linha de conduta?
Se não for certa, o que significa o Evangelho? Para que
sou bispo? Deveria renunciar?

Copio estas palavras de Paulo Freire em suas cartas


a Rogério de Almeida Cunha:

‘...Entretanto, tal processo — de libertação do homem


— exige o compromisso histórico, exige a ação transformadora
que traz consigo o confronto com os poderosos
da terra.

... A maior, a única prova de amor verdadeiro que os


oprimidos podem dar aos opressores é retirar-lhes, radicalmente,
as condições objetivas que lhes dão o poder de
oprimir e não acomodar-se masoquisticamente à opressão.
Somente assim os que oprimem podem humanizar-se. E
esta tarefa amorosa, que é política, revolucionária, pertence
aos oprimidos. Os opressores, enquanto classe que
oprime, jamais libertam assim como jamais se libertam.
Só a fraqueza dos oprimidos é suficientemente forte para
fazê-lo...

... Para pensar... nas metrópoles... é necessário


primeiro “fazer-se” homem do Terceiro Mundo.

...Ser homem do Terceiro Mundo significa renunciar


às estruturas do poder, aos establishments que, neste
mundo, representam o mundo da dominação. É estar com
os oprimidos, com ‘os condenados da terra’ numa postura
de autênico amor que não é a da conciliação impossível
entre quem oprime, aplasta, explora e mata, e quem é
oprimido, aplastado, explorado e ameaçado de morte. Já
é tempo de os cristãos distinguirem essa coisa tão óbvia,
o Amor, de suas formas patológicas: sadismo, por um
lado; masoquismo, por outro; ou ambos simultaneamente.
O contrário do amor não é, como muitas vezes se
pensa, o ódio mas sim o medo de amar e o medo de amar
é o medo de ser livre’.”
Dia 20. “Luciara. Chegamos ontem, com Judit. E
celebramos a Ceia do Senhor num ambiente de simplicidade
e pobreza.

Assisti à mãe de João Paulo, 84 anos. Faleceu esta


madrugada, no dia da Morte do Senhor. Passou horas
respirando áspero como um motor velho e fatal; lembrou-
me meu pai morrendo.

Esta manhã, visitei a aldeia Carajá. Desolação. E paz


ao mesmo tempo. Deus os acompanhe até à Aldeia Grande
de sua Glória.

Confessei-me com Pedrito, ontem, antes de vir. E


ontem e hoje estou fazendo exame de consciência. Antigos
pecados, a perene infidelidade e estes pecados novos
de raiva e revolta. Até que ponto legítima? Quando, onde
me excedo? Deveria contemporizar? E a Justiça? E o
zelo pelos irmãos oprimidos? Que o próprio Senhor seja
a medida de minha pobre justiça, de minha desarticulada
paz. Ele que morreu para nos fazer livres em seu Amor
Total!”

Dia 21. “O dia mais belo do ano, a noite mais feliz.


A vigília mãe de todas as vigílias. Sábado Santo, vigília
pascal. Fogueira na praça, ao sereno. Água do Araguaia.
Um rito simples e vital.

Creio na Ressurreição com um concretíssimo realismo.


Por exigência da própria realidade desumanizada e
cruel.”

Dia 25. “Domingo passou por aqui Dom Tomás. Contou-


nos coisas vivas da Igreja do Brasil e trouxe os originais
definitivos do livro-denúncia sobre a marginalidade
do Povo do Centro-Oeste que assinamos vários bispos da
região.

Dia 27. “Vem do Hotel John Kennedy o presidente


do Paraguai, Stroessner. A Ilha e o rio se encheram de
militares. E a polícia — pela enésima vez — esteve perguntando
sobre nossas misteriosas vidas...

Começamos, quinta-feira, as ‘missas de rua’, numa


rústica oficina de carpinteiro. disna de Nazaré.

Chegamos até o povo? Aproximamo-nos dele o bastante?


O que é que ainda nos distancia? Somos suficien-
temente pobres, suficientemente comprometidos? São Félix
— cidade — continua sendo um pesadelo pastoral...

Estou lendo um bom livro de Leonardo Boff sobre a


Ressurreição de Cristo e a nossa...”

Maio. Dia 13. “Recife. Olinda. Palmeiras altíssimas,


pedras de barroco, história, colinas e o mar. Uma paisagem
total esta de Olinda-Recife.

Estamos reunidos uns 30 bispos num cursinho de renovação:


Teologia, Realidade Brasileira, Pastoral.

No dia 28 ou 29 será o julgamento do P. Jentel.

Hoye é o Dia das Mães. Tine un record per ella. I una


pregária. Que el Críst li fací de Fill per mi; que ella em
doni generosament. Aquell Dia ens retrobar em per sem-
pre, lliures.

Ontem, à hora de enfrentar a ‘realidade brasileira’,


ficamos um pouco nas ambivalentes teorias sempre aliadas
da prudência. Quando a vida urge aí, na rua e no
campo.

‘Renuncio ao mar’ seria um verso-chave destes dias.


E conste que está tentador este mar verde, azul, branco,
detrás das pedras antigas, detrás das gráceis altas,
palmeiras.”

15

Dia 29. “Campo Grande. Ontem à tarde, pelas 3 horas,


na Auditoria Militar, o P. Francisco foi condenado a
10 anos de prisão por infringir a lei de Segurança Nacional.
E ontem mesmo ficou recluso no Quartel da Polícia
Mi'itar.

Pela manhã, antes de ir à Auditoria, concelebramos


ele e eu. (‘Meu úmeo Juiz é o Senhor’... ‘Se a mim
me perseguiram, assim também vos perseguirão a vós’...
‘Bem-aventurados sereis quando os homens vos perseguirem’
...)

Comunicam-me que Elmo está escondido — trancado


no Ginásio — porque tencionam matá-lo bobamente.

Francisco está sereno e generoso


Aproxima-se a solenidade de Pentecostés e é preciso
entregar-se ao Espírito de Jesus que, por meio de nós, faz
a dolorosa Historia da salvação dos homens.

No dia 30 de maio, já em São Paulo, eu assinava o


documento — Condenação e testemunho do P. Francisco
Jentel, missionário da Prelazia de S. Félix, Mato Grosso —
que eu só conseguia divulgar naturalmetne pelos meios
subterrâneos dos mimeógrafos. Comemorávamos, ‘de modo
particularmente trágico, o 25.° aniversário da Declaração
Universal dos Direitos do Homem’, lembrava eu no
documento.”

Junho. Dia 20. “Choveu muito estes dias. Sol, poeira,


barro, viagens. História, Paixão de Cristo e do Povo.
Francisco continua preso em Campo Grande. E estão presos
também — não sabemos onde, porque Pedro Mari não
obteve resposta nem em Cuiabá nem em Campo Grande

— iTeresinha, Edgard e Teresa, uma moça amiga das


irmãzinhas que casualmente visitava a Prelazia.

Imediatamente depois do julgamento de Francisco a


Polícia Militar, a Aeronáutica e o Exército — numa
verdadeira irrupção vandálica — invadiram quase toda a
área da Prelazia; roubando, batendo, humilhando, caluniando,
violando casas e o nosso arquivo e prendendo...

Depois Elmo teve que sair para se tratar, gravemente


deprimido, destruído psicologicamente. O Ginásio está
suspenso. O clima é de desolação e de prova.”

Dia 7 de julho, publiquei outro documento — Ope-


rações da Polícia Militar e outras Forças Armadas na
área da Prelazia de São Félix, MT — que terminava com
estas palavras:

“Nesta hora, com maior consciência e com vontade


total de compromisso com o povo oprimido da região

— particularmente os posseiros, os peões e os índios —,


por amor do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo e
em solidariedade com todos os que, neste país economicamente
desenvolvimentista e humanamente opressivo, sofrem
perseguição por causa da Justiça:

Declaramo-nos, com humilde gratidão para com aque-


le que nos fez dignos de sua Cruz libertadora, uma Igreja
perseguida.
E perseguidos, caluniados, controlados, presos, continuaremos
nosso trabalho de conscientização e evangeliza-
ção — um só e mesmo trabalho em plenitude para a Igreja
de Cristo — que se preocupa com o homem todo e não
somente com os espíritos (contrariamente à opinião do pretenso
teólogo Coronel Euro),

Conhecemos nossas fraquezas; podemos claudicar um


dia. Hoje, entretanto, confiamos nAquele que é nossa força.
A todos que nos acompanham com sua amizade e com
sua oração, pedimos que nos ajudem a dar graças, porque
cremos sinceramente que são bem-aventurados aqueles
que sofrem perseguição por causa da Justiça”.

Dia 30 — continuava no Diário: “nos reuniremos,


todos os ‘sobreviventes’ da equipe da Prelazia, para revisar
nossa situação e nossa pastoral, sobretudo a partir de 74.

Dura graças, porém graça. Pressinto em tudo isso uma


providencial purificação e a resposta do Senhor a muitos
surdos apelos meus. Haveremos de ser mais pobres, mais
evangélicos, mais totais. O fogo da perseguição acaba de
queimar as poucas estruturas que a Prelazia tinha...

Penso que seremos, a partir desta prova, mais auténticamente


evangelizadores, sem deixar de ser, em nada,
igualmente comprometidos com a realidade sócio-política de
nosso povo.

Tem sido um vendaval de Pentecostés”.

Julho. Dia 22. Domingo. “Estou em casa das Irmãs.


É aquela hora da tarde — sol, Araguaia, solidão — que
convida a todas as evocações e a todas as esperanças. A
todos os temores, também.

A Irmãzinha Maria Olídia reza, sentada no chão da


capela provisória, único templo ‘material’ que temos em
São Félix, sede da Prelazia.

Passou-se um mês, longo como um século.

Nossos presos agora são nove. Além do P. Francisco,


Teresinha, Edgard e Teresa Adão, foram presos também
— ainda não sabemos seu paradeiro — Pontin, Moura, Ta-
deu, Adauta e Lulú.

Nossas duas casas — a da Prelazia e a das Irmãs —


estiveram cercadas de soldados com metralhadoras. E o
bispo, os padres e as irmãs estivemos presos em prisão domiciliar.
Os militares armados nos escoltaram todos estes
dias, inclusive quando saúnos para celebrar missa.

Na noite de 8 para 9, um grupo de oficiais à paisana,


dirigidos pelo Capitão Monteiro da Aeronáutica, invadiram
armados nossa casa. E arrastaram presos os padres Eugênio,
Canuto, Leopoldo e Pedro Mari.

Era um ‘comando de repressão’. Brutal, sádico, adestrado;


talvez dopados.

Monteiro deu ordens para que me tirassem os óculos.


Eu mesmo os tirei. Quiseram forçar-me a delatar Pontin
e Moura — escondidos no rio — e Leo e Pedrito que tinham
saldo para avisá-los.

Limitei-me a responder que era assunto de minha


consciência e que não diria nada. ‘Fala pouco mas escreve
bem’, dizia, zombando, Monteiro. ‘Depois você publica um
relatório de tudo isto’, me instigava.

Os quatny padres foram amarrados, humilhados, espancados.


Eugênio inclusive vomitou sangue pelos murros que
recebeu no estômago.

Pedrito chorou desoladoramente quando viu presos


Pontin e Moura.

Foi uma noite de terror. Todos sentimos como que


encarnado entre nós ‘o poder das trevas’.

Goiás ‘velho’ nos recebeu com a fraterna amizade de


sempre. Tomás, Fragoso e um grupo de padres, religiosos
e leigos que acabavam de realizar a Assembléia Diocesana
nos acompanharam na reflexão e na tomada de posição
face aos últimos acontecimentos.

A paróquia da Vila Operária, em Goiânia, onde Leopoldo


mora — nossa casa-ponte da Missão — esteve cercada
também durante cinco dias e os agentes policiais nos
procuraram com fastidiosa insistência. Passamos três dias
na clandestinidade. No domingo, a Polícia ou o Exército
— mais provavelmente o Exército — atrasou de uma hora
o vôo da vasp, procurando meu nome entre os passageiros.
Segundo as últimas informações de um general de Goiânia,
querem expulsar-me do País. Naturalmente só deixarei
a Prelazia à força. E se for expulso, voltarei como
Deus me der a entender...

Este pode ser um momento último. (Outros o foram


em minha apreensão e até em meu desejo.)
Estamos sendo processados oficialmente. É hora de
Paixão. Muitos amigos, conhecidos e desconhecidos,
acompanham-nos.

Uma forte comunhão com nossos presos, com suas


famílias, com nossos perseguidos, com o povo assombrado,
mantêm-nos em estado de vigília, ardente sentinela.
Deus abençoa quando fere. O fogo da perseguição é um
batismo inapreciável.”

Dia 31. “Começo copiando umas palavras de Diez


Alegria em Yo creo en la Esperanza, p. 78:

... ‘Segundo minha consciência, a permanência na Igreja


está condicionada por dois fatores: primeiro, que
não se renuncie à religiosidade ético-profética e que se
denuncie a aberração da religiosidade antológico-cultua-
lista, lutando conforme suas possibilidades para superá-la
em si e nos outros. Segundo, que se tenha consciência de
que a Igreja Católica e todas as igrejas que pretendem
ser cristãs e partem da fé em Cristo estão chamadas a se
converterem à religiosidade ético-profética de Jesus crucificado
e glorificado que há de vir dar a última realização
da Historia. E se há vocação, há esperança de conversão.
A que preço, Deus o dirá

Ontem e anteontem, durante 16 horas, respondi ao


inquérito policial aberto contra a equipe da Prelazia. Pe-
drito tinha respondido um dia antes; dois dias antes, Canuto,
em Santa Teresinha e hoje Eugênio está responden-
do aqui. Quem preside o inquérito é o Inspetor-Chefe de
‘inquéritos’ da Polícia Federal, em Goiânia, Francisco
Barros de Lima. Por ordem direta de Brasilia.

Os presos estão todos em Campo Grande. ‘Agora —


diz o dr. Francisco — estão bem’... A Irmã Judit saiu
hoje, de ‘Samurai’, para visitá-los e levar-lhes roupa e
comunhão sobretudo.

O processo global será levado a termo na Auditoria


Militar de Campo Grande. Eu exigi ontem que me in-
clu'ssem no processo comum junto com a equipe. O
dr. Francisco me disse que vai pedir em Brasdia. Ainda é
um triste privilégio ser bispo!

No fundo nos pedem para reconhecer como crime


nossa atuação ‘profética’ e renunciar a ela no futuro.
— Vejam voces mesmos se devemos obedecer a Deus ou
aos homens.

O coronel Euro esteve em Santa Teresinha, matreiro


como sempre, e prometeu inclusive trazer a Santa Teresinha
e a Luciara um capelão militar. Como vai trazer
médico ou polícia. Além de suposto teólogo, o coronel
Euro quer ser agora provisor eclesiástico.”

Escrevo para casa e canto à Liberdade.

O poema El non novell que nasceu “processais, bo i escrivint a la mare”

diz assim:

"Pior i silenci i crit

és la par aula que m’omplena ara

la boca e 1’esperit.

Que mai encara


jo no havia arribat
a entendre, mare:
la lli-ber-tat!

(Amb tots eis qui lluitarem i mori-


[ren per Ella:
amb tots eis qui la varen cantar i
[patir e somniar...
jo lo canto i la pateixo
— i la gaig també, una mica ■—
la liure Libertat!

Aquella, vull dir, mare, tota plena


amb que el Crist ens va lliurarj.

Si em bategeu un altre cop, un dia.


amb l’aigua deis sanglots i la me-

[môria,

amb el foc de la mort i de la gló-

[ria.. .

digueu a déu i al món


que m’heu posat
el nom

de Pere-LLibertat!”

“Pranto e silêncio e grito


é a palavra que me replena agora
a boca e o espírito.

Que nunca ainda


eu tenha acabado
de entender, mãe:
a li-ber-da-de!

(Com todos os que por Ela lutaram


[e morreram;
com todos os que a cantaram e a
[sofreram e a sonharam...
eu a canto e a sofro
— e a realizo também, um pouco —
a livre Liberdade!

Aquela, digo, mãe, plena


com que o Cristo nos libertou).

Se me batizou outra vez, um dia.


com a água dos soluços e da me-

[mória,

com o fogo da morte e da Glória...

dize a Deus e ao mundo


que me puseste
o nome

de Pedro-Liberdade!”

Agosto. Dia 3. “Dom Tomás e outros amigos passaram


esta noite conosco. Ontem à tarde, Eugênio e Tomás,
no pequeno teco-teco, foram a Porío Alegre. Diomar e
Altair estão na mata, alertas.

A Polícia Federal está em Serra Nova. E hoje saiu


para Serra Nova o querido e recuperado Lulu. Chegou
ontem à tarde, como um presente de Deus. Sofreu muito.
Sofreram muito todos os nossos presos... Ontem à noite,
numa missa íntima, na casa do carroceiro, meditamos.
uma vez mais, sobre o confortante episodio da prisão e
liberdade de Pedro, segundo os Atos dos Apóstolos.”

Dia 4. “Ontem à tarde, chegaram na casa de Luís


Jacaré, na Ilha, Manuel, Vaime e Luís Goya. Vinham na
perua das Irmãs. Pedro Mari e eu fomos falar com eles.
Luís e Vaime estavam mortos de saudades. Hoje voltaram
a Goiânia e lá serão interrogados pelos meados deste
mês, eles e os restantes membros da equipe.

Voltando a São Félix, já de noite, a cidade se espelhava


no rio como um candelabro de braços altíssimos,
diluídos nas águas.

Manuel trouxe mais cartas, mais adesões. Dá-me a


impressão de que crêem que somos mais do que somos,
de que de nós esperam excessivamente. Será preciso ser
fiel a essa exagerada confiança dos amigos.

Escrevo uma carta ao povo da Prelazia convidando-o


para concelebração do dia 19. Já se inscreveram, como
certos, 15 bispos.

Dia 7. “Esta manhã, Irmã Irene e eu distribmmos


pela rua a carta-convite. Não havia para todos, houve
para os mais pobres. O povo nos recebia com carinhosa
gratidão e já espera a grande concelebração com uma ingênua
credulidade: a vinda de 15 a 20 bispos só pode ser
para resolver de uma vez todos os problemas... A ‘autoridade’
ainda é um mito na cabeça atormentada deste querido
povo.

Entre as cartas que hoje nos chegaram (manuseadas,


abertas?) tem uma de Jordi C.i.P. meu antigo aluno de
Sabate'1. Escreve-me e escreve ao Papa.

Os d:as se tornam longos como os dias de um doente.

...Como cresce, estes dias, livre e sólida, a humilda-


de-verdade que Teresa de Jesus tanto amava!

Amanhã é a festa do mártir Lourenço de Huesca...”

No dia 19, festa litúrgica da Assunção, Padroeira de São


Félix, celebrou-se efetivamente, “à beira do Araguaia ritual”,
a magna Eucaristia da Solidariedade. Além dos 19 bispos presentes
ou representados que expressaram sua colegiabilidade efetiva
num documento comovedor, fizeram-se também presentes,
por outro documento, os 18 bispos participantes de um curso
que, naquela data, se realizava em Manaus.
A Polícia Federal fotografou, gravou e anotou a cerimônia.
“Eles” espalharam panfletos com um exólico emblema da
foice e da cruz, supostamente assinados pelo “Partido Comunista”
e a “Igreja progressista”. Espalharam boatos e ameaçai
também. O povo, entretanto, superando tudo, participou numeroso
e comovido e aquela concelebração intereclesial foi para
ele como que uma confirmação na esperança.

Para nós foi um novo testemunho daquela “comunhão que


compromete”. No dia 3 de outubro publiquei um documento'
— A Prelazia de São Félix entre o processo e a solidariedade —
que concluía com estas palavras:

“... Esta múltiple solidariedade nos emociona e nos


compromete como um expressivo sacramento de comunhão
eclesial na Esperança libertadora e de humana cor-
responsabilidade na luta pela Justiça. Por ele sentimos,
que nos fala com novo chamamento a sempre interpeladora
Palavra de Deus.

... A amizade, a oração, a expectativa dos irmãos


tem sido para nós como a prova viva da presença do Senhor
Jesus que está sempre onde dois ou mais estão reunidos
em seu nome: por seu amor, pela causa do Evangelho,
para instaurar progressivamente — nesta primeira
fase terrestre e conflitiva de seu Reino — a vida nova dos
Filhos de Deus, todos iguais e livres com aquela liberdade
com que Cristo nos libertou” {Gal. 5,1).

16

Setembro. Dia 3. “Teresinha, Tadeu. Moura, Pontin


Edgard e Teresa já estão livres. Pelo menos provisoriamente.
Encontrei-me com todos eles em São Paulo. Efusivos
e marcados; mais conscientes de sua Fé e de seus
compromissos. Sofreram muito. Foram brutalmente torturados,
pressionados, humilhados. Queriam arrancar deles
confissões impossíveis: que pertencemos a algum partido
ou organização, que entre as moças e os padres havia
relações sexuais etc.

Foram heróicos, coitados. E deixaram um bom olor


de Cristo na Igreja de Campo Grande, como pude com-
provar na minha visita ao P. Francisco, no domingo,
dia 5.

Todos, rapazes e moças, pensam voltar para a Pre-


lazia. Não sei ainda até que ponto isto será possível. De
qualquer modo, sua coragem e seus propósitos confortam.”

Dia 18. “Os militares da reparação e do bom nome


— general Tasso, coronel Meireles — e outras autoridades
assistencialistas do Estado visitaram-nos estes dias.
Nada de nada. Pura demagogia publicitária. O coronel
Meireles projetou para o povo uma série de slides da estrada
Cuiaba-Santarém da qual é o responsável (como
quem quer mostrar a outra face, a dos serviços deste
Exército que aqui soube fazer muito bem o papel de carrasco
e de vândalo).

O negociante de terras, o latifundiário Ariosto, disse


no último ‘espetáculo’ que daria 10.000 hectares ao povo
de Pontinópolis. (De fato, até esta altura, abril de 75, o
povo de Pontinópolis nada recebeu ainda. Por outro lado,
Ariosto estava ‘dando’ o que não era seu... e em compensação
ganhava junto à Cuiabá-Santarém, no Teles-
P;res, uma infinita extensão de centenas de milhares de
hectares... Em parte os ganhava e em parte os comprava.
Porque podia, é claro.)

O problema do ensino continua no mesmo pé. Até o


fim do ano, iremos tapando, mal. o buraco.

Allende foi assassinado no Chile. E Paulo YI lamentou


o ‘trágico golpe militar’. O Brasil se apressou em reconhecer,
como o primeiro, o novo governo ditatorial-mi-
litar do Chile. A liberdade está ficando difícil nesta América
jovem e irreversível.

Escrevi ao P. Leghisa (Superior-Geral dos Claretia-


nos) e a seu Conselho e a todos os capitulares reunidos
em Roma.”

Dia 25. “Estou em Serra Nova. A prefeitura continua


ausente de suas responsabilidades. A estrada está nas
últimas. Outra vez, estas 300 famílias ficarão sem saída
durante as chuvas, com seus doentes possíveis, certos...”

Outubro. Dia 19. “Depois de muitas tentativas e


muitas negativas da parte das autoridades locais, intrigantes,
encontrou-se lugar, na Yila Nova para construir a
nova igreja — a ‘catedral’ — de São Félix.
Estamos de novo em tempo de ‘Aciso’; Aeronáutica,
Exército e Pol'cia Militar ocupam os caminhos e lugares
da Prelazia — com elementos do ‘submisso’ ‘Projeta
Rondón’, universitário. Arrancam dentes a granel e querem
arrancar também admirações.

Há três dias, vindo de Barra, Eugênio e eu fomos


revistados — malas, sacolas, documentação, papéis. Ontem,
Teodoro (o padre gaúcho que nos ajudava essa temporada),
regressando de Serra Nova, foi revistado também
e lhe roubaram uma carta e quatro ou cinco documentos.

Dois jornalistas, do Jornal do Brasil e de O Estado


de S. Paulo, vieram entrevistar-me, hoje. Por eles soubemos
das censuras que nos fizeram o coronel Meireles e o
sr. Gabriel Müller, representante do Governador aqui.

Na região, está se criando uma ‘Operação Araguaia’


permanente, assistencialista... e repressiva: para atuar
contra a perniciosa influência do Clero; mais exatamente
‘para minimizar a ação do Clero’, conforme se publicou
estes dias na imprensa do país.

Faz pouco, dentro desta nova fase pitoresca de ‘limpar


a barra’ ou desentortar o torto, dizem que o chefe
supremo da Polícia Federal fez uma espécie de panegírico
de mim junto ao Arcebispo de Brasília (como posteriormente
o próprio Golbery me elogiou!?...) (A gente
gostaria de ouvir e ver outra coisa e não elogios diplomáticos.).”

Dia 25. “Tenho ganas de fugir, mas não se pode...


O dia a dia é a prova da fidelidade. O martírio da rotina
diária.

Por um lado, o Senhor é o Juiz e, por outro, não


posso gabar-me de nada, honestamente. Será bom, muito
bom Aquele Dia em que Ele se esquecer de todas as
minhas boas obras tanto quanto de minhas obras más.
Não pretenderei fazer valer minha justiça diante d’Ele.

Durante os dias tensos do ‘inquérito por subversão’, com os


companheiros presos e uma desoladora perspectiva pela frente,
escrevi este poema:

Senhor Jesus!

Minha Força e meu Fracasso


és Tu.

Minha Herança e minha Pobreza.


Tu minha Justiça,

Jesus.

Minha Guerra
e minha Paz.

Minha livre Liberdade!

Minha Morte e minha Vida,

Tu.

Palavra de meus gritos,

Silêncio de minha espera,


Testemunha dos meus sonhos,
Cruz de minha Cruz!

Causa de minha Amargura,


Perdão do meu egoísmo,

Crime do meu processo,

Juiz de meu pobre pranto,

Razão de minha Esperança,

Tu!

Minha Terra Prometida


és Tu...

A Páscoa da minha Páscoa,


nossa Glória,
para sempre.

Senhor Jesus!”

17

Novembro. Dia 5. “Estive em Santa Teresinha. Com


Tadeu e Teresinha, nossos contadores da cooperativa, que
vão se casar no dia 31 de dezembro, dando o salto de
S. Silvestre. Um novo casal ‘da’ Prelazia.

Em Luciara, celebrei missa de ‘Finados’. Consegui


também controlar o projeto, ‘espontâneo’, da construção
da nova igreja N. N., sempre político e com um fundo
clerical do seu tempo de seminarista por esses nortes,
aceitava, como a coisa mais normal, que a Codeara lhe
fizesse o plano. Louvado seja Deus e o espírito do
P. Jentel! E queria pedir a ajuda das outras fazendas,
do municipio. Como nos cômicos dias dos grandes Cristos
e imagens da Virgem Dolorosa pagos pelos ricaços
adúlteros e exploradores do povo, conforme dizíamos nos
cursilhos e nos sermões de missão...

A nova igreja de São Félix começa a levantar suas


paredes. É tempo de construção. Seja-o também de edificações
vivas. Espero que a tentação das pedras e dos
tijolos não nos afogue a paixão pelos homens, pedras vivas.
Seja como for, cada lugar precisa de um ambiente de
encontro para a Palavra e oração e Eucaristias comunitárias.”

Dia 30. “Santo André, enamorado da Cruz aquela


dura e certa ‘spes única’. Anteontem, voltei, de ônibus e
atolando, depois de uns quinze dias de andar mundo, nesse
ministério tão atual — e espero que válido — dos ‘encontros’.
É certo que os irmãos, encontrando-se, comprovam
e afirmam a mútua comunhão. O Núncio recebeu-
me quase com respeito.

Não sou irreverente nem anárquico se desejo que o


‘Vaticano’ e as Nunciaturas acabem... O Papa deveria ter
necessariamente sua cúria — assessoria. secretaria —- não
precisamente seu ‘Estado’. E até poderia haver ‘núncios’
— que talvez não fizessem falta, considerando-se a
existência das Conferências Ep’scopais e a descentralização
e ‘despotenciação’ da Igreja —; mas os núncios seriam
outros e de outro modo. Isto desejo e isto peço.
Com muito amor à Igreja de Jesus e com solidária comunhão
com Paulo VI, heroicamente reinante... Que seu
reino seja cada vez menos deste mundo para o bem do
Evange’ho e dos homens.

Francisco espera. Visitei-o em Campo Grande. Em


fins de outubro ele teve um pequeno baaue porque esperou
inuilmente a resposta do Superior Tribunal Militar.
A respeito dessa resposta, falei com Candido Mendes, presidente
da Comissão Nacional ‘Justiça e Paz’, e com
D. Aloísio e D. Ivo. Eles acreditam que se viesse agora,
a resposta do stm não só confirmaria a sentença do Francisco
mas provavelmente, a aumentaria. Assim estão as
coisas neste tempo do ‘advento’ de Geisel. Aperta de um
lado, afrouxa do outro. Promessas por baNo; repressões,
vinganças prévias dos que vão sair do poder...
Chegam notícias do Chile, mais ou menos contraditórias,
fundamentalmente trágicas. Os novos donos do Chile
estão perseguindo e matando a bel-prazer. Ontem, li
em Documents d’Església, o testemunho (martírio) do
P. Joan Alsina, de Girona, assassinado em Santiago. Por
ser fiel à sua missão de padre-operário. É a Igreja da
América Latina fiel à sua hora.”

Dezembro. Dia 5. “Estou em Porto Alegre e visitamos


o quintal de Diomar — já profusamente plantado de
mandioca, banana, feijão, milho, arroz —, topamos com
uma grossa jararacuçu-do-brejo preta e perigosa. Era a
quarta cobra do dia, ali. Contam-me também como estes
dias, acossadas pelas derrubadas das fazendas, as onças
rondam pelas roças do patrimônio.

A Frenova está desmoralizada. Também pudera! A


última de suas muitas fazendas foi cercar com quatro fios
de arame o próprio rio Tapirapé. Só falta agora que um
dia essas onipotentes fazendas resolvam ‘cercar’ o céu e
soltar seus bois para pastar nuvens!”

Dia 12. “Santa Teresinha. Tapirapé. Ontem à noite


celebramos missa e a carta dos exilados Chico e Rosa nos
serviu de leitura.

O deserto e o exílio. Um tema até certo ponto novo


— pelo menos assim integrado — para minha meditação
e para minha vida. Um tema para os espíritos que ainda
querem ser livres no mundo de hoje.”

"1974. Janeiro. Dia 13. O Diário vai-se espaçando...

A vida continua, claro, apesar do suspense que paira


sobre nosso trabalho e sobre o povo da região que está
condenada ao latifúndio. Em Santa Teresinha se criou
uma espécie de Cooperativa de Saúde, ‘Unicas’, para a
qual veio uma nova Irmã Edna, enfermeira. Os conflitos
da terra continuam, aqui e ali, em toda a área da
Prelazia e nós os acompanhamos de perto, esclarecendo
os posseiros, apoiando-os. A Pastoral propriamente di?a
vai-se fazendo mais ‘popular’ ao mesmo tempo que se torna
mais critica. (A Religiosidade popular, seus prós e
contras, está na ordem do dia da reflexão pastoralista da
América Latina e chegou também aqui.) O governo de
Geisel está chegando e se acalentam não sei que — ingênuas?
— Esperanças, particularmente nos setores oficiais
da Igreja do Brasil.”

18

Dia 18. “A perspectiva política de S. Lucas, de Arturo


Paoli, com seu título prévio, justificado de sobra, no
original italiano: La radice delVuomo, é um livro formidável.
Transcrevo estes parágrafos:

‘Se infundirmos medo ou veneração, significa que estamos


enquadrados no poder...

Devemos difundir a idéia de que a relação é difícil.

Não o fazemos por masoquismo ou vitimismo, mas


sim porque a criação da pessoa é um trabalho longo é
árduo...

Não é nada mal que o celibato seja hoje um não-


valor, que seja não apenas menosprezado mas também
desvalorizado dentro da própria estrutura eclesial. Não
pode ser aceito senão como vazio, humilhação, pobreza.
Só assim, despojado de toda magia cultural e da retórica
agressiva que o defendeu, pode ser entendido por quem
vive dentro da História, destroçado por suas contradições.
..

O Evangelho trata de infundir-nos três idéias que


orientam nossas opções: a idéia da vigilância, a da pobreza
e a da infância’...! ”

Dia 24. “Não é difícil entender que a Igreja deva ser


mais realmente simples e servidora. Difícil me parece é
entender o contrário. O Novo Testamento, o exemplo dos
primeiros papas e bispos e o ‘sensus Ecclesiae’ falam claro
e forte.

O ‘poder temporal’ da Igreja e, em particular, do


Papa foram, são uma desgraça histórica, uma miséria, um
castigo. Parece que o Espírito de Jesus decidiu que já é
hora de purificar a Esposa dessa chaga ‘mundana’.

%
Uma boa distinção: entre a constituição comunitária
da Igreja e a sua tentação ‘societária’. A Igreja não é
‘poder’ — diz González Ruiz — é ‘força’ no Espírito. A
Igreja não é uma sociedade perfeita: é um perfeito mistério
de Amor, agora na imperfeita vivência dos homens,
aqui na peregrinação terrestre e, no entanto, já na perfeita
glória de sua Cabeça, Cristo. Sendo instituição também,
a Igreja é mais esperança do que instituição.

Dizia São Cipriano que ‘o bispo está na Igreja e a


Igreja no bispo’. E contudo acrescentava contundente:
‘Não quero fazer nada por meu próprio parecer, sem levar
em conta o vosso consentimento e o do povo’.

Segundo Boros, a única prova convincente da existência


de Deus é a vida de seres humanos que amam ver-
dadeiramente ao próximo.”

Abril. Dia 8. “Passaram-se mais de dois meses sem


Diário. Será que eu já me disse tudo? Ou será, antes,
que comecei uma etapa de silêncio, de mais discreto viver?
A história, nossa história de fato se tornou mais discreta,
mais soterrada. Como a boa semente. Deus o
queira.

Há dias, estou tentando preparar meu livro para a


coleção El credo que ha dado sentido a mi vida... Acho
que se intitulará: Eu creio na liberdade dos filhos de
Deus. Escrever esse livro — autobiografia da minha fé —
servirá para rever com humildade e gratidão o itinerário
da graça de Deus sobre os anos de minha vida. Servirá
também para dar um pequeno testemunho de Liberdade
e Esperança. Coloquei o livro nas mãos de Maria, sob o
fogo do Espírito.

Já é Semana Santa. Outra vez, a Páscoa. Sempre a


Páscoa. Cada vez mais a Páscoa do Senhor Jesus.”

Maio. Dia 3. “Brasília. Faz três semanas que estou


dançando •— de São Félix para Goiânia, Brasília, São
Paulo e Campo Grande — por causa do julgamento do
Francisco no Superior Tribunal Militar. Foi interrompido,
a pedido do general Rodrigo Otávio. E por trás ou
por cima, agitaram-se as negociações da Embaixada e da
Nunciatura para conseguir que Francisco saísse do país.
Diplomaticamente auto-expulso, diríamos.
A meu modo de ver, um sujo jogo diplomático tanto
da Nunciatura como da Embaixada Francesa. Não discuto
a intenção. Suponhamos que seja diplomática simplesmente.
Não é a diplomacia o lugar mais adequado para a
Igreja de Jesus.

Delfim Neto, Andreaza e Buzaid... estariam em prisão


domiciliar. Altos boatos. E, segundo parece, vai reaparecer
cruamente nos tribunais e na opinião pública o
caso de Ana Lydia. (Confirmou-se posteriormente que, no
assassinato da menina, estiveram envolvidos um filho do
Ministro Buzaid e um filho do senador Eurico Resende.)
Muito lixo no poder.

Leio no El Ciervo uma crônica-recensão sobre Mareei


Légaut, o catedrático pastor de ovelhas. Seu último
iivro Búsqueda, fracaso y plenitud contém, ao que parece,
urnas magníficas meditações autobiográficas sobre a fé, a
oração, o fracasso fecundo, a pobreza do viver (não ser
nada senão só ser), a morte, a esperança...

A Editorial Guadalupe, da Argentina, que está ultimando


a impressão de Tierra Nuestra, Libertad envia-me
uma carinhosa carta de Ernesto Cardenal que aceita
prefaciar o livro.

E a grande alegria de maio: duas Irmãs de S. José


se responsabilizarão, como enfermeiras, pelo Hospital do
índio em Santa Isabel da Ilha do Bananal. (De fato, foi
somente uma. E agora, segunda quinzena de abril de
1975, faz urna semana, foi destituida de seu cargo injustificadamente,
por uma ordem superior da Aeronáutica.
Sempre em prejuízo dos indios. Este golpe foi particularmente
duro para mim, porque a presença da Irmã Mercedes
no Hospital do Indio, pertinho da aldeia Carajá,
era um sonho longamente acariciado...) Começou uma
nova era de paciente amor, de solícita caridade para com
os Carajá tão maltratados pela integração desintegradora.
Creio apaixonadamente nessa missão indígena.”

Dia 15. “Nada ainda sobre o processo do Francisco.


Outro ministro, o juiz civil Alcides Carneiro, pediu ‘vista’
também na quarta-feira passada. Talvez porque a sentença
ia ser condenatória, pois se trata de um juiz relati-
vamente ‘liberal’, segundo dizem. Francisco deve estar
muito impaciente, coitado.

Saiu ‘Y-Juca-Pirama’ (o manifesto de urgência sobre


a causa do índio que assinamos — um grupo de
missionários particularmente sensibilizados por essa causa
‘perdida’. Suficientemente incisivo e urgente. E também
o documento sobre o Encontro dos Caciques, em
Diamantino).

A causa do índio se me faz mais próxima, estes dias.


Dois Xavante, durante quase uma semana, tomaram refeição
em nossa casa, alegres, amigos. Ataú acaba de passar
com seu longo cabelo preto, seu corpo que foi esbelto,
já cansado, e seu ar de fino conhecedor da vida,
dos homens e das instituições. Só atende ‘amigo’, diz.
Não atende ‘conversa mole’...

Como nos melhores tempos dos fervores teológicos,


temos discutido, estas noites, Pedrito e eu, o mistério da
Ressurreição: o futuro da matéria, a ressurreição logo
após a morte, as idéias de Teillard, a singular Ressurreição
de Cristo, a Assunção de Maria... Temas fascinantes
que eu gostaria de discutir com um bom teólogo. Temas
que, afinal de contas, ninguém sabe. Mistério de Fé,
Esperança da vida. Um dia, veremos.

Seja como for, eu creio na glorificação do Universo.


Não sei como, mas creio que há-de ser. (Tinha escrito
também durante o processo — ‘espanhol que faz canção
ou está com raiva ou não tem tostão’ — uma espécie de
adeus à garça branca, à natureza amiga que me havia
acompanhado e inspirado durante esses anos. Uma despedida
que era também uma teillardiana Pequena Pro-
fissão de Esperança Total.)

Chegou Eunice com o pequeno Wampurã doente:


gripe, coqueluche talvez, verminose, anemia... Um tributo
dos pais e filhinho ao serviço fraterno aos índios.
Hoje precisamente lia em Opinião — 3 de junho de 1974
— os comentários de Glauber Rocha e Gustavo Dahl (o
diretor) sobre o filme Uirá: um relato-denúncia sobre a
tragédia e o futuro do índio. Diz Dahl: ‘No Novo Mundo,
do Estreito de Bhering à Terra do Foso, há quinhentos
anos, os índios esperam pacientemente que nós nos
civilizemos. E já estão perdendo as esperanças’.
...O P. Francisco foi absolvido pelo Superior Tribunal
Militar. Depois de um ano de prisão, a Justiça ‘revolucionária’
decide reconhecer que ele não é exatamente
um subversivo e anula a pena de 10 anos e deixa o processo
à justiça ‘comum’. Há várias espécies de Justiça:
Justiça comum, justiça militar, justiça justa... e Justiça
de Deus. A esta última recorremos, compungidos e
esperançados.

Francisco já está na França. Livre até que enfim.


O coitado desejou ardentemente a liberdade. Voltará?
Quando? Como?

O final de seu processo teve um ar de melancólica


imprevisão porque a verdadeira causa do nosso processo
total continua intocável, exasperante: O Povo continua
sem terra, sem esperança de terra, massacrado nos seus
direitos e aspirações pela Política oficial e pelos privilégios
dos grandes, que são a mesma coisa.”

No dia 18 de junho publiquei um documento: A causa e


a Esperança continuam que, com bastante clareza, muito bem
pensados o momento e as palavras, expressa qual era a atitude
da Prelazia diante desse final do processo do P. Jentel, misteriosamente
manobrado por várias forças diplomáticas mancomunadas
que prescindiram explicitamente de minha opinião e do
significado que tal manobra podia ter em uma visão mais crítica
e mais evangélica:

“Condenado a 10 anos de prisão pela Auditoria Militar de


Campo Grande, num julgamento-farsa, aos 28 de maio de
1973, o P. Francisco Jentel, desta Prelazia de São Félix, foi agora,
em 22 de maio p.p., absolvido, por unanimidade, no Superior
Tribunal Militar de Bras ;lia.

O ‘cn'me’ do P. Francisco, já não era mais ‘subversão’, ‘comunismo’,


‘guerrilha’. Então, a sentença dada pela Auditoria
Militar de Campo Grande era o que?

Com essa absolvição unânime, o Superior Tribunal Militar


reconheceu publicamente que o P. Francisco sofreu injustamente
um ano de cadeia: a Justiça Militar condenou a Justiça
Militar.

Não está ainda na hora de dizer uma palavra mais explícita.

Conste aqui, mais uma vez, nossa solidariedade com o


P. Francisco, com sua velhinha mãe e com toda sua família e
amigos. Ele, na França, está bem perto de nós. Na amizade
e na oração, estaremos sempre com ele.

Lamentamos, sim, profundamente, que ele não nos tenha


podido visitar, como todos nós esperávamos, como o Povo de
sua Santa Teresinha merecia.

Para ninguém de nós essa libertação do P. Francisco é


uma libertação total...

E certamente para ninguém de nós foi resolvida justamente


a sua causa: porque a causa da Igreja de São Félix não é a
causa ‘pessoal’ do P. Francisco Jentel. A verdadeira causa do
P. Francisco, que é a causa do inquérito da equipe pastoral da
Prelazia, que é a causa da Igreja de São Félix, são os direitos
básicos do povo da região, nunca atendidos, sempre desrespeitados,
hipocritamente postergados com espantalhos de subversão
e com assistencialismos baratos.

E porque essa é a nossa Causa, a nossa luta continua.

Gostaríamos de pedir às Autoridades mais ou menos interessadas


no caso — civis, judiciárias, militares, diplomáticas,
eclesiásticas — que nem se iludam nem iludam o povo.

Não se faz justiça com essa esquisita libertação do P. Jentel.


Ele é apenas mais uma vítima. Não se resolveu nada do
que verdadeiramente urgia resolver. Quando muito, ter-se-á resolvido
mais uma tensão entre a Igreja ‘oficial’ e o Governo
do país.

Pela Diplomacia somente se salvam os interesses dos grandes.


Os direitos do povo só se salvam com a Justiça.

E o Evangelho não é Diplomacia.

Tudo pode se salvar com a paz, dizem; tudo pode se perder


com a guerra. A mais funesta guerra, porém, seria uma
paz falsa — ou por hipócrita ou por ingênua ou por omissa.

Não posso acreditar nesses novos diálogos entre segundos,


na cúpula, quando, na base, o povo — que deveria ser o primeiro
— não tem vez nem voz para dialogar.

Há diálogos que só servem para comprar o silêncio.

Para quem achar estas minhas palavras rudes e intempestivas,


posso lembrar, por centésima vez, que o problema básico
da terra continua sendo o mesmo em toda a área de nossa Prelazia.
Falo do que sei e do que vivo diariamente.

Em toda a Ilha do Bananal; em Santo Antônio, Barreira


Amarela e beira do rio das Mortes; no Ribeirão Bonito e na
Cascalheira, no Barreiro, Piabanha e Mantinha; em Porto Alegre;
em Serra Nova e sertões contíguos; na Chapadinha e nas
proximidades de Luciara e São Félix... — o povo sertanejo
ou posseiro não tem terra nem perspectiva de um futuro
humano.

A própria aldeia dos índios Tapirapé, onde há mais de


20 anos o P. Francisco vinha trabalhando, ainda não tem terra
nem suficiente nem demarcada; e por quatro vezes sumiram
misteriosamente, na funai, as reclamações, e o povo vive recentemente
com a ameaça de ser cercado, na sua área urbana,
dentro do estrito limite da zona construída: ninguém poderá
amarrar um cavalo fora de casa...

Entretanto, as grandes Fazendas Pecuárias, oficialmente


incentivadas, multiplicam-se em número, em poder e em arbitrariedades.
E as muitas reclamações — por escrito ou por
visita pessoal; por denúncia do bispo, segregaticiamente impune;
ou por tímida exposição do povo — são sistematicamente
ignoradas.

Espero que os responsáveis não possam alegar desconhecimento


da problemática desta região tão badalada...

A todos os irmãos, na comunhão da Fé ou na paixão pela


Justiça, que nos vêm acompanhando tão entranhadamente,
dentro ou fora do Brasil, quero lhes repetir o que escrevi, aos
27 de maio, à Igreja de Campo Grande, mais próxima do
P. Francisco durante o ano de cárcere: ‘Se o modo diplomático
do desfecho da causa do P. Francisco — diplomático por parte
de quase todos os principais atores — não é precisamente uma
alegria de testemunho evangélico, entretanto o modo fraterno
como essa Igreja de Campo Grande acompanhou o Padre na
prisão é um testemunho e uma alegria que compensam. Contamos
ainda com a sua solidariedade cristã, pois a verdadeira
causa do processo continua: o nosso povo sem terra, sem
porvir...’

Continua a causa, e por isso — repito — continua a luta.


E certamente continua a Esperança.

Não somos nós que ditamos o projeto de Deus para a


História Humana:

— ‘Eu ouvi os clamores do meu povo, e desci para libertá-


lo...’, diz o Senhor (Ex. 3,7-8).

— ‘Vocês todos são irmãos’ (Mt. 23, 8); ‘amem-se uns aos
outros como Eu os amei’, disse Jesus (Jo. 15,12).

O que está assentado no trono garante:

— ‘Eu faço novas todas as coisas’ (Apoc. 21,5).


É o Espírito de Jesus Libertador que quer sua Igreja comprometida
na total Libertação do Homem. É Ele quem exige
desta pequena Igreja de São Félix um teimoso e arriscado compromisso
com o homem marginalizado — posseiro, índio ou
peão — que constitui o Povo e faz a História Humana destes
sertões.”

19

Agosto. Dia 20. “Escreve Roger Schutz em seu diário,


Que tua Festa não tenha fim, a 20 de agosto de 1969:

‘Faz hoje vinte e nove anos que eu descobria o lugarejo


de Taizé. Na comunidade, preferi sempre que nada
de especial se fizesse para comemorar este dia. Desde
os inícios de Taizé, neste lugar isolado, dia após dia,
tenho presente o Homem com ou sem Deus, vítima
dos poderosos’.

Já faz também vários anos que esta presença do homem


vítima marca minha vida. Particularmente durante
estes sete anos de Mato Grosso.

As últimas semanas, senti com um novo abatimento


o beco sem saída em que estão metidos os posseiros desta
região do Brasil. Não têm outra alternativa: ou passar
a ser peões ou aceitar uma indenização ridícula e lançar-
se, com esse passaporte sem destino, pelos caminhos da
miséria.

Temos pensado, discutido, rezado. E não sabemos,


muito bem o que fazer exatamente. Em todo caso, continuar
aqui. Na Esperança. Fazendo da Justiça uma causa
de vida e morte. Naquele que é o Justo.

A casa está sempre cheia de hóspedes, de visitas, de


choro de bebês, de confidências.

O calor aperta. Às vezes, a angústia. E a gente pretende


uma resposta ou uma sa'da que não se dará ‘ainda’,
‘aqui’.

Cristo Ressuscitado vive na Glória do Pai e no coração,


consciente ou inconsciente, de todo homem e no
centro do Mundo e de sua História.”
Dia 21. “Amanhã seria — ainda é talvez nas comunidades
tradicionais — a festa do Coração de Maria. A
Virgem de Nazaré. A Virgem de Belém. A Virgem do
Calvário. A Virgem de Pentecostés. A Virgem glorificada
com Cristo na Igreja viva. Sua Fé, sua fidelidade total,
sua abertura ao Espírito, sua entrega ao Filho e aos
filhos.”

Setembro. Dia 2. “Regressamos de Meruri. Vinha


conosco o pequeno Wampurã, vivo como uma brasa, quase
meu neto na ternura, para quem instintivamente penso
um futuro digno, uma luta de Justiça e de Liberdade.
Eu gostaria de vê-lo — aqui ou ali — envolvido numa
causa libertadora: talvez a causa dos índios entre os quais
está crescendo, livre e amado. Com Luís e Eunice, vinha
também a irmãzinha Mayie Batista.

Assistimos ao primeiro encontro regional de Pastoral


Indígena promovido pelo cimi (Conselho Indigenista Missionário)
e realizado na aldeia bororo de Meruri. Primeiro
de seis encontros regionais nas diferentes áreas indígenas
do país, que culminarão num encontro nacional.
E que, esperamos e queremos, sejam o princípio de uma
Pastoral Indígena nova. ‘Y-Juca-Pirama — aquele que
deve morrer — tem de viver. Não será sem luta. Há
muitos interesses e muitos desinteresses ameaçando o futuro
do índio.

Em todo caso o encontro de Meruri foi profundo e


excitante. Acompanharam-nos — aos missionários — um
chefe bororo e um chefe xavante.

Tivemos no penúltimo dia uma celebração — missa


e dança — à noite, no pátio, que nos marcou a todos.
Dificilmente esquecerei aquela comunhão que recebi da
mão de um bororo ritualmente vestido e pintado. Como
bispos, como autoridade sagrada, Tomás e eu fomos honrados
<com um brilhante diadema de penas de arara e de
gavião real — ‘pâriko’ — e marcados no rosto com o
vermelho urucum: 4In sanguine’, me dizia Tomás, enquanto
a índia nos ungia com mãos vermelhas e cheirosas.

O velho ‘Coqueiro’ — oráculo da tribo, praticamente


um ressuscitado porque conseguiu escapar da morte por
tuberculose gravíssima — contou-me o que nunca a nin-
guém tinha contado. Dizia ele: ‘A tradição genesíaca de
seu povo foi um encontro com um homem de fé. Eu sabia
tudo isso’ — advertia —; ‘Deus, a criação do homem,
a vida futura. Quando os padres falaram, acreditei’.

Linda a noção de Providência e de Previdência de


Deus. Deus cria o homem — depois de criar a casa do
homem — e do nada, de dentro da casa, o chama à vida,
ao mundo, na hora exata do nascer do sol... Fora, diante
da casa do homem, permanecia um círculo luminoso
de arco-íris como vestígio de Deus. O universo e os caminhos
do homem aí estavam e ele era um chamado.”

Dia 4. “Uma primeira ventania derrubou a igreja de


Luciara já no ponto de ser coberta.

Estamos esperando Canuto. De toda maneira, as


duas cartas que ele enviou confirmam o trágico diagnóstico
que pesa sobre os posseiros. O incra diz que existe
para defender a ‘propriedade titulada’. Sábio mito capitalista,
este na propriedade privada, sacralmente intocável,
com título reconhecido, a despeito de toda miséria e
de todo outro direito. Alguém se escandalizou quando escrevi
no meu documento pastoral que era preciso ‘demi-
tizar a propriedade privada’. Os fatos, cada dia, me confirmam
mais na mesma opção. Há outros direitos anteriores,
superiores. Aqui também se poderia dizer, corrigindo
velhos preconceitos, ego;smos inatos, que ‘minha
propriedade só começa onde começa a propriedade dos
outros’. Só posso ter se meu próximo também puder ter.

Uma advogada do incra — muito pouco honesta, sem


dúvida, tanto que depois foi expulsa do órgão — jogava-
me na cara, como acusação de evidentes influências nossas,
a resposta que ouvia, invariavelmente, de muitos posseiros
perseguidos: ‘Deus fez a terra para todos’. Sábio
e elementar sentido de Deus e do Direito humano!”

Dia 16. “Um advogado e três estudantes de Direito


de São Paulo estiveram aqui, uma semana. Traçamos com
eles um documento básico popular para, na impossibilidade
de fazer outra coisa, gritar de novo, dar ao povo uma
nova arma de teimosia. Esses rapazes se sentiram tocados
pela realidade social do camponês-posseiro e por uma
imagem diferente de Igreja, que desconheciam.
A viagem deles era patrocinada pelo grupo de Náo-
Violência. E, à margem de minha decisão ou conhecimento,
esse gesto era uma nova tentativa daquela política de
reconciliação que ‘Justiça e Paz’ e alguns hierarcas estão
tentando realizar comigo, depois da diplomática saída do
P. Francisco...

Choveu outra vez. Com temporal.”

“Escreve-me o diretor da editora Guadalupe de Buenos


Aires, comunicando-me que chegou, finalmente, o
prólogo de Ernesto Cardenal para o meu livro de poemas
(Tierra Nuestra, Libertad). Uma carta em verso, esse
prólogo, pelo qual valeu a pena esperar, como diz o
P. Gallinger. A notícia me conforta como uma mão amiga
no ombro.

Dizem que o Exército vai construir um quartel em


São Félix. E fala-se de novo do Território do Araguaia.
O delegado do incra me comunica que alguns propõem
São Félix como capital desse futuro território porque São
Félix é ‘quente’ na questão social.

Ontem meditamos na missa sobre as parábolas da


Misericórdia (A ovelha e a dradma perdidas, o filho pródigo).
Deus é bom, mais do que pensamos ou acreditamos,
mais do que dizem nossas interpretações da Bíblia
e da Moral. Deus ama o homem com um desvelo surpreendente;
há uma paixão pelo homem em Deus; uma
paixão que se fez Paixão em Cristo. É preciso reabrir
sempre o horizonte da confiança e reafirmar, cada dia, a
fé nesse amor esplêndido de Deus. Acostumamo-nos facilmente
a medir o coração de Deus pelas estreitezas do
nosso coração humano.”

Dia 21. “De Serra Nova, chega-nos a notícia de uma


discussão de Alita com o prefeito Yaldo Varjão. O tal
senhor ouviu uma série de verdades que, fazia tempo, precisava
ouvir. E não teve outra saída senão a vingança
covarde: exonerou a Alita de sua função de professora.

Geisel — segundo noticiou ontem o rádio, terá quarta-


feira um importante encontro-impacto com quatro ministros
e os Governadores do Pará, Amazonas, Goiás, Maranhão
e Mato Grosso: sobre pólos de desenvolvimento
na Amazônia.
Parece que se está precipitando a ‘hora’ desta região
e não será para o bem dos pequenos.

No dia 27 começa o Sínodo. E no mesmo dia 27 nós


começamos nossa Primeira Assembléia Diocesana. ‘A
Evangelização no mundo moderno’, ‘Somos Igreja, Povo
de Deus’. Para a Assembléia, nos servirá de ‘motor de arranque’,
como dizia um sertanejo de Ribeirão, a parábola
do tronco e dos galhos: Capítulo 15 de S. João.

‘...Nossa pastoral há de ser a pastoral do provisório.


O povo não tem lugar, não tem direito. Teremos de
acompanhá-lo nos solavancos do Espírito, em êxodo, em
luta.’

Estes dias, Mercedes foi ao posto Leonardo Vilas


Boas para dar assistência a Orlando, doente, parece que
da malaria 200 e tantas. Orlando e a irmã conversaram
muito. E ele manifestou desejo de se encontrar comigo.
Com seus defeitos e possíveis erros, um homem batalha-
dor, vítima de uma causa. Espero encontrá-lo um dia.
(Efetivamente encontrei-o pouco depois, efusivo, e falamos
longamente da causa comum e ele manifestou, nobremente,
como havia mudado de opinião a respeito da missão
e da Igreja entre os índios...)

Coloco no escritório que pomposamente chamamos


‘Prelazia’ — já ‘seqüestrado’ pela repressão — uma reprodução
fotografia de uma Nossa Senhora de barro, com o
Filho oferecido que frei Fernando me enviou. Disse ele
que a imagem foi inspirada no texto de uma carta que
eu lhes enviei, quando eles — os três dominicanos — es-
tavam no presídio Tiradentes:

‘Pedro amigo:

um povo é uma mulher,

uma mulher pobre.

Um pouco de nós,

um pouco de você,

um pouco de tantos que fizeram

da luta pela Justiça

seu modo próprio de amar.


Ao libertar-se
gera seu Libertador
e se torna

Nossa Senhora da Libertação!’

Dou uma olhadela no Boletim do Ano Santo, publicado


pela Comissão Central. É o número 5. Chega-me
grátis, suponho que por ser bispo.

Há dias que me esforço por reconciliar-me com o


Ano Santo da Reconciliação e não consigo. Paulo VI é
Papa e suas decisões, em todo caso, merecem meu respeito.
Não obstante, não consigo chegar a reconciliar-me
com o Ano Santo.

Jean Rodhain publica, neste n.° 5 do Boletim, um


‘Esboço de Prospectiva Sócio-Estatística sobre a Peregrinação
no Ano Santo de 1975’.

Nela, pretende refutar a convencer, inclusive fustigando


os ‘angustiados’, os ‘simplistas’ da pobreza, os ‘doutrinados
por clérigos hábeis’... Reconhece que alguns contestam
o Ano Santo por ‘preocupações apostólicas’.

Não sei em que categoria situar-me. Mas sei que


depois de ler o artigo de Rodhain sinto-me menos ainda
convencido da apologia do Ano Santo. Talvez o Ano
Santo seja só para cristãos dos mundos primeiro e
segundo...

Penso que não me falta sentido de peregrinação nem


nostalgia da Pedra e da História. Creio em Pedro. E desejo
furiosamente a reconciliação. Quem sabe se minha
ausência, minha distância — na fé obscura, na oração
silenciosa —, não vão ser a única contribuição válida que
eu possa dar ao Ano Santo da Reconciliação.”

Novembro. Dia 15. “Estou em Goiânia. Depois de


sofrer malária, uma falcíparum, asfixiante e debilitadora,
precisamente em sua fase aguda no dia 23 de outubro,
terceiro aniversário de minha ordenação episcopal... Durante
a doença, visitaram-me oito oficiais da Aeronáutica,
sumamente respeitosos, pedindo minha opinião sobre onde
seria mais adequado situar um campus avançado da usp,
se em Luciara, se em Santa Teresinha. Curiosa visita e
curiosa inquirição.
Foram umas semanas de febre, de convalescença, de
rica pobreza humana. Não sei por que tive a sensação
de que, com essa parada de doente, começava uma nova
etapa de vida. Afinal de contas, sempre estamos começando
e tudo é novo na Graça. Li mais. Rezei mais profundamente.
Tornei-me mais... agradecido.

Vou a São Paulo para participar da Assembléia-


Geral da cnbb.”

“Hoje, dia 15, o Brasil elege seus senadores e deputados:


é a única votação, mais ou menos grande, que não
se faz ‘indiretamente’. E esta vez, por realismo dos grupos
renovadores e por uma maior consciência do povo,
o mdb — único partido da ‘oposição’ (!) — está em bom
lugar na lista. Durante a campanha eleitoral, soprou
uma rajada, tênue, de liberdade. Pelo menos se pôde dizer
em público que alguma coisa não andava tão bem neste
país gigante.

Anteontem, eu conversava, em Goiânia, com uma


jovem senhora, casada e com dois filhinhos — uma menina
de 3 anos, com nome quechua e um nenenzinho de
meses. O marido está no exterior: é mais um desses latino-
americanos que, anonimamente, fazem a grande revolução
... Conversávamos com ela e nos entendíamos.
Chegava porém aquele tope de esperança ‘utópica’, de
pobreza evangélica — aqueles ‘outros’ meios para salvar
o mundo — e aí esbarrava sua lógica férrea.

Admiráveis irmãos na paixão pela Justiça, que podemos


e devemos acompanhar, com quem devemos caminhar
juntos. Sem necessidade de esconder, envergonha-
damente, a força gratuita da Fé que nós possuímos, ou
melhor, que nos possui a nós, os cristãos.

Faz uns dias, tive uma conversa semelhante com um


grupo de catedráticos e intelectuais mineiros que buscam
uma experiência rural, de liberdade para suas vidas, a
partir de uma opção marxista de contestação da presente
sociedade.

O Povo, na Prelazia, continua resistindo como pode.


A ‘teimosia’ popular é um manancial de energias de sobrevivência.
Ou é o instinto de sobrevivência o manancial
da ‘teimosia’ do povo... ”
Dezembro. “Do dia 10 ao dia 17, tivemos, em Santa
Teresinha, o segundo encontro anual de toda a equipe
pastoral da Prelazia. Um encontro de uma semana
para dar tempo ao estudo, além de fazer a habitual revisão
do trabalho e a programação para o novo semestre.

Acompanhou-nos como uma senha a carta de Edgard


preso em São Paulo.

Refletimos sobre a Teologia da Libertação dentro de


um contexto de Igreja Particular: nossa Igreja de São
Félix, no caso; aqui e nesta hora. Definimos o que é ‘vivência
da fé’ e comunhão e comunicação desta Fé cristã,
a partir do Evangelho, da História e da Realidade. Sentimos
em grupo o problema particularmente sentido em
toda esta América Latina, da religiosidade popular — sustento,
amuleto, alienação e vida de nosso Povo: tudo de
uma vez, em uma delicada promiscuidade. Pelas circunstâncias
concretas que a perseguição criou em torno de
nós, sentimo-nos como chamados a ser, modestamente,
fielmente, uma pequena Igreja ‘de fronteira’: existe alguém
que, por meio de nós, dialoga com Cristo; na desesperada
luta de muitos espíritos generosos que ‘lutam ao
nosso lado, sem saber que sua luta é, em Cristo, Salvação’,
nossa Esperança é um chamado e uma luz. Rezamos
intensamente. Abafou-nos, em certo momento, a
sensação de boca sem saída em que nosso Povo está encurralado.
E essa mesma sensação nos devolvia, como em
marés, Aquele que é a Rocha, em cujas mãos glorificadas
estão, para sempre, os Caminhos já libertados dos
homens... A Eucaristia final foi uma Eucaristia dos
Atos dos Apóstolos: o Senhor estava presente em nosso
meio. Era preciso continuar crendo com uma total
disponibilidade.

Voltando, dois dias de barco pelo Araguaia, a equi-


pe-comunidade — mista desexo, de vocações e de possibilidades
— expandia-se nas canções, nos diálogos e
nas brincadeiras com uma confortante coesão de família
apostólica.”

Dia 25. “De todo modo é Natal. Autêntico Natal


porque é Pobreza e vontade de Redenção e um insubor-
nável desejo de fazer da Justiça a verdadeira paz. Cristo,
o Fi'ho de Deus, é filho de Maria, membro de nosso Povo
humano”.
Dia 29. “Não há jeito de escrever com um pouco de
continuidade este Diário asmático.

Acabo de ler, atrasado, uma síntese de Conversacio-


nes en Madrid de Raimundo Paniker: a intelectualidade
espanhola ou, pelo menos, a notoriedade espanhola, entre
cética e dogmática, com bastante liberdade de expressão
— um pouco formal e burguesa essa liberdade, talvez
muito distante do Povo — e com urna boa contribuição
de Joaquim Juiz Giménez.

Justamente hoje um jovem casal de turistas sem pretensões


(ele, engenheiro do Metrô de São Paulo, ela, estudante),
entre outras coisas eclesiásticas e políticas, per-
guntavam-me sobre o Opus Dei, sobre os cursilhos, sobre
o futuro da Espanha...

Mais dois jovens dos já numerosos que nos visitam,


atraídos por uma sintonia de inquietação e opção, chamados
pela luzinha desta candeia sertaneja da Igreja de
São Félix.

Aqui e ali — na ‘civilização’ — a juventude de idade


e a juventude de espírito nos acompanham efetivamente.
E às vezes a gente pensa que nossa missão, o ‘carisma’
particular de nossa Igreja — ela tem o seu carisma,
não? — talvez esteja tanto aqui como lá, numa espécie
de testemunho à distância. E quem sou eu para saber?
Os caminhos de Deus se entrecruzam. E a Graça tem
seus múltiplos vasos comunicantes. Às vezes faço revisão
destes sete anos de Mato Grosso e dos motivos conscientes
ou subconscientes, de qualquer modo providenciais,
que aqui me trouxeram e aqui me seguram e sinto que
na Igreja, na Humanidade salva por Cristo, não há distâncias
nem hiatos. Todos estamos, somos e fazemos em
todo lugar, em todos os lugares de uma só vez. A comunhão
dos santos é verdade.

Eu dizia que a juventude nos acompanha. O ‘ideal’


da justiça tem entre ela seus bons adeptos; como os têm
o ideal-fuga das drogas e o ideal-instinto do sexo; o ideal-
barulho-exibição dos carros ou motos último modelo e o
ideal-cobiça crassa do bom fim de curso e da profissão
que rende mais e do futuro lucrativamente garantido...”

1975. Fevereiro. Dia 23. “A catarata aumentou e estou


com a vista nublada. O fígado está caprichoso como um
avô aposentado. Comemorei o 47.° aniversário de, diga-
mos, existência. A barba, branca quando cresce, me denuncia.
Canso-me facilmente. Depois dos quarenta, dizia
o P. Viñas — suave, sensato, querido vigatá —, aparecem
os achaques.

Por temperamento e por responsabilidade, angustióme


com freqüência. Sinto perto a miséria, a sociedade
aparentemente sem saída, a morte. Tenho a sensibilidade
do humano caduco à flor da pele... (Penso que sintonizo
bastante com isso que umas vezes chama de velhice,
outras de pessimismo cristão o nosso obstinado e fiel padre
Llanos do Pozo dei Tio Raimundo, cuja juventude impenitente
sacudiu a tantos durante um terço de século.)
Tenho também uma maior consciência de Fé, uma experiência
mais próxima, mais real, mais simples, mais definitiva
da Esperança. Creio, ‘sei’ que ressuscitaremos e que
o Mundo todo caminha imperturbavelmente para sua glorificação.
Já não me é possível deixar de crê-lo.

Hoje morreu, debaixo do pranto desolador de sua


mãe, uma indiazinha gorotiri das florestas do Pará. Não
houve remédio para ela no Hospital do índio. Morreu
de um excesso de vermes. A Irmã Mercedes, que eu sinto
como uma presença delegada no mundo indígena que
nos rodeia, assistiu à mãe e à filhinha delicadamente; e
agora, três horas da tarde, com um sol contemplativo de
domingo e de próximas chuvas, Mercedes vai para o gorotiri
com a mãe desolada e a filhinha morta. Longe de
seu povo e de seus ritos funerais, a pobre mulher sentia
maior a morte, enquanto batia no peito, no corpo, com
murros de solidária dor”.

E aqui acabava por enquanto, pelo menos, este Diário que


me vem expressando, a balbucios, desde o primeiro mês de
agosto que vivi no Mato Grosso.

20

Na missão, na Prelazia, a vida — esta vida que vai dando


sentimento ao meu credo — fez-se calma, retraída, encolhida
como uma fera de sertão.
A repressão “oficial” — existe, em todo o país, uma repressão
“oficiosa” que, justificando-se, o Governo chama de “poder
paralelo” — mudou de jogo e de táticas. Já não interessa provocar
escândalos, dialoga (sobretudo com a Igreja que interessa
ter como aliada no confronto de forças internas contraditórias),
dá a mão, amordaça cortezmente e... segue seu caminho.
É norma diplomática na cúpula do Governo, por arte
sobretudo, crêem alguns, da eminência parda que é o general
Golbery do Couto.

A “Revolução” sempre se interessou mais pela imagem do


Brasil do que pelo Povo do Brasil. E as boas relações com a
Igreja oficial constituem um elemento indispensável para essa
boa imagem.

Conste, em honra da verdade, que nem todos os bispos —


para citar os da minha “classe” — pensam assim. Muitos deles
acreditam nas boas intenções do Governo-Geisel. Eu penso,
trocado em miúdos, que quem manda não é Geisel, nem seu
Governo nem esse Regime. O Sistema é anterior e superior
a eles e quem manda é o Sistema, programadamente
capitalista, diabolicamente multinacional, estrategicamente “latino-
americano”.

Alguns, bispo ou não, gente até demais, crêem num diálogo


a nível de poderosos. Não sou especialista em História ecle-
siásica, mas farejo que esse diálogo, há séculos, se mantém,
com as melhores intenções, é claro, e com os resultados que
estamos vendo aí. Desconfio dele pois não mq parece nem democrático,
nem eclesial e, por isso mesmo, não me parece um
diálogo no qual, honestamente, ,eu possa entrar. Levamos muitos
séculos de concordatas e convênios com o Poder, à custa
dos pobres. Sendo ou não sendo nisto Constantino o protótipo
dos culpados.

É certo que o Governo de Geisel está fazendo revisão dentro


das atribuições que lhe são dadas. Estamos, por isso mesmo,
em hora de pausa, de prospectiva. Pelo que nos toca mais

de perto, o Governo-Geisel criou o “Polamazônia” — 15 pólos


de desenvolvimento para toda a área da Amazônia legal. Com
um potencial fabuloso de cruzeiros e de empreendimentos subsidiários.
Fundamentalmente para potencializar a pecuária e a
mineração. Para facilitar a industrialização do campo — segundo
as teses do Ministro da Agricultura, Paulinelli ■—, oferecendo
a magna oportunidade às empresas poderosas do país e às

multinacionais. Posteriormente, corrigindo em parte, sobrepondo-


se, foi criado também o “Pólo-Centro”.
Na historia paternalista da “Revolução”, há urna escarmentada
experiencia de “projetos impactos”, de “pro” tal e “pro”
qual, com a Transamazónica, agora desprestigiada e outras grandiosidades
rebaixadas a menos. Tudo isso faz a gente andar
com cautela.

O certo é que os pequenos agricultores da região — nossos


posseiros — sem alardes, mas sem apelação, têm que ceder,
têm que sair. Dentro do Polamazônia, somos o “Pólo n.° 1”,
destinado exclusivamente à pecuária. Os peões, de seu lado,
vão passando do regime de escravidão das grandes fazendas ao
regime do desemprego forçado. As derrubadas, a queimada, a
plantação dos pastos, tudo está se mecanizando e a mão do
homem já sobra. Além disso, já é conhecida, de antiga data,
essa segunda fase de desemprego que se cria nos latifúndios
pecuaristas, uma vez terminado o trabalho grosso de penetração
inicial e de implantação do gado.

Os índios estão sendo inexoravelmente cercados pelas estradas,


pelas fazendas, pelas empresas de mineração. Os últimos
Ministérios do Interior repetiram até cansar a tese permanente
do Regime da Revolução em relação aos nossos Povos Indígenas:
integrar-se aos nossos, na “comunidade nacional”, integrar-
se o mais depressa possível, fazer-se elementos de produção;
não obstaculizar o progresso nacional desenvolvimentista.
Os maiores “sertanistas” do País — os especialistas do contato
com os índios — expressaram-se dramaticamente sobre essa integração
desintegradora. Em um mea culpa histórico, eles mesmos
se consideram como artífices, fatalmente usados, do extermínio
das Nações Indígenas.

O Capitalismo, vetero ou neo, com luvas ou sem luvas, é


inexorável. Nele os “pequenos” contam somente na medida em
que servem anonimamente ao mecanismo da engrenagem todopoderosa.

Os pequenos e os médios e até os menos grandes. “Agora


somente constam os enormes”, dizia-me recentemente um ex-
gerente de fazenda. “As multinacionais”, acrescentava. Como
não sou especialista em História eclesiástica e menos ainda o
sou em Economia Política, fico calado e que fale o tempo!

Estou falando da “vida que tem dado sentido ao meu Cre-


do” e, depois deste longo rodeio de vivências e páginas de Diá-
rio, cheguei ao fim.
Continuo como bispo neste “fundo de mundo” do Norte
de Mato Grosso. Face aos programas e às intenções do Poder,
a equipe pastoral da Prelazia — bispo, padres, religiosos, leigos
—, procurando ser fiel àquela opção básica a que não podemos
renunciar, continua espalhada em pequenas comunidades
mistas, pelos diferentes “patrimonios”, num trabalho de
educação informal e de assistência sanitária fora dos quadros
oficiais; de conscientização global e diária; de Evangelização
concreta ou difusa; de pastoral dos sacramentos, de celebrações
eucarísticas ao nível da vida; de formação lenta, paciente, de
pequenas comunidades, sem deixar de lado a massa informe,
porém majoritária...

O Evangelho é um fermento escondido, uma pertinaz semente


enterrada. Também, é claro, nesta mínima Prelazia infinita,
marcada e tenaz, do Nordeste de Mato Grosso, na “badalada”
Amazônia legal, no próprio coração entranhável do
Brasil...

21

Com o número 20 desta primeira parte do livro, dei uma


síntese panorâmica de minha apreensão a respeito do Brasil,
naquele “verão” de 1975, sobretudo no que se referia à nossa
Amazônia e ao destino ameaçado de seus homens, esquecidos
pelos programas oficiais. Contava também o estado de ânimo
da Tgreja de São Félix, naquela hora de calada semeadura.

No Alvorada de maio, comunicávamos uma novidade


amarga:

“Coincidindo com a ‘Semana do índio’, os índios de


nossa região, e sobretudo os Karajá, e todos os que
amamos sinceramente o índio, vivemos um fato entris-
tecedor:

A irmã Mercedes, a querida ‘Lubedero’ dos Karajá,


enfermeira do Hospital do Índio, em Santa Isabel da
Ilha do Bananal, foi destituída injustificadamente do seu
cargo.

O presidente da funai, General Ismarth, declarou à


própria irmã Mercedes que essa destituição era ‘por
ordem superior da Aeronáutica’; e que a funai nã©
tinha nenhum reparo a fazer ao trabalho profissional da
Irmã..

Em junho, e em Goiânia, sob o patriarcal auspício de


Dom Fernando, o arcebispo sempre acolhedor e sempre na
trincheira do compromisso com os irmãos, realizaram-se duas
importantes reuniões que, a meu ver, marcam época na pastoral
da Igreja do Brasil:

— o Encontro de Igrejas da Amazônia Legal sobre os


problemas de Terra e Migração, e

— a I Assembléia Missionária Indigenista, organizada


pelo ciMi — Conselho Indigenista Missionário.

No primeiro encontro, era criada a Comissão Pastoral da


Terra — cpt —, atualmente com 14 organismos regionais,

— além do secretariado central — espalhados pelas áreas mais


candentes do Brasil, no que se refere à terra, e que está dinamizando
a consciência e a responsabilidade da igreja nacional
e da opinião pública em torno da problemática agrária.

No segundo, traçavam-se as linhas de ação e a progra-


mação concreta da nova Pastoral Indigenista, no tocante à
Terra, Cultura e Autodeterminação do índio-, e no tocante à
Encarnação, Conscientização e Pastoral Global, por parte dos
missionários indigenistas e suas igrejas.

Este Documento da I Assembléia Missionária Indigenista


equivale a uma Carta Magna do cimi,’ válida por um longo
futuro, pedra de toque para toda pastoral renovadamente responsável
— antropológica e evangélica — entre os Povos
Indígenas.

Dia 7 de julho tive de publicar uma Nota de esclareci-


mento por causa das insidiosas notícias aparecidas na TV Globo

— a rede nacional de televisão com maior audiência, em todo

o Brasil — sobre uma suposta folha . Alvorada que estaria


assinada por mim e ilustrada fantasticamente com uma cruz
e uma foice, com “um texto da China comunista” (!), no
qual eu estaria incitando o povo à luta armada, por meio dos
Sacramentos,... . .

Ninguém na região da prelazia viu essa folha fantasma


que a TV Globo mostrava a todo o Brasil.

“Sobre essa ridícula notícia — concluía eu — quero apenas


lembrar:

1. Folhas semelhantes foram de fato espalhadas


pelas forças da repressão, em São Félix (dia 19 de
agosto de 1973), e em outras áreas do País, inclusive
dentro de algumas igrejas.

2. Não é novidade a campanha de difamação que


está se movendo no País contra alguns prelados, como,
por exemplo. Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal-arce-
bispo de São Paulo, e Dom Ivo Lorscheider, secretário-
geral da cnbb.

3. É curioso que coincidisse essa notícia da TV


Globo com a celebração do Encontro Pastoral da Ama-
zônia sobre problemas de terra e migração.

4. Qualquer pessoa mais ou menos esclarecida sobre


a conjuntura nacional e o relacionamento Igreja-Sistema
e, no caso, sobre os interesses e ligação da Rede Globo,
poderá compreender facilmente o significado dessa covarde
campanha.”

Dia 17 de agosto de 1975 — encerrando a novena da


Assunção, padroeira de São Félix — inaugurávamos a catedral.

A primeira igrejinha do lugar, feita em parte de adobes


de barro, não agüentou os vendavais daquela margem aberta do
Araguaia, e tivemos que derrubá-la. A nova igreja, nossa catedral,
está quase no pé do morro que protege a cidade, no
centro das novas ruas por onde São Félix se expande.

Pedrito projetou-a e dirigiu as obras. Simples, como um


galpão funcional, mas bela. Doze colunas de quina, estriadas,
sustentam o teto sem forro, recordando os doze Apóstolos.
Umas peneiras de palha dos índios Tapirapé fazem de que-
braluz e dois potes karajá, de pia batismal.

Dom Aloísio Lorscheider, presidente da cnbb, esteve conosco


na festa da sagração da catedral, marcando comigo, com
urucum vermelho, as cruzes esculpidas nas colunas. E assistiu
à peça teatral que eu escrevi e a rapaziada representou aqueles
dias: Povo de Deus no Sertão. Essa representação fez reviver,
para velhos e jovens, alguns com lágrimas, o itinerário realmente
vivido pelos índios encurralados e pelos sertanejos retirantes
da região. Mais tarde, essa espécie de auto sacramental
seria incluído nos autos do meu processo como um documento
subversivo. Efetivamente, não há nada mais “subversivo” que
a dura vida do Povo!

Da Espanha, em nome de tantos amigos fiéis, veio acompanhar-


nos José Maria Alsina, com sua cabeça branca luminosa
e seu afetuosíssimo coração.
A presença de Dom Aloísio já era um gesto peculiar de
solidariedade, porque estava sendo forjada, aqueles meses, urna
nova tentativa de expulsar-me do Brasil.

Alvorada publicava, a 20 de setembro, um “Comunicado


Urgente”, assinado pela Equipe Pastoral da Prelazia, sob este
título:

“Querem expulsar do País nosso bispo Pedro”

Nele se destacava que esse processo de expulsão pretendia


considerar-me como um simples cidadão estrangeiro, prescindindo
de minha condição de bispo. (“Eu sou bispo ‘acidentalmente’,
como diria mais tarde, já em maio de 1977, um editorial
de O Estado de São Paulo, que também pedia, desafiando
os brios do governo, minha imediata extradição. O
próprio Núncio Apostólico, Dom Carmine Rocco, exercendo
suas funções de diplomata, sondou, com algum bispo muito
significativo, que êxito poderia ter, dentro da igreja brasileira,
essa distinção nominalista.

O “Comunicado Urgente” recordava:

“Agora, em julho e agosto, o delegado de Polícia em


São Félix e outros oficiais vindos de Barra do Garças
e Cuiabá procuraram com insistência fotografias de Dom
Pedro. E alguns deles anunciaram que em breve ia estourar
algo muito grave contra o bispo e os padres de
São Félix.

Elementos oficiais alertaram Dom Pedro que sua


vida corria perigo que da parte do Governo se armava
um processo contra ele e que poderia ser preso a qualquer
momento.

Também a presidência da funai recentemente proibiu


a Dom Pedro e a mais dois missionários entrarem em
áreas indígenas; dando ordem de prisão caso visitassem
essas áreas.”

Contava como a cnbb acabava de tomar medidas oficialmente;


como a opinião pública e a solidariedade da Igreja
nacional estavam se manifestando profusamente; que vários
bispos, por intermédio do Cardeal Arns, levavam ao Papa uma
palavra de protesto contra a manobra do Governo e um voto
de amizade para comigo.
O “Comunicado” advertia ainda:

“Mesmo se um dia fosse expulso, Dom Pedro Casal-


dáliga, dentro ou fora do País, continuaria sendo o único
bispo legítimo desta Prelazia de São Félix. Nenhum poder
deste mundo pode tirar de Dom Pedro o caráter de nosso
bispo que o Espírito Santo lhe deu naquela consagração
de 23 de outubro de 1971 que todos nós acompanhamos
emocionados.”

Em outubro. Alvorada reproduzia o clima de ameaças que


pairava sobre o Povo da Prelazia; desmentia o desmentido de
“autoridades do Governo federal”, que negaram para a presidência
da cnbb a existência de qualquer intento de expulsar-me;
e compilava a onda de adesões e de comunhão que nos chegava
de toda a Igreja nacional e de outras partes do País e do
estrangeiro.

Em novembro, o mesmo Alvorada noticiava, com compreensível


satisfação, com apostólico revide, digamos, o encontro
de Dom Paulo Evaristo com Paulo VI:

“O Papa mostrou-se muito sensibilizado e solidário


com o Povo de Deus destes sertões e com seu bispo perseguido.

Ao final, disse o Papa a Dom Paulo Evaristo que


os bispos e missionários que trabalham nestas regiões do
interior são verdadeiros heróis, e que mexer com o bispo
de São Félix seria mexer com o próprio Papa.”

Este último trecho, sublinhado, não deixando por menos...

Estando assim as coisas, a aldeia Tapirapé acabava de receber


uma visita ameaçadora da Dra. Giselda, geóloga, do
Dr. Alceu, do dgpc, do Sr. Quirino, agrimensor, e do Chefe
do Posto Indígena local, Sr. Juraci Andrade, todos da funai,
acompanhados pelo Dr. Eduardo, um dos diretores da Companhia
Tapiraguaia, que é a fazenda que discute com os índios
Tapirapé o indiscutível direito deles às terras.

A visita foi realmente agressiva: para os índios e para


a missão. Inclusive com a ameaça de transferir os Tapirapé
para o Parque Xingu ou para a Ilha do Bananal. A isso, um
Tapirapé respondeu nobremente que eles “não eram gado da
FUNAi para serem levados de um lugar para outro”. E, às insinuações
da Dra. Giselda sobre quem teria dito aos índios que
aquela área era sua, outro Tapirapé replicou: “Nós também
temos cabeça e sabemos pensar e sabemos o que precisamos”.

Diante disso, penso que não é de admirar que se queira


expulsar do Brasil um bispo que, afinal de contas, é estrangeiro,
quando se espulsam facilmente de seu habitat ancestral os mais
legítimos habitantes desta terra.

De qualquer forma, era tempo de expulsão.

O padre Francisco Jeniel, saído do Brasil na mais inocente


paz “romana” — para alguns —, voltou ao Brasil, com
todos os seus direitos, quer-me parecer, em dezembro daquele
ano de 1975. E em Fortaleza, hóspede de Dom Aloísio, era
seqüestrado violentamente em plena rua por agentes do Exército
e conduzido ao Departamento de Polícia de Fronteiras, no
Rio, de onde foi oficialmente expulso, dia 16.

O Governo pretendeu dar explicações, baseando-se em um


suposto “pacto” que teria feito com a cnbb, com vistas à saída
definitiva de Jentel; mas a cnbb — sua presidência — negou
isso, redondamente.

Escrevi uma carta aberta sobre a expulsão de Francisco,


no clima agridoce daquele Natal:

“O nosso Padre Francisco acaba de ser expulso do


Brasil.

O Governo do País, com esta injustiça, como que


fecha toda uma cerca farpada de injustiças com que
certos fazendeiros, políticos, militares e policiais vinham
apertando, faz anos, a vida e o trabalho do Padre Francisco.

Mas esta é, entre todas, a maior injustiça, publicamente


oficial. O decreto de expulsão do padre foi acionado
pelo Ministro da Justiça, Armando Falcão, e assinado
pessoalmente pelo próprio Presidente da Nação,
Ernesto Geisel.

Com esta expulsão do Padre Francisco é o Brasil


oficial que suja as mãos e o coração na injustiça. Porque
quem expulsa o Padre Francisco não é o povo do
Brasil.

Quem o expulsa é o poder do dinheiro das grandes


empresas nac’on?>is e estrangeiras: a cobiça dessas com-
panhias latifundiárias, como a Codeara, cuja desumani-
dáde todos nós temos sofrido na própria carne e até na
carne dos filhos; a força arbitrária desses políticos, militares
e policiais a serviço desse dinheiro e dessa cobiça,
q não a serviço do povo e da Pátria...

Para eles, a vítima única dessa expulsão é o Padre


Jentel.

Para nós, a verdadeira vítima dessa injustiça é, mais


uma vez, o povo.

Para esses donos do dinheiro, da política e da força,


expulsar o Padre Francisco é satisfazer uma vingança e
calar uma voz destemida que os incomodava nos seus
escusos projetos.

Para Deus e para nós, a expulsão do Padre Francisco


é mais um sacrifício humano e cristão que nos une
ao sacrifício libertador de Jesus.

E para Deus e para nós o sacrifício do Padre Francisco,


ausente, será mais uma voz de justiça e de Evangelho,
presentes, que ninguém poderá calar.

Na madrugada do dia 16 deste mês de dezembro o


Padre Francisco foi embarcado para a França, proibido
de nunca mais voltar ao Brasil. Não temos podido ainda
falar com ele, nem temos recebido carta dele depois de
súa expulsão... Sabemos, porém, o que ele pensa e o que
ele sente nesta hora.

Por causa do Evangelho, por amor aos pobres, ele


veio a este interior do Brasil há 21 anos. E pela causa
do Evangelho dos pobres ele foi perseguido e condenado,
e passou prisão e agora foi brutalmente seqüestrado e finalmente
expulso do País.

Esta foi a sua causa. E esta causa continua. O Evangelho


de Jesus deve ser para nós, como era para o Padre
Francisco, a luz que nos trace o caminho, a força que
nos comprometa até a prisão e até a morte em favor
dos irmãos oprimidos e pobres.

Esta causa continua:

— porque vocês, os índios, não são respeitados e


nem contam vocês no chamado ‘desenvolvimento do
Brasil’;

— e vocês, posseiros e famílias retirantes, ainda não


têm terra nem direito, e cada vez mais parece se apagar
a esperança de tê-los um dia;
— e vocês, trabalhadores desta região sem lei, estão
ficando sem lei e sem trabalho.

As fazendas de gado se multiplicam e se multiplica


também sua confusão e até o seu fracasso. O incra se
sente cada vez mais impotente e a repressão aos que defendem
a terra e o direito dos pobres, cada vez mais
aperta e se desumanisa. E até muitos, dentro e fora da
igreja, estão se cansando de gritar a verdade e de esperar
lutando e de ajuntar as forças da libertação.

Nós, irmãos, povo de Deus desta Prelazia de São


Félix, para sermos fiéis ao Evangelho de Jesus Cristo e
para não deixar infecundo o sacrifício do nosso Padre
Francisco expulso, devemos reagir com nova coragem.

Deus está conosco. E o Brasil verdadeiro também.


Conosco está a História que caminha para a justiça, para
a liberdade, para a irmandade.

Somos o povo da esperança. E a esperança ninguém


expulsa do nosso coração. Saberemos rezar. Saberemos
teimar. Saberemos plantar. Defenderemos nossa terra e
nossos direitos. E nos uniremos a todos os que, como
nós, sofrem, e como nós lutam e esperam.

E vamos celebrar este Natal de 1975 em companhia


do nosso Padre Francisco, cada vez mais presente entre
nós.

Natal é um mistério de fé, mas é também um desabrochar


de vida. Jesus nasce verdadeiramente lá onde
brota um pé de justiça, onde os homens se reconhecem
e se amam como filhos de Deus, onde os oprimidos se
libertam.

Seja este, para toda a Prelazia de São Félix, um


Natal de verdade, irmãos!” (sedoc, n.° 89, março de
1976.)

22

Entrei em 1976 pela porta de uma sala de cirurgia. Dia


6 de janeiro, festa da Luz, por ser a Epifanía do Senhor, fui
operado de catarata no olho esquerdo. Pela mão especialista
do Dr. Durval, de Goiânia. Com isso consegui uns dias de
repouso e de oração, no abrigo da sempre fraterna acolhida
dos Clareíianos da Avenida Paranaíba. Ouvi rádio até enjoar.
A bbc, particularmente, que já nos é familiar. E pude fazer
um balanço das músicas (e das tolices) que tantas emissoras
de rádio e de tv proporcionam ao Povo...

Dessa catarata guardo a lembrança de um poema que escrevi,


enxergando já enevoadamente, no mês de agosto anterior,
a caminho de Meruri, acompanhado de quatro índios Tapi-
rapé e ruminando pó, preocupações e estrada, sob o sol embaçado
pela fumaceira vermelho-parda das queimadas do
Latifúndio:

Olhos Novos

Então verei o sol com olhos novos


e a noite e sua aldeia reunida;
a garça branca e seus ocultos ovos
e a pele do rio e sua oculta vida.

Verei a alma gêmea de cada homem


na inteira verdade de sua querência;
e cada coisa em seu primeiro nome
e cada nome em sua realizada essência.

Confluindo na paz do Teu Olhar,


verei por fim a encruzilhada certa
de todos os caminhos da História

e o reverso de festa da Morte.

E fartarei meus olhos em tua Glória,


para sempre mais ver, ver-me e ver-Te.

Para a Semana Santa escrevi outro “auto sacramental sertanejo”,


sobre a Paixão e Morte do índio entre nós: Paixão e
Morte de Txetxúiã. Txetxúiã é o modo fonético com que os
Tapirapé falam de Jesus...

A paixão pelo índio — sua Paixão — fazia-se cada dia


mais presente em minha vida.

A 16 de maio, a Comissão Pastoral da Terra publicava um


documento enérgico apelando em favor dos posseiros de Cas-
calheira e Ribeirão Bonito, tantas vezes acossados pelas arbitrariedades
dos grileiros e fazendeiros invasores e da Polícia,
e, nos últimos tempos, sob a ação, ainda não-esclarecida, de
Erlane Penalva, meio ladrão, meio instrumento de forças
maiores. O próprio dr. Francisco de Barros Lima, que foi
presidente de nosso inquérito policial e agora é Chefe da Polícia
Federal no Estado de Goiás, me dizia mais tarde que
Penalva “tinha tratado mal a todos nós: aos posseiros, ao bispo,
à Polícia...! ”

Nenhuma autoridade, entretanto, preocupou-se em cortar-


lhe os passos, apesar da publicidade que o caso Penalva
teve.

Chegou o mês de julho. E em Meruri — a entranhada


aldeia dos índios Bororo — fez-se uma histórica “aliança no
sangue”, entre o índio e a missão.

“Às 11 horas da manhã do dia 15 de julho, a Colônia


Indígena de Meruri, no Leste mato-grosssense, foi
atacada por 62 fazendeiros armados, cujas terras estão
dentro da reserva Bororo, que começara a ser demarcada
pela funai na antevéspera. O Padre Rodolfo Lun-
kenbein, missionário salesiano, de 37 anos, e o índio
Simõo Cristino foram mortos; outros quatro Bororo ficaram
feridos. Um dos atacantes também morreu, atingido
por uma bala perdida de seus próprios companheiros.”
(Movimento n.° 56, julho de 1976 — os grifos
são meus.)

Aquele mesmo dia 15 eu tinha escrito uma carta ao Padre


Rodolfo e a seu companheiro, o bom Padre Ochoa, colocando
em letra maiúscula o nome de Rodolfo, por uma inconsciente
distração que viria a ser profética. Aquele homem alemão,
generoso, alto de corpo e de espírito, puro em seus olhos de
criança, azuis, e aberto sempre em sorriso, seria o primeiro
a selar os compromissos assumidos na I Assembléia Missionária
Indigenista de Goiânia.

O missionário já não morria matado pelo índio, como nas


antigas histórias. Morria pelo índio, amado na totalidade de
seu ser e de seus direitos, visto não apenas como uma alma
a salvar. Morria pela Terra do índio que estava sendo invadida,
demonstrando assim saber muito bem como — segundo o
Parlamento índio de San Bernardino, de outubro de 1974 —
“o índio é a própria terra”.

E o índio — neste caso o doce e fiel Simão, aquele que


“nunca zangava” — morria pelo missionário. “Só para acudir
o padre”, como dizia o velho cacique Eugênio — Aidji Kuguri
—, Simão morria e outros quatro Bororo ficavam feridos. Só
para socorrer o padre: “de mãos limpas, de corpo limpo”, que
“nem canivete eles tinham consigo”.

Eu fui a Meruri, com Leo, três dias depois. Nunca mais


esquecerei aquele morro nítido no azul, as grandes árvores ondulando,
a água muda e as folhas revoando, a praça, quase
colonial, ao sol, e seu improvisado sino, as missionárias sale-
sianas em branca desolação e os índios todos cantando naquela
missa que celebramos pelos Mártires, com um lamento índio
que emocionava profundamente, durante a comunhão.

Pus toda a minha alma naquela missa, palavra. E entreguei


ao cacique Eugênio o báculo — meio borduna, meio remo —
de pau-brasil que os índios Tapirapé me haviam ofertado em
minha sagração episcopal. Com isso, eu dava aos Mártires, aos
Bororo, à missão salesiana de Meruri, o melhor tesouro que
eu tinha.

Aquela noite escrevi no “livro de Presença” da missão:

“Esta tarde celebramos, com a Morte gloriosa do


Cristo, a morte gloriosa do Rodolfo e do Simão, o sangue
da Teresa, do Lourenço, do Zezinho e do Gabriel; a
angústia e a solidariedade do Ochoa, dos Bororo, dos
missionários salesianos de Meruri!

15 de julho é uma data histórica na História da nova


Igreja Missionária. Rodolfo e Simão são mais dois mártires,
perfeitos no Amor, segundo a Palavra do Cristo:
o índio deu a vida pelo Missionário; o Missionário deu
a vida pelo Índio.

Para todos nós, índios e missionários, este sangue de


Meruri é um compromisso e uma Esperança.

O índio terá terra! O índio será livre! A Igreja será


índia! Com o abraço da Igreja indígena e sertaneja de
São Félix...”

Escrevi também, para a solene missa fúnebre da catedral


de Goiânia, uma Ladainha Penitencial, que reproduzo aqui
porque expressa o que sinto sobre a culpa coletiva, a obstinada
ignorância, que nos compete reparar, como Sociedade e como
Igreja, em nosso comportamento para com os Povos Indígenas:

— “Por todos os pecados da antiga e da nova colonização


que vêm esmagando, durante séculos, os povos
indígenas da nossa América, nós vos pedimos perdão...
— Pelos pecados da própria Igreja, tantas vezes instrumento
do antigo e do novo colonialismo...

— Pelo orgulho e ignorância com que desprezamos


a cultura dos povos indígenas, em nome de uma civilização
hipocritamente chamada crista...

— Pela espoliação das terras do índio e a destruição


da natureza em que ele vive, causadas pelo latifúndio e
pelos interesses das grandes empresas nacionais ou multinacionais,
ou pelo turismo desrespeitador...

— Pela desumana violência com que pretendemos


transformar as comunidades indígenas em novas vítimas
de nossa sociedade de lucro e de consumo, a pretexto
de urna ilusoria integração...

— Pela nossa incapacidade de descobrir ‘as sementes


do Verbo’, as raízes do Evangelho, na vida simples e
comunitária dos povos indígenas...

— Pela falta de solidariedade da consciência nacional,


pela falta de honestidade ou de eficiência das
autoridades responsáveis, pela omissão da Igreja, por
todos os pecados do povo brasileiro contra os direitos dos
nossos irmãos índios...

— Por pretendermos tantas vezes isolar o problema


indígena do problema global de todos os marginalizados
do País, na cidade e no campo...

— Pela falta de vocações dispostas a se encamar,


como Jesus, na cultura, no martírio e na esperança dos
povos indígenas...

— Pelos que mataram os nossos irmãos Simão e Rodolfo,


pelos que acobertaram este crime, por todos os
que matam, dia a dia, o índio, nosso irmão...

— Por nossa falta de esperança neste mundo novo


que devemos construir, onde todos os povos seremos livres
e irmãos, sendo o vosso Povo...

— Perdão, Senhor, perdão!”

23

Outubro. Dia 2. “Estou em Santa Teresinha. E nos


dias da luminosa irmã de Lisieux. Leio Les Mains Vides,
de C. de Meester. E a presença exemplar e estimulante
de Teresa me acompanha de novo.

As noticias do País são mais ou menos dramáticas.


Dom Adriano, de Nova Iguaçu, foi seqüestrado, espancado,
humilhado. A extrema-direita ameaça outros bispos,
inclusive de morte.

É, outra vez, talvez mais do que nunca, hora de


martírio.

Estes dias sinto-me como acariciado pelo Espírito.


Anteontem pedi especialmente — e será esta uma petição
normal, daqui para diante — ‘a caridade, o testemunho
de vida e de palavra, a contemplação e o martírio’.
..

Tudo é possível ainda. E Deus quer dar. Suas mãos


estão cheias para compensar nossas mãos vazias.

Diz Teresa:

‘No entardecer desta vida, aparecerei diante de Vós


com as mãos vazias... Quando eu aparecer diante de
meu Esposo Bem-Amado, não terei senão meus desejos
para Lhe apresentar’ (L.T. 218).

Aquela palavra também de Teresa, que sempre me


confortou tanto:

‘O Bom Deus não saberia inspirar desejos irrealizá-


veis...’ é verdadeira. Nosso Deus é o Deus da Promessa
fiel. Sua Graça é uma vocação que Ele mesmo cumpre
em nós misericordiosamente: Deus é Amor eficaz. Jesus
Cristo é a garantia certa, o ‘sim’ de Deus.”

Dia 7. “Tivemos estes dias — 4, 5, 6 —, na acolhedora


solidão do morro da igreja, o Encontro Indigenista
da Prelazia. Com a participação de quatro índios
Tapirapé. Foi muito familiar e muito concreto. E tenho
a esperança de ter dado um passo decisivo para o atendimento
aos índios Karajá. É uma utopia, sim. Ou seja,
é Esperança. Os Karajá são nossos irmãos mais marginalizados,
aqui. Por isso nós nos devemos mais a eles.”

Dia 16. Diamantino. “Esta tem sido uma semana de


sangue e de testemunho. Outra vez. Três meses após a
morte do padre Rodolfo, e dentro de nosso Regional do
cimi, o padre João Bosco Penido Burnier, que esteve co-
nosco no Encontro de Santa Teresinha, morria, vítima de
uma bala e da Justiça. Em Ribeirão Bonito. Quando ele
e eu reclamávamos da Polícia pelos maus tratos a que
ela estava submetendo duas pobres mulheres do lugar.

Caiu a meus pés.

Seu sangue fecundou nosso chão, nossa vida, o futuro


de nossa Igreja, deste povo do sertão — índios, posseiros,
peões.

Esta morte despertou a consciência da Igreja nacional.


Espero que seja de um modo profundo e duradouro.

Eu me senti afetado bem próximamente. Talvez o


martírio esteja mais perto do que nunca.

Que o Espírito de Jesus nos encha de uma alegre


decisão de testemunho.”

Transcrevo o relato que escrevi para o Boletim do cimi.


de novembro de 1976:

“Morte e Testamento do padre João Bosco

Encontro Indigenista

Como coordenador do Regional do cimi, do Nordeste


do Mato Grosso, o padre João Bosco veio à nossa Pre-
lazia de São Félix para nos acompanhar no Encontro
Indigenista anual da Prelazia. Foi nos dias 4, 5 e 6 de
outubro. Em Santa Teresinha, MT. Naquela Santa Teresinha
dos posseiros, da Codeara, e do padre Francisco
Jentel...

Com isso, já na vinda, o padre realizava um velho


sonho de infância: ver o Araguaia, o grande Araguaia
das lendas e narrações, dizia ele. De São Félix a Santa
Teresinha viajou de ‘voadeira’, pelo Beroká dos Karajá,
durante umas seis horas. Sob uma chuva imponente no
último trecho, um verdadeiro batismo de Araguaia.

O Encontro foi na velha casa, na velha igreja do


morro, herança dos missionários dominicanos da Prelazia
de Conceição. Participamos, além dos membros da Equipe
Pastoral da Prelazia diretamente dedicados ao serviço do
índio, outros membros da mesma equipe e quatro índios
Tapirapé (e suas esposas e crianças também nos acompanharam
na livre participação que é de direito).
O Encontro ventilou os temas da Terra, Escola,
Choque Cultural, População Envolvente, Turismo (sobretudo,
o Hotel Elutuante), Atendimento aos Karajá, Relacionamento
entre os Tapirapé e os Karajá vizinhos, Batismo
e Vida Cristã...

Num clima de total simplicidade e realismo.

O padre João Bosco participou à vontade, expansivo,


feliz. Contribuiu com oportunas colocações. Sempre naquela
sua atitude de mediação, mas também cada dia
mais comprometido com a Causa Indígena, cada dia mais
solidário com a missão do cimi. (Preocupado com que o
cimi fosse acolhido nas missões tais, com que o cimi pudesse
intervir em tal esfera. Oferecendo-se para abrir os
caminhos ao cimi em tal área. Assumindo o compromisso
de concretizar tema, lugar, data, clima para o Encontro
Regional do cimi no próximo ano de 77...)

Sentiu-se feliz, sobretudo, e emocionado, na visita à


aldeia Tapirapé, uma vez terminado o Encontro. Fomos
no célebre ‘mondrongo’ das prelazias da Amazônia Legal,
enfrentando galhos e pontes frágeis, brincando com a
turma Tapirapé, suando.

(Acho que o padre João Bosco veio a São Félix para


se expandir, para rezar, para morrer. Foram muito intensos
aqueles últimos dias seus!)

Era o dia 7 de outubro. Aquela noite, noite de luar


— desse lugar único que temos lá, no sertão —, houve
um bate-papo magnífico com os homens Tapirapé, segundo
o costume da tribo, sobre as esteiras, nós todos.
(A casa central, a ‘takana’, fora queimada, este ano, em
homenagem ritual a um dos principais enfrentantes da
construção, que tinha falecido.)

Padre João Bosco vibrou com essa longa, sossegada,


profunda palestra: a alma da aldeia aflorando, e o Batismo,
outra vez, e o que seria ser cristão sem deixar de
ser índio, e a cultura dos índios e seus direitos... ‘Foi
uma conversa maravilhosa, Pedro’, repetia o padre João
Bosco.

Naquela tarde e na manhã seguinte visitou a aldeia,


conversou, misturou-se familiarmente com os Tapirapé,
recebeu um colar de presente... E celebramos, na casa.
humilde, igual, das irmãzinhas, uma missa comovedora:
‘Bendigo-Vos, Pai, porque escondestes estas coisas aos
sábios e prudentes e as manifestastes aos pequeninos...
No chão, sobre as esteiras, antes do almoço, uma Eucaristia
de testemunho indígena total.

Ribeirão Bonito

O padre e eu regressamos a São Félix dia 8. E ali


permaneceu ele comigo mais um dia, porque eu precisava
encaminhar alguns serviços à ‘cúria’. No dia 11, às 6
horas da manhã, pegamos o ‘expresso’ Xavante da linha
São Félix—Barra do Garças, e à uma hora da tarde
chegamos ao Ribeirão Bonito, um lugarejo, ainda da Pre-
íazia, de mil e tantos habitantes. Esta foi a última viagem
consciente do padre João Bosco. Pela estrada foi comparando
a terra, as fazendas, os homens da região, com
a realidade, igual e diversa, da área de Diamantino. O
padre João era muito observador, minucioso.

O povoado celebrava as festas de Nossa Senhora


Aparecida, padroeira do lugar. Eu ia ao Ribeirão Bonito
para acompanhar o povo nessas datas. E este ano pensava-
se decidir como construir a igreja, pois a cidade-
zinha tem apenas um recanto semi-aberto, de barro e
palha, para suas celebrações.

O padre João Bosco decidiu pernoitar lá: conheceria


o pessoal da Equipe que ali trabalha, e conheceria o
Povo. No dia seguinte, prosseguiria viagem para Barra,
Cuiabá, Diamantino... e a longínqua aldeia dos seus
índios Bakairi.

Só que os planos de Deus eram outros. Quando chegamos


ao Ribeirão, logo nos sentimos atingidos por um
certo clima de terror que pairava sobre o lugar e as redondezas.
A morte do cabo Félix, da Polícia Militar,
infelizmente muito conhecido na região, fazia cinco anos,
pelas suas arbitrariedades e até crimes, e morto numa
última provocadora arbitrariedade, trouxe ao lugar um
grande contingente de policiais e, com eles a repressão
arbitrária e até a tortura.

Mesmo assim, o povo celebrava as festas da Padroeira.


Naquela tarde o padre João Bosco acompanhou
o povo, rezando e cantando, na procissão ao riacho loca!
(daí o nome de ‘Ribeirão Bonito’), onde se abençoou a
água do Batismo que ia ser administrado no dia seguinte.
E nessa procissão foram filmadas as últimas cenas da
vida do padre João Bosco, providencialmente.

Duas mulheres, sobretudo, dona Margarida e dona


Santana, estavam sofrendo na delegacia, impotentes, e sob
torturas — um dia sem comer e beber, de joelhos, braços
abertos, agulhas na garganta, sob as unhas — essa repressão
desumana.

Eram mais de seis horas da tarde, e seus gritos se


ouviam da rua: ‘Não me bata!’ Decidi ir à delegacia
interceder por elas. Um rapaz da missão quis me acompanhar.
Temi por ele, e não lhe permiti. O padre João
Bosco, que estava lendo, rezando — como leu e rezou
muito estes dias em que conviveu conosco na Prelazia
—, fez questão de me acompanhar.

A escuridão que chegava, a areia da rua, o terror


perceptível no ar, no silêncio, nos acompanharam.

Quando chegávamos ao terreno da pequena delegacia


local, cercado de arame, o cabo Juraci saía. Possivelmente
nos viu chegar. Voltou, poucos minutos depois,
com o cabo Messias e dois soldados; os três últimos, de
farda. Numa camioneta do ‘Bracinho’ — bate-pau da
Polícia, segundo o qualificativo do povo do Ribeirão —■
dirigida naquela hora por seu filho de 12 anos, Genivaldo
Pedro Nunes.

A camioneta parou ao lado da delegacia. E os policiais


nos esperavam enfileirados, em atitude agressiva.
Entramos pela cerca de arame, que ia ser também cerca
de morte. Eu me apresentei, como o bispo de São Félix,
dando a mão aos soldados. O padre João Bosco também
se apresentou.

E tivemos aquele diálogo, de talvez três ou cinco


minutos. Sereno, de nossa parte; com insultos e ameaças,
até de morte, por parte deles. Quando o padre João
Bosco disse aos policiais que denunciaria aos superiores
dos mesmos as arbitrariedades que vinham praticando, o
soldado Ezy Ramalho Feitosa pulou até ele^ —' três
metros apenas — dando-lhe uma bofetada fortíssima no
rosto. Inutilmente tentei cortar aí o impossível diálogo:
‘João Bosco, vamos...’ O soldado, seguidamente, descarregou
também no rosto do padre um golpe de revólver _e,
num segundo gesto fulminante, o tiro fatal, no crânio.
Sem um ai, o mártir — mártir, sim! — caiu, esticado,
pensei que morto. O ar congelou-se, e a noite.
Inclinei-me sobre o ferido, chamei-o, respondeu. O cabo
Juraci comentou, talvez aliviado, talvez irresponsável:
‘Foi um tiro para assustá-lo...’ E ainda tentou explicar-
me o fato, com triste superioridade de suboficial:
‘Soldado...’

Pedi o carro da Polícia, pedi que me ajudassem a


colocar nele o ferido. Dois dos policiais, efetivamente,
me ajudaram. E o menino-motorista e eu levamos o padre
ao ambulatório que a Prelazia tem no lugar, a 300 metros,
apenas, da delegacia.

O dr. Luiz e a irmã Beatriz, enfermeira, ambos de


nossa Equipe, tentaram fazer o impossível. E todos nós,
ali presentes, e o Povo, os homens sobretudo, acompanhamos,
ansiosos, solidários. O povo comentava com palavras
gravíssimas: ‘Fosse um de nós, a gente tá acostumado,
é todo dia... Mas um padre... Esta polícia tá se
afundando muito!... ’

Aquela noite, suspendeu-se o ato da Novena, com


missa à Padroeira, para maior segurança de todos, em
primeiro lugar. E se pediu ao Povo que voltasse para
suas casas, a rezar, a esperar.

Na primeira limpeza do sangue, coagulado, no parietal


direito, apareceram fiapos da massa encefálica.
'Prognóstico reservado, Pedro...’, disse-me, angustiado, o
dr. Luiz.

O que fazer? Sair de carro para um lugar de recursos,


no caso, significaria viajar umas quinze horas,
até Goiânia. A Polícia, por outro lado, segundo comentário
do povo, nos estaria esperando de tocaia, na estrada
de Barra do Garças, que é também o caminho para
Goiânia.

Até às 10 horas da noite, imaginávamos poder chamar,


pelo rádio local, algum teco-teco, para a madrugada
seguinte.

Agonia de Mártir

Entretanto, o padre João Bosco vivia, consciente e


generoso, sua agonia de mártir, forte, sofrido, em obla-
ção. Invocou várias vezes o nome de Jesus. Ofereceu
várias vezes seu sofrimento pelos índios, pelo Povo. Pelo
Povo de nossa Prelazia, pelo Povo de sua Prelazia de
Diamantino. Lembrou-se do cimi, de Dom Tomás Bal-
duíno, seu presidente. Lamentou com saudade comovedora:
‘Sinto não ter tomado nota do que os índios (Ta-
pirapé) falaram... ’ Recebeu a Unção, de minhas mãos,
lúcido e fervoroso. Em latim, porque ele rezava em latim
o seu breviário, até o último dia. Recordei-lhe, uma e
outra vez, que o dia seguinte era a festa de Nossa Senhora
Aparecida e ele assentia e oferecia de novo sua
dor.

Apertava minha mão, a mão do padre Máximo.


Brincou com este, ainda de palavra. Nunca quis cuspir no
chão ou na parede — nem a pedido do médico — sempre
comedido em seus gestos.

Sua última palavra inteligível foi a palavra de Paulo:


‘Acabei minha carreira’, ou a palavra do próprio Jesus:
‘Tudo está cumprido’; tentou levantar-se e disse, solene:
‘Dom Pedro, acabamos a nossa tarefa’.

Depois, já mais de 10 horas, noite e expectativa


afora, numa camioneta escoltada por um carro amigo, o
médico, a irmã e eu saímos, com o padre, no soro, respirando
como um motor cansado, pela estrada de São
Félix, pela desastrada estrada do Xingu, à procura de um
táxi-aéreo da Táxi-Aéreo Goiás, que soubemos pernoitava
numa fazenda. Foram quatro horas de mortal ansiedade.
O padre João Bosco foi santificando com o resto
de sua vida, oferecida ao vento da noite e a Deus, aquelas
estradas, aquelas fazendas, onde tantas vidas humanas,
anônimas, sofreram e foram sacrificadas. Foi, aquela, uma
via-sacra de Redenção pelos caminhos da Amazônia
Legal, pelas terras dos índios, dos posseiros, dos peões.

Às 5 horas da madrugada, ainda a luz querendo delimitar


o horizonte, voamos para Goiânia, para o Instituto
Neurológico da Avenida T. Tudo era inútil, medicamente.
O padre João Bosco estava com o cérebro já
‘morto’, em estado de vasoplegia.

A notícia espalhou-se por Goiânia, pelo País, no


exterior. Dom Fernando, a cnbb, os padres jesuítas, o
cimi, a família Burnier, a imprensa...

E todos sentimos logo que aquela vida imolada virava


testemunho e comoção. Era um missionário entre os
índios que morria, e morria por libertar da tortura dua#
pobres mulheres do Povo do interior.

No dia seguinte o velório e, sobretudo, a missa, na


Catedral de Goiânia, expressariam magníficamente esse
valor de testemunho, esse martírio de Caridade e pela Justiça.
E essa comunhão da Igreja do Centro-Oeste (Mato
Grosso e Goiás) e de tantos lugares do Brasil.

Diamantino e São Félix, particularmente, com Gui-


ratinga — o triângulo missionário do Nordeste do Mato
Grosso —, ficávamos como selados numa aliança de compromisso,
e de testemunho.”

A Vida Nasce da Morte

Em Diamantino, onde o padre João Bosco foi sepultado


por direito inquestionável da missão, o Povo participou
da missa e do enterro com uma fé expansiva, vitoriosa.
Um editorialista de O Estado de São Paulo não
iria entender porque se apresentavam na igreja as camisas
do padre manchadas de sangue, nem porque se
traduzia “remissão” por “Libertação”, que é, para nós,
uma remissão plena. O Povo é quem entende dos seus
mártires... Tampouco entendia bem a história um fazendeiro
que comentava, aquela noite, no hotel: “Esses
padres... imaginam que... Só tem peão com eles!...

Um jornalista chorou, na missa, quando alguém disse


que “a Liberdade se compra com o sangue e a Vida
Nasce da Morte”. Ele entendeu.

Os padres jesuítas divulgaram um ótimo documento


que, entre outras lições de humildade e de compromisso,
agradece aos índios, aos posseiros e aos peões, porque
educaram o padre João Bosco no Evangelho. Esses também
entenderam.

Quando enterrávamos, sob o calor do Mato Grosso,


quase meio-dia, o corpo-semente do padre João Bosco
Penido Burnier, missionário e mártir, perto de uma cerca
de arame farpado — símbolo de todas as cercas do Latifúndio
que oprime o povo de nossa Amazônia, Deus pôs
um sinal no céu: o arco-íris cingiu de Glória e de Paz a
nuvem escura que flutuava entre o céu e a terra naquela
hora.
O Povo Planta a Cruz e Derruba a Cadeia

Conforme é tradição no Brasil, o Povo de Ribeirão Bonito,


Cascalheira e arredores quis celebrar a Missa de 7° Dio,
pelo querido morto, padre João.

Convidaram as outras comunidades da Prelazia, corn mn


folheto que apresentava duas mãos trespassadas, com as cordas
arrebentando, as grades ao fundo, e esta palavra de Jesus:
“Vem, bendito de meu Pai, porque Eu estava preso e tu me
visitaste”.

A missa foi dia 19 de outubro, no barraco-capela do lugar;


e os textos, os cantos e as expressões espontâneas do Povo
manifestaram muito vivamente o que aquela missa significava:

“Estamos aqui hoje... para celebrar a paixão e


morte do padre João Bosco, na esperança e na Fé da
Ressurreição em Jesus Cristo.

Viemos também para manifestar nossa união e nosso


desejo de Libertação. Que nossa presença seja um protesto
silencioso contra os opressores, os exploradores, representados
pela polícia, responsável por tantas injustiças
e por tantos sofrimentos do Povo.

Que esta celebração nos torne mais conscientes de


nossa própria força..., de que somos nós e só nós que
conseguimos nossa Libertação.

Que o sangue derramado pelo padre João Bosco nos


comprometa nessa caminhada.”

E cantavam:

“Ressuscitei, aleluia, e ainda estou con vosco, aleluia!”

& Em seguida:

“Glória a Cristo que tira o seu Povo da escravidão!”

Foi lido também o Êxodo (2, 23-25 e 3, 7-10): os gritos


do Povo que subiam até Deus e a decisão que o Senhor toma
de libertá-lo.

E uma Carta do Povo do lugar aos Cristãos:

“Irmãos, aqui no nosso lugar, a Paixão e Morte de


Cristo se fez presente e se renovou no padre João...
... Como também aconteceu a Jesus Cristo, padre
João morreu porque defendia a Verdade, a Justiça e a
Liberdade.

Era um espinho nos pés dos poderosos e opressores.


Por isso, acharam jeito de fazê-lo calar: assassinaram-no.

Como dizia Lourenço, índio Bororo, na época em


que assassinaram o padre Rodolfo, em Meruri: ‘A arma
é o argumento dos covardes’.

Esta morte não é isolada. Noutras partes do Brasil,


bispos, padres, políticos, estudantes, operários e lavradores
são presos, torturados e mortos pela mesma causa: a
causa da Justiça, a causa do Povo.

Mas a morte não é o fim. A morte é passagem para


a Vida! E essa morte nos faz acordar...

...Temos um compromisso. Um compromisso com


nossa libertação...

...É preciso ter fé e acreditar que todos somos


gente, todos somos iguais. É preciso não ter medo diante
da força dos grandes. Nós somos fortes. O Povo unido
tem Deus consigo!”

“E Jesus disse: O meu mandamento é este: Amem


uns aos outros como Eu amo vocês. O maior amor que
alguém pode ter por seus amigos é dar a vida por eles.
Se o mundo odeia vocês, lembrem-se que me odiou primeiro.
Mas coragem: Eu venci o mundo!”

Depois das leituras, o celebrante, padre Máximo Paredes,


convidou o Povo a manifestar-se. E o Povo falou. Com uma
lúcida paixão:

— “Há um grande silêncio, mas durante esses dias


nós não vivemos em silêncio, nem em paz. Diante desta
morte tão injusta.”

— “Padre João morreu no nosso lugar porque não


tivemos coragem de ir juntos lá.”

— “É hora da gente saber de que lado a gente está:


do Povo ou dos tubarões.”

— “Acordamos com esta morte; não podemos mais


agüentar, apanhar feito cachorro.”

— “Todos juntos somos fortes.”


— “Padre João morreu porque defendeu a liberdade
de duas mulheres do Povo. É bom lembrar também que
é por essa mesma causa que o bispo e todo o povo da
missão é chamado de comunista e subversivo.”

— “Gente, lutamos pelo que é nosso. Não devemos


ter medo. Somos fortes juntos.”

— “Padre João morreu, ele continua vivo com


nós...”

Em seguida cantaram: “Cremos, Senhor, que salvarás o


teu Povo!” E, no Ofertorio: “Ofertamos ao Senhor um mundo
novo, o futuro do seu Povo”. E, na Comunhão: “Prova de
amor maior não há, que doar a vida pelo irmão”. E, no final
da missa: “Somos um Povo de gente, somos o Povo de Deus.
Queremos terra na Terra, já temos terra nos céus”.

Depois da missa, as mulheres que tinham sido torturadas


convidaram o Povo para um terço pelo padre João. Seguindo
o costume cristão do Povo, carregou-se uma grande Cruz, de
madeira de candeia, muito resistente, para o lugar do assassinato.
Em procissão, com velas acesas e um lampião de gás nas
mãos do celebrante, enchendo a noite de reflexos e de um
religioso silêncio de oração.

Chegando ao lugar do martírio, plantou-se a Cruz, bem


fundo. A inscrição da placa dizia eloqüentemente: Aqui, no
11/XI1976 foi assassinado pela Polícia o padre João Bosco de-
fendendo a Liberdade”.

Imediatamente se quebrou o silêncio e o Povo tornou a


expressar-se, incisivo:

— “Eles podem tirar esta Cruz, mas nós não vamos


esquecer, colocamos outra.”

— “Esta cadeia só serviu para prender e judiar gente


pobre; posseiros e peões. Nunca se viu um rico nela.”

— “Amanhã, se um irmão nosso é preso injustamente,


será que temos a coragem de vir aqui todos, como
hoje, para libertá-lo?”

— “A Cruz representa a nossa Libertação; essa cadeia


representa a perseguição, a tortura, o assassinato e
tudo o que nos aterroriza.”

— “Entre a Cruz e a cadeia, é melhor tirar a cadeia.”


Vários dos presentes declararam que já tinham sido presos
ali injustamente e que ali haviam sido maltratados.

“Foi aí que o Povo” — diz o relato do Alvorada de


21-10-76 — “resolveu abrir as portas da cadeia para
nunca mais ninguém ficar preso e judiado injustamente.
O Povo todo participou com muita ira e sede de justiça.”

“Quem não podia destruir, ficava encorajando e


animando...”

Todo o Povo ali reunido, centenas de pessoas, participou


da destruição, “com as mãos, com paus, com pedras; foram
até buscar machados. Quem não podia se aproximar, batia
palmas e gritava animando.”

— “Será que isso é violência?” (perguntou alguém,


e respondeu a si mesmo): “Violência é eles matar o
Padre, e queimar as nossas casas”.

Alguém, no Brasil e no exterior, qualificou esse gesto do


Povo do Ribeirão de uma pequena “derrubada da Bastilha”.
Muitos vibraram com esse gesto. Porque eram multidões do
Povo, dos Povos, que falavam por meio do Povo do Ribeirão.

Conste que eu não estava ali. Desde 12 de outubro, eu


estava em Goiânia e em Cuiabá, nas andanças de enterro,
processo, escritos, que vieram após a morte do padre João
Bosco. Soube do acontecido dois dias depois. Mas, na introdução
do referido relato do Alvorada, expresso bem claramente
meus sentimentos sobre o fato:

.O Povo fez do Padre João Bosco um mártir


seu. E descobriu na morte generosa do missionário um
sinal do Evangelho da Libertação...

... O Povo celebrou a Eucaristia, plantou a Cruz


e derrubou a cadeia. Tudo num gesto só.

Poder-se-ia discutir a tática dos gestos do Povo.


Quanto menos táticos, porém, mais espontâneos. E não
terá o Povo os seus gestos proféticos? Os gestos do Povo
são a voz do Povo e a voz do Povo é a voz de Deus.
O julgamento que nós façamos desses gestos e dessa
voz dependerá da distância ou da proximidade em que
vivamos do sofrimento, da angústia e da Esperança do
Povo. Dependerá na medida em que vivamos o Evangelho
do Filho de Deus, encarnado na hora e na história
de um Povo, dentro da História da Humanidade e
Morto e Ressuscitado para transformar essa História em
Mistério da Salvação.”

“Sem ódio e sem medo à Liberdade”, acrescentava eu,


“prosseguiremos a caminhada, certos do Amor que nos amou
até o fim.”

Outros, entretanto, sentiram medo diante desse gesto de


Liberdade do Povo. E se organizou uma espalhafatosa repressão
que ia desde os interrogatórios formais até às insidias e às
ameaças.

O que menos importava era fazer justiça. Todo mundo


sabe como os torturadores do Povo e o assassino do padre se
movimentaram à vontade e como, depois de presos, três deles,
inclusive Ezy, fugiram da prisão, após arrumarem suas malas
como quem se prepara para uma viagem de férias.

Ezy continua livre e o processo está encalhado. Como está


praticamente encalhado o processo contra os assaltantes e assassinos
de Meruri, processo do qual foram excluídos os verdadeiros
responsáveis: João Mineiro, José Antonio Miguez, Nonato
Rocha. Este último, inclusive, foi eleito depois prefeito
de General Carneiro (MT), pela Arena...!

A Polícia Federal, que logo depois esteve vários dias no


Ribeirão, queria arrancar do Povo o falso testemunho de
minha presença e intervenção ali, na missa de sétimo dia e
na derrubada da cadeia. Mas o Povo — que compareceu voluntariamente
e em massa para depor — teve uma declaração
invariável:

— “Fomos todos nós. Foi o Povo!”

Lembrei-me muitas vezes, aqueles dias, da resposta do


Povo de Fuenteovejuna, no drama clássico espanhol:

— “Quem matou o Comendador?

— Fuenteovejuna, senhor.

— E quem é Fuenteovejuna?

— Todos nós de vez!”

O dr. Hélio, presidente do Inquérito da Polícia Federal,


quis mostrar a gravidade do acontecimento como um fato de
âmbito nacional. O Povo foi ameaçado, na ocasião e depois,
muitas vezes, em suas declarações, com a vinda de batalhões,
inteiros, até de pára-quedistas...

Soubemos, pela própria Nunciatura, que o Presidente Geisel


havia ficado irritadíssimo com o acontecido em Ribeirão Bonito,
na derrubada da cadeia-delegacia, e que, se ficasse provada
minha participação, não haveria força que pudesse impedir
minha expulsão do Brasil.

Três policiais, disfarçados de jornalistas, mas mal disfarçados,


quiseram pegar-me por alguma palavra, em Goiânia,
enquanto eu grampeava os Alvorada que levariam aos amigos
do Brasil a notícia evangélica daquele gesto popular. Eles
foram os primeiros a receber, de minhas mãos, o relatório,
ainda palpitante.

Surgiu coletivamente uma iniciativa, mais do que lógica.


Era preciso construir a igreja de Ribeirão Bonito ali onde foi
martirizado o padre João Bosco.

A idéia foi do Povo e todos nós a acolhemos calorosamente,


no Brasil e fora do Brasil.

Menos a Polícia Militar de Mato Grosso.

Foi ela quem arrancou a placa da Cruz. Ela quem arrancou


a Cruz com a segunda placa, desta vez de ferro. E essa Cruz
bendita passou semanas jogada no chão da delegacia provisória
de Ribeirão. E o Povo viu como alguns policiais a insultavam
e até cuspiam nela.

Dia 15 de abril visitei em Cuiabá o Coronel Geraldo de


Oliveira e Silva, Comandante da Polícia Militar do Estado,
para lhe pedir, em nome do Povo, licença para construir a
igreja no lugar do martírio do padre João Bosco. O terreno
é da Prefeitura. E o prefeito de Barra do Garças, sr. Wilmar,
não via o menor inconveniente. A Polícia tinha apenas direito
de “posse” ou usufruto da Delegacia que o próprio Povo havia
construído ali.

O Coronel Geraldo fechou-se de uma vez, e negou categoricamente


a licença. Disse-me que toda a corporação policial
o pressionava neste sentido: não ceder. Que a Polícia Militar
do Estado tinha sido ofendida por muitos na cidade e no País,
sobretudo pela imprensa, por causa da morte do P. João
Bosco. Que ele mesmo tinha recebido inúmeras cartas e telegramas
chamando-o de chefe de assassinos... Era um problema
de “afirmação da Polícia”, enfatizou, não aceitar que
se construísse a igreja no lugar que o povo queria.
Minha opinião foi sempre que a única maneira de a Polícia
refazer-se um pouco diante da opinião pública era justamente
aceitar. Mas cada um tem seu ponto de vista... Não
houve jeito e me limitei a dizer-lhe, para terminar:

— Então, sr. Coronel, o diálogo está terminado. Vamos


deixar esse assunto para Deus e a História!

A igreja, naturalmente, será construída. Em outro lugar,


não importa. O que importa, em todo caso, é a Igreja viva
que se está construindo sobre os alicerces do sangue mártir.

Um dia, o lugar do martírio do P. João Bosco Penido


Burnier será respeitado, também publicamente. Quando as
autoridades forem outras e estiverem verdadeiramente a serviço
do Povo... Ainda veremos as flores e a gratidão crescer
ali num monumento. A memória dos santos recupera seus
direitos, mais cedo ou mais tarde. Atenho-me à História!

Uma morte vivida — Um clamor continental

Quero também compilar aqui alguns fragmentos da declaração


que fiz ao jornal goiano O Popular, a 14 de outubro
de 76. Nela, com palavras minhas, reproduzo o pensamento de
muitos em relação à morte do Padre João Bosco Penido
Burnier:

“A morte do Padre João Bosco é mais um sacrifício


da Igreja Missionária. Sacrifício no sentido positivo, no
sentido cristão da palavra. Esta tampouco foi uma morte
nem morrida nem matada, senão vivida. Uma morte
assumida pelo Evangelho e pelo Povo...

...Esta morte é também, para mim, um sinal da


escalada da perseguição contra a Igreja do Povo em
toda esta América Latina. Ninguém de nós se sente
muito longe da morte nesta hora.

Em todo caso, é uma morte-martírio, quer dizer,


testemunho e compromisso de fé e de esperança. Quem
morre desse jeito dá vida.

Deveremos fazer com que esse sangue do padre


João Bosco não seja inútil. O sangue sempre compromete.

.. .A opinião de vários setores da Igreja e da população


em geral... coincide em que não se pode minimizar
o fato, considerando-o isolado ou eventual. Muitos
fatos semelhantes vêm ocorrendo neste País e naquela
região, concretamente, como em toda a América Latina.
Todos eles, de um lado, quando envolvem pessoas
da Igreja, atingem os cristãos — bispos, padres ou leigos
— comprometidos pelo Evangelho com o Povo. De outro
lado, todos esses fatos provêm dos poderes — da política,
do dinheiro, das armas, do latifúndio — interessados em
manter esse mesmo Povo na secular dominação.

O tiro poderá ser de um jagunço ou de um soldado,


mas estes são apenas peças de um sistema desumano de
prepotência e opressão...

... A impunidade desses sucessivos crimes confirma


esta opinião. Esses crimes e essa impunidade mantêm,
por ora, o povo num clima de terror e de impotência.
Porém esses mesmos crimes e essa mesma impunidade
um dia, amanhã, provocarão uma reação do próprio Povo
que — hipocritamente — os poderosos consideram violenta,
ilegal, subversiva.

De um ângulo de fé e de verdadeiro compromisso


com o Povo, a perseguição e o martírio não intimidam:
esclarecem e confirmam na opção e comprometem mais
seriamente na caminhada. Esse sangue todo não é mudo
e vem se transformando num clamor continental pela
Justiça e pelas reivindicações pela justiça e pela aquisição
de todos os direitos do Povo índio, lavrador e operário.”
(sedoc, n.° 97, dezembro de 1976.)

Outubro. Dia 19.

“Devo acrescentar a essa petição do dia 2, ‘o dom da


alegria’.

A América Latina está passando pelo fogo e pelo


sangue. A Igreja da América Latina chegou à hora do
testemunho.”

(Entre os muitos nomes gloriosos que eu gostaria de citar


aqui, devo lembrar pelo menos Mujica, Héctor, Ange’eli; meu
patrício Joan Alsina cuja biografia, em catalão — Xili al cor
—- prefaciei.)

Dia 12 de novembro.

A morte do Padre João Bosco, nosso santo mártir,


entre outras coisas, atrapalhou nossos programas. Os
santos sempre atrapalham.
Aquele outubro, do dia 24 ao 27, tivemos um retiro espiritual
no Centro de Treinamento de Líderes, da diocese de
Goiás — tantas vezes acolhedora Betânia para nossa Igreja
de São Félix. Protegido pelas verdes montanhas silenciosas,
calçado de ruas de pedra antiga onde os carros a duras penas
caminham assustando-se, e cercado de tradições arcaicas, aquele
Centro, sob o cajado pastoral de Dom Tomás, ajudado por seus
colaboradores — criticados, mas conseqüentes — converteu-se
em um foco de irradiação pastoral inclusive para além das
fronteiras do País. Por suas comunidades eclesiais de lavradores,
conscientes e responsáveis, por um largo magistério do
Povo de Deus em folhas mimeografadas e por uma fermenta-
dora presença da Igreja de Goiás nas mais significativas horas
e ângulos da Igreja nova do Brasil.

Diga-se isso em honra de Deus e da Senhora Sant’Ana,


Mãe de Nossa Senhora e Padroeira de Goiás Velho.

O retiro foi orientado por Arturo Paoli, antigo dirigente


da Ação Católica na Itália e amigo de Montini, agora Irmão-
zinho do Evangelho, escritor, contemplativo e comprometido
com a verdadeira Libertação — que é a total — nesta América
Latina. Perseguido também, como é de evangélico direito
nestes casos.

A 12 de novembro, meu Diário dizia assim, falando desse


retiro:

“Em boa hora para mim, que, desde a morte de


João Bosco e por outras referências e acontecimentos,
sinto-me cada dia mais próximo da esperada hora.”

De fato, a morte rondava, como diria García Lorca. E, a


gente a sentia, sobretudo quando chegava a noite ou por
certos caminhos ou diante de certos olhares e uniformes.

Testemunhas oculares me informaram da tentativa de matar-


me, em São Félix, no mesmo dia 22 de setembro em que
Dom Adriano era seqüestrado em Nova Iguaçu. Queriam, os
inimigos do Povo, dar uma “lição” à Igreja do Povo, simulta-
neamente na cidade e no campo? Aquela manhãzinha et tinha
saído de São Félix para Porto Alegre, na beira do rio Tapi-
rapé, onde o Povo celebrava seus festejos de Nossa Senhora
da Libertação, a antiga e barcelonense Virgem das Mercês,
Libertadora dos Cativos.

Desse retiro com Arturo Paoli compilei um florilegio de


reflexões sobre Deus, Jesus Cristo, a Igreja, a Oração, a Vida
Religiosa.

Vou copiar algumas:

— “Jesus traz uma nova relação (amar é relacio-


nar-se, a vida humana é relação):

* com a origem (o Pai);

* com os outros (os irmãos);

* com as coisas.

E nos liberta das antigas relações.

A Igreja é o lugar onde se torna visível, ativa e

atual (sacramentalmente), essa nova relação que Cristo


nos ensinou a viver.

— Jesus nunca renegou Israel. Nunca aceitou Israel.


Esse é o mistério da Igreja diante do Mundo.

— A Igreja é, foi e será sempre uma tensão entre


o culto e a profecia. (A tentação de dar um culto ‘puro’
a Deus! Herança da cultura grega, dualista, maniqueísta.
Falta de formação dialética.)

— Como a Igreja torna presente a Libertação de


Cristo?

* pela leitura (positiva e negativa = crítica)


de cada hora;

* ajudando praticamente o Homem a realizar-se,


conforme o plano de Deus, e a realizar o
Mundo;

* visibilizando a Salvação de Cristo; celebrando-


a.

— Contemplação é aquela descoberta pela qual uma


pessoa se sente profundamente amada pelo Pai, co-amada
com os irmãos e amada por eles, e entre as coisas
amadas.

— Orar é freqüentar o Senhor Jesus.


— ‘Quanto mais profundamente entro na oração,
mais me sinto politicamente comprometido.’

— ‘Fui conviver com os pobres porque eles são o


lugar privilegiado onde se manifesta o Senhor.’

— A Vida Religiosa é anterior ao Evangelho e


coexiste com ele, transformada por ele, na História da
Igreja. O que importa, então, é descobrir e viver a vida
religiosa evangélica.

— ‘A Vida Religiosa falhou porque não tem apresentado


uma alternativa à Sociedade de hoje.’

— ‘A Pobreza religiosa é a comédia mais humorística


da História.’ ”

(Cito textualmente, mas estou de acordo com a


citação.)

Durante esse retiro, li os originais do livro de frei Mateus


Rocha, dominicano, sobre a vida religiosa — Projeto de Vida
Radical —, editado pela Vozes e do qual eu fiz o prólogo.
O livro — que concorda muito bem com as idéias de Arturo
Paoli — é um manifesto, inteligente e comprometedor, sobre
a nova vida religiosa. Seu sinal, sua pedra de toque, será o
Povo: a encarnação sócio-política também. Pelo Evangelho,
claro. (Pelo Evangelho, como raiz, seiva e plenitude esperada.
Não por tática, simplesmente.)

O livro propõe a vida religiosa como aquele “santo desvio”


(ou “desvario”) de ontem, válido também hoje. E todo ele
pode ser sintetizado nestes três pontos que são também três
níveis de vivência:

— consciência revolucionária;

— atitude profética;

— vida radical.

Frei Mateus é um semi-anacoreta de Emaús, “a beira das


estruturas” — como ele diz —-, contemplativo e ativo entre
os homens e as criaturas amadas do campo e das montanhas de
Goiás. Um desses “mestres espirituais” que sobrevivem a tantos
magistérios mortos...

Dezembro. Dia... (O Diário se esqueceu do dia.)

“Cheguei ontem a São Félix, depois de viajar cinco


dias, saindo de Goiânia. A ponte sobre o Areões, caída,
e a velha balsa, afundada. Cento e cinqüenta carros esperando.
Todo um povo.
Passamos quase dois dias, Maxi e eu, em um barraco
de peões. (Ali escutei os relatos, vividos por eles, de
brutalidades e mortes em tantas fazendas muito conhecidas,
inclusive a Codeara, naturalmente. Macabras mortes
em massa, chegando a tingir a água do lago...!)

Lá fora estão tensas as relações Igreja-Estado. Primeiro


e sobretudo por causa da Comunicação Pastoral
ao Povo de Deus. Depois — a gota d’água — pela nota
da cpt — Comissão Pastoral da Terra — sobre o padre
Maboni (missionário na Prelazia de Conceição do Araguaia,
a quem a Repressão atribuiu umas declarações
malévolas, forjadas sob tortura).”

A Comunicação Pastoral ao Povo de Deus, da Comissão


Representativa da cnbb, aos 25 de outubro, é um documento
extraordinário da Igreja do Brasil: pela oportunidade de sua
publicação, pelo estilo, ainda novo, tão verdadeiramente pastoral
que põe o dedo do Evangelho nos fatos concretos, com
nomes e lugares e responsabilidades. Analisa esses fatos e suas
raízes, à luz da Palavra de Deus, e devolve ao Povo cristão
o ecto de compromisso que esses fatos despertaram nos Pastores.

“Nossa intenção — diz, já na Introdução — é iluminar


com a luz da Palavra de Deus os acontecimentos
atuais” (Meruri, Dom Adriano, Ribeirão Bonito, Censura,
Riobamba...), “para que os cristãos tomem, diante deles,
uma atitude de fé e coragem, uma animação parecida
com aquela que dá o Livro do Apocalipse. Ao cristão
é proibido ter medo. É proibido ficar triste.”

O Diário, nesse mesmo dia X, interpretava:

“Parece que há uma vontade de alguns de segurar


a Igreja ‘da Terra’, a nossa Igreja da Amazônia.

É Advento. Sempre é Advento. Vem, Senhor Jesus!”

No Encontro da Equipe da Prelazia, Carlos Mesters nos


deu umas deliciosas lições de Bíblia. Eu me encontrei outra
vez com ela, com uma nova sensação de achado, de plenitude.
Era o Senhor que falava e atuava. Era o seu Povo. Era o
luminoso Mistério da História e da Esperança humanas.

1977. Janeiro. Día 6. “Epiíania. Dia da Luz manifestada.


Dia da fidelidade à Luz. Dia da universal Evan-
gelização. Dia da Fé católica. Dia da Salvação de todos
os Povos da Terra. Dia da Missão. Epifanía do Senhor.

— ‘Deus (encarnando-se), diz L. Boff, não responde


mas vive uma resposta.’

Continuo desejando a contemplação, o ‘deserto’. Que,


em todo caso, deverei fazer dentro de mim, a poder de
fé e de escuta. Na oração e na paz conquistada e gratuita.

Chove, chove intensamente.

Amanhã, se Deus quiser, vou a Conceição do Araguaia,


para uma concelebração de solidariedade com as
Igrejas de Conceição e Marabá, particularmente atribuladas
esta última temporada.”

(Enquanto escrevo estas linhas, mês de maio, recebo a


notícia de que, outra vez, a terceira, Dom Estevão e Dom
Alano, bispos de Conceição e de Marabá, respectivamente, tiveram
que responder a Inquérito Policial Militar, em Belém;
com vários de seus colaboradores. Porque essas Igrejas têm-se
comprometido com o Povo na problemática da terra, simplesmente.

Acabo de enviar a ambos um telegrama de comunhão


total. Já que nos fazem solidários na suspeita e na perseguição,
sejamos — antes e depois — solidários na comunhão fraterna,
e na Esperança. Tudo é Araguaia. Tudo é um mesmo Povo.
Tudo é uma só Igreja.)

“Ontem à noite — continua o Diário — falávamos,


com Pedrito, sobre o ministério sacerdotal. Sobre a sa-
cramentalização. Sobre o povo-massa e as comunidades.
Que o Espírito Santo nos mostre o caminho. Não podemos
pretender fazer um gueto puritano. Tampouco devemos
iksyiartuar o sal, o fermento. Os Sacramentos
continuam a ser para os homens; também para os homens
de hoje.

Muitas mortes matadas, dentro da região da Prelazia.


Não sei como enfrentar esse doloroso mistério. Mata-se
exasperadamente. Mata-se porque não se vive. Estamos
longe da Justiça que faça possível uma alegre convivência
humana na qual a vida tenha valor central.”

Fevereiro. Dia 2. “Em Cristo, Deus tem para sempre


rosto humano.”

“Deus não justifica a permanência senão o porvir.”

Porque foi Jesus e é Jesus para sempre, é o Cristo Senhor


esse Filho de Deus feito homem, que, como homem histórico,
revela o Deus verdadeiro e diferente. Pai de todos os homens.
Senhor de todos os Povos.

Acabo de ler um bom livro de Christian Duquoc:


Jesús, Hombre libre.

Martírio: o testemunho de palavra, da vida, da morte.

Dia 25. “Copio estas reflexões de Héctor Borrat,


que foi diretor, em Montevidéu, da penetrante revista
Víspera, fechada pela represão.” (Estas reflexões são de
um artigo seu: ‘O pós-Concílio, a partir da América
Latina’, publicado em El Ciervo.)

“...Costuma-se manter essa obstinada pretensão de


‘unidade’, abstrata e por cima das disputas, que tantos
pastores confundem com a ‘koinonia’.

... Conservadores, desênvolvimentistas e revolucionários


compartilham uma desesperançada lembrança de
Jesus Cristo. Sob sinais ideológicos contrapostos, as imar
gens que têm dEle ficam ancoradas no passado. Recor-
dam-nO, mas não O esperam. Privando-O de sua futura
Parusia, privam-nO de contemporaneidade. Deixam-nO
morto, vinte séculos morto, e, portanto, sem poderes para
libertar esta terra e esta história.”

Estou lendo o livro de Hans Kung, Ser Cristão. Gosto


do enfoque e do alento de “Suma”. Talvez a perspectiva
sócio-política seja demasiado “européia”...

25

De 8 a 17 de fevereiro de 1977, realizamos, em Itaici,


perto de São Paulo, a XV Assembléia Geral da cnbb.
Foi uma Assembléia notável, por várias razões. Nela foi
lançado o documento Exigências Cristãs de uma Ordem Polí-
tica, aprovado pela quase totalidade do Episcopado presente
— 230 —, com apenas três votos contrários. Este documento
complementa, na esfera dos princípios, aquele documento profético
da Comissão Representativa, Comunicação...

Pedagógico e fundamental, este documento de Itaici dá,


em vários itens breves, as linhas-mestras de uma ordem política
nova, simplesmente humana, ou melhor, cristãmente
humana:

— A salvação inaugurada por Cristo.

— A missão da Igreja.

— O Homem, ser social.

— A origem da sociedade política.

— Os modelos.

— Direitos e deveres do Estado.

— Deveres das pessoas para com o Estado.

— O bem comum.

— A marginalização como negação do bem comum.

— A participação.

— Liberdade e segurança.

— Regimes de exceção.

— O desafio do desenvolvimento.

— A comunidade internacional.

Houve outras coisas boas na Assembléia de Itaici. A presença,


cordial e ativa, de vários observadores evangélicos, dando
um alento de Ecumenismo que confortava. Uma notável aber-
tura do Episcopado, em matéria de Liturgia, com a aprovação
do “Diretório para a missa com grupos populares”. O testemunho
de vários bispos, perseguidos pela Repressão: Dom
Adriano, Dom Estêvão, Dom Alano... A nova consciência do
Episcopado e, logicamente, de toda a Igreja nacional, grada-
tivamente, face às Regiões Missionárias do País.

Houve suas coisas más. A pirraça contra o cimi, comprada


por interesses não-eclesiais ou alimentada por notável
desconhecimento da realidade indígena. Uma obsessiva pirraça,
por parte de alguns, certamente não-comprometidos com o
índio. Durante três dias de ciMi-sim, ciMi-não, o cimi esteve no
pelourinho como uma espécie de inimigo público número 1,
causador de sei lá quantas discórdias diplomáticas...; mas o
índio não apareceu na disputa.
Quase cinco anos de cimi, com um levantamento minucioso
da realidade indígena, por parte dos inquebrantáveis Egydio e
Iasi; com tantos cursos e encontros de mentalização renovadora;
com as assembléias dos chefes indígenas, que o cimi poa»
sibilitou e que representam um marco na recuperada esperança
desses Povos “condenados a morrer”; com tanta apaixonada
vontade de encarnação sincera, entre os índios, por parte dos
novos missionários, ao estilo de Thomaz Lisboa; com os riscos
de tantos e com as mortes, ainda recentes, de Rodolfo, Simão
e João Bosco..., e... essa história toda do cimi era ignorada
ou esquecida, por causa de umas palavras mais ou ménqg
fortes, que a política oficial justificava de sobra. Certamente
o nome de Rangel Reis, Ministro do Interior, não passará à
História do Brasil como um nome glorioso: pelos rumos que
impôs à funai, pelo que ele disse das missões e pela obscura
insensibilidade que está demonstrando ante a tragédia e os direitos
da causa indígena.

A meu ver, surgiu também, como negativa, a velha obses-


são por uma aparência de unidade no Episcopado que, como diz
Borrat, não corresponde à “koinonia” nem combina com um
pluralismo adulto. Temos medo de resfriar-nos ao ar livre.
Temos medo de aparecer com nossos defeitos, que o Povo de
Deus nos ajudaria a corrigir. Talvez não tenhamos bastante fé
na Igreja, conduzida pelo Espírito. E certamente damos muito
pouco valor à opinião pública dentro da Igreja, que é Povo,
embora tenha sua Hierarquia.

Por esse mesmo motivo, a Assembléia se mostrou um


pouco melindrosa com a imprensa, e a tratou, em vários momentos,
como se trata uma criança. Digo o que os jornalistas
disseram. Entretanto, sobre esse ponto, parece que há um verdadeiro
propósito de emenda.

Mas, no fim das contas, a Assembléia de Itaici foi uma


“senhora” Assembléia do Episcopado Brasileiro. Por obra e
graça de Deus, por obra e habilidade de Dom Ivo, o secretário,
e porque o Episcopado do Brasil tem crescido em juventude de
espírito — e de Espírito — e em compromisso com a realidade
de seu Povo.

A Assembléia teve suas réplicas e tréplicas, mas nunca em


tom maior. E as tivemos também Dom Geraldo Sigaud, arcebispo
de Diamantina, em Minas Gerais, e eu. Por causa do
prólogo de Ernesto Cardenal a meu livro Tierra Nuestra, Li-
bertad; pela referência que eu tive que fazer a um ex-presidente
do cimi, e porque Dom Sigaud permitiu-se insinuar, falando
de um tal prelado, que eu teria entregue à imprensa o
texto, ainda não-definitivo, do documento sobre política, Mas
tudo isso, digo, em tom menor. Inclusive ofertei a Dom Geraldo
um exemplar de Tierra Nuestra..., com uma dedicatória
cordial.

Seria bom anotar aqui como as forças de Segurança acompanharam


a Assembléia, ameaçando reabrir processos se publicássemos
o Documento, e apreendendo, por sofisticado equipamento
de captação, o que se dizia naquele verde cenáculo. Mas
isso já passou a ser rotina no Brasil e em outras muitas partes
de nossa América aguilhoada.

Estando assim as coisas, escrevia em meu Diário, dia 30


de março:

“Dom Sigaud entrega ao Núncio suas provas contra


mim, diz o rádio hoje.”

Quase ¡mediatamente após a Assembléia de Itaici, o arcebispo


de Diamantina lançou na imprensa, dia 26 de fevereiro,
uma denúncia contra mim e contra Dom Tomás Balduíno, bispo
de Goiás, culpando-nos de principais responsáveis pela tensão
entre a Igreja e o Estado, e por cumplicidade na infiltração
comunista no Brasil. Tachando-nos de comunistas vermelhos,
simplesmente.

O arcebispo pedia ainda que eu fosse removido do País,


acusava também aos dominicanos de “comunistóides” e reclamava
uma intervenção governamental nas indefesas comunidades
de Base.

Bispos e não-bispos, jornalistas, humoristas, militares, políticos


e Povo entraram na polêmica. E, entre iras e orações
e considerações e alguns chistes rasgados, a polêmica tem vindo
se arrastando até hoje, em pleno mês de maio, primavera lá
em minhas Ibérias e novena do Divino aqui, em meu Brasil.

Somente outro bispo, Dom José Pedro Costa, arcebispo de


Uberaba, também em Minas Gerais — onde, por contraste,
tenho tão bons amigos, além do queijo e do doce de leite —
apoiou publicamente, sem maiores insistências, a posição de
Dom Sigaud.

Muitos irmãos no Episcopado e muitas comunidades ecle-


siais e organismos de cultura e muitos amigos de todo o País
e do exterior têm-nos demonstrado, a Tomás e a mim, sua incondicional
solidariedade. Choveram cartas e telegramas, outra
vez, como nos dias de Jentel ou de João Bosco ou nas outras
tentativas de expulsar-me. O Boletim da Diocese de Goiás pu-

m
blicou, dia 6 de abril de 77, em um número extraordinário,
uma verdadeira antologia de solidariedade.

O Governo se manteve em discreta e satisfeita distância.


Se nós jogávamos os trens na cabeça um do outro, dentro de
casa, para que intervir os de fora?...

Quando muito, o líder do partido do Governo no Senado


Federal, senador Eurico Rezende, além de alardear que o livro
— este Credo — estava entrando clandestinamente no País —
coisa que gostaria que me explicasse — permitiu-se colocar as
coisas em seu lugar — no lugar dele, quero dizer: não se
trataria de um bispo comunista, mas de um comunista vestido
de bispo...!

O Núncio, mais uma vez, foi diplomata. Não disse nem


sim nem não a meu Vigário Geral que o visitou em Brasília,
dia 10 de maio. E advertiu-o formalmente de que, se declarasse
algo à imprensa, ele, o Núncio, diria “que era mentira”. A
gente que não é diplomata, não entende nada mesmo dessas
coisas.

De qualquer forma, o Núncio, Dom Carmine Rocco, já


se havia prestado a aparecer diante das câmaras da TV Globo
recebendo de Dom Sigaud “as provas” da acusação...

O mesmo Núncio, por outro lado, e Dom Aloísio, em tom


muito franciscano — sempre franciscano, ele — pediram a
todos os bispos do Brasil que guardássemos silêncio sobre o
caso, porque já se tratava de um processo encaminhado à instância
superior da Santa Sé.

E foi nesse momento de armistício da questão que o arcebispo


de Diamantina, por meio de seu Vigário Geral, monsenhor
José Augusto Ferreira, entregou ao Jornal do Brasil
e à opinião pública, dia 4 de maio, seu dossiê de acusações.

Tratava-se de um aglomerado de textos, quase todos extraídos


de meus livros, mas fora de seu contexto e muitas
vezes truncados em seu ponto essencial. As acusações vinham
em três enormes páginas do jornal, divididas em itens. Também
por itens e no mesmo Jornal do Brasil, eu respondi, dia
8 de maio.

Transcrevo esta resposta, sintética mas suficiente para


quem a leia de boa-fé. Disse e repito que não guardo o menor
ressentimento contra Dom Geraldo. Ele foi usado, um pouco
inconscientemente, pela Repressão e pelos interesses do Latifúndio.
Esse “escândalo episcopal” saiu a público para encobrir
a luz e o grito do Documento de Itaici e para dar sinal
verde à perseguição contra a Igreja do Povo, contra nossa
Igreja da Amazônia.

Reflete também, é claro, um reacionarismo eclesiástico —


que sobreviveu recalcitrantemente ao Vaticano II — e que gostaria
de manter no status quo o pensamento teológico e a vida
comunitária da Igreja: fazendo da Tradição um passado estático
e servindo ao jogo do status quo de nossa sociedade de
privilégios e dominações. Porque não há jeito de separar uma
coisa da outra, uma vez que a Igreja não é uma sociedade à
parte, mas o fermento evangélico na massa dos Homens, uma
Luz — companheira ou incômoda, conforme o caso — dentro
da escura Cidade Secular.

Mas como eu acredito nas boas jogadas de Deus, penso


que esta tragicomédia político-episcopal acabará sendo serviço
de Redenção.

“D. Pedro contesta acusações de D. Geraldo

Por que responder

Parece-me importante, em termos de episcopado, por


espírito de colegialidade, deixar claro que eu não gostaria
de responder: o assunto está na Santa Sé, e seria
melhor deixar que as coisas seguissem seu próprio curso.
A publicidade que a imprensa tem dado, entretanto, me
obriga a respondê-lo, nem que seja sumariamente. Essa
resposta me parece um dever pastoral. Eu a devo à
Igreja do Brasil e à opinião pública de todo o País.

Nada tenho pessoalmente contra Dom Geraldo Si-


gaud, sinceramente. Nem me sinto no direito de julgar
as suas intenções. Até acredito que ele atua com a maior
boa vontade eclesial e que segue os ditados de sua consciência.
Por isso mesmo, não quero entrar em polêmica.
Não vou responder a Dom Sigaud, senão ao documento
apresentado à opinião pública, porque este documento é
simplesmente um apanhado tendencioso de textos mutilados
e que não expressam o meu pensamento e a minha
atitude, corretamente. É evidente que os meus escritos
só têm valor probatório se publicados na íntegra e dentro
de seu contexto. Vários dos textos citados no documento
estão truncados em seus pontos mais significativos. Por
outro lado, não há possibilidade de se publicar nc Brasil,

!>}
por exemplo, o meu livro Yo Creo en la Justicia y en
la Esperanza, como não tenho possibilidade de falar em
rádio e televisão.

Esta documentação que o Arcebispo de Diamantina


entregou à imprensa e apresentou à Santa Sé, há muito
tempo está nas mãos dos diferentes órgãos de segurança
e sei, de fontes oficiais do próprio Congresso Nacional,
que foram os militares da chamada linha-dura os que entregaram
a documentação pronta ao Arcebispo. Admito
que Dom Sigaud não concorde comigo nas idéias sócio-
políticas e até mesmo na pastoral e na teologia, mas
vejo nisto, simplesmente, uma manifestação normal do
pluralismo, que felizmente a Igreja vem vivendo cada vez
com mais liberdade, sobretudo a partir do Concilio
Ecumênico Vaticano II. Evidentemente esse pluralismo
não poderia sobreviver num clima de denúncias e de
sanções.

Sobre os textos

Os textos citados nas denúncias são públicos. O livro


Yo creo en la Justicia y en la Esperanza tem várias edições
em espanhol, já foi traduzido ao italiano e agora
está sendo traduzido também para o francês. Os poemas
de Tierra Nuestra, Libertad também já foram editados
em espanhol e francês e está sendo preparada a publicação
em italiano. O próprio Jornal do Brasil já publicou,
não faz muito tempo, uma pequena antologia deles.

Quanto ao prólogo de Tierra Nuestra, Libertad,


quero deixar bem claro que não fui eu quem o pediu.
Foi a própria editora que convidou Ernesto Cardenal para
escrevê-lo. Não o conheço (pessoalmente. Cardenal),
embora o admire em sua poesia e opção de vida.

Outros documentos citados pelo Arcebispo de Diamantina


foram retirados do boletim da prelazia. Alvorada,
cuja tiragem é de 1.600 exemplares mensais e que é
também remetido à cnbb, a muitos bispos, ao incra e
outros órgãos que atuam na região. O relatório faz também
referência a reuniões do cimi — Conselho Indigenista
Missionário —, citando pronunciamentos incertos
dos quais o próprio Dom Sigaud tem dúvida quanto aos
seus autores — se fui eu ou Dom Tomás Balduíno, visto
que foram pronunciamentos orais.
Dizer que sou contra tudo e contra todos é uma afirmação
que não precisa ser respondida. Sou, inclusive, a
favor da utopia. Certamente sou a favor do Evangelho,
pelo qual estou arriscando a vida; sobretudo do Evangelho
das Bem-Aventuranças e do Anúncio da Boa Nova aos
Pobres, aos Presos, aos Cegos. E sou apaixonadamente
a favor dos indios, dos posseiros e dos peões, como também
de toda esta natureza amazônica que está sendo
destruida, profanada. Sou também muito a favor da conversão
dos opressores que, convertidos, deixariam de
oprimir.

Sobre a sua posição política

Nunca, jamais, disse, nem de público, nem em particular,


nem em meus escritos, que seja comunista. Categoricamente
não o sou. Pode sublinhar. Dom Sigaud, ou
seu documento, confunde constantemente comunismo com
socialismo. Quando o documento afirma que eu me teria
pronunciado comunista, simplesmente calunia. ‘No momento,
me limito a provar que ele defende o comunismo.
Ele mesmo é quem afirma’, diz Dom Sigaud.

Também é calúnia dizer que confundo cristianismo


com comunismo e subversão, ou afirmar que me confessei
adepto de Fidel Castro, ou dizer que é grande o
número de bispos que fizeram opção pelo comunismo —
o que já é calúnia coletiva. Já disse, publicamente, que
sou anticapitalista, e isto sim, que opto por um socialismo
democrático. A Filosofia e a História ajudam muito
bem a distinguir as coisas.

Sobre o regime brasileiro

Nunca rompi com o regime. Também porque nunca


me vinculei a ele. E nunca penso em vinculação a nenhum
regime. Quero ser livre para pregar o Evangelho.

Minha afirmação de que os poderes econômicos impõem


a lei e amordaçam a justiça no Brasil, ou outras
afirmações semelhantes, são compartilhadas pela Ordem
dos Advogados do Brasil, por pronunciamentos oficiais
da Oposição, por editoriais de jornais, dentre os quais os
do próprio Jornal do Brasil e de O Estado de S. Paulo,
na ocasião da surpreendente reforma judiciária. São
também estas as opiniões de um grande número de intelectuais
e da opinião pública mais esclarecida do País.

Não me considero responsável pela tensão entre a


Igreja e o Estado no Brasil. Quanto muito, denunciei,
juntamente com outros, as causas que provocam esta
tensão.

Nunca defendi nem defendo a luta armada ou a


derrubada do regime. Nem as guerrilhas. Sou, isto sim,
totalmente contrário a toda ditadura, capitalista ou comunista,
militar ou civil. Sou contra toda violência e
desrespeio aos direitos humanos, seja na América Latina,
seja na Sibéria.

Com relação a Che Guevara, que admiro — como


admiro a todos os que são capazes de dar a vida por
urna causa — peço que se leia na íntegra o meu poema,
a ele dedicado. Como peço que se leiam, também na
íntegra os poemas que se referem ao latifúndio, à propriedade
privada e a outros assuntos, citados truncadamente
no Documento Sigaud. O que digo sobre os militares
não é uma afirmação apriorística. Inclusive, tenho e
tive amigos militares. O que eu denuncio quanto aos militares
é a simples e triste historia experimentada na
própria carne do povo e dos agentes de pastoral desta
Prelazia.

Sobre o socialismo democrático

(Ao se lhe perguntar o que entende por


socialismo democrático, Dom Pedro Casaldá-
liga respondeu citando um de seus próprios
livros — Yo creo en la Justicia y en la Es-
peranza, exatamente este — onde relata um
inquérito policial a que foi submetido.)

Este assunto mereceria uma resposta mais detalhada,


por ser mais complexo. Aqui eu o respondo de maneira
resumida: entendo por socialização a maior participação
possível de todos os cidadãos, dentro do maior nível possível
de igualdade, nos bens da natureza e de produção.
Para isto, evidentemente, terá que ser sacudido e des-
traído o egoísmo do capital, o privilégio das minorías, a
exploração do homem pelo homem.

Isto é utópico? Seria muito mais utópico o Evangelho.


Como está citado no próprio Documento Sigaud,
que me acusa, eu disse que, como cristão, devo ir muito
além do comunismo: porque acredito na Transcendência
e na Parusia.

Imagino que o pavor de se pensar que um bispo


possa ser comunista é por se considerar o comunista
como ateu, materialista e essencialmente ditatorial. Graças
a Deus, acho que nada tenho de ateu, nem de materialista,
nem de simpatizante de qualquer espécie de
ditadura.

Sobre a morte dos padres

Acusando-me de responsável pelo clima de terror em


Mato Grosso, o documento aceita tranqüilamente que eu
seja apontado comp o responsável pela morte dos padres
Rodolfo e João Bosco. Já disse à imprensa e repito que
o verdadeiro responsável por todas estas mortes é o próprio
Jesus Cristo, por quem eu também gostaria de
morrer.

Sobre programas oficiais

Só ironizo aqueles programas sociais que acobertam


injustiças, que acobertam o latifúndio e que pretendem
substituir o que o povo necessita pelo que os grandes
ambicionam. Por isto denunciei várias vezes a atuação
da funai, certas atuações do incra, e a Polícia, o Pola-
mazônia, as multinacionais.

Segundo o documento, referindo-se às minhas denúncias,


“pode-se imaginar o clima criado em Mato
Grosso com tais palavras e atitudes”. É evidente quem
está criando em Mato Grosso um clima de insegurança
e marginalização social.

E ademais, naqueles tempos, quando escrevi críticas


aos órgãos do Governo e à integração da Amazônia, o
próprio presidente Médici reconhecia que o País ia bem
e que o povo ia mal. E mais tarde o presidente Ernesto
Geisel denunciou como um erro fundamental a pressa
com que estava sendo feita a integração da Amazônia,
conforme ele mesmo disse à imprensa.

Só me nego ao diálogo quando este se transforma


em cumplicidade. Eu, pessoalmente, e todos os agentes
de pastoral da Prelazia temos feito questão de mandar
relatórios e outros documentos às mais variadas autoridades
do País e a órgãos oficiais.

Nunca amaldiçoei os fazendeiros. Amaldiçoo, isto é


verdade, o latifúndio. Não odeio ninguém.

Sobre a Igreja e o Vaticano

Nunca, jamais, me manifestei contrário ao direito e

ao dever do Magistério, do Sumo Pontífice e dos bispos,


mesmo discordando no que permite uma visão pluralista.
Nunca discordei em matéria de Fé.

Fazer a revolução a partir de dentro da Igreja significa,


precisamente, continuar fiel à Igreja, mesmo reconhecendo-
a pecadora e peregrina. A renovação é uma
missão de toda a Igreja e um apelo constante do Espírito
do Cristo Ressuscitado. Para que então foi celebrado
o Concilio Vaticano II?

Condeno a estrutura burocrático-econômica do Vaticano


e desejo, ardentemente, uma maior liberdade evangélica
para o Papa em sua missão. Acredito que esta
maior liberdade evangélica será um grande sinal para o
mundo e uma maravilhosa força ecumênica.

Não me consta que a doutrina social da Igreja seja


o capitalismo, mesmo tendo sido muitas vezes, infelizmente,
sua prática na História, como o foi, às vezes, o
feudalismo, o colonialismo.

Sobre o celibato

Nunca, jamais, condenei o celibato. Muito pelo contrário:


optei eu, pessoalmente, pelo celibato e até agora
me mantenho nele sem arrependimento. Já formei a
muitos seminaristas e religiosos nesta opção. Gostaria, isso
sim, que se desvinculasse o celibato do sacerdócio para
que o celibato seja sempre uma vocação, um testemunho
livre de oblação evangélica.
Assinalar as comunidades de base como um perigo
social parece-me não apenas uma calúnia, como também
uma espécie de traição eclesial: equivale a entregar um
programa oficial da cnbb às forças da Repressão.

Quero deixar claro que, de modo algum, fui eu quem


entregou o documento de Itaici — Exigências Cristãs de
uma Ordem Política — à imprensa, e afirmo, categoricamente,
que desconheço quem o entregou. Lamentei deveras
o fato, porque suspeitei logo que isto esvaziava o
impacto do documento em sua hora certa.

Não organizei nenhum grupo de bispos. Outra coisa


é uns bispos se encontrarem, a portas abertas (e mesmo
que fosse a portas fechadas, acrescento agora), para discutir
programas comuns. Estas reuniões foram feitas,
muitas vezes, durante a própria Assembléia Nacional da
cnbb e em salas abertas. O Grupo-não-grupo é claro que
não existe enquanto grupo organizado. O próprio nome
humorístico o afirma.

Alexandre Vanucchi, estudante morto, como se sabe,


pela Repressão, e cuja memória venero, nunca participou
de nenhuma destas reuniões. Ele participou, com centenas
de outros estudantes, de uma palestra pública que
fiz, por ocasião de uma assembléia da cnbb.

O CIMI

Não sou vice-presidente do cimi (coisa que me honraria


muito) e nunca tive cargo algum nele. Concordo
plenamente com a linha do Conselho Indigenista Missionário
e considero ésta uma das melhores obras pastorais
da Igreja no Brasil nos últimos anos. Talvez, no momento,
seja esta a única esperança externa, isto é, não-
indígena, real para os índios.

Sobre teatro e Eucaristia

É calúnia, mais do que grosseira, dizer que a âmbula


utilizada na representação cênica da inauguração da catedral
continha hóstias consagradas. A representação era
apenas teatro — uma espécie de auto sacramental — e
tinha o único objetivo de servir como preparação para a
verdadeira Eucaristia, que foi mais tarde.” (,Jornal do
Brasil, 8-5-1977. Os títulos são do próprio jornal. Os
textos entre parênteses foram acrescentados agora.)

Sob as primeiras impressões das denúncias de Dom Sigaud,


tive que fazer uma parada, em Gurupi, durante três dias. A
estrada de Barra do Garças a São Félix estava cortada pelas
chuvas. As denúncias e as enchentes chegaram ao mesmo
tempo. Só me restava, como caminho de regresso de Goiânia
para casa, esperar, do outro lado da Ilha do Bananal, em Gurupi
— Belém-Brasília, bons amigos e diocese de Dom Celso
— um teco-teco de retorno, sempre mais barato.

O aviãozinho não aparecia, e foi nessa pausa, de espera


e de oração também, que escrevi este poema. Suavemente melancólico,
um pouco irônico, mas esperançado. Em versos a
gente assobia o que não sabe dizer bem em prosa crua. Talvez
estes versos possam ajudar outros a entender o que eu senti
na maré dessa história...

Salmo Entre Melancólico e Esperançado de um Bispo


Tachado de Comunista

Cansados em meio à névoa, marinheiros; lavradores ao sol;

[meus olhos

Cansados de olhar...

de ver ou de olhar?

Cansado de buscar, o coração


perdido e otimista

como um menino, na alvorada, bosque adentro, rumo à

[vida;

como um barco, no poente, mar afora, rumo à morte


como um destino humano, amado desde Sempre

Cansada de ser velha, a cabeça (com gripe? com malária?)


— o sino lá na torre, com ninho de cegonhas, apesar

[das leis —

chamada a responder por tantas altas coisas...

Cansado de esperar, em todo caso, sempre

de viver, de esperar

Cansado e descansando na Esperança!


A tarde em Gurupi

— Belém-Brasília —
chove com sol

A tarde está de bruxas

— “Plou i fa sol, les bruixes es pentinen” —


As plantas do jardim das Irmãs

— Irmãs de Jesus Crucificado,


também minhas irmãs —

são plantas de jardim, nem mais nem menos


vivas, em flor, crescendo, livremente!

Faz três dias que espero inutilmente


um “teco” de retorno
ao Araguaia nosso
subversivo

— subversivo de garça e de pacus de prata.


Não há vôo sem retorno e é preciso esperar a Espera!
O arcebispo — irmão, suponho eu —

Por razões de zelo, sem dúvida mui louváveis,


quer levar-me a um tribunal condigno.

Sou, pelo visto e pelo feito, perigoso, comunista que sou!!!

Como um touro em pleno presbitério,

nos tempos daquelas boas missas das solenes

[doze horas.

Como um sapo, nutrido de lua e de trevas, na:

[patena túrgida.

Como um pequeno Judas (traidor) em meio aos

[Doze (traidores)..,

A coisa está tão séria


que é preciso levá-la a Roma

— à Roma do César e à Roma do Papa,


conforme o velho costume conhecido.

É preciso levá-la a Roma,

através das vias diplomáticas, por um sagrado óbvio.

Ou é preciso levá-la nas costas,


como uma cruz entre tantas, sem grandes heroísmos.
Como se leva um menino, um ferido, uma enxada.
Ou como uma bandeira de verde natural.
na marcha de outras muitas,

bandeira natural do Terceiro Mundo, palmeira

[caminhante!

Com a verde esperança

— mui natural, mui sobre —


de que sejamos todos,

um pouco,
cada dia

— Vaticano II, Vaticano III, Jerusalém II, Be-

[lém, Belém I! —
mais livres, mais humanos, mais irmãos, mais novos:
os fiéis, os pequenos sobretudo;
inclusive os bispos

— outra vez pescadores de horizontes,


outra vez curtidores de Evangelho,

outra vez degolados, as cabeças sem mitra,


[nas praças maiores do Império, para dar

[Testemunho!

Veja só como a gente se parece


com um Lutero a mais

— fazendo Ecumenismo, de contrabando e

[Graça!

(A augusta tradição dos maiores,


a insubomável Escola que nos fez,
que se fez dela?

A mãe e os bons vigários


e o Padre Fundador
e o Codex,
que se fez deles?)

A tarde chove sol, sem muitas precisões, a luz impeni-

[tente!

e as moças e os rapazes
jogam de peito aberto,

neste claro pátio das boas Irmãs, sem clausura e sem

[véus.

Sobre a mesa deste alpendre


— onde espero e recordo,

um pouco temeroso, verdade seja dita;


bastante esperançado, em todo caso, sempre;
com um verso em brasa sob a cinza,
com um livro na mão.
com a alma em Suas Mãos trespassadas de

[cravos e de Glória;

disposto ao que for;


para que seja dia
amanhã,
cada dia,

para que seja cada dia Páscoa!

Ainda persistem,
enrugadas,

(de medo? de vergonha?)


umas flores de plástico
... tão perto de jardim!

— O que vamos fazer


O que não faremos?

O que não farás Tu, Senhor?

A História vai-se fazendo de pequenas histórias,


também minhas.

Chove com sol.

— As bruxas penteiam luto,


pré-historicamente.

E o Reino vai crescendo


com esses novos jovens
na Belém-Brasília.

Dom Sigaud, como disse, havia mandado as denúncias, via


Nunciatura, à Santa Sé. A bola estava no quintal de Roma.

E fomos a Roma buscá-la, Tomás e eu, para não desperdiçar


a jogada, o crescimento da liberdade eclesial, a expressão
da comunhão de Fé dentro do pluralismo de opções concretas.
Para que não continuem ficando nos arquivos ou nas chancelarias
eclesiásticas os conflitos e as aspirações da total Comunidade
eclesial.

Fomos a Roma, por carta. Enviando, em mãos, a Paulo VI,


nosso Pedro ancião e sofrido, esta mensagem que publico aqui
porque a escrevemos também para ser publicada.

“A Sua Santidade, o Papa Paulo VI. Cidade do Vaticano


Santo Padre.

Nesta hora, em que o Episcopado brasileiro está


sendo atingido em nós e em outros de seus membros,
submetidos à suspeita, inclusive por algum coirmão no
Apostolado, sentimo-nos no dever fraterno e apostólico de
comunicar-nos com Vossa Santidade.

Reafirmamos, em primeiro lugar, com jubilosa gratidão,


nossa fidelidade ao Senhor Jesus, dentro de sua
Igreja, misteriosamente una e católica, e nossa plena
comunhão com Vossa Santidade, como Pedro do Colégio
Apostólico e Pastor Universal da Igreja de Cristo.

Pelas exigências desta fidelidade, que o Concilio Vaticano


II definiu, com nova luz, como um serviço evangélico
aos Homens, em seus sofrimentos e esperanças,
em cada tempo e em cada lugar da História, estamos
sendo julgados.

Não pretendemos justificar-nos, nem pedimos uma


privilegiada atenção. Confiamos que Aquele, que é o
único Juiz e a Testemunha fiel (Ap. 1,5), julgará um
dia misericordiosamente nossas deficiências.

Queremos apenas expressar a Vossa Santidade nossa


preocupação — neste rumoroso processo que nos envolve
— frente à distorção da Doutrina Social da Igreja e à
instrumentalização de algum membro dos seus Organismos.
Isto, por razões diplomáticas ou por discrepâncias
de visão, sendo que estas deveriam caber perfeitamente
no pluralismo que a vivência histórica da única Fé postula.

O Mistério da Encarnação do Filho de Deus entre


os filhos dos Homens leva-nos a assumir, em nossas respectivas
Igrejas, os problemas e as aspirações que constituem
o substrato de uma vida humana condigna, a infra-
estrutura indispensável para a realização consciente,
corresponsável e fraternalmente comunitária de todos os
filhos de Deus — em nosso caso, particularmente, os
índios, os humildes lavradores, os emigrados do campo.

Os últimos Documentos Oficiais da Igreja, mais diretamente


voltados para as exigências de uma nova ordem
sócio-político-econômica, confirmam-nos nessa opção.

Esta atitude, que consideramos evangélica e eclesial,


gera seus riscos e contradições e suscita logicamente prevenções
e até a perseguição por parte dos exploradores ou
privilegiados. Cremos que a Cruz de Cristo é o sinal
da autenticidade de sua Igreja. Os servos não podemos
pretender sermos mais bem sucedidos do que o Senhor
(Jo 15,20).
'Não receamos possíveis penalidades de nenhum poder
■contra nós. Nossas vidas estão sacramentalmente marcadas
para o Serviço e O Sacrifício. Preocupa-nos, apenas,
por amarga experiência das nossas próprias Igrejas e de
tantas Igrejas desta América Latina, em hora de Martírio
e de Libertação, a sorte dos pequenos, o desnorteio
e o desamparo em que ficaria o Povo de Deus, sob as
represálias dos poderosos, se nós, os pastores, fôssemos
omissos pelo silêncio ou cúmplices pela ambigüidade.

Por isso recorremos direta e publicamente a Vossa


Santidade, cujo ministério de Pastor Universal pode, uma
vez mais, nesta hora, confirmar na Fé (Lc 22,32) e confortar
na Esperança os seus irmãos, pastores e fiéis.

Renovando o testemunho da nossa total comunhão,


pedimos a Vossa Santidade o conforto da bênção e da
oração apostólica de Pedro.

Fraternalmente, em Cristo, o Senhor,

(Assinaturas)

Goiânia — Brasil, 16-V-1977.”

26

Nos dias posteriores, Dom Ivo, o secretário-geral da cnbb,


fez denúncias públicas contra a ação da Segurança Nacional
que investigava vidas e bens da Igreja, e manifestou também
sua solidariedade com Tomás e comigo.

E com o acréscimo, que eu não esperava, o próprio


Osservatore Romano, órgão oficioso da Santa Sé, havia publicado,
a 14 de abril, uma crítica bastante favorável de
Giovanni Caprile a este meu livro, Eu creio na Justiça e na
Esperança.

O comentarista do Osservatore insiste em que o livro seja


lido dentro de seu contexto, o que me parece muito razoável;
porque, fora do contexto, diz, “certas expressões poderiam parecer-
nos paradoxais e inadmissíveis”.

Conste, todavia, que essas certas expressões “fortes” —


sobre a Igreja e o Vaticano, sobre o Governo e a Sociedade
— que eu escrevo no livro, para mim têm valor também
fora do contexto circunscrito, pelas águas do Araguaia e do
Xingu e pela linha divisória entre o Mato Grosso e o Pará.
Não me agradaria que se relativizassem excessivamente as
coisas, porque assim ficaríamos sempre em simples reformismos
ou em ambíguas conivências, justificadas conforme os meridianos.
Falo do Vaticano sabendo em que meridiano está; e
falo do Capitalismo sabendo que está em todos os meridianos.

Isso, com minha gratidão pelo comentário de Caprile, que


veio como água de maio. Porque, como dizem em minha
celtibérica Espanha, iser gentil não impede de ser franco”.

Março. Dia 30. (Estou recolhendo as pulsações


atrasadas de meu Diário):

“As coisas surgem por mandato divino; o homem,


por chamamento” (Guardini).

“O homem, única criatura terrestre que Deus amou


por si mesma, não pode encontrar sua própria plenitude
a não ser no dom sincero de si próprio aos demais”
(Gaudium et Spes, 24/2/74).

Estou lendo A Graça Libertadora no Mundo, de


Leonardo Boff.

O livro de Boff é uma esplêndida síntese — pedagógica.


crítica, criativa — da teologia da Graça. (Recorda
o que aprendemos, bem ou mal, e abre novos horizontes
que não nos mostraram.) É um livro como que
rezado. Faz-me bem. Encanta-me essa visão global de um
só Deus e uma só Humanidade e um Mundo só. A força
de “encontro” que dá à Graça. O “gratificante” que se
faz “o dia a dia” do homem amado por Deus, em seu
Filho feito homem. Irineu estaria bem de acordo com
esta teologia de Boff. Porque realmente a glória do Deus
vivo é o Homem vívente.

E aqui terminava, de novo, o intermitente Diário.

É maio; um pouco frio, mas luminoso. Mês de Maria


Mês do Espírito.

Junto com as denúncias e as solidariedades, a gente continua


vivendo a solicitude desta pequena Igreja de São Félix.

O problema da Terra, que é o problema-raiz da região,


continua igualmente impossível, oficialmente fatal.

Continua, imperturbável em sua programação, embora em


meio aos fracassos econômicos de tantas empresas latifundiárias,
a integração capitalista e multinacional da Amazônia — que
é uma verdadeira reserva das multinacionais — e a mecanização
seletiva do campo.

Acrescenta-se, apenas, a miragem do financiamento de


terra e maquinário que é somente para os que já têm recursos
e estão acostumados com a máquina e com o banco.

O incra parou, no ar: impotente, em seus pequenos funcionários,


e cúmplice, em seus chefes e seus fins. Eu, que
tanto tenho recorrido ao incra, devo declarar isso, mais uma
vez, com certa desesperação.

Os posseiros que conseguiram permanecer em seus lugares


(a maior parte deles reunidos em povoados ou “patrimônios”)
não conseguem sobreviver decentemente:

— porque sua produção é desvalorizada e pelas distâncias


que tomam impossível um mercado;

— porque para eles, os pobres, não existe nenhum tipo


de apoio financeiro ou técnico, nem assistencial, praticamente.

(Há somente um hospital, com um médico, que


atende pelo Funrural, na absurda extensão de 150 mil
km2. Um Posto de Saúde em São Félix, com estudantes
de medicina e agora dentista. E algum outro serviço esporádico,
na região.

O resto do atendimento, acessível aos pobres, está


na iniciativa ou nas mãos da Prelazia: a “Unicas”, cooperativa
de saúde, que foi criada em Santa Teresinha; o
ambulatório de Ribeirão Bonito; o de Serra Nova; o de
Porto Alegre, que agora está se transformando em cooperativa
também.)

Continuam as pressões dos grandes. Curiosamente, a “posse”


acaba por ser apenas “ocupação”, e o posseiro, um ocupante,
porque os títulos, verdadeiros ou arranjados, acabam invadindo
tudo.

Cito algumas dessas pressões, em nossa região:

— a fazenda dos Abdalla sobre o povoado de Santo Antônio,


no rio das Mortes, querendo estrangular inclusive a área
urbana (tendo como gerente, ali, o Décio Felipe, que gerenciou
tragicamente a Codeara);

— o cerco da Piraguassu (agora também do Grupo Yamaha,


japonês, além do Grupo Medeiros) sobre os posseiros
antigos de Porto Alegre;
— a Tapiraguaia (do Grupo Medeiros-Carneiro), negan-
do-se insolentemente a reconhecer a terra dos Tapirapé (e a
funai, impotente ou cúmplice!);

— sem nenhuma solução os moradores de Pontinópolis,


Serra Nova, Ribeirão Bonito e Cascalheira, ou da Matinha e
Chapadinha, e os posseiros de Luciara que agora estão, por
exemplo, em tensão com a fazenda do Banco Boavista...

Não há terra e não há trabalho. Certamente não o há


nos povoados.

Os peões diminuíram notavelmente, substituídos pelas máquinas


ou cuspidos pelo Latifúndio que já não precisa deles,
uma vez concluídos os primeiros serviços brutos. Posseiros e
filhos de posseiros estão se convertendo em peões, mais próximos,
menos notórios e mais temporários, às vezes. Os clássicos
peões acabarão sendo bóias-frias, em qualquer lugar...

Para nova ignomínia nacional, e novo genocídio — sociológico,


pelo menos — nas contas históricas do Sistema, está-se
querendo cortar as terras indígenas do Parque Indígena do
Araguaia e do Parque Nacional do Xingu:

“Já tiveram início os trabalhos de abertura de uma nova


estrada federal — a BR-262 — que cortará terras indígenas
■do Parque Indígena do Araguaia e do Parque Nacional do
Xingu.

Segundo o diretor do Parque do Araguaia, que cobre quase


toda a Ilha do Bananal, onde vivem os índios Karajá, Javaé e
Tapirapé (estes últimos, fora da Ilha mas dentro do Parque),
a rota da estrada já está sendo fixada com estacas e passa
próximo ao Posto de Canoanã.

A estrada ligará o vale do Araguaia ao vale xinguano,


cortando a área indígena ao Sul (é bom lembrar que o Parque
do Xingu já foi cortado ao Norte).

Segundo a denúncia, a funai, embora tendo conhecimento


desse traçado, pois ele foi amplamente divulgado em mapas
oficiais, até agora não tomou qualquer providência.”

A denúncia é do próprio diretor do Parque do Araguaia,


o sertanista Sidney Possuelo.

Outros sertanistas e antropólogos temem, com muita razão,


que esta estrada causará os mesmos trágicos problemas causados
a outras comunidades indígenas pelas estradas Cuiabá-
Santarém, Cuiabá-Porto Velho, Brasília-Manaus, Manaus-Cara-
caraí, Perimetral Norte...

(Ver O Estado de S. Paulo, 18-5-1977.)

O Turismo chega mesmo. Teremos de dedicar-nos a amaldiçoar


“esse” Turismo como já tivemos que amaldiçoar o Latifúndio?

Chega o Turismo, sempre fatídico para os índios. Como


nos demonstrou, na região, a experiência dos sofisticados
“hotéis flutuantes”, por exemplo. |

Agora a Goiastur conseguiu gratuitamente da sudeco o


Hotel Kennedy, de Santa Isabel, na Ilha do Bananal. O hotel
será administrado pela Liquigás, dona da Suiá-Missu. (A estas
alturas ainda é uma incógnita para mim, e um escândalo para
muitos, e o ferrão nas mãos dos grandes, a cacarejada participação
do Vaticano na Liquigás, na Liquifarm, na Suiá-Missu.)

Para o Povo sertanejo, o Turismo trará os ilusórios benefícios


momentâneos, que, no fim das contas, desintegram cultural,
moral e socialmente. Turismo é também um modo de
integração violenta e por isso mesmo desintegradora.

A vida pastoral continua, com a animação das diversas


equipes espalhadas pelo território da Prelazia. Cresce a consciência
e a participação do Povo de cada lugar; e estão brotando
comunidades de base, ou “bases de Comunidade”, ffu-
mano-eclesial, como eu costumo dizer. Estamos reintegrando
criticamente a Religiosidade popular (ou a Religião popular,
como quer Eduardo Hoornaert). Lutamos, como quase todas
as Igrejas, entre a sacramentalização e os Sacramentos vividos
responsavelmente. A AssemWéia anual do Povo de Deus da
Prelazia, precedida de assembléias regionais, se tornou um
eficaz instrumento de coesão eclesial e compromisso. Alvorada,
nosso frágil e perseguido Alvorada, está sendo um bom instrumento
de evangélica comunicação. Apesar das barreiras oficiais,
e por motivos de suplência, atendemos nos campos da
Educação e da Saúde...

E o que mais? Esperamos “contra toda esperança”, cada


vez mais unidos a toda a Igreja da Amazônia, que atravessa,
com nova consciência, as mesmas angústias, e com toda "a
Igreja que nasce do Povo”, pelo Espírito, no Brasil, na América
Latina, no mundo.
Muitos me têm perguntado como reage o Povo da Prelazia
ante essas denúncias e intrigas que atingem seu bispo (ou a
equipe de Pastoral). Parece-me que nosso Povo já está se acostumando
a ver e a ouvir a perseguição, com suas mentiras.

Além disso, o Povo me conhece e me quer bem, como


eu quero bem ao Povo.

Um lavrador de Canabrava, lá nas florestas do rio Tapi-


rapé e do Liberdade, respondia ao jornalista que nos levou a
Santa Teresinha a notícia das denúncias de Dom Sigaud: “Não
sei o que é ser comunista... Se ser comunista quer dizer ser
um homem ‘comum’, que vive com nós e abraça a gente onde
encontra, nesse sentido eu acho que nosso bispo é comunista!”
Para mim, nem o Osservatore Romano...!

Em Santa Teresinha, quando esse lavrador de Canabrava


falava assim, estávamos inaugurando a igreja nova. Era o dia
3 de março, aniversário daquele 3 de março de 1972 em que
os posseiros defenderam sua dignidade frente à Codeara e a
Polícia!

27

As últimas vivências são estas:

Outro missionário, muito ligado ao cimi e muito amigo


de nossa Igreja, que fo: missionário na nostálgica Viana de
Dom Hélio, o padre Afonso De Caro, acaba de morrer, dia
15 de maio, afogado — recente de Eucaristia — na confluência
dos rios Acre e Purus, lá na Igreja irmã pastoreada por
Dom Moacyr Grechi.

Está se realizando em Brasília — em meio a muitos interrogantes


que estes dias pairam no ar rarefeito da capital —
a Comissão Parlamentar de Inquérito, a cpi da Terra: lançando
à luz pública a problemática da terra que se vive no País.
Eu deverei prestar depoimento dia 15 de junho. O mesmo dia
em que a velha Espanha vai eleger um Governo, pela primeira
vez depois de 40 anos. Parece, finalmente, que está querendo
amanhecer a Liberdade sobre os montes e planícies da adusta
Pátria.
Estes dias os estudantes — gloriosos utópicos de sempre,
sempre os primeiros nas alvoradas — saíram às ruas (ou tornaram
ruas o seu campus), organizando várias manifestações
de massa, nas principais capitais do Brasil, exigindo: “Liberdades
democráticas”, “anistia aos presos políticos”, “fim das
torturas”, “imediata libertação dos operários e estudantes presos”...
Alguns se solidarizaram com Tomás e comigo.

Um dia também a Liberdàde amanhecerá sobre esta nova


Pátria, verde e amarela, que já se fez minha, definitivamente.

O Festival Internacional de Nancy — igualmente agora


em maio — que pretende ensaiar um novo Diálogo Euro-La-
tino-americano, havia-me convidado para participar. Naturalmente
me limitei a escrever-lhes uma carta. Se eu fosse, talvez
não pudesse voltar! Mas nessa carta lhes manifestava todo o
meu apoio a essa iniciativa descolonizadora e fraterna. “Mentes
e corações” estão mudando, em muitos setores das metrópoles
do Colonialismo.

Em junho, sob a direção do Secretariado de Missões do


celam e com a ajuda — para alguns, incômoda — do cimi,
vamos ter, em Manaus, um Encontro Indigenista Panamazô-
nico, o primeiro, e do qual participarão representantes do
Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela. Esse
encontro quer enfrentar, de modo global, a problemática da
Pastoral Indigenista. E também de modo continental.

Espero que seja uma clarinada para as responsabilidades


indigenistas da próxima Assembléia Episcopal Latino-Americana,
em 1978. Medellín se esqueceu (!) dos 30 milhões de índios'
da América Latina, apesar da lúcida postura com que olhou e
assumiu o Continente.

Assim mesmo espero que essa próxima Assembléia Epis-


copal Latino-Americana não seja um retrocesso em relação a
Medellín — já tão longe! Há um difuso mal-estar em torno
do celam. Há, também em algum alto dirigente do celam, um
persistente preconceito contra Medellín. Não podemos provocar
um aborto, em retrospectiva, daquele Medellín pentecostal que
ainda não assimilamos!

Essa Assembléia Episcopal de 78 deverá reassumir Medellín


e completá-lo dinamicamente; deverá ouvir as bases da
Igreja da América Latina e comprometer-se de verdade com o
Povo desta Pátria Grande, submetida hoje a tantas dependências,
vítima quase toda ela de Regimes de força e da arbi-
trária idolatria da Segurança Nacional. A América Latina espera
uma atitude limpa e conseqüente de seus bispos. Eles têm
que ver como respondem a essa expectativa continental. Seria
tão necessário não esquecer, nessa hora-chave, que só se evangeliza
a partir da Encarnação!

Falando ainda da Igreja da América Latina, quero também


anotar aqui à presença estimulante de um livro, já internacional,
que está me acompanhando estes dias. Muito opor*
tuno para sentir com a Igreja do Terceiro Mundo. (Agora já
não basta “sentir com a Igreja”, assim genericamente, como
nos tempos do santo pai Inácio de Loyola.) Falo do livro,
estatístico e profético, de Walber Buhlmann, A Terceira Igr eia
e o Terceiro Mundo, editado aqui no Brasil pelas Paulinas.

Há uma Igreja do Terceiro Mundo — Ásia, África, América


Latina, Oceania — que deve ser reconhecida como diferente
e autóctone, em razão da mesma Catolicidade. E deve,
ela própria, assumir livremente sua identidade original e lançar-
se a cumprir sua missão, sem complexos, sem mimetismos,
dentro do próprio mundo; como deve coadjuvar corresponsa-
velmente na comum missão, dentro das outras duas Igrejas —
a primeira, do Oriente, a segunda, da Europa e dos Estados
Unidos.

Tenho pensado muitas vezes que a missão peculiar desta


Igreja do Terceiro Mundo seria, aqui, entre seus Pobres, e lá
para os ricos:

— Denunciar a miséria que oprime, e

— anunciar a Pobreza que liberta.

Acabo de participar da Missa da novena do Espírito Santo.


Está chegando Pentecostés. É, há vinte séculos, o Tempo do
Espírito. E é preciso crer n’Ele com aberta confiança.

Ele nos penetra como um azeite derramado em nossos


corações e é sua Unção que nos faz cristãos, ungidos no
Ungido.

Ele nos leva, em Igreja, como um vendaval ou como uma


brisa, mas sempre no ímpeto salvífico de sua Paz.

O Povo cantava a envolvente melodia e eu cantava. Povo


também, com toda a minha necessitada Fé:

— “A nós descei, Divina Luz,


e em nossas almas acendei
o amor de Jesus!”
— “Recebereis a Força do alto e sereis minhas testemunhas,
começando por Jerusalém, até os últimos confins
da Terra...” (At 1,8).

Maio de 1977

m
O Deus e Pai de
Nosso Senhor Jesus Cristo
A primeira sensação que tive de Deus foi a de um Ser
realmente único e que valia. Ele contava na vida de meus
pais, na vida de minha família. Deus era um nome, uma
ameaça, um objetivo, um consolo, um recurso, constante, definitivo.

Aqueles que contavam com Deus eram os bons. Os que


não contavam com Deus eram os maus. Ouvi alguma vez o
qualificativo de ateu, sempre se referindo a alguém degenerado.
(E, apesar disso, percebi cedo que havia também em
meu pequeno Balsareny pessoas não-praticantes •— ateus e
não-praticantes deveria ser a mesma coisa — que também eram
pessoas boas e até amigas de minha casa, como Libório, o
alfaiate vizinho.)

Deus contava na vida de minha cidade. O calendário rodava


em volta d’Ele. Diziam que contava na vida do país e
do mundo. Ele tinha feito tudo, via tudo, e julgava tudo: tudo
estava pendente d’Ele.

Os pagãos que existiam em certos lugares longínquos, atrasados,


da Terra, eram os selvagens que os missionários procuravam,
por quem ou em cujas mãos os missionários morriam,
como o Beato Almató, nosso conterrâneo.

Aos dois anos entrei para o colégio das Irmãs Dominicanas


da Anunciata que estava defronte de casa, do outro lado da
praça e do sol. E em casa e no colégio me ensinaram a rezar
as orações da manhã e da noite. Rezávamos o terço em família,
eu quase sempre na névoa da sonolência, perto da estufa.
É claro que assistíamos à missa, infalivelmente, apesar
de que eu não me lembre. Lembro-me, porém, das novenas
das almas a que também assistíamos, meu pai me segurando
pela mão e eu em temerosos cochilos diante do enorme quadro
das “almas em chamas”.

Depois da guerra — durante a guerra como amador e em


missas furtivas nas fazendas dos meus tios — fui coroinha;
como também meu irmão e meus primos, por uma espécie de
continuidade levítica. E sendo coroinha comecei a me familiarizar
com as coisas de Deus; com os padres, com os sacramentos,
com a morte e a outra vida. Esta familiaridade, de
certa maneira, me desmitificou um pouco a Religião. (Todo
coroinha de antigamente era um candidato ou a padre ou a
anticlerical.) Mossén Pere, o vigário, fumava na sacristía, paramentado
e em cima da hora da missa. Os padres tinham
suas desavenças, suas fraquezas. O dinheiro das esmolas era
contado com certa avidez. Etcétera. Por outro lado esta familiaridade
me colocou dentro da Religião e a fez algo meu,
inapelável como uma causa.

Para minha Primeira Comunhão eu sabia o catecismo íntegro,


literalmente, e com a mais apologética segurança.

A guerra, sem padres, sem funções religiosas, na apenum-


brada igreja románica profanada pelo fogo, e com minha prematura
puberdade me fustigando, me introduziu numa nova
“religião” de oração, já pessoal e conflitiva: durante meus pecados
de criança eu rezava a Deus, discutindo com Ele, exi-
gindo-Lhe compreensão.

Deparei-me na guerra também com a face heróica da Religião,


pela qual morriam tantos sacerdotes e religiosos e “bons
católicos”; pela qual morreu meu tio Luís; pela qual viviam,
escondidos e se arriscando, o padre Bertrans e outros padres
que eu conheci, suarentos e anônimos, por aquelas fazendas,
naquelas missas rezadas em cima das cômodas e sem paramentos
litúrgicos.

As observações dos mais velhos e meu próprio relacionamento,


cedo me fizeram distinguir entre a Direita e a Religião,
entre ser católico e viver a Fé. No centro da Juventude
Católica na minha cidade esta distinção se me faria mais
evidente. Uma coisa era se declarar acérrimamente católico,
por exemplo, e outra era “viver a Graça”. Eu suspeitava que
ser católico parecia às vezes com pertencer a um partido, simplesmente
.
Além disso, as mães, as avós e as tias eram mais puramente
católicas, como o eram sem discussão, as crianças e
os velhos...

A Religião, depois da guerra, com a chegada dos “nacionais”,


e passada uma primeira fase de euforia, começou a
me parecer “utilizada”. Os nacionais, vistos à distância, desde
as catacumbas dos nosso pinhais, através da rádio-galeno, ou
de trás da persiana sempre descida na minha casa, eram Cruzada,
milícias de Cristo-Rei — como mais tarde aprenderia.
Eram a “libertação” que nos vinha, lentamente, como um suspirado
dom de Deus.

Entre as tropas, mercenárias ou simplesmente recrutadas,


que devoravam com os olhos as mulheres, nas paradas ou desfiles;
e nos mouros que arrancavam os dentes de ouro dos
defuntos; e no capelão militar intransigente, que não tolerou
que alguém do povo quisesse cobrir com um pano vermelho
as vergonhas do fogo sacrílego nas paredes do altar-mor; e no
turvo amasiamento dos arrivistas que antes eram de esquerda
e agora se faziam da Falange — os “nacionais” já não me
pareciam simplesmente a “Religião” defendida, salva. A Religião,
em todo caso, era algo misturado, impuro e era preciso
começar a distinguir entre a cruz e a espada.

Chegaram, de novo, os padres. Fui a escola com o Mossén.


Era coroinha oficialmente — já então senti muitas vezes o
calorzinho da piedade. Nos cultos, olorosos de incenso, ante
o Santíssimo exposto, e nas missas do domingo; nos cantos
ainda de Verdaguer e de Mossén Romeu, e no primeiro gregoriano
esotérico. Nas grandes solenidades do Ano: Natal, ^sobretudo;
Semana Santa, “Nossa Senhora de Agosto”, o Corpus
Christi e a Imaculada. Os cultos do domingo, algumas vezes
eram uma terrível prática a contragosto; outras vezes eu os
vivia com uma inicial devoção “predestinada”. Minhas confissões,
minhas repetidas confissões, mantinham-me no equilibrismo
de uma fidelidade nunca renegada. Meus escrúpulos,
que depois me acompanhariam seminário afora, longa vida
afora, em alguns aspectos, eqüivaliam a uma profissão torturada
da Religião “verdadeira”. O importante, em todo caso,
para mim, criança, meninote, era voltar sempre “à Graça de
Deus”.

Fui prematuramente “avanguardista”. Depois da guerra fui


da Ação Católica •— ainda que a sentisse um pouco castelhana,
importada. E as “palavras de ordem”, o teatro cató-
lico, os círculos de estudo dos mais velhos, as publicações ou
cartazes, as excursões e “caramelles”, a vida do Centro Paroquial
— foram minha vida, obsessivamente. Religião, Igreja,
Fé, sem fronteiras, promiscuamente sentidas. Deus era isso
tudo. Que mais poderia ser?

Estando já no Seminário, nos seminários menores e no


Noviciado, me empenhei em salvaguardar a única coisa importante,
a Graça. E tornei-me profundamente piedoso. No
noviciado, naqueles meus tempos, vivia uma tão meticulosa
fidelidade que “sentia” literalmente a presença de Deus como
uma outra pulsação, como uma respiração colateral e a protegia
materialmente com os olhos sempre baixos.

E troquei todas as sestas — que não eram na cama e


sim na dura carteira escolar — pela oração ante o Sacrário.
O bom irmão Riera, que gostava tanto da “blanca Mare de
Déu de la Mercê, de Vich”, ali muitas vezes me surpreendeu.

As vidas dos Santos, lidas no refeitório do Noviciado, me


entusiasmavam. São Francisco Xavier, que foi mais tarde “O
Divino Impaciente” dos meus teatros seminarísticos e o incentivo
para minhas pretensões missionárias. São Pedro Claver,
cujos mosquitos encontrei, vivos, neste Mato Grosso. Santa
Teresinha do Menino Jesus, sobretudo, que foi desde então uma
companheira de minha vida. A His'ória de uma Alma foi o
livro do meu 'Noviciado. Providencialmente. Porque nele fiz
descobertas maravilhosas para minha Fé: Deus era Pai. Deus
era mais que uma Mãe que não pode esquecer o filho de
suas entranhas. Ele nos trazia “tatuados” nos seus braços. Deus
era Amor. A oração dos cristãos era o Pai Nosso. E o Reino
dos Céus estava reservado às crianças. Cristo nos deixou como
testamento o Mandamento Novo. O próximo era algo imprescindível,
central na Fé cristã. Um discípulo de Jesus se destinava
a seus irmãos. Era preciso oferecer, consumir a própria
vida por e’es. A mais escondida contemplativa podia e devia
ser uma missionária universal...

A Bíblia foi-me aberta pela História de uma Alma. Isaías


e João chegaram até mim pela mão da pequena carmelita de
Lisieux.
Os constantes exercícios espirituais, sobretudo nos volumes
sérios, bem fundamentados do padre Casanovas, firmaram-me
na convicção de Deus como Princípio e Fim da Vida. (“Tü,
meu Princípio e meu Fim. — Eu, agora, um peregrino •— de
Ti a Ti.”) A Eternidade passou a ser em mim, além da meta,
o valor, a razão constante da existência: Quid hoc ad Aeterni-
íatem? Este mundo era verdadeiramente uma “aparência que
passa”...

Paralelamente, a Liturgia envolveu de Luz, de fortes emoções


espirituais e até de imperturbável alegria, esse descarnado
fundo inaciano que já se fizera, para sempre, vértebra de
meu espírito solitário e leal. Vivi intensamente, durante os
estudos, as grandes celebrações do ano litúrgico: Natal, Semana
Santa, Pentecostés, Todos os Santos. Com que apaixonada
poesia, com que vislumbres de fé verdadeira celebrei a
Páscoa, desde então. Havia-a descoberto; e creio que esta foi
a maior descoberta de minha espiritualidade, primeira pedra
da Esperança na Ressurreição — a de Cristo, a nossa — que
hoje canaliza e expressa todo o conteúdo de minha Fé cristã.

Schulzter, Guardini, Odo Cassei; o Gregoriano sóbrio e


evocador, os cantos de Palestrina e de Vitoria, Gellineau e
depois Deiss, constituíam um bom amálgama de arte e oração,
um “sacramento” de meditação e de comprometida vivência,
muito adequado a meu modo de ser. Cada um tem o direito
de viver sua Liturgia peculiar; sem que isto signifique minimizar,
em nada, a essencialidade comunitária que reconheço
na Liturgia. O Verbo se faz Encarnação no terreno concreto
de cada pessoa humana. Deus diz sua Palavra no dialeto de
cada um.

Devo a um rígido mestre dos meus anos de Filosofia,


quando se descascava em mim todo o estuque exterior do
Noviciado, o fato de ter me encontrado com São Paulo. Um
pouco fanaticamente, talvez, porque engolíamos, de cor e em
latim (os mais corajosos en grego), todas as Epístolas. O fato
é que encontrei São Paulo. E a partir dele a Bíblia assim de
vez, o Mistério de Cristo, a História da Salvação...
— Em relação à Bíblia, poderia dizer, em síntese, que a
medida em que a venho conhecendo, por meditações, por leitura
— nunca por grandes estudos especializados, verdade seja
dita —, pareceu-me ser o mais certo — por cima e por baixo
de velhas e novas exegesis — e o mais saudável — falando da
Saúde de Deus em Jesus Cristo — essa leitura humilde e
crente da mesma, a grandes golpes de vista ou a sorvos:

— os nomes-chave;

— os momentos culminantes da História de Israel;

— as grandes “maravilhas” de Deus no seu Povo e em


seu Cristo;

— os “lugares-comuns” da Consolação e da Esperança;

— as palavras paradigmáticas do Senhor;

— as linhas-mestras da confissão de Fé dos Apóstolos e


das primeiras comunidades cristãs.

O contato com alguns protestantes fanáticos de certas denominações


pentecostais, por exemplo, e as próprias aberrações
ou decepções pessoais ou infra-eclesiásticas — de formação,
de doutrina, de pastoral — tantas vezes mal fundamentada na
suposta Palavra de Deus, que era só má leitura dessa Palavra,
levaram-me a uma convicção bastante pessoal e libertadora de
que “a letra (a letra da Bíblia) mata” e só “o Espírito (que
pulsa na Bíblia) vivifica”. Que a palavra de Deus é maior
que a Bíblia. Que a Revelação de Deus não termina com João,
precisamente. Que a Palavra de Deus não pode ser um gueto
para certos doutos homens privilegiados. Que Jesus Cristo se
“ultrapassa” a Si mesmo, fora do Evangelho, aquém do Evangelho,
na Igreja que é seu Corpo e na História da Humanidade
redimida, que é sua plenificação. Que o Evangelho é
uma força dinâmica de Deus e não um momento-monumento
para ser visitado com nostalgias ou com sabedorias.

Pensando em organizar estas ligeiras memórias do “Credo


que vivi”, enchi nove páginas apertadas, à máquina, com as
referências bíblicas que mais substancialmente alimentaram
minha fé. Não vou transcrevê-las aqui, é lógico; mas quero
enumerar algumas porque sem elas o itinerário de minha Fé
e seus motivos ficariam inexplicados.

O Deus do Gênesis que faz o Homem à sua imagem, que


passeia acessível pelo paraíso que Ele criou, que acha bom
tudo o que fez. O interesse de Deus em reatar o diálogo com
o Homem que peca, abusando da Criação e de seu livre arbítrio
e que, pecando, se “esconde” de si mesmo, dos olhos de
Deus, da Presença amiga e realizadora...

Abraão, meu primeiro santo, por ordem cronológica. Sua


fidelidade e seu “êxodo” na fé (Gen 12,1...). As promessas,
a Aliança (Gen 15 e 17). A missão de Moisés, o libertador
(Ex. 3) e seus bate-papos com Deus vivo (Num 11). O grande
Êxodo do Povo, a passagem pelo mar Vermelho, o Deserto, a
Terra Prometida (Dt 8).

Gedeão, tão despachado “caudilho” menor, de meios pobres


e confiantes (Jz 6 e 7). Às vezes digo a D. Helder e a
outros amigos que é preciso contar também com as “minorias
gedeônicas” como se quer contar com as “minorias abra-
âmicas”...

Devo sublinhar, entre parênteses, que os “privilégios” de


Israel frente ao resto do mundo, esse privatívismo de um Povo,
que era “seu” Povo, como também as brutalidades e os escândalos
— de Patriarcas, Profetas e Reis; do próprio Deus que
castiga, faz morrer, e se dedica a exterminar os povos inimigos
— incomodaram com freqüência minha fé, antes de ter
essa visão simples, realista e global do Livro, que é tão divino
quanto humano.

(Meu contato com a Bíblia teve também muito de vibração


e sintonização poética. Mais de uma vez fiz a leitura
bíblica de Rubén Darío, por exemplo; e até de Renán; sem
outras intenções iconoclastas, é claro.)

Samuel e a chamada de Javé (Sam 1,3), frente aos sacerdotes


prostituidores do Templo, era o protótipo da vocação
respondida.

David, sua juventude eleita, seu pecado e seu arrependimento;


“seu coração segundo o coração de Deus”, apesar Nde
todos os pesares; a aliança que Deus fez com sua Casa; “O
Filho de David”...

Os Macabeus, como uma família heróica, de mártires.


Jó e o mistério do sofrimento humano, a dura confiança
no Senhor que é um desafio para os ímpios, o sentido da
morte e aquela “cega” esperança de ver “com estes olhos”.

Os Salmos, como um eco e uma tradução do próprio espírito.


A força do destino, o pecado, a angústia e a esperança
humanos diante de Deus, a Rocha... A oração e a poesia
feitas canto de todo um Povo... O salmo 41 respondeu, uma
quarta-feira à noite, em Sabadell, à minha opção pelos necessitados:
“Feliz o que cuida do fraco e do pobre!” A “sede dé
Deus” (63), o “Canto de Peregrinação” (84), “Deus é amor”
(103), a saudação a Jerusalém (“Que alegria quando me disseram”...
(122), o “Canto do regresso” (126), o “De pro-
fundis” (130), “Porque é eterno seu amor” (136), a “Balada
do desterrado” (137), “Javé, tu me sondas e conheces” (139)...

Os Profetas, como os homens “chamados” que anunciam


e denunciam. Despertadores do Povo. Que se encontram com
o Deus vivo e terrível. Compelidos pela Palavra, de modo
irresistível (“Fala o Senhor Javé, quem não vai profetizar?”).
“Sinais”, viventes, escandalosos, da Palavra de Deus. Sentinelas
sobre o vasto mundo, para os tempos vindouros, messiânicos.
Sua ira. Sua fidelidade na perseguição. Sua coragem frente aos
grandes. Seu martírio. O “amor por seus irmãos” (Jeremias).
O clamor pe’a Justiça (Amós) ...

Isaías: por quem sinto uma estranha admiração. Poeta


maravilhoso, quinto evangelista. “O livro da consolação de
Israel” é um dos meus “lugares” na Bíblia.

Dos Evangelhos fiz primeiro uma leitura carinhosa, deta-


lhista, colorida. Com uma Fé nostálgica no Amigo. Tudo o
que era Seu me interessava. Fui um apaixonado das grandes
vidas de Jesus e dos comentários bíblicos (Grandmaison, La-
grange, Ricciotti, William, a Bíblia de Montserrat, a Bíblia de
Jerusalém...).

Depois comecei a sentir os Evangelhos como a Boa Nova,


a alegre Notícia, a Notícia de Deus, o que Ele tinha para nos
dizer e nos disse por Jesus Cristo.

Deveria destacar dos Evangelhos:

— O pró^go de João (Jo,l): a Palavra subsistente, por


Quem tudo foi feito; o Verbo que planta sua tenda
entre nós, cuja Glória “nós vimos”...

— A anunciação a Maria e o Magníficat (Lc 1).


José e sua fé às escuras, sua generosa fidelidade
(Mt 1).

Belém: o Nascimento na pobreza, à margem da sociedade;


o convite aos pastores marginalizados (Lc 2),
a fé arriscada dos Magos (Mt 2).

João Batista, sóbrio, forte, leal até o martírio (Jo 1,


Mt 4).

O primeiro anúncio missionário de Jesus, seu chamado


como quem semeia (lembro-me muito bem da
cena de Pasolini) (mat 4). Os primeiros discípulos
(Lc 5; Mc 19-20).

Maria (Lc 7), A adúltera (30), Zaqueu (19), A fé


da hemorroíssa (Mc 5), Nicodemos (Jo 3), A Sama-
ritana (4), A fé da mulher cananéia (Mt 15), A confissão
de Pedro (16), A vocação de Mateus (Mc 2),
O cego de nascença (Jo 9), Zaqueu (Lc 19), Lázaro
e Maria (Jo 11).

As Bem-Aventuranças e o todo Sermão da Montanha,


que “espiritualizam” a Lei e a fazem “nova” e "radical”,
comprometendo a vida toda, transtornando o
va'or dos “valores”, carta magna do Homem Novo:
“Buscai primeiro o Reino de Deus”..., “Não vos
preocupeis”..., “Não podeis servir a dois senhores”...
etc. (Mt 5, Lc 12).

O sinal: “O Espírito do Senhor sobre mim” (Lc 4),


“A Boa Nova é anunciada aos pobres”... (Lc 7).
Aquelas palavras “contraditórias”: “Quem não está comigo,
está contra mim”. “Quem não está contra nós,
está por nós” (Lc 11 Mc 9).

“Quem ama seu pai... mais que a mim” (Mt 10).


“Felizes os olhos que vêem” (Mt 13), “Abraão desejou
ver este dia” (Jo 8).

O grão de mostarda, a pedra preciosa, a rede (Mt 13):


porque o Reino é pequeno, enterrado, pertinaz e “totalitário”.

As instruções aos apóstolos e aos discípulos: “Não leve'^


alforge” (Mt 9 e 10), “Sereis odiados por minha
causa”, “Como cordeiros em meio dos lobos” (Lc 10).
O discurso sobre o Pão da Vida (Jo 6): a Fé N’Ele;
comer sua Carne; “Senhor a qu?m iremos, se somente
Vós tendes palavras de vida eterna?”
— “Este povo me honra com os lábios” (Is 29, Mc 7,
Mt 15).

— “Quem quiser me seguir que renuncie a si mesmo”


(Mt 16), “Quem põe a mão no arado” (Lc 9).

— “Se não vos tornardes crianças” (Mt 18).

— “Onde dois ou três estão reunidos em meu nome”


(Mt 18).

— “Eu te bendigo. Pai, porque escondeste estas coisas”


(Mt 11).

— “Vinde a mim todos os oprimidos” (id.).

— O bom Samaritano (Lc 10).

— O Pai Nosso. “Pedi e recebereis... ” (Lc 11).

— “Se alguém tem sede, venha a Mim e beba” (Jo 7).

— “Eu sou a Luz do Mundo”, “Quem guarda minha


palavra”, “Se o Filho vos liberta, sereis livres”
(Jo 8).

— O bom Pastor (Jo 10).

— “Se oueres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens”


(Mc 10).

— “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma


agulha” (Mc 10).

— “Todo aquele que abandona casa ou irmãos” (Mt 19).

— “Todo aquele que se envergonhar de mim” (Lc 12).

— “Tende vossos rins cingidos” (Lc 12).

— “Se tivésseis fé do tamanho de um grão de mostarda”


(Lc 17).

-— “Podeis beber o Cálice...?” (Mc 10).

— “Quantas vezes eu quis reunir teus filhos” — O


pranto de Jesus sobre Jerusalém” (Mt 23).

— “Se o grão de trigo não cai na terra e morre” (Jo 12).

— “Quando Eu for levantado ao alto” (id.).

— “A pedra que os construtores rejeitaram, se tomou


pedra angular (Mt 21).

— “Não lestes: Eu sou o Deus de Abrão”... “Não é


Deus de mortos” (Mt 23).
— “O céu e a terra passarão, minhas palavras não passarão”
(Ms 13).

— “Com ardente desejo, desejei comer esta Páscoa”


(Lc 22). “Eu estou no meio de vós como aquele que
serve” (id.). “Permaneceste comigo” (id.).

— As parábolas da misericórdia, a ovelha perdida; o


filho pródigo (Lc 15).
— A parábola do fariseu e o publicano (Le 18).

— O Juízo Final: A chave do Juízo: “Tive fome... estava


preso... a mim o fizeste...” (Mt 25).

— Todo o discurso-testamento de Jesus na última Ceia


(Jo).

— Getsêmani.

— O julgamento diante de Pilatos.

— A divina ousadia diante de Herodes.

— As sete humanas Palavras...

— A Ressurreição de Jesus, que tem passado, em mim,


de uma Fé deslumbrada e exaltante — poesia um
pouco, um pouco contemplação, um pouco apologética
—• e de uma Fé mais crítica, mas nunca “abalada”,
a uma Fé simples e sólida que me sustenta e
me firma, superior (Deus ajudando) a qualquer dúvida,
a toda possível nova exegese; que sintoniza bem
com a nova teologia sobre a Ressurreição, sobre nossa
ressurreição. Creio que meu Senhor Jesus Cristo vive
e é a Vida e a Ressurreição dos homens e do mundo!

Os textos sobre a Ressurreição e as aparições do Senhor


Ressuscitado eu os destaco todos, um por um.

Afeiçoei-me particularmente aos Atos dos Apóstolos, a


partir dos cursilhos. Pentecostés, o fato bíblico eclesial, a solenidade
litúrgica, a interiorização do Espírito Santo, já foram
muito antes uma referência vital para minha Fé. A comunidade
cristã primitiva, cujas atitudes agora se classificam de
“neófitas” continuam me parecendo uma lição e um estímulo.

Destacaria também a perseguição dos Apóstolos e sua inteireza


e a prisão e martírio de Estevão (At 4, 5, 6, 7).

Paulo me estimulou muitas vezes, como o “homem que


entregou sua vida à causa de Nosso Senhor Jesus Cristo”
(At 15, 26). Entusiasma-me sua vocação fulminante e radical.
Conste, entretanto, que aprendi a distinguir em Paulo o que
é Evangelho e o que ainda é judaísmo e temperamento ou
idiossincrasias do homem ou do tempo.

Sublinho de suas cartas aquelas saudações e despedidas,


tão carregadas de humana amizade e de fraterna comunhão:
Romanos-. A justiça da fé (4), O batismo (6), o Cristão-
“livre” do pecado e da lei (6 e 7), a lei do Espirito que liberta
(8), “Não recebestes espírito de escravos”, a Criação libertada
(8), a Fé, dom gratuito (9), Filhos da luz, “já é hora
de vos levantardes do sono” (13).

I Corintios: “pregamos a Cristo Ressuscitado, escándalo...


(1,18)..., Não muitos sábios nem poderosos... “Escolheu Deus
antes o idiota para o mundo”, “Fui a vós, débil”... (1 e 2).
“O tempo é curto... Como se não desfrutassem deste mundo”...
(7). Feito tudo para todos (9). A ceia do Senhor (11).
Supremacia da Caridade: “Ainda que falasse as línguas...”
(13). A Ressurreição de Cristo e dos mortos: “E quando este
ser corruptível.”... (15).

II Corintios: “A morada que desmorona”... e a futura


glória (4 e 5). “O que está em Cristo é uma nova criação...
Tudo é novo” (5).

Gálatas: A réplica a Pedro: “Se tu, sendo judeu, vives


como gentio” (2,14). “Vivo, mas, não eu... por Aquele que
morreu por mim” (2,20). A filiação divina (4) “Ao chegar à
plenitude dos tempos”... “O Espírito que clama em nossos
corações” (id.). A liberdade cristã: “Para sermos livres, Cristo
nos libertou” (5). “Quanto a mim, Deus me livre de glorificar-
me... Nada conta... se não a Criação nova” (6,14,15).

Efésios: Um texto querido. Bela síntese sobre o Mistério


da Salvação e a Igreja. “Bendito seja o Deus e Pai...”
(1,3 ss). Escatologia realizada (2). Reconciliação dos “dois
povos” (2,14 — “Porque Ele é nossa Paz”). O Homem Novo
(2, 15 e 4, 13,23,24).

Filipenses: Os sentimentos de Cristo Jesus: ... O qual se


despojou (2). “Transfigurará este nosso miserável corpo...
Cidadãos do Céu” (3).

Colossenses: A primazia de Cristo: Ele é a imagem do


Deus invisível. N’Ele reside a plenitude da divindade corporalmente
(1 e 2). “Se ressuscitastes com Cristo”... (3). “Revesti-
vos do Homem Novo...” “...onde não há grego e judeu...”
(3,9 ss).

I Tessalonicenses: Qual é a nossa Esperança?... Vós sois


nosso gozo e coroa! (2,19). Os mortos e a Vinda de Cristo...
“Como os que não têm esperança”... (4,13). Podíamos impor
nossa autoridade... (2,5 -7).

II Tessalonicenses: “que o mesmo Senhor... e Pai que


nos amou e nos deu gratuitamente uma esperança” (2,16).
I Timoteo: “Se nos fatigamos e lutamos é pela esperança...
do Deus Salvador de todos os homens, particularmente dos
crentes”... (4,10).

II Timoteo: A carta do bispo, do consagrado ao Evangelho


e ao serviço de seus irmãos. “Reaviva o carisma...
Lembra-te de Jesus Cristo, Ressuscitado... Se com Ele morremos...
Ele é fiel...” (2). “Conjuro-te, Proclama a Palavra
... insiste...” (4). “A coroa de Justiça... aos que tiveram
esperado...” (4,8 ss).

Tito: “Manifestou-se a graça salvadora de Deus a todos


os homens” (2,11).

Hebreus: “De uma maneira fragmentada... falou Deus,


agora na plenitude” (1). “Por medo da Morte, escravos...
Libertar” (2,14 ss). Ele (sacerdote) que se pode compadecer...
porque experimentado” (4,15 — 5). Sacerdocio de Cristo em
seu sangue. Nova Aliança (9). O exemplo dos santos antigos,
o exemplo de Cristo (11 e 12). “Saiamos com Ele fora do
acampamento, pois não temos aqui cidade permanente, mas
andamos procurando a do futuro”... (13).

Tiago: “Não entre a acepção de pessoas...” (2,1 ss).


Advertências aos ricos (4 e 5).

I Pedro: “Bendito seja... gerou-nos de novo para urna


esperança viva...”. Na perseguição... “Disposto a dar razão
de nossa esperança” (1 e 3). Advertência aos anciãos:
...“apascentai não por interesse mesquinho” (5,1 ss). “Sede
sóbrios e velai... (5,8 ss).

Toda a primeira carta de João, linha por linha, com uma


apaixonada devoção, lida infinitas vezes: Caminhar na Luz, a
Caridade; guardar-se do mundo e dos anticristos e permanecer
na Verdade; viver como filhos de Deus... — “Olhai o amor
que o Pai nos teve...” (3, lss). “Nós sabemos que passamos
da morte para a vida, porque amamos aos irmãos...” (3,14 ss).
“Filhos meus, não amemos de palavra...” (3,16 ss). “Deus é
amor... Ele nos amou primeiro” (4,8...).

Apocalipse: O livro da grande consolação. Um livro apai-


xonante, que a gente descobre por referências, pouco a pouco;
que a gente lê, depois, com fruição de iniciado e cujos textos
“maiores” confortam, comprometem, satisfazem. Alimento da
esperança, no medo, na dúvida, na dor, na sedução da vida.
Chave da História. Vade-mécum da Igreja peregrina, da Igreja
perseguida.
Sua última palavra deveria ser a jaculatoria da Igreja,
porque é o maior grito de nossa Fé, a voz última da Esperança:
“Vem, Senhor Jesus!”

Estudei Teologia, claro, a Sagrada Escritura e todas as


outras “disciplinas” eclesiásticas. E tive que estudar todo o
Direito Canônico, porque a Congregação Claretiana era uma
gloriosa escola de canonistas!... (Nunca “me dei bem” com
o Direito e agora me custa “levar a sério” a perspectiva do
novo Direito que se está preparando, seja dito com todo o
respeito.)

Não eram tempos lá muito bons para o estudo. Tivemos,


porém, alguns professores lúcidos que nos abriram as grandes
pistas quais logo a gente caminhou, crescendo na liberdade da
Fé. Até acredito que devo agradecer, apesar de certos pesares,
os fundamentos tomistas em que fomos ortodoxamente alicerçados.

Alguns nomes importantes em Teologia e em Espiritualidade


iforam, para mim, verdadeiros marcos na rota: Karl
Adam, Schamaus, Guardini, Congar, Journet, Chenu Hêring,
Voillaume, Rahner, Schillebeeckx e outros, mais tarde e vários
amigos e até como companheiros espanhóis como José Maria
González Ruiz e Fernando Sebastián, por exemplo. Devo agradecer
também o bom serviço que prestaram a mim, como a
muitos, certos volumes clássicos, diríamos, de Patmos, Dinor,
bac. Cristiandad, Sígueme, Desclée, Herder..., verdadeiros mananciais
nos quais a gente bebeu. Talvez o último livro-mestre
(depois os livros se tornaram apenas companheiros) foi para
mim A Ressurreição de Jesus, Mistério de Salvação, de
Durrell.

Tive uma fase trinitária. E outras fases de uma Fé vivis-


seccionada em seus artigos. Depois, fui-me desligando de uns
esquemas que tanto continham de cultura — categorias filosóficas,
condicionamentos históricos — quanto de Fé. Fui desmatando,
quase por intuição, por leituras e, sem dúvida, por
Graça, o relativo do absoluto (quem sabe do relativo e quem
sabe do absoluto neste relativo mundo?) na Bíblia e na Tra-
dição. Embora sendo timorato, libertei-me extraordinariamente.
Como a poesia para Juan Ramón Jiménez, a Fé foi-se despindo
para mim. Creio no sensus fidei por experiência, posso
dizer.

Junto ao Deus da Bíblia, o Criador, o Altíssimo, o Pai,


o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, esbarrei muitas
vezes, através do Ministério, com o Deus opressor e implacável
que condiciona moralmente, psicologicamente, que castiga,
que não admite apelações, que no final cobra a sua parte,
que manda a doença, a desgraça inexplicável e a morte. Experiência
impressionante e amarga, desde as minhas primeiras
sentadas horas de confessionário, em Sabadell, até as conversas,
a expressão diária, espontânea da vida toda deste Povo da Pre-
lazia. Faz poucos dias, o velho Raimundo, pai de duas filhas
prostitutas — uma, muda e boba — me comentava, cheio de
santa cólera: “Gente como eu que não possui nem a pele
de uma pulga onde cair morto e tem o descaramento de dizer
que Deus não pode mais mandar enchentes!...”

Que é Fé e adoração? Que é terror e animismo na alma


deste povo ou na alma de qualquer povo ou na alma sofisticada
da “sociedade” ou em nossa própria alma, muitas vezes?
Eu mesmo me tenho sentido incomodado diante de Deus. E
artificial e condicionado e medroso. Quem não teve necessidade
de acreditar, progressivamente, em um “Deus diferente”?
Graças a Deus, Deus para mim já é outro, cada vez mais, o
absolutamente Outro, por um lado — transcendente, primeiro
e último — e, por outro lado, acessivelmente adorável e fiel e
amigo, o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo!...

Desde meus anos de formação, minha oração foi, invariavelmente,


ou uma espécie de contemplativa atitude — sem
muitas fórmulas ou com fórmulas violentadas, porque sempre
me custou rezar com a boca — ou uma petição insistente para
mim, para os outros; sobretudo para os outros. Tenho pedido
muito ao Senhor. Como um “chato”. E garanto que muitas
vezes o Senhor teve que descer, de noite, para me dar o pão!
Os Cursilhos de Cristandade me confirmaram nesta oração de
súplica, com sua “intendencia” e suas “alavancas”. Não sei se,
às vezes, não era essa, um pouco, aquela oração dos gentios de
que falava Jesus. Sei que a intenção não era essa.

Ultimamente quase tenho deixado de “pedir”. Dedico-me,


isto sim, a lembrar a Deus certos nomes, certas situações.
Abro-lhe o coração cheio de referências. Ponho-me diante
dele, impotente e creio que confiado.

De todo jeito, nunca reneguei a oração, não a subestimei


nunca. Creio na Oração. Peço muito aos amigos que rezem
pela Prelazia, por exemplo. Venho guardando para com a
Oração uma inevitável fidelidade, que foi uma graça, companheira
de todas as rotas de minha vida. Pouco me importa
o que diga a psicologia moderna: aceito a psicologia e creio
na Oração; as duas coisas ao mesmo tempo. Se creio em Deus
presente, me parece lógico “estar diante d’Ele”. Sua presença
me acompanha e preciso dos “momentos fortes” para garantir
o clima que acolhe essa Presença.

“O espírito de Oração e a Oração mesma” como ensinava


o Vaticano II.

Também nunca pude prescindir das visitas ao Sacramento.


Porque creio na Presença real, sacramentada.

Minhas missas são outras, claro. A Eucaristia tornou-se-me


verdadeiramente a Páscoa do Senhor. Amo a missa. Creio que
a celebro com sentido. Como a celebração do Sacrifício, a
Aliança, o Encontro. Como a memória que O faz presente e
nos convoca em torno d’Ele. Como a expectativa de festa
que O espera de volta. Como a Ceia fraterna dos irmãos unidos.
Como a celebração da vida diária e da História, da Páscoa
de Jesus e do mistério pascal, do Homem e do Cosmos, amados
por Deus, salvos por Deus em Jesus Cristo Morto e Ressuscitado.

Continuo confessando-me com freqüência. E a confissão


me liberta e me robustece, como um banho no sangue reconciliador.

Falo de Jesus Cristo em todas estas páginas, como é lógico.


Creio que creio de verdade n’Ele. Creio n’Ele e O adoro.
Amo-O. Vivo d’Ele e por Ele. Gostaria de dar a vida por
Ele. Espero, em todo caso, morrer n’Ele para viver com Ele
eternamente. Creio neste Amigo que meus pais, a Igreja me
apresentaram; Deus feito Homem, nascido em Belém, da casta
de Davi, decaída, filho verdadeiro de Maria, judeu e operário,
originário de um povo colonizado; Homem que ama e sofre
e morre, perseguido e condenado pelo Poder dos homens; Ressuscitado
pelo Poder de Deus, misteriosamente igual ao Pai,
“em quem habita corporalmente a plenitude da Divindade”,
cujo Espírito anima a Igreja, Caminho, Verdade e Vida, Salvador
dos Homens, o Senhor!

Mortos os ídolos e os fantasmas, creio firmemente, creio


unicamente n’Ele, o Deus-Homem, que assumiu, revolucionou
e solucionou a História humana e é o Rosto verdadeiro do
Deus vivo e o Rosto primogênito do Homem Novo.
A Igreja, Povo de Deus
Sacramento de Salvação
A Igreja Católica, Apostólica e Romana era, na minha
cidade de criança, a única Igreja. Havia três ou quatro alemães
protestantes, donos das minas de potássio, que tinham, no
carro, assento próprio para seu pequeno “cachorro-lobo” da
boca pintada de batom e que comia doces e os melhores
bifes...

A Igreja era a paróquia. Era o sr. Vigário, os Padres, as


irmãs dominicanas e as de S. José. Eram os cultos nos domingos
e as solenidades anuais. Era o sr. Bispo de Vic que
me crismou aos dois anos. E, sobretudo, el Sant Pare, o Papa
de Roma. Era também o Centro, os salões paroquiais, os pas-
tor et s do Natal e as Car amelles de Páscoa. Os Avanguardistas
e os Fejocistas e os seus hinos que, cedo, me iniciaram num
intuito ideal de luía sagrada: “Ó Mãe, não chores por nós /
Ó Pai, não tenhas pena de nós / se um dia formos maltratados
por bandos inimigos / Ferida em tal combate / é um prêmio
em tal combate”...

Desde muito cedo a Igreja foi, para mim, uma Igreja


perseguida. Estourou a Revolução de 36 e eu vivi, com meus
assombrados olhos de criança, prematuramente heróico, a
queima das imagens e dos conventos, a fuga dos padres e das
freiras, a algazarra destruidora dos milicianos anarquistas, o
sangue dos mártires: com suas manchas inesquecíveis nas paredes
do cemitério de minha cidade e suas manchas inesquecíveis
na calçada da rua de Navás, já na revolta prévia de 34.
Eu acompanhei e escondi os religiosos e os “católicos” perseguidos.
Convivi com eles nas fazendolas e nos densos pinhais.

Como já disse no capítulo anterior, as fraquezas de alguns


católicos que eu olhava como modelos porque eram “os velhos”
e, sobretudo, a decepção que logo me provocaram os nacionais
“cruzados” proporcionaram-me as bases de um certo espírito
crítico em matéria de Igreja. Existiam os bons e os maus
católicos. A Igreja deveria ser, antes de tudo, uma vida: “a
vida da graça de Deus”. Todo mundo se dizia católico com
demasiada facilidade. Algumas figuras veneráveis como o
Carlets de Cal Casas, organista de sempre na minha lembrança
e alguns sacerdotes digníssimos, como Mocén Joan, gravaram
em mim a imagem ideal do homem de Igreja.

Aos onze anos, decidi ser sacerdote. Creio que a decisão


foi minha. E, a partir daí, a Igreja foi minha vida. Posso dizer
honestamente que o tem sido até hoje, com paixão. Todas as
minhas rebeldías e liberdades foram fruto de minha identificação
com a Igreja. Ela me doía e me dói porque a amo.
Porque a amo, a quero diferente. Posso criticá-la e até sacudi-
la, porque é minha também. Como para muitos outros, a
Igreja, para mim, passou de ser minha mãe a ser minha irmã,
minha família, a família de Deus, um Povo que já o é todo
em sua Cabeça, Jesus Cristo, mas que ainda todos juntos vamos
construindo, eu também, eu como sacerdote, como bispo,
aquela “casta prostituta” dos Padres, a Esposa infiel e sempre
amada segundo a imagem de Israel, o mistério do Povo universal
de Deus que é um “resto” apenas... Sei muito bem
que a Igreja me excede infinitamente, mas sei também que
depende de mim, que é o que eu sou. segundo eu a faço.
Sei que ainda é minha mãe, velha e querida, murcha e gloriosamente
vital, anterior a mim, seio, leite e regaço de minha
vida nova e atribulada, causa de minhas preocupações e de
minha teimosa fidelidade, pela qual estou disposto a dar a
vida e para a qual vou, peregrino ansioso, como àquela Casa
grande que será minha herança para sempre.

Estou me empolgando.

Volto ao que dizia. Ingressei no seminário de Vic e depois


na Congregação Claretiana. Durante os anos de formação, os
paninhos sujos de casa e a visão crítica que o estudo e as
leituras e alguns mestres nos proporcionaram, habituaram-me
a uma atitude rebelde. Pensava, rezava, falava, escrevia, con-
fabulava rebeldemente.

As intrigas entre “padres seculares” e “padres religiosos”


que já sentia aos doze anos quando decidi “mudar” para a
Congregação e que, depois, vivi em batalhas maiores entre
bispos e provinciais, entre superiores e párocos, entre Ação
Católica, movimentos e associações; o provincianismo fechado
de cada instituto — “superestrutura dentro da estrutura da
Igreja”, como dizia o Cardeal Tabera, presidente da Sagrada
Congregação dos Religiosos; a ambição desses institutos de ser
tudo em todo o mundo, como uma Igreja paralela; a formação
tantas vezes anquilosada e desumanizante que recebíamos, sem
apelação possível; a obediência que, além de “cega”, era, com
tanta freqüência irritantemente irracional; a pobreza religiosa
que freqüentemente era uma mentira ou, pelo menos, uma
farisaica distinção entre pobreza pessoal e riqueza coletiva do
instituto; os horários, os regulamentos que impediam o apostolado,
que sacrificavam o homem de dentro e o homem de
fora; o abismo que mediava entre nossa vida, organizações,
métodos e a vida dos homens desembocada na rua; o celibato
que era, para muitos, uma amarga violência, uma enver-
gonhadora imposição; a falta de ideal, do zelo que a gente foi
encontrando em tantos religiosos e sacerdotes acomodados,
frustrados, condenados a ser sacerdotes in aeternimv, “nossas
coisas” do instituto que eram diferentes, ao que parece, das
coisas da Igreja e que a gente não via como encaixar nas
coisas do Reino de Deus, nas necessidades prementes do Mundo
dos Homens; o Direito Canônico fossilizado; os Magistérios
inapeláveis; as Encíclicas e Cartas Pastorais que vinham
sempre a reboque; a Pastoral rotineiramente imposta, bagunçada
ou inexistente, aquela Pastoral de conjunto que muitas
vezes era apenas um conjunto de Pastoral, sem pé nem cabeça...
Tudo o que a gente engoliu e cuspiu, durante anos,
com a culpa secular dos outros e com a própria culpa de cada
dia, tudo isso que aborrecia a gente, na Congregação, nesta ou
naquela Diocese, na Igreja; isso que a gente intuía ou palpava
como não podendo ser vontade de Deus, Evangelho de Cristo,
o Reino, tudo isso haveria de acabar, era impossível que não
acabasse! Era preciso mudar muito, urgentemente revolver,
mudar “tudo”...

Fui me tornando radical. E entretanto nunca pensei propriamente


em deixar o instituto. Nunca, certamente, pensei
em abandonar o sacerdócio. Jamais tive sequer o pesadelo de
poder um dia sair da Igreja. Eu proclamava já, naqueles anos
novos, que era preciso fazer a Revolução “de dentro”. A esse
respeito, sintonizo bem com as declarações do rebelde Hans
Kung, por exemplo.

A História da Igreja calava em mim profundamente. Com


que fruição lia Daniel Rops! Os “primeiros cristãos” eram
uma nostalgia embriagante. As vidas de S. Paulo (Holzner).
Os mártires e suas festas. Suas Atas. Os padres da Igreja.
Inácio, o bispo-mártir de Antióquia, que é outro dos meus
santos. Passei a febre evocadora da Idade Média e seus monges
(Os Três Monges Rebeldes, de Raymond) e suas sociedades
e suas catedrais e até suas cruzadas (que me escandalizavam e
me entusiasmavam ao mesmo tempo), os pensamentos de
Nicolau Berdiaeff...! Francisco de Assis e os mendicantes.
(Assis é a cidade que mais me apaixonou.) A Contra-Reforma
com seus santos e teólogos e missionários também levantou
meu espírito durante muito tempo. O Século de Ouro espanhol,
com sua santidade e sua arte me satisfazia. Cheguei a pensar,
inclusive, que não se podia pedir mais à Igreja...

Pelos séculos XVIII e XIX senti uma enjoativa repugnância.


Pio IX, sim, e a Imaculada. E São Pio X e a Eucaristia.
E alguns santos. O resto...

Pio XII, naqueles dias do seu reinado torturado e prestigioso,


era uma intocável veneração; por sua figura branca em
cruz, por suas proclamações marianas, pela acolhida que dava
— nos seus discursos e audiências — à Ciência e às novas
inquietações humanas. Ele significou o ponto alto no meu
acendrado catolicismo romano, em minha intransigente devoção
ao vigário de Cristo, que era inclusive herança claretiana do
acérrimo defensor da infalibilidade pontifícia no Vaticano I.

Custou-nos aceitar a mudança para João XXIII; velho de


grandes orelhas que parecia não estar por dentro de nada e
que- tanto amei depois, a quem continuo vendo como o patriarca
profeta da Igreja nova, outra vez livre. Como me custou
aceitar Paulo VI porque “não substituía” o Papa João, porque
logo começou a “me decepcionar” com seus equilibrismos; a
quem depois venho compreendendo e criticando e de quem
venho me compadecendo; por quem rezo, com quem comungo
e de quem, às vezes, discordo fraternalmente, na liberdade
da Fé.

Já disse, de passagem, que o Vaticano II foi urna grande


luz também em minha vida. Ele me dava a “razão” em tantas
coisas sofridas, amadas. Alimentava tantas esperanças encolhidas.
Era realmente uma “janela aberta” ao vento do Espirito
e aos torturados clamores da Humanidade. Uma primavera
na Igreja. Sorvi seus documentos, principalmente Lumen
Gentium, Gaudium et Spes e Ad Gentes. Lumen Gentium
ainda agora me emociona.

Mais tarde, senti que o Vaticano II valeu, sobretudo, pelo


que intuiu, pelo que “deixou passar”, pelo que abriu irrever-
sivelmente, pela liberdade cristã que toda a Igreja ganhou com
ele; pela profissão do Serviço ao Mundo que fizeram os Padres
e, com eles, a Igreja, pelo menos em proclamação teórica.

O Vaticano II foi um salto inicial. Também a Igreja ultrapassa


a si mesma e o Vaticano II não é urna última palavra.
O Concilio teve para mim — e suponho que para outros —
o mérito cristão de desmitificar a Igreja como instituição, como
historia, como “lugar único” de Salvação. E não quero dizer
com isto que o Vaticano II negara nada do que a Igreja realmente
disse ou balbuciou sempre de si mesma. Simplesmente
traduziu. Eu disse que desmitificou. E prescindiu de muitas
aderências. Reconheceu a criatividade do Espírito e a liberdade
dos filhos de Deus. E foi capaz de entoar, ainda que timidamente,
aquele mea culpa que, fazia séculos, se pedia à Igreja.

O Vaticano II foi um alívio na Fé comunitária. Foi quase


um novo batismo coletivo. Um novo Pentecostés, disseram os
próprios papas do Concilio, João e Paulo.
Como se um antigo relevo esquecido viesse a primeiro
plano, crescendo, a Igreja se tornou de repente o Povo de
Deus. Todo um Povo de eleitos, toda uma comunidade messiânica
e sacerdotal.

Com isto, a Hierarquia deixava de ser “a” Igreja. E começávamos


a sentir, com uma Fé rejuvenescida, que “a”
Igreja éramos todos nós, também os leigos e as mulheres.
Seria muito otimismo insinuar que o hierarquismo, o clericalismo
e o machismo eclesiástico terminaram de urna vez, com
o Concilio. Minha experiência de sacerdote e de bispo me tem
ensinado muitas vezes o contrário. Ainda hoje e nestas latitudes,
bastante menos condicionadas por solenes tradições, os
leigos — não falemos das mulheres — são “generosamente”
tolerados. Quando são aceitos, numa assembléia ou num cargo,
não se aceita que sq conduzam como iguais. Menor é menor...
Somos raivosamente clericalistas, hierárquicos; enganamo-nos
com uma surpreendente facilidade com respeito a nossas benévolas
concessões. Que mais querem “eles”? Somos nós os
bispos e, em parte, também os “padres”, que sabemos tudo...
É difícil aceitar a idéia “vivida” de que o carisma do serviço
reclama uma atitude real de escuta, de diálogo e de caminhada
lado a lado. (Eu gostaria de poder compartilhar este sentimento
com outros muitos. Penso que este é um reduto evangélico
da Igreja que está exigindo uma profunda conversão.
Começando por Roma e acabando no último prelado de missões
ou no mais embrionário Conselho Presbiteral.)

Falando dos leigos, devo reconhecer mais uma vez minhas


dívidas para com os Cursilhos de Cristandade. A eles devo
também o encontro com o leigo concreto como o companheiro
de bordo, igual a mim na Fé, igual a mim na comum missão
da Igreja, igual a mim na miséria e na Esperança. Leigos inesquecíveis,
homens e mulheres, da Catalunha, da Espanha, da
Guiné, da América também, esporadicamente, que contribuíram
para humanizar minha desumanizada humanidade fradesca e
clerical. Com quem partilhei, mais intimamente do que em
muitas comunidades religiosas, “as maravilhas da graça”, com
quem sofri a Igreja — dias e noites — com quem saboreei a
Deus, inesquecivelmente.
Quando agora os amigos do Brasil ficam sabendo meus
antecedentes cursilhistas, ficam pasmados ou então gozam de
mim. Não é possível que eu, — bispo livre e renovador, cristão
politizado de esquerda — tenha sido cursilhista e padre de
cursilhistas e até introdutor dos cursilhos na África!... Quando
os cursilhos aqui no Brasil, na América, são considerados reacionários
ou angelistas...

É verdade que rolaram muitas águas desde aquela época


dos cursilhos de Mayorca e Creixell e haveria muita história
para contar da evolução e não-evolução dos cursilhos “oficiais”
e de sua entrada mais ou menos classista na América Latina,
sobretudo através da Venezuela.

Os cursilhos foram antes do Concilio. Depois, nem sempre


caminharam, em muitos aspectos da teologia da graça e da
“eclesiologia” do Mundo no ritmo da Igreja nova. A moda,
a pressa, o número se encarregaram de fazer o resto.

Na Prelazia de São Félix, não temos nenhuma associação


ou movimento. Não porque eu os rejeite todos, categoricamente.
Creio que nossa circunstância pastoral nos exige formar
apenas essa associação de Jesus Cristo que é sua Igreja (no
final das contas, isto também aprendi nos bons cursilhos dos
melhores tempos). Trabalhei em muitas associações e movimentos
e me dei a eles com desvelada paixão. Agora estou
bastante de volta.

Para sintetizar, transcrevo aqui uma observação que anotei


no Diário, no dia 18 de outubro de 1970:

“O Comitê Nacional da Legião de Maria, na França,


pediu demissão. Todos esses movimentos têm sua hora.
Penso nos cursilhos também. Valem na medida em que
fazem Igreja, segundo o Evangelho e dentro dos sinais
dos tempos. A Igreja sobrevive para eles e os supera.
Ela os cria e ela os faz História, para o futuro eterno
que é infinitamente mais do que todos eles. Nenhum
movimento, nenhuma congregação, nenhum século ou um
concilio ou uma “idade” são a Igreja. Ela é tudo isso e
muito mais, antes e depois”.
Creio na Vida Religiosa como urna característica essencial
da Igreja “evangélica”. Sofri muito por causa da vida religiosa
e vi muitos sofrerem por causa dela. Devo entretanto à vida
religiosa minha atual vida de Igreja. Creio também na vida
religiosa contemplativa, sempre acreditei nela e me senti inclusive
chamado a ela, em várias ocasiões-chave de minha vida.
E saúdo com alegria as novas experiências de vida religiosa -—
também de vida religiosa contemplativa — que estão surgindo
ao longo de toda essa Igreja de Deus, progressista e conservadora,
antiquada g profética, impossível e fiel.

Mas penso que a vida religiosa ficou estacionária em


grandes setores e perdeu a marcha do seu carisma. Penso que
os institutos e Ordens deveriam renovar-se com muito mais
arrojo, com maior radicalidade evangélica. Sei que é mais fácil
aconselhar e pedir do que viver e dar. Mas estou declarando
o que creio e quisera ver feito carne na Igreja de Jesus.

Vou copiar aqui uns parágrafos das “sugestões” que enviei,


em janeiro de 1973 para o Encontro Latino-Americano
de Claretianos que ia realizar-se no México:

“Cremos nas ‘comunidades evangélicas’ (Comunidades


de Religiosos) que podem e devem ser um sinal e
um fermento no meio dos diversos ambientes humanos:
marginalizados, descrentes, frívolos, materialistas; ou em
igrejas bem organizadas e em perigo de se tornarem burocráticas,
passivas ou ‘mundanas’.

Entretanto, deveríamos exigir dessas comunidades


que fossem escandalosamente ‘evangélicas’, na vivência
das Bem-Aventuranças e no anúncio dos Bens Futuros.

Contudo, pensamos que, pelos atuais condicionamentos


e perspectivas da Igreja e por nossa própria vocação
apostólica-missionária, a congregação deve ensaiar
e favorecer as ‘comunidades eclesiais’ (entendidas como
comunidades mistas: sacerdotes, religiosos, leigos: eles e
elas).
Particularmente em ‘terras de missão’ ou em centros
ou ambientes particularmente caracterizados como ‘mis-
sionados’.

... Em todo caso, ainda as mesmas comunidades


estritamente ‘evangélicas’ deverão ser abertas, eclesiais e
‘mundanas’: comprometidas com a vida da Igreja em cada
lugar e com a vida — lutas e esperanças, monotonia,
morada, alimento, vestes etc. — dos homens concretos e
próximos.

O apostolado, entendido como a programação de


‘nossas coisas’ seria, quando menos, infantil.

Impõe-se a visão, o ritmo e a ação concreta de cada


Igreja particular e de cada Igreja local.

O propriamente ‘nosso’ é a Igreja — mistério de


salvação do mundo — com as características próprias,
sempre secundárias, de nosso carisma congregacional.
Digo ‘secundárias’ porque o ‘primário’ é comum a todos
os religiosos e a todos os cristãos.

Essas comunidades — tanto as ‘evangélicas’ como as


‘eclesiais’ deverão ser comunidades reduzidas: até seis

membros, não mais.

As comunidades numerosas, além de impedir a relação


interpessoal verdadeiramente comunitária, impedem
o testemunho da pobreza e da acolhida. Tornam-se, fatalmente,
grupo, equipe, residência, mercado...

Para ambos os tipos de comunidades, acreditamos


que a configuração atual da província (ou organismos
similares) é um impedimento insuperável que se tem de
suprimir.

A partir da verdade teológica da Igreja particular e


da própria Igreja local e dentro do esquema funcional
das Conferências Episcopais Nacionais, nossas comunidades
devem agrupar-se, por ambientes ou serviços, sob a
coordenação de um responsável escolhido pelas bases;
com os necessários encontros periódicos, seja dos diferentes
responsáveis, seja das diferentes comunidades
‘evangélicas’ e os diferentes elementos integrados em comunidades
‘eclesiais’.

O atual governo geral passaria a ser uma coordenação


geral, escolhida entre os representantes das bases
ou pelos representantes das mesmas, para detectar os
apelos da Igreja e do Mundo e para estimular e encaminhar
intercâmbios e ajudas.

Com tudo isto, bem entendidas as coisas, nem se


proclama a utopia ou a anarquia, nem se suprime a obediência
evangélica.

Claro que tudo isto significará suprimir muitas casas,


selecionar muito as vocações, renunciar a muitos edifícios,
obras, vínculos, privilegios, nostalgias.

Com isto, se suprimem evidentemente os ‘enclaves’,


as dependências intercontinentais, os colonialismos, os
provincialismos e os centralismos maiores ou menores.
Toda a burocracia dos Governos, a tentação de nos considerarmos
‘sociedade perfeita’ dentro da congregação ou
dentro da Igreja e o contratestemunho da empresa ou
sociedade anônima.

As manifestações da pobreza, em cada meio, vai partilhar


a vida dos homens comuns desse meio: morada,
vestimenta, comida, trabalhos, viagens, insegurança, conflitos
...

E ademais, um grande espírito de acolhida, de vizinhança,


de amizade universal. E de compromisso sócio-
político.

Pelo Reino. Sem outra garantia.

É preciso superar a tentação justificativa dos ‘meios’


do apostolado. Os verdadeiros ‘meios’ do apostolado são
sobrenaturais — se se quer vivisseccionar as coisas. Os
meios ‘naturais’ serão válidos na medida em que não
contradigam o testemunho evangélico e a liberdade do
Espírito: o ser e a missão da Igreja.

Por outra parte, na atual sociedade secularizada, a


Igreja — e a congregação que é Igreja ou não é nada
— deve saber prescindir do prurido de ser tudo e de fazer
tudo neste mundo. Sua missão é ser fermento e luz em
tudo, nem mais nem menos.

É preciso tomar medidas radicais e urgentes com


respeito a bens e modos de vida. Do contrário, afogamos
o Espírito e escandalizamos o Mundo.

... A ‘política’ é inevitável porque toda ação humana


é política. Diante de qualquer situação, como diz
muito bem José Maria González Ruiz, a Igreja (um de
nós, a comunidade) pode dizer que sim, ou dizer não
ou não dizer nada. Nos três casos, adota uma atitude
política. A neutralidade política não existe.
Nosso carisma missionário nos obriga a uma atitude
revolucionária no sentido de uma evangelização clara,
comprometida e comprometedora, renovadora de consciências
e de estruturas, encarnada na angústia e nas
aspirações dos homens e dos povos concretos.

A denúncia, a renúncia (a privilégios e conivências)


e às vezes a liderança (pelo menos no Espírito na men-
talização e no risco) se impõem ao claretiamo missionário,
particularmente na América Latina, se quiser ser
Igreja hoje, aqui. Em sintonia com a Igreja consciente
da América Latina e de todo o Terceiro Mundo.

Não a reboque dos que não têm esperança. Adiante


deles. (Ou ao lado, claro. Com todos os que se entregam
à causa do Homem.) Mais audazes do que ninguém porque
temos a força do Espírito de Jesus Ressuscitado.

Provocaremos escândalos, deserções... Muito mais


temos provocado através dos séculos por tomar a atitude
contrária ou por pretender . não tomar nenhuma atitude.
Além de que estes novos escândalos podem ser proféticos,
salvíficos. Há que libertar os opressores, sacudindo-
lhes a consciência e a falsa segurança em que se
instalaram.

A ‘adaptação’ que se pede para as ‘missões’ deve pedir-


se para qualquer atuação na América Latina, onde a
Igreja foi e é, em muitos aspectos, importação, colonialismo.

A cultura, os direitos, as lutas, as aspirações dos


povos ou comunidades missionados devem ser algo sagrado,
vital, para nós, anterior a todo etnocentrismo e
formação e anterior a toda ‘disciplina’ ou costume ‘eclesiástico’
(com o que nem negamos a Fé nem depreciamos
uma fundamental ‘disciplina’ verdadeiramente católica,
que não é necessariamente latina ou ocidental). Aí devemos
demonstrar também um arrojado espírito missionário.

Creio no celibato e na virgindade, livremente assumidos


como uma oblação evangélica. Como pobreza no
Espírito. Como uma força cristã: de testemunho escato-
lógico por um lado e de disponibilidade eclesial por
outro. Penso, entretanto, que, no futuro, haverá sacerdotes
celibatários e sacerdotes casados. Para o bem do
celibato. E para o bem do sacerdócio ministerial. Nem
Deus deixará de chamar ao carisma da castidade pelo
Reino, nem os homens e as mulheres de hoje ou de
amanhã deixarão de responder a esse chamado, como as
mulheres e os homens de ontem.

A castidade evangélica não é uma ‘disciplina’. É um


carisma, dentro da vocação cristã”.

Sendo a Igreja o Povo de Deus, entendia-se melhor que


fosse o Povo dos Homens, uma “luz no meio dos povos”,
“sinal e instrumento” também “da unidade de todo o gênero
humano” (LG. 1); e que “as alegrias e as esperanças, as tristezas
e as angústias dos homens de nosso tempo, sobretudo
dos pobres e de todos os que sofrem” fossem alegrias e esperanças,
tristezas e angústias da Igreja; que “tudo quanto fosse
verdadeiramente humano encontrasse eco em seu coração”; que
ela se sentisse “íntima e realmente solidária com o gênero
humano e sua História” (GS. 1).

A Igreja era essencialmente “missão”. Mas ela estava no


Mundo, era para o Mundo. Sua missão era a salvação do
Mundo. Assim como o Verbo que se havia feito Homem e
tinha assumido a Natureza e o Pecado e a História dos Homens
e pelos homens tinha morrido e ressuscitado.

As parábolas do Reino — fermento na massa, candelabro


na escuridão, semente na terra — pareceram-me mais claras,
mais normais e exigentes.

Deus queria a salvação de todos. Por todos, tinha morrido


seu Filho. A Igreja não era uma “sociedade perfeita”,
mas o “aperfeiçoamento” da humana sociedade. A Igreja não
podia ser um “gueto” como Israel. Cristo havia feito do Povo
e dos povos um Povo “uno”, o Povo de Deus.

A Igreja era a Humanidade querida por Deus, aquela que


Ele pretendia conseguir, misteriosamente por parte d’Ele, livremente,
por parte dela. A História da Salvação coincidia misteriosamente
com a História do Mundo. Como existe só um
Deus, existe uma só História Humana. O Criador do Homem e
do Universo é o mesmo Redentor e Glorificador do Homem
e do Universo. Esta convicção foi crescendo em mim e
é hoje o horizonte limpo de minha Fé; é minha Esperança.

Eu que me torturei tão zelosamente na obsessão de “salvar”


a todos, a todos os possíveis, com uma pressa que se
contava por horas, por ocasiões fugazes — minha formação
missionária e os cursilhos me configuraram neste zelo obsessivo
—, agora acredito esperançosamente que Deus salva no
seu ritmo e por muitos modos.

“De uma maneira fragmentária” talvez, “mas de muitos


modos” continua Deus falando ao Mundo. Com a salvífica
“agravante” da presença de seu Filho, já morto pelo Mundo
e ressuscitado.

Continuo acreditando que a Igreja é missão e que o mandato


do Senhor “ide e anunciai” ainda é válido e urgente.
Continuo acreditando nos sete sacramentos, por exemplo, como
expressão histórica do ser sacramental da própria Igreja. Mas
acredito em outros muitos sacramentos de contrabando que
Deus se pode permitir usar, porque creio em Jesus Cristo, seu
Filho, o Salvador de todos os homens, como sacramento primordial,
cujo sangue derramado não pode ter-se reduzido a
um desperdício em favor de poucos. Creio que a Salvação de
Deus muitas vezes “se faz por dentro”. Creio que tudo é Graça.
Creio que a Graça é maior do que a Igreja, porque a Graça
é o Amor universalmente salvador de Deus, em Cristo.

Se antes aceitei que fora da Igreja não havia salvação,


agora acredito que fora da Salvação não há Igreja.

“Talvez — escrevia eu no Diário, 2-3-72 — a fórmula


nova e mais verdadeira do velho adágio eclesioló-
gico deva ser: Fora da salvação, não há Igreja! Somente
salvando, a Igreja é; só se salvando e salvando, se é
Igreja; só se faz Igreja, na medida em que se salva o
Mundo!”

A Igreja não pode ser o “lugar acabado” onde se celebra


a Salvação em possessivo deleite de privilegiados. A Igreja é
o sinal aberto da Salvação; o lugar “oficial”, sim — comunitário
e consciente — de celebrá-la: um lugar certo, mas um
lugar de partida e de chegada e de encontro; Lugar de constante
saída...
Fui conhecendo “outras” Igrejas. A causa do Ecumenismo
passou a ser uma dolorosa causa minha. Fez muitos anos que
me dilacera ver a oração-testamento de Jesus — “que todos
sejam um” — tão sistematicamente desatendida, tão bestifica-
mente subentendida pelos cristãos. A divisão dos cristãos me
parece a mais absurda divisão humana já registrada na História.
Este é um mistério de Fé pelo avesso. Uma espécie de' loucura
de Fé, coletiva. Não deveria ser, não poderia ser.

Conste que fui calorosamente apologético, bizarramente


católico. E o “divorciado” Henrique VIII e a “hiena” Isabel
de Inglaterra e o “frade apóstata” Martinho Lutero, por
exemplo, fpram para mim nomes e figuras intragáveis.

Depois, lemos e meditamos. Rezei muito pela Unidade e


fiz muitos rezarem por ela. E agora sinto o Ecumenismo como
uma causa de famflia.

Creio que superei quase todas as barreiras. Falo quase.


Quem pode dizer que as superou todas? Exasperaram-me ainda
o fanatismo e o proselitismo de certos protestantes que a gente
vive de perto, como me exasperam os fanatismos e proseli-
tismos de certos católicos: quando a Bíblia se torna palavra
fóssil, quando a Salvação se torna privilégio de santos desencarnados
e numerados, e quando a Igreja se torna casta e
gueto. Na minha carta pastoral Uma Igreja da Amazônia...
falei do difícil “ecumenismo do sertão”. Com cristãos é fácil
“fazer” ecumenismo. Não há maneira de fazê-lo com fanáticos.
E, entretanto, penso que ainda esses fanáticos merecem
pelo menos uma fraterna compreensão, porque há muitas razões,
de formação “cristã” e de condicionamentos culturais e
sócio-econômicos que explicam esses fanatismos. Por outra
parte, quase todos fomos tão fanáticos tantas vezes!

Lembro com carinho meus encontros com Taizé, essa “cidade


edificada sobre o monte”: por ocasião de uma entrevista
para Íris; na pessoa do irmão Bernardo de Olinda-Recife; por
minhas leituras de Roger Shutz e de Max Thurian. Lembro
outras leituras, meditações e vidas de protestantes luminosos e
engajados: a apaixonada solidariedade de vários protestantes
por motivo dos conflitos da Prelazia; o retiro que fez comigo,
em Cratéas, o seminarista luterano Roberto; o diálogo com
esses cristãos “não-católicos” tão verdadeiros, com quem é bem
mais fácil comungar e expressar a comunhão do que com
tantos outros cristãos “católicos”, inclusive sacerdotes e até
bispos... Afinal, o que será que nos une mais em Cristo e
na missão da Igreja: os dogmas cristãos “enquiridionalmente”
partilhados (!) ou a Fé cristão convivida?

Sei que a causa da Unidade, além de ser um mistério


de Fé, é também um mistério de Cruz, que todos devemos
carregar redentoramente até transformá-la em testemunho
pascal. E sei que não é assunto para quatro dias o que foi
soberba de séculos. Mas penso que podíamos acelerar essa
causa. Penso que deveríamos forçar sua hora. Talvez nós
andemos muito pela rama das celebrações bonitas, dos gestos
teatrais e até dos melindres de “doutrina” e “tradição” (salvas
a Tradição e a Doutrina) e nos permitimos o luxo de deixar
ao Espírito Santo o que ecuménicamente, com um pouco mais
de liberdade de Fé e com um pouco mais de vontade de
reparação histórica, nós mesmos poderíamos fazer, contando
com Ele.

Não se fará o Ecumenismo só orando; como a Justiça não


se faz só ensinando ou denunciando; como não se faz a Igreja
só anunciando.

Espero que as Igrejas não passem a vida “imitando” os


abraços de João XXIII e Atenágoras e enviando-se mutuamente
observadores...

Na medida em que a Igreja é conhecida como sacramento


de Salvação, como Povo de Deus, ela é reconhecida tão “particular”
quanto “universal”. Com o Vaticano II eü também
comecei, a descobrir, com muitos outros, a boa nova ãá Igreja
particular. De modo impreciso, ainda. Só mais tarde, compreendi
que os “sinais dos tempos” deviam se completar com os
. “sinais dos lugares”.

Como o nóvo reconhecimento do ser e da missão do bispo


transformou a eclesiologia do Vaticano II, minha ordenação,.
minha consciência, minha experiência de bispo modificaram
profundamente a eclesiologia que eu professava e vivia. As leituras
de: Teologia e Pastoralt recentes; a difundida tentativa
das Comunidades de Base; a superação da dicotomía entre o
céu e a terra, entre uma Igreja que andava nas nuvens e uma
Humanidade que tropeçava na lama; a adquirida visão crítica
e descentralizadora de uma Igreja-monolito-Vaticano; a
própria encarnação no Povo de Deus em que a gente acredita,
por quem a gente sofre, e ao qual a gente se dá, aqui, precisamente
neste nordeste do Mato Grosso, entre o Araguaia e
o Xingu, foram reclamando da gente uma postura nova, um
novo compromisso face ao ministério real e diário da Igreja
particular.

Escrevi no documento pastoral Uma Igreja da Amazônia...:

“A Igreja é, por natureza, tão católica como local. A


fim de poder oferecer a todos o mistério da Salvação e
a Vida trazida por Deus, a Igreja deve inserir-se em
todos esses agrupamentos (humanos), impelida pelo mesmo
movimento que levou o próprio Cristo, na encarnação,
a sujeitar-se às condições sociais e culturais dos
homens com quem conviveu (AG. 10). Cristo continua
encarnando-se por Ela e com Ela, no mundo concreto
dos homens de cada tempo, de cada lugar. Deus ama em
singular e com eficácia. A salvação faz-se presente no
dia a dia e atinge o homem real, principalmente por
meio de sua Igreja — “Sacramento Universal de Salvação
(Ld. 1) — na medida em que esta se aproxima do
Homem — com seu testemunho, com a Palavra ‘traduzida’
e com os sacramentos vivenciados — e o convida
e provoca nele — pela força do Espírito que sempre está
pronto para agir —- a resposta da Fé que transforma e
liberta.

Nós — bispo, padres, irmãs, leigos engajados — estamos


aqui, entre o Araguaia e o Xingu, neste mundo
real e concreto, marginalizado e acusador que acabo de
apresentar sumariamente. E somos aqui a Igreja ‘visível’
e ‘reconhecida’. Ou possibilitamos a encarnação salvadora
de Cristo neste meio, ao qual fomos enviados, ou negamos
nossa Fé, nos envergonhamos do Evangelho e traímos
os direitos e a esperança agónica de um Povo, de gente.
que é também Povo de Deus: os sertanejos, os posseiros,
os peões; este pedaço brasileiro da Amazônia.

Porque estamos aqui, aqui devemos comprometer-nos.


Claramente. Até o fim...” (pág. 42).

Este reconhecimento da Igreja como “particular”, como


“local” tem suas exigências práticas na Pastoral, na Liturgia,
no Direito (por que não teria no Direito?), na vida. Tem seus
riscos, claro. E tem suas “contestações” teóricas e práticas.

Já apontei alguns reparos meus ao Sumo Pontífice e ao


Vaticano e aos centralismos e colonialismo e outros poderes
da Igreja. É desnecessário dizer que creio no papa como Pedra
visível da colegialidade apostólica e da comunidade eclesial,
como ângulo ministerial da comunhão de Fé, como aquele
que deve presidir humildemente, na caridade, a todo o Povo
cristão e aos seus pastores. Não creio, porém, no Vaticano
como Estado, como poderio, como burocracia. Incomoda-me;
penso que atrapalha o passo da Igreja de Jesus; desejo que se
acabe. Lamento e rejeito os títulos e privilégios e prebendas
de bispos e padres e religiosos. A carga da História poderá
explicar tudo o que se queira mas não o justifica. Creio que
o Evangelho anda por outros rumos. Dito seja com tanto
respeito quanto liberdade.

Se não penso fazer a visita ad limina, é porque me custaria


muito dinheiro em viagens e indumentárias e encontraria interferências
de salas de espera que não posso reconhecer como
“eclesiais”. O que eu gostaria era poder me encontrar mais
simples e lhanamente e falar de irmão para irmão, com Paulo,
o bispo de Roma, Pedra e ângulo ministerial da comunhão de
todo o Povo e seus pastores, como disse.

Se não estou de acordo com toda a montagem econômica


da Cúria e com o modo como essa montagem é administrada
— salva a boa vontade e a perícia de que não duvido —, é
porque vivi e vivo aqui, no território mesmo da Prelazia, as
contradições e os escândalos que essa aparelhagem econômica
e suas ações — Liquigás sim; Liquigás, não — produz tanto
no Povo como em seus exploradores.

Se censuro certas intervenções da Nunciatura, por exemplo,


que me coube viver t sofrer na carne, mais de uma vez e
que sofrem outros irmãos no episcopado, é porque não as
aceito como “ministério eclesial’, porque as sinto, pelo menos.
anacrónicamente deslocadas, porque penso descobrir nelas interferencias
da diplomacia em desfavor do Evangelho.

Se me permito discordar às vezes do Vaticano ou da presidencia


da cnbb — para dar um exemplo — apesar de não
ser mais do que um prelado de sertão e creio que qualquer
outro cristão pode também discordar às vezes, mesmo não
sendo sequer prelado de sertão, é porque acredito na Igreja
como fraterna e simultaneamente apostólica e hierárquica,
como peregrina e em estado de procura e de conversão, sendo,
ao mesmo tempo, divina e com a garantia do Espírito, como
particular e ao mesmo tempo universal.

Parece-me muito cristão — para citar ainda exemplos —


que um sacerdote de Roma escreva livremente sua carta ao
Papa, a propósito do Ano Santo; ou que lhe escrevam alguns
leigos conscientes das Baleares do Mediterrâneo; ou que apresentem
seus pareceres e seus pedidos para a nomeação do
bispo os padres e leigos da Igreja de Viana no Maranhão.

São Cipriano dizia aos seus sacerdotes: “Não quero fazer


nada por meu próprio parecer, sem levar em conta o vosso
consentimento e o do Povo”.

“Nada sem o bispo” — repetiu-se muito e com razão.


Agora, se deveria repetir muito também: “nada sem o Povo”.

Não peço quimeras. O Papa ou um bispo podem ter sua


cúria, digamos. O que a gente pede é que seja de um modo
bastante diferente, menos curial e mais evangélico. Sei também
que não posso pedir que se transformem, num dia, séculos
pesados de História. Mas creio na força do Espírito para fazer
também “novas”, sem esperar a Parusia, também essas “coisas”.

A uma maior lucidez, simplicidade e corresponsabilidade


de Fé, corresponderá sempre uma maior liberdade de espírito,
de palavra e de ação. Os de cima terão — teremos, porque
eu também estou um pouco entre os de cima — de nos acostumarmos
a ouvir a voz dos irmãos de baixo. E os de baixo
terão que exercitar, cada dia com maior liberdade e normal
freqüência — também com maior responsabilidade e risco —
seu direito e seu dever de falar com os de cima e com os
do lado. E terão de reconhecer, os de baixo nos de cima, sua
própria liberdade e sua responsabilidade e seu ministério próprio
dè apascentar o rebanho (um Rebanho de Homens, filhos de
Deus e não de carneiros).

E uns e outros teremos de nos acostumar a caminhar


juntos, a pé, a nível de comunhão fraterna, sem tantos “aci-
ma” e “abaixo”, aceitando na prática a igualdade fundamental
de todos os batizados, favorecendo de fato o exercício do pluralismo
dentro da unidade da Fé e agradecendo a Deus e aos
Homens o livre jogo enriquecedor do diálogo eclesial e mundano.

Essa fraterna atitude de escuta, de diálogo e de liberdade


em nada prejudicará a constituição hierárquica da Igreja, reduzida,
claro, a seus devidos limites de salvaguarda e estímulo
da harmonia da Fé e da Caridade, dentro do Corpo e de serviço
apostólico à comunidade dos crentes e ao mundo dos
homens.

Repito que se declaro tudo isto com tanta paixão é porque


me dói muito esta Igreja que muito amo.

Nesta minha profissão de Fé já falei várias vezes dos


santos. Nunca na vida tive necessidade de me desfazer deles.
Creio que nunca interferiram abusivamente nas minhas relações
com Cristo, com Deus. Creio que os santos e em particular
a santíssima entre todos eles, Maria, Mãe de Jesus, me
ajudaram positivamente a descobrir e a amar ao Deus vivo e
verdadeiro e a Jesus Cristo, seu Filho.

Certamente progredi bastante na minha visão dos santos,


na minha visão de Maria; na minha relação com eles. E nisto
devo também muito ao Vaticano II.

E penso que o progresso fundamental em minha piedade


mariana, em minha devoção aos irmãos já gloriosos, seja haver
conseguido identificar em minha consciência de Fé e em minha
comunhão de Esperança a Igreja de aquém e a Igreja de além
como uma só Igreja em continuidade viva, em intercomunhão
vital; em ver a “Jerusalém de cima” como a Jerusalém também
daqui de baixo; em crer na Igreja triunfante como na mesma
Igreja peregrina que vai chegando à sua plenitude, glorificada
com Cristo em Deus, para sempre.

Já na minha juventude, emocionava-me a memória dos


santos: suas vidas, seu testemunho, suas festas. Sempre rezei
com fruição o “communicantes” do Canon da Missa. Tenho
minhas preferências, minhas amizades particulares. Por motivos
de temperamento, de formação. Pela livre lei da amizade, simplesmente:
Abraão, como já disse, o patriarca dos chamados,
o emigrante da Fé; Isaías, o lírico dos tempos messiânicos, o
profeta evangelista; e, com ele, outros profetas e líderes, entregues
a Jahvé e ao Povo; João Batista, o precursor insubor-
nável, despojado de si e fiel até à morte; José, companheiro
de Maria, pai de “criação” de Jesus, herói do silêncio e da
fidelidade diários; os apóstolos de Jesus, Pedro, sobretudo, João
e Paulo; Estêvão, o protomártir; Lourenço, a jovial testemunha
de Huescoa; Inácio de Antióquia, bispo e mártir; Agostinho,
todo coração e palavra de fogo; e outros padres e pastores da
Igreja. Francisco de Assis, poeta, místico, mendigo e demolidor
das estruturas do poder e do dinheiro; o missionário Francisco
Xavier; o fundador de minha congregação, Antonio Maria
Ciar et, apóstolo realista e abrasado; Teresa d’Avila e Teresa
de Lisieux, amigas e mestras; Maximiliano Kolbe, o louco de
Nossa Senhora, vítima de um campo de concentração; o irmão
Carlos de Foucauld, incessante buscador de Deus no deserto
da oração, entre os homens do deserto; e tantos outros, canonizados
ou por canonizar...

Entre os amigos, tenho fama de “mariano”.

E realmente tenho contado muito com a Virgem em minha


vida. E tenho falado e escrito muito dela. Tenho rezado muito
à Nossa Senhora. Tenho meditado bastante nela e a tenho sentido
muito presente. Amo-a. Confio nela.

Creio em Maria, pobre de Jahvé, imaculada, cheia de Graça,


sempre Virgem, Mãe do Filho de Deus, Jesus Cristo, maternalmente
associada à Vida e à Morte de seu Filho, singularmente
glorificada em sua Assunção, figura e mãe da
Igreja...

Desde a capela do castelo de minha cidade — lareiras


de alecrim de romaní i farigola — todas as capelas e santuários
marianos de meus anos de formação ou de ministério
mereceram meus favores de peregrino e até minhas lágrimas.
Para citar alguns nomes citarei a Mare de déu dei Castellvell,
de Solsona, La Mare de déu de la Salut, de Sabadell, La
Virgen dei Pueyo, de Barbastro.

São títulos padroeiros de lugares da Prelazia, escolhidos


por mim intencionalmente: a Assunção, Nossa Senhora dos
Posseiros, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora da Libertação.
..

Cometi inclusive loucuras de seminarista ou de frade para


visitar os santuários de Nossa Senhora. Como as tenho come-
tido para escrever programas de rádio, artigos, poemas e livros
marianos, perdendo noites e descansos. Como as cometi nas
grandes campanhas das peregrinações de Fátima ou do Ano
Mariano ou por ocasião da definição dogmática da Assunção
ou em várias das circunstâncias significativas — congressos,
comemorações, peregrinações, consagrações — desta “Era de
Maria” que em boa parte e em boa hora me foi dado viver.

Escrevi Nuestra Señora del Siglo XX, editado pela ppc.


Escrevi Llena de Dios y de los Hombres, poemas bíblico-so-
ciais, publicados por Uriel. Escrevi muitos programas e artigos
soltos para emissoras e revistas. Tenho inventado em “Ladainhas
de antes já” e em “Ladainhas de última hora”, todos os
possíveis títulos marianos: até chegar finalmente a cantar a
“Santa Maria sem mais títulos”:

... “depois de tanto falar de ti,

quase te silencio agora

concorde com a voz de teu silêncio.

(Dizer “fiat” e entregar o ventre,


cantar, agradecida, na montanha,
para todos os ventos da Historia,
a alegria dos pobres libertados.

E ja calar, atrás do Evangelho...

E dar ao Mundo o Redentor humano


e devolver ao Pai o Filho.)

Deus te salve, Maria,

— 25 de março e Mato Grosso —

Mãe da Palavra no silencio!”

Apaixonei-me pela mariologia. Estudei os grossos volumes


dos Estudios Marianos da Sociedade Mariológica Espanhola e
outros tratados mariológicos. E creio que consegui uma doutrina
maria sólida e duradoura, em su as linhas básicas: Maria
e Cristo, Maria e a Biblia, Maria e a Graça, Maria e a Igreja.

Devo citar um pequeno livro de ouro, marco em meu


itinerário mariano: o opúsculo de Hugo Rahner, Maria e a
Igreja.

Com o tempo e a nova Teologia na Igreja nova, depois


do Vaticano II; com a experiência crista da luía social; com
a pobreza de ambiente e de espirito que foram burilando a
gente neste Mato Grosso, também minha Fé em Maria foi-se
desnudando, mais livre e mais verdadeira. E ela veio a ser
cada vez mais, no meu pensamento e no meu coração, a cantora
do Magníficat, profetiza dos Pobres libertados; a mulher
do Povo, mãe marginalizada em Belém, no Egito, em Nazaré
e entre os grandes de Jerusalém; “Aquela que creu” e por isso
é bem-aventurada; aquela que “ruminava” no silêncio da Fé,
sem visões, sem muitas respostas prévias, as coisas, os fatos
e as palavras de Jesus, seu Filho; a Mãe do perseguido por
todos os poderes; a dolorosa Mãe do Crucificado; a testemunha
mais consciente da Páscoa; a mais autêntica cristã de Pentecostés;
um grande sinal escatológico em meio do Povo da
Esperança...

Já no Mato Grosso e dentro desta nova atitude para com


Maria, escrevi esta Oração a Nossa Senhora do Terceiro
Mundo:

“Irmã peregrina dos Pobres de Jahvé,

Profetiza dos Pobres libertados,

Mãe do Terceiro Mundo,

Mãe de todos os homens deste Mundo único,


porque és a Mãe de Deus feito Homem.

Com todos os que crêem em Cristo


e com todos aqueles que de algum modo buscam seu

[Reino,

te chamamos a ti, Mãe

para que lhes fales por todos nós.

Pede-lhe a Ele que se fez Pobre

para nos comunicar as riquezas do seu Amor,

que sua Igreja se despoje,

sem subterfúgios,

de toda outra riqueza.

A Ele que morreu na Cruz para salvar os homens

pede-lhe que nós, seus discípulos,

saibamos viver e morrer

pela total libertação de nossos irmãos.

Pede-lhe que nos devore


a fome e a sede daquela Justiça
que despoja e redime.

A Ele que derrubou o muro da separação


pede-lhe que todos os que levamos o selo do seu nome
busquemos de fato,

por cima de tudo o que divide,

aquela unidade reclamada por Ele mesmo em testamento,


e que só é possível na liberdade dos filhos de Deus.

Pede-lhe a Ele que vive ressuscitado junto ao Pai,


que nos comunique a força jubiloza de seu Espirito,
para que saibamos vencer o egoísmo, a rotina e o medo.

Mulher camponesa e operária,


nascida numa colônia

e martirizada pelo legalismo e a hipocrisia:


ensina-nos a ler sinceramente o Evangelho de Jesus
e a traduzi-lo na vida,

com todas as suas revolucionárias conseqüências,

no espírito radical das Bem-Aventuranças

e no risco total daquele Amor que sabe dar a vida

[pelos que ama.

Por Jesus Cristo,


teu Filho,

o Filho de Deus, nosso Irmão.”

Estou falando da Igreja. Não me esqueci. “A terra da


Igreja é o corpo de Maria”, dizia o amigo poeta Santo Efrém.
A Causa do Homem Novo
Bebi, em casa, a austeridade. “Nosaltres som pobres, filis”
(“Nós, filhos, somos pobres”), diziam-nos meu pai e minha
mãe freqüentemente. Bebi em casa também um certo desprezo
pelos ricos, pelo dinheiro mal ganho, pela exibição.
Desde criança o luxo me pareceu sempre uma ofensa e a
exploração me revoltou sempre. Vi dentro da própria família
como os interesses dividem. E vi, cedo, como a política é
oportunista e desleal.

Éramos de Direita, já o disse. Ninguém, entre nós, poderia


ser outra coisa. A Direita era a Religião e o Bem, a
Ordem e a Verdade.

Ouvia falar da Ditadura de Primo de Rivera com uma


nostálgica lembrança que me fazia parecer desejáveis as ditaduras.

O socialismo, o comunismo, os vários ismos de esquerda


que eu vivi misturados num só horror para os meus olhos de
criança de direita — entre profanações e mortes, entre chamas
e sangue, entre persianas descidas e fuzis ameaçadores, entre
os sussurros dos adultos e a vida escondida dos “desertores”
e os sacerdotes e freiras disfarçados —, só se pareciam a uma
anarquia descomunal.

Naturalmente não sabia nada de ruim que se passasse do


“outro lado”. (Talvez o pior que eu sabia, inconscientemente, era
que existiam os dois lados.) Os nacionais seriam a Libertação,
a volta da Paz, e a Religião outra vez praticada publicamente.
“Quando chegarem os nacionais! ”... E, em todo caso tudo o
que fosse para se justificar, seria justificado com aquela exclamação
então habitual: “É a guerra!”

Vi chegar, com certo assombro, os refugiados que fugiam


dos nacionais; mas... se eram “vermelhos”, era natural que
fugissem.

Cantei, porém, os hinos comunistas. Estavam no ar e me


deixaram um ambíguo sabor de fruta proibida: “Arriba, parias
de la Tierra! / En pie los obreros sin pan! / Arriba los Pobres
del mundo! j Viva la Internacional!“Hijo del Pueblo que
oprimem cadenas: / Esta injusticia no puede seguir; / si tu
existencia es un mundo de penas, / antes que esclavo, prefiere
morir!” “Los hombres han de ser hermanos...” Letras fortes
que tinham sabor de Causa e falavam do vasto mundo.

Aprendi também as canções nacionais e cantava, com precoce


fruição poética, aquelas estrofes “azuis”, espanholas.
Lembro, contudo, as graves ponderações — foi exatamente
diante do cemitério — de meu pai e do tio Josepet a propósito
daqueles versos do Hino do Tercio: “Cada uno será lo que
quiera, / nada importa su vida anterior...”

Começaram a chegar os nacionais e foram acabando também


com a grande ilusão. Os vermelhos eram maus, mas os
nacionais também não eram os integralmente bons. Os nacionais
eram o Exército acima de tudo, e eram os presunçosos
“castelhanos”; e traziam também consigo muita imoralidade,
muita irresponsabilidade; os “mouros” roubavam, arrancavam
os dentes dos mortos; os oficiais decretavam com uma soberania
repelente...

Com a guerra tivera seus mil fantasmas, a pós-guerra teve


suas mil decepções. Gradativamente.

Compraram-me o uniforme falangista — a camisa azul,


o cinturão negro, a boina vermelha —, porque era “moda”,
naquela hora ser da Falange. Mas não o usei nunca. Faziam-se
de Falange, para procurar empregos, cargos, trocando de camisa,
tantos elementos irresponsáveis! Procurei para mim um
emblema “requeté”, em sinal de protesto. Os requetés (monárquicos)
eram mais “de Deus”, os requetés deviam ser os
nacionais químicamente puros, com eles salvava-se a sagrada
imagem...

No seminário — nos seminários menores, sobretudo — os


“vermelhos” nos foram apresentados ainda como um mal absoluto.
A Congregação Claretiana era o instituto religioso que
mais vítimas tivera na perseguição de 36; algumas delas —
como as de Barbastro, por exemplo ■— com urna aureolada
marca de verdadeiro martírio.

Os “aliados” dos nacionais eram seguidos, depois, durante


a Segunda Guerra Mundial, com fervorosa simpatia: os alemães
de Hitler seriam os debeladores do comunismo da Rússia.
As façanhas da Divisão Azul enchiam de colorido de neve e
sangue nossas aulas de historia. Não conhecíamos o rosto feroz
do nazismo.

O “Caudilho” era, de qualquer forma, um enviado de


Deus.

As decepções conscientes foram chegando com os relatos


da nossa guerra, por dentro, com as conversas críticas entre
companheiros, com algumas leituras infiltradas, com os primeiros
contatos com a vida da rua e seus problemas trabalhistas,
as restrições centralistas (de Madri frente às regiões)
e a discriminação entre espanhóis de um lado e espanhóis do
outro e com atitudes e pronunciamentos -— tímidos, muito tímidos
— de certos setores da Igreja que começavam a discordar
das bênções incondicionais do Cardeal Gomá ou começavam
a reclamar pelos direitos de liberdade de imprensa, de
associação e de justiça trabalhista. Foi um despertar muito
lento, muito condicionado.

Comecei a conhecer alguns socialistas e comunistas — ge-


ralmente ex, é claro — já não como milicianos mas como
homens de carne, osso e espirito. Nos cursilhos fiz amizade
com vários. A essas alturas, o Fascismo e o Nazismo já me
mostravam abertamente todos os seus fanatismos e seus crimes.
Diga-se de passagem, a causa dos judeus me comovia. Essa
era uma mancha histórica que eu não perdoava — que não
perdôo — à Igreja, ao Mundo.

O regime ia se tornando para mim cada vez mais pesado.


Estava durando bem mais do que devia! A Espanha “diferente”
era diferente demais. A Europa e o Mundo existiam e valiam
a pena. O nacional-socialismo e o nacional-catolicismo e todos
os ismos nacionais e verticais me “enchiam”, porque eram publicidade
onímoda e adulteravam os mais puros valores. E
conste que a consciência crítica dentro de um convento da
Espanha, sobretudo fora da Catalunha, se forjava, naqueles
tempos, engolindo muita saliva.
Eu já estava, naquela época, vivendo as favelas de SabadelL,
Barcelona e Madri; a migração externa e interna: o problema
operário e uma asfixiante ¡falta de liberdade, inclusive para
um tímido artigo que a gente pretendesse publicar numa revista
provinciana. E estando já na direção de Iris, a polícia iria
preocupar-se inclusive com uma simples crcnica. A Liberdade
ara um clima insubstituível. A Ordem não podia ser comprada
a qualquer preço. As represas, as estradas, o turismo e os pólos
de desenvolvimento não justificavam uma situação nacional de
minoria.

O despertar da África me havia cativado, e representava,


em minha consciência, uma nova superação dos camuflados
colonialismos que noutro tempo só conheci como Descobrimento
e Evangelização. A América já não era apenas uma
gloriosa rota marítima da heróica Espanha navegante. Conheci,
é certo, uma face triste da Cuba de Fidel Castro, por alguns
exilados, quase crianças, que chegavam a Madri e que eu
acompanhei; mas já sabia também suficientemente da Cuba
de Batista e do imperialismo ianque e das dinastias de carrascos
latino-americanos, e da situação de fome, de analfabetismo e
de exploração do Novo Continente e de todo o Terceiro Mundo
e do Povo-povo dos mundos Segundo e Primeiro.

Na Guiné aprendi muitas coisas de perto. E lembro-me


das amargas confidências de certos líderes negros, com as
contas que cobravam aos brancos, aos missionários.

Depois acabei de entender e até de sentir toda a ganga


de superioridade racista, de domínio divinizado e desumana
exploração com que se descobriram, colonizaram e, muitas vezes,
se evangelizaram os novos mundos. “Colonizar” e “civilizar”
já deixaram de ser para mim verbos humanos. Como
não o são, onde vivo e peno, as novas formas colonizadoras
de “pacificar” e “integrar” os índios. Imperialismo, Colonialismo
e Capitalismo merecem em meu “Credo” o mesmo aná-
tema. Repugnam-me os monumentos aos descobridores e aos
bandeirantes. O monumento a Anhanguera, em pleno centro
de Goiânia, me dói fisicamente. Agradar-me-ia bem mais ver
algum monumento a Las Casas ou ao sertanejo anônimo.
Também gostaria de ver muito mais criticamente depurada a
História dos Povos colonizadores e a História das Missões
Cristãs. Quando li Enterrem Meu Coração na Curva do Rio,
me envergonhei uma vez mais —- com o perdão dos leitores
— de ser “ocidental”, “espanhol” e “cristão”: pelo que o livro
evocava de tantos lugares e fatos da penetração civilizadora...;
pelo que a gente vive tão próximamente; com consciência histórica
e sem possibilidades de reação.

Bem sei que a raiz do colonialismo continua teimosa em


nós, como uma natureza de superioridade etnocentrista. N.ós
somos os bons! Essa “pobre gente” à qual somos enviados!...
Nem de longe está acabado o colonialismo eclesiástico — para
falar nas roupas sujas de casa. Em teologia, em liturgia, em
direito, em pastoral, somos convencidamente europeístas, inte-
lectualizantes, latinos, romanos, e, por acréscimo, da congregação
tal ou da Igreja de origem qual.

Estou me entusiasmando outra vez. Diria tantas coisas dos


índios, do pranto já fatal que sua causa merece, da apaixonada
fé com que a gente se entrega a essa causa “perdida”...
Doze bispos e missionários de diferentes áreas indígenas do
Brasil publicamos em princípios de 1974, depois de burlar a
censura e fazendo milagres para conseguir papel e gráfica, um
“manifesto de urgência sobre a dramática situação dos Povos
indígenas do Brasil” intitulado, bastante significativamente,
Y-Juca-Pirama — O índio: Aquele Que Deve Morrer. Remeto-
me a esse documento, porque é um manifesto de minha fé
indigenista.

Recolho do opúsculo, em sua página 24, a pergunta incisiva


que um índio Tapirapé, de nossa Prelazia, fazia a um
missionário:

— “Quanto será que as Companhias (agropecuárias) pagaram


ao Pai do Céu para que Ele lhes desse as terras dos
índios?”

E o comentário subseqüente:

— “O cristão só será sinal universal da salvação e revelador


do amor do Pai do Ccu, em toda parte, e em particular
para os povos indígenas, se for uma presença respeitosa e paciente
e esperançosa, que possa perceber, assumir, viver e revelar
os legítimos valores desses povos, em que se exprime a
milenar ação de Deus em sua vida. Eis o que seria uma prática
correta da continuidade da Encarnação de Cristo”.
Quando criança, odiei até os estilingues contra pardais.
Nunca disparei um tiro e nem penso dispará-lo nunca. A guerra,
porque a vivi já quando criança, não podia me entusiasmar
muito. Jogos Proibidos é um dos filmes que mais ficaram
gravados. Às vezes, sim, me entusiasmaram, na distância glo-
rificadora do passado, os “grandes” feitos bélicos da História,
e senti minhas simpatias pelas fardas e tive e tenho ainda —
longe — bons amigos militares. Longe, disse. Aqui, perto, os
militares são meus “inimigos”, na medida em que são inimigos
do Povo. Porque estão a serviço do Capitalismo e da Ditadura;
porque vivem servilmente entregues aos assistencialismos
mistificadores, aos “projetos-impacto”, à repressão e até à tortura.
Não falo decorado, mas do vivido.

Apesar de não saber bem o que dizer — na real prática


angustiante sobre a Violência, detesto mais que nunca todas
as armas, e gostaria de saber que serão dispensados, um dia,
todos os exércitos do mundo e que “de suas espadas se forjarão
enxadas e de suas lanças, podadeiras”...

Não entendo como podemos tolerar, todos nós, a loucura


coletiva e suicida da corrida armamentista, dos orçamentos militares
e de repressão. Parece-me um reconhecimento de fato
da humana insensibilidade universal, que possamos assistir —
com essa naturalidade tão diplomática ou tão providencialista
— aos espetáculos macabros do Vietnam e de Biafra; dos milhões
de mortos de fome na Ásia e no mundo; e aos genocídios
e etnocídios de tantos povos.

Se quero crer na Humanidade, se quero crer na Fé, não


sei como explicar que toleremos — outra vez por diplomacia
ou por providência — que os Governos e os trustes façam o
que bem entendem dos bens e das vidas dos povos; e que a
Igreja queira “dialogar”, às vezes tão assepticamente, com tanto
poder explorador que há por aí... Para bem da própria
“Igreja-instituição”, ou a serviço do homem redimido?, pergunto
.

Faz umas poucas semanas, visitaram-me e me interrogaram


uns agentes federais do Governo de Brasília. Frente às minhas
reclamações sobre a problemática social da região, disse-me
um deles que eu falava “com muito colorido”. Pois é...! Devo
ser um romântico ou um demagogo. Devo estar pensando e
falando feito besta. Peço a Deus que eu não chegue nunca
a ser sensato!

Creio que hoje só se pode viver sublevadamente. E creio


que só se pode ser cristão sendo revolucionário, porque já
não basta pretender “reformar” o mundo. Os providencialismos
desencarnados, os neoliberalismos, os neocapitalismos e certas
neodemocracias e outros sossegados reformismos que mentem
ou se mentem — cínicos ou bobos — servem unicamente
para salvar o privilégio dos poucos privilegiados à custa da
produtiva submissão dos muitos mortos de fome. E, por isso
mesmo, me parecem objetivamente iníquos.

Uma coisa compreendi claramente com a vida: a direita


é reacionária por natureza, fanaticamente imobilista quando se
trata de salvar o próprio quinhão, solidariamente interessada
naquela Ordem que é o Bem... “da minoria, sempre”. O que
resta então?

Em política, não há nada definitivamente esqrito. A política


de um país ou do mundo, como a vida de uma pessoa,
vai-se fazendo às apalpadelas, cada dia. De qualquer forma, eu
passei, da visão horrorizada do anarquismo, na minha infância,
às opções do socialismo. Pelo contato com a dialética da vida,
pelas exigências do Evangelho e também por algumas razões
do marxismo. Qual socialismo, não sei bem ao certo; como
não sei bem ao certo qual será amanhã esta Igreja que estamos
pretendendo construir hoje, por mais que saiba que a
queremos cada vez mais cristã; como não sei também qual
é a total Utopia — que, em minha Esperança, acredito realidade
— para a qual caminha o Mundo dos Homens, sacudido
pelo Espírito de Jesus Cristo Ressuscitado.

— Yocê não vê que o socialismo não deu resultado 'em


nenhum lugar? — perguntam-me às vezes:

— E você não vê que ao socialismo ainda não lhe deram


o seu lugar? — respondo eu, perguntando. — E você não vê
que o Evangelho ainda não foi vivido socialmente e que ainda
está por estrear, politicamente, o Mandamento Novo? —•
acrescento.

O socialismo que eu propugno, com tantos outros irmãos


na Fé e na paixão pela Justiça — como o melhor instrumento
sócio-político hoje —, para a transformação da sociedade hu-
mana, não é precisamente o Regime tal, nem, menos ainda,
o Partido qual. SNão é a Rússia, claro, nem Cuba, nem a
China nem a Argélia nem o Chile de Allende. É algo deles,
entretanto.

Conste que não propugno nenhuma ditadura de nenhuma


espécie. Créio, com Lorde Acton, que “o poder corrompe e
o poder absoluto corrompe absolutamente”.

Tentando ser cristão, sei que posso e devo ir mais longe


que o comunismo. Por outra parte, já faz muitos anos que
me entusiasma bem pouco a metrópole do comunismo internacional.
Depois de ler Soljenitsyn, por exemplo, ninguém pode
nutrir muitas ilusões a respeito do paraíso soviético. Muito
menos, porém, me entusiasmam os paraísos capitalistas onde
a Sibéria da fome, da escravidão ou da loucura do consumo
são o habitat da maioria. O Povo-povo — não os mandarins
nem os reverendos nem as damas nem as famílias de posição
nem os senhores — saiu ganhando com Fidel, com Allende
ou com Mao. E se a política é a arte do bem-comum, penso
que o Bem Comum será tanto mais legítimo quanto mais
“comum” for. '

Que Panikkar me perdoe, mas eu creio que o capitalismo


é “intrínsecamente mau”, porque é o egoísmo socialmente institucionalizado,
a idolatria pública do lucro pelo lucro, o reconhecimento
oficial da exploração do Homem pelo homem, a
escravidão de muitos ao jugo do interesse e da prosperidade
de poucos.

Durante o interrogatório a que fomos submetidos, os


membros da Equipe Pastoral da Prelazia, o presidente do inquérito
perguntava-me insistentemente pelo meu socialismo,
pelo que eu entendia por socialização. (Esta última palavra foi
surpreendida, como corpo de delito, em alguns dos escritos
e gravações que a Polícia e o Exército nos roubaram — ou
nos “apreenderam”.) Para não entrar em discussões filosóficas
fora de hora, respondi:

— Para mim, sr. Francisco, socialização seria a maior participação


possível de todos os cidadãos, dentro da maior igualdade
possível, em todos os bens da “natureza e cultura”. (A
expressão entre aspas fazia referência à terminologia de Paulo
Freire, cujas doutrinas e métodos de educação popular foram
também corpo de delito em nosso inquérito.)
Ele se limitou a responder-me — com todos os que a
isto se limitam — que essa socialização era urna utopia.

— “Eu disse ‘possível’ —, acrescentei; e em todo caso,


dr. Francisco, minha Esperança é realmente utópica, porque
nunca se realizará plenamente aqui na Cidade Terrestre...

Acrescento, porém, agora: toda vida crista deve ser “realização”


dessa Utopia. Só caminhamos para a Cidade Celeste
na medida em que tentamos instaurá-la “utopicamente” aqui,
nas embrutecidas ruas da Cidade Terrena. Quem se nega a
construir aqui embaixo o Mundo do Homem Novo, com os
materiais da Política de que aqui e agora dispõe, está castrando
sua Fé na praxis da vida social que é política, está se negando
a construir o Reino de Deus que é também comunidade
fraterna, igualdade efetiva, comunhão real de bens. O
Mandamento Novo é radicalmente socializador. O Evangelho
é a subversão dos interesses porque é a demolição dos ídolos.
Quem pode encaixar as classes sociais na Constituição do
Reino? Eugenio e eu entregamos ao presidente do nosso
inquérito um exemplar do ¡Novo Testamento com esta dedicatória:
“Um dia, a Palavra de Deus fará o inquérito de todos
nós”. Antes, Eugênio tinha dito ao dr. Francisco que a Polícia
não tinha descoberto o livro “mais subversivo” que tínhamos
em casa...

Creio, em resumo, que a socialização do Mundo pode ser


uma tentativa real de viver cristãmente em sociedade. E creio
que a sociedade capitalista é a negação radical dessa tentativa.
O capitalismo não pode ser cristão. O socialismo, sim. Se
amanhã aparecer outra coisa melhor para sermos politicamente
cristãos — para sermos cristãos na vida real que sempre é
política —, então os cristãos deveremos ser essa outra coisa
melhor. E assim, tateando no possível e no concreto, até à
Parusia. Amém.

Já disse que não sei bem como me pronunciar com


respeito à “Violência-Não Violência”. Confesso que não gosto
de falar nem de Violência nem de Não-Violência. Gostaria
mais que, como programa, se falasse de Justiça, de Liberdade,
de Amor. E que, quando se falasse de Violência ou Não-Violência,
se 'fulminasse, primeiro — e conseqüentemente —, a
Volência maior que está aí, institucionalizada, oficialmente justificada,
diplomaticamente tolerada e dialogada e que provoca,
por reação, tantas outras violências bem menores. É a “espiral
da Violência” de que fala o querido Dom Helder.

Claro que eu gostaria que não se “violentasse” nem a


pétala de uma flor. Sou alérgico à violência, por temperamento
e por Fé. Creio no Amor universal de Deus, Pai de
todos os Homens; creio no Mandamento Novo de Jesus, creio
no perdão dos inimigos e, por isso mesmo, creio no Amor de
todos a todos e no Amor fraterno que merece cada Homem
singular. E posso assegurar que essa Fé na Caridade me vem
custando muito sofrimento.

Penso que nunca “odiei” ninguém; que nunca me alegrei


com a morte de ninguém, nunca desejei “mal” a ninguém.
Desejei, isso sim, mais de uma vez, que fracassassem certas
empresas, certos planos, governos ou poderes. E o estou desejando.
E muitas vezes senti uma desolada ira. Já no dia 29
de outubro de 1969, escrevia no Diário:

“Estou acumulando uma quantidade infinita de desprezo,


de ira, contra essa política exploradora, egoísta...
Se não sei fazer, se não posso, se não consigo falar, se
não consigo fazer de minha vida um testemunho, dá-me.
Senhor, pelo menos a graça ‘mínima’ de libertar alguém
com minha morte”...

A gente tem, entre outras mais, essa paixão da ira. Penso


que ela pode ser, inclusive, um exasperado “sacramento” de
meu amor ao próximo. Modéstia à parte de minha ira, as iras
dos Profetas, a ira de Jesus foram, no seu tempo e no seu
modo, um sacramento do zelo da Glória de Deus e da dignidade
do Homem que os abrasava.

Reconheço que certa ira pode ser tanto fruto do fígado


ou do cansaço, como expressão da impotência social de resolver
as tragédias que explodem diante dos olhos da gente,
ou reação ante a passividade e a “independente” coexistência
dos grandes e das instituições.

De todo jeito, não sei muito bem o que dizer, na prática,


a quem sofre a opressão em sua carne e em sua casa.

“... Estou pensando -— repensando — estes dias, na


atitude de luta que seria verdadeiramente cristã e, por
isso mesmo, realista e veraz. Não digo ‘eficiente’ em
termos de eficácia técnica ou lucrativa (ou imediatista).
Sei que é uma luta no tempo e para a escatologia. Continuo
pensando que a ‘Violência’ e a ‘Não-Violência’ são
expressões infelizes. A Justiça e o Amor definem mais
plenamente a verdadeira atitude cristã de uma vida comprometida
na renovação do Mundo”.

“Falar de ‘não-violência’ sempre parece um pouco


falar de não-guerra em relação à Paz. Diz-se ‘não-violência’
com relação à ‘violência’. Dever-se-ia dizer ‘Justiça’
e ‘meios justos’. Quais? Quando? Em que medida? Este
é o problema de consciência de cada hora e de cada indivíduo.
O que não significa que não possa ser também
doutrina geral, critérios básicos da Igreja.

Talvez falte revisar e definir melhor a moral da legítima


defesa. Eu sei muito bem a que me ater, tratando-
se de minha defesa pessoal. Morrer é uma fácil solução,
ou melhor, uma solução clara para ser assumida
pessoalmente. Já é menos clara para ser imposta ou pedida
a um pai de família ou a um Povo. Será que se
deve pensar em ‘martírios’ coletivos? Não sei... Os
teólogos hão de meditar muito ainda sobre a ‘teologia da
Revolução’ (e a ‘Não-Violência’). E os ‘violentos’ e os
‘não-violentos’ e os ‘nem-uma-coisa-nem-outra’ teremos
que dialogar ainda muito”.

“Se quiseres a Paz, trabalha pela Justiça”. Esta, em


todo caso, é uma fórmula válida. (Diário, 7 de junho de
1972.)

Lamento a existência das guerrilhas, admiro a utópica (?)


generosidade de muitos guerrilheiros, mas sobretudo condeno
inexoravelmente as causas que provocam as guerrilhas. E, em
princípio, um guerrilheiro me parece mais digno do que um
ditador.

Sabe Deus o quanto pedi e procurei a Paz:

“A Paz sempre pedida.

A Paz nunca alcançada.

A estranha Paz divina que me leva,


como um barco crepitante e jubiloso.

A Paz que dói sangrando-me


como um leite denso...”
E no entanto escrevi também, nesses dias de conflitos (de
injustiça, de perseguição e de repressão), que o próprio nome
da Paz tinha sabor de inércia, de cumplicidade interessada, de
angelismo. Infelizmente, com demasiada freqüência, a Paz é
sinônimo da Ordem estabelecida, quando somente a Justiça, é
o nome antigo e novo da Paz. “Paz, paz, paz, e não há paz”,
diz o Senhor, porque não há Justiça. Poderá ser alguém
bem-aventurado por buscar a Paz se não a buscar com uma
abrasada sede de Justiça? Já sei que Cristo fala daquela Justiça
que é a glória do Deus vivo, mas que também é a glória
do Homem vivo! Como fala do primeiro mandamento que é
também o segundo. Sei que “ninguém pode falar de Justiça
se não for um Justo ele próprio. Poderá falar de Paz aquele
que efetivamente não se consome para construí-la na Justiça?

Creio, em todo caso, que “Ele é nossa Paz”. E a ele me


atenho em última instância, enquanto, em primeira instância,
sujo minhas mãos e turvo e agito meu coração no barro e no
pranto da cotidiana luta pela Justiça de tantos irmãos. “Luta
e Contemplação” é o tema desse Concilio de Jovens que se
iniciou em agosto, ao abrigo de Taizé. Felipe, um rapaz de
22 anos, que vive entre os ciganos de Grenoble, comentava-o
assim: “A luta é um meio. Ó fim é o encontro com Deus.
Mas esse encontro é impossível sem a Justiça”.

“Para os comunistas — diz Ernesto Cardeal, no prólogo


amazônico com que se dignou honrar meus últimos poemas —
Deus não existe, senão a Justiça. Para os cristãos, Deus não
existe sem a Justiça”.

Por minha formação reacionária, a Liberdade me soava


como um grito de panfleto; como aqueles movimentos “libertários”
de que ouvíamos falar durante a Revolução. Como a
“honra e o “dever” me soaram freqüentemente como novecen-
tistas palavras de ordem de código militar.

Depois li a História e um pouco a vi. E vivi a escravidão


na carne de muitos irmãos pelos quais me sinto imediatamente
responsável. E vivi, na própria casa, a ditadura, a censura.
a repressão, a prisão, a tortura.
Agora creio na Liberdade! E creio nela como um bem
supremo para quem foi feito à imagem de Deus. Creio na liberdade
do homem que o próprio Deus respeita misteriosamente.

Creio na liberdade de pensamento e de religião. Creio na


liberdade de imprensa, de arte e de cultura. Creio na liberdade
de associação. Creio na liberdade das minorias étnicas.

Creio que a liberdade do Homem é mais que sócio-po-


lítica. E sei muito bem que a liberdade humana não pode ser
amordaçada por homem algum. Nenhum sistema e nenhum
aparelho repressivo alcançam essa profundeza espiritual.

Mas sei também que o Homem é sociedade e da sociedade


depende para se realizar como Homem. Um clima de escravidão
liberta mais ainda aos poucos verdadeiramente livres;
mas apavora, embrutece ou desespera aos muitos livres apenas
na raiz afogada de sua condição humana.

Para viver humanamente, necessitamos de liberdade social


e política. Onde não há Liberdade não pode haver Justiça.
Onde não há Justiça não há Sociedade humana.

Se não me falha a memória, El Ciervo — bom companheiro


de diálogo nestas latitudes — inventou um jogo dialético
que consistia em apostar entre a Justiça e a Liberdade.
Eu aposto nas duas, naturalmente. Mas na hora do necessário
conflito que ocorre entre a Liberdade e a Justiça, me atreveria
a acrescentar ao jogo esta regra que, teoricamente, vaje
e que devemos procurar que valha também na prática. (Não
vá acontecer o trocadilho: “Na prática, a teoria é outra”.)

O exercício público da liberdade individual só pode ser


condicionada pelas verdadeiras exigências da Justiça comunitária.

“Minha liberdade começa onde começa a liberdade dos


demais”. E minha liberdade termina lá onde a Justiça dos
demais o exige.

Creio que Deus entregou a criação à inteligência e aos


braços do homem. “Enchei a terra e dominai-a”, disse o
Senhor. Creio no trabalho, na ciência, na técnica e no pro-
gresso. Não sou nem troglodita, nem medieval, nem idilica-
mente rousseauniano: Reconheço que a Humanidade já caminhou
muito. Deus e o Homem sejam benditos por isso. Com
José Maria Pemán — frente àqueles ilustres personagens espanhóis
de sei lá quantos anos atrás que, numa pesquisa, escolhiam,
como século ideal, o XIII ou o XVI ou o XVIII — eu
escolho este nosso século XX. “Com seus pecados, nosso”,
como dizia Barcelona de Joan Maragall.

Falando, porém, em Liberdade, devo dedicar uma sentida

elegia à Civilização, ao Progresso, à Ciência, à Técnica, ao

Desenvolvimento, à Produção, ao Consumo, ao Urbanismo, à


Publicidade, à Segurança etc., desta nossa querida e pobre Sociedade
... que precisa renascer na Simplicidade dos Primi

tivos e na Liberdade dos Pobres e na Alegria dos Pequenos.


Na Graça do Evangelho de Jesus Cristo!

François de Closets publicou um livro: Le Bonheur en


Plus que medita o que muitos pensamos, quando pensamos: o
progresso não nos faz mais humanos e por isso não nos faz
mais felizes. A grande mentira de nossa civilização é esta:

fabricar o produtor-consumidor, aquele que busca sua felicidade


nos bens de consumo. “Não entendo — diz De Closets — como
a Igreja Católica, por exemplo, deixou que isto acontecesse
sem protestar mais, pois, para mim, há aí uma perversão radical
que trai o Homem”.

Recomendo também a leitura de certas páginas de Arturo


Paoli sobre “as raízes do Homem”, para citar outro exemplo.
E recomendo uma respeitosa visita à aldeia Tapirapé e, em
contraposição, uma visita a São Paulo ou a presença crítica
numa festa de sociedade ou numa roda de magnatas ou de
políticos. Recomendo a convivência efetiva com uma família
operária ou qualquer outra experiência viva, suficientemente
demorada, de pobreza real. Recomendo sobretudo um mergulho,
de consciência aberta, nas águas enlouquecidas do próprio
coração... Que vontade vem depois de exigir de Deus,
recriador de todas as coisas, uma Sociedade de criaturas humanas
sobre as ruínas desta Sociedade de sonâmbulos eletrônicos
e um coração de carne sobre as cinzas calcinadas de
nosso coração de pedra!
No Credo que tem dado sentido à sua vida, Javier Domínguez
— cuja Fé na Justiça partilho plenamente — escreve:

“O Padre Diez Alegria escandalizou muito as orelhas


de alguns quando escreveu: ‘Marx me levou a re-
descobrir a Cristo e o sentido de sua mensagem’. Em
mim, foi exatamente o contrário: o estudo da Bíblia e
do movimento revolucionário cristão me levou à compreensão
do materialismo histórico.” (Yo Creo en la Jus-
ticia!, pág. 76.)

Para mim, a vida diária — à luz da Fé — o diário e


crescente contato com os pobres e oprimidos — pelo imperativo
da Caridade — me levaram à compreensão da dialética marxista
e a uma metanóia política total.

As retirantes famílias murcianas, os subúrbios, os operários


de Sabadell e Barcelona; o campo do alto Aragón; as
famílias operárias, os desempregados, os emigrados do campo
espanhol, as empregadas domésticas, os marginais de Sabadell,
Barcelona e Madri; os negros colonizados da Guiné e da Nigéria;
os favelados, os operários, os negros segregados (sic.),
os nordestinos, os clandestinos, e presos e torturados e mortos
políticos do Brasil; as famílias retirantes, os posseiros, os peões,
os índios e as prostitutas deste Mato Grosso, desta Amazônia...
foram e são meus juizes, meus mestres e meus profetas em
Revolução; a eles devo esta incômoda tradução do Evangelho
de Jesus que agora tento viver.

A eles e a tantos mártires — cristãos conscientes ou inconscientemente


cristãos — lidos ou conhecidos que deram sua
vida pela causa dos Pobres da Terra, pela causa do Homem
Novo. A um deles, Che Guevara, dediquei um poema que
apareceu em “clamor elemental” e que já mereceu o escândalo
dos “bons” e um panfleto da Repressão. O poema nasceu
assim:
“À noite, com a cidade apagada e uma imensa lua
desperta, Manuel e eu, a sós, escutamos pelo transistor
o final do Primeiro Festival Universitário de Música Popular
Brasileira: ‘Que bacana!’, ‘Senhora de Luar’, ‘Vem,
companheiro Che!’ — homenagem e apelo ao mártir do
Continente.

Outra vez, Che Guevara. E América. E a morte.


E os Pobres. Com uma grande Paz, porque sei que, em
Cristo, tudo é Graça e n’Ele espero em todas as circunstâncias
por mais fúteis, dolorosas ou paradoxais que elas
sejam.

Rezo pelo Che. Sinto que, a estas horas, ele já conhecerá


a surprema força da violência do Amor. ‘Sem
perder nunca a ternura’... ele tinha pedido.

O Araguaia, embebido de luar, palpita a nossos pés,


como uma artéria. Sinto muitos amigos perto de mim.
Concretos. Sinto a América Latina. Lembro, com paz,
a meditação da manhã, umas palavras de Loew: No apostolado,
é preciso saber esperar. Tudo isso das parábolas
evangélicas que falam das lentidões da semente. Eu,
aqui, em muito pouca coisa, ajudo a frutificar o Evangelho
— e sua Revolução — nesta América do Che que
há de ser de Cristo...”

“Algum dia escreverei um poema a meu amigo


Guevara, Deus o tenha em sua Paz!” (Diário, l.° de
outubro de 1968.) E, um dia, escrevi o poema:

“— Che Guevara —

E, por fim, tua morte também me chamou


lá da seca luz de Vallegrande.

Eu, Che, continuo crendo


na violência do Amor: Tu mesmo
dizias que ‘é preciso ser duro
sem nunca perder a ternura’.

Mas tu me chamaste. Também tu.

(Os temas compartilhados, dolorosos.

Os múltiplos olhares moribundos.

A inerte compaixão exasperante.

As sábias soluções à distância...

América. Os pobres. Este mundo terceiro


quando não existe mais do que um mundo
de Deus e dos Homens!)
Escuto no transistor como te canta
a juventude rebelde,

enquanto o Araguaia palpita a meus pés como urna

[arteria viva

transido pela lua quase cheia.

Toda luz se apagou. E é só noite.

Cercam-me os amigos longínquos, vindouros.

(‘Pelo menos tua ausencia é bem real’


geme outra canção... Oh! a Presença
em Quem eu creio. Che,
para Quem eu vivo
em Quem eu espero apaixonadamente!

... A estas horas tu sabes bastante


de encontros e respostas.)

Descansa em paz. E aguarda, já seguro,

com o peito curado

da asma do cansaço;

limpo de ódio o olhar agonizante;

sem outras armas, amigo,

senão a espada nua de tua morte.

(Morrer sempre é vencer

desde o dia em que

Alguém morreu por todos, como todos,

matado, como müitos...)

Nem os ‘bons’ — de um lado —


nem os ‘maus’ — do outro —
entenderão meu canto.

Dirão que sou poeta, simplesmente.

Pensarão que a moda pôde comigo.

Recordarão que sou um padre ‘moderno’.

Para mim, tanto faz!

Somos amigos

e falo contigo agora


através da morte que nos une;

estendendo-te um ramo de esperança,

todo um bosque florido

de íbero-americanos jacarandás perenes,

querido Che Guevara!”

Péguy pedia “uma revolução temporal” para a salvação


eterna da Humanidade. Camus se queixava de tantos cristãos
haverem “decidido prescindir da generosidade para praticar a
caridade”. E o humorista brasileiro Millor Fernandes diz que
entrevista política se chama “o ato de 'falar daquilo que se
deveria estar fazendo”. As três advertências são saudáveis.
E falando da Causa do Homem Novo, mais uma vez, faço o
propósito de tê-las presentes na vida.

De qualquer forma, isto é o que eu creio: Creio verda-


deiramente na Causa do Homem Novo.

Creio em outra Humanidade mais fraterna — em mecânica


política, chamei-a socializada. O mundo precisa respirar
harmoniosamente humano. Os Homens todos havemos de
chegar a nos reconhecer uns aos outros como Homens, como
irmãos — eu disse na Utopia da Fé.

Creio no impossível e necessário Homem Novo!

Não creio na segregação racial ou classista (porque uma


só é a imagem de Deus no Homem).

Não creio no desenvolvimento das minorias nem no desenvolvimento


“desenvolvimentista” da maioria. (Porque esse
desenvolvimento já não é o nome novo da Paz.)

Não creio no progresso a qualquer preço. (Porque o Homem


foi comprado ao preço do Sangue de Cristo.)

Não creio na técnica mecanizadora “dos que dizem ao


computador: Nosso pai és tu”. (Porque somente o Deus vivo
é nosso Pai.)

Não creio na consumidora sociedade de consumo. (Porque


só são bem-aventurados os que têm fome e sede de Justiça.)

Não creio na Cidade Celeste à custa da Cidade Terrestre.


(Porque “a Terra é o único caminho que nos pode levar ao
Céu”.)

Não creio na Cidade Terrena à custa da Cidade Celeste.


(Porque “não temos aqui cidade permanente e vamos para a
que há de vir”.)

Não creio no homem Velho. (Porque creio no Homem


Novo.)

Creio no Homem Novo que é Jesus Cristo Ressuscitado,


primogênito de todo Homem Novo!

Amém. Aleluia!
Y

Esperança Total
Tenho falado da Esperança ao longo de todas estas páginas,
porque a Esperança tem sido meu credo ao longo de
toda a minha vida mais consciente.

Vou apenas sublinhar um ou outro aspecto desse credo


de Esperança que a gente tem vivido e no qual a gente se
firmou como na “segura e sólida âncora” (Hb. 6,19).

Por constituição psicológica e pelas contingências de minha


biografia, a angústia me tem acompanhado sempre, de
contrapeso. E a solidão. E, muitas vezes, o medo. E uma des-
gastadora responsabilidade. E também uma radical insatisfação.

Transcrevo cinco fragmentos do meu Diário, esclarecedores


a esse respeito:

“Sinto desejos de desaparecer, de não estar em parte


alguma, de não ter de responder por nada a ninguém”
(2 de outubro de 69).

“O tempo, quando não é capacidade concreta de


fazer, é capacidade perigosa de recordar, de temer e
de desejar. Matar dignamente o tempo é, às vezes, uma
difícil virtude” (25 de março de 70).

“Os valentes são os que vencem o muito ou o pouco


medo que têm. Os crentes são aqueles que vencem na
Esperança a dúvida, o terror, a amargura que necessariamente
os invadem aqui na terra da peregrinação” (25
de fevereiro de 70).
“O antídoto da angustia é a opção — diz a Agenda
Vozes. Mas a opção nunca se acaba de fazer: vai-se fazendo
hora a hora, minuto por minuto. É a fidelidade,
o que nossos antepassados chamavam ‘perfeição’, o ‘sim,
Pai’ de Jesus” (23 de março de 70).

“A oração é a respiração da Esperança. Quando se


deixa de orar, deixa-se de esperar”, escrevi também. “Não
espero, pois, por constituição psico-somática. Espero por
Esperança...”

Vi a morte aos dois anos de idade. Dizem que eu tinha


dois anos, quando se forjou a primeira imagem de minha memória
naquela amiguinha que morava ao lado, que brincava
comigo na areia junto ao passeio e a cujo quarto fúnebre me
levou a mão grande de não sei quem e cuja morte ficou contraída
na espantada visão de minha infância, naquela colcha
alta, cor-de-rosa, sob o silêncio e os olhares dos mais velhos...

Depois vi muitas mortes. Assisti a muitos moribundos.


Meditei muito sobre a morte, às vezes, macabramente. E já
morri várias vezes na apreensão.

Procurei — sadismo? formação? raiz de mística hispânica?

— sentir bem de perto a morte... que eu algum dia haveria


de viver também; para não me apegar à vida transitória, para
confirmar — como monótono, irrefutável, universal argumento

— que verdadeiramente “passa a figura deste Mundo”.

E a morte, ainda agora, cada morte, continua sendo para


mim a coisa mais séria que a vida tem. Assim como a presente
vida continua sendo a coisa mais próximamente séria
da futura Eternidade.

Não preciso que ninguém me recorde o “nada” humano,


a futilidade da vida. Conheço bem as trovas de Jorge Manrique
e os sermões da Ascética e as ácidas páginas do Cohelet.

Posso dizer — agora com gratidão — que a morte se


tornou uma sombra permanentemente projetada diante de
minha vida. Viver dialogando com a morte não deixa de ser
uma Graça... quando se crê.

O que mais me impressionou sempre na morte é sua condição


de “entrada na eternidade”, salto no vazio. Depois disso,
sua característica de aventura humana no singular: cada homem
morre sozinho.
Temo morrer? Sei que não fugi da morte talvez porque
não podia mesmo fugir. Disse que a venho pedindo. Como
martírio, isto sim: talvez para poder toureá-la mais gloriosamente,
porque é menos processo “fatal” uma morte “matada”
do que uma morte “morrida”, porque é uma morte que a
gente acolhe ou “provoca” como um valoroso supremo ato
vital. (Talvez porque seja carisma da gente. Tem-se carismas
para viver; não se poderá ter carismas para morrer?)

Em todo caso, estou confessando minha Fé com todas as


suas idiossincrasias.

Ainda na Espanha, cantei um dia essa “profecia extrema”


que, anos mais tarde, ratifiquei, corrigida e aumentada, com
bastante mais verossimilhança, aqui, neste conflitivo Mato
Grosso, onde não é tão extraordinário assim morrer matado.
(Ontem à noite, fui atender a um ferido grave, baleado, que
é polícia militar e, diante de mim, entraram um sargento da
Aeronáutica e dois jagunços: ele, de revólver na mão e perguntando
por um novo candidato a outro tiro; misturados, o
padre e os pistoleiros, as balas e a Unção, as enfermeiras, os
doentes e os curiosos, no corredor do Hospital...)

Profecia extrema ratificada

Eu morrerei de pé como as árvores.

De pé me matarão.

O sol, como testemunha maior, porá seu lacre


sobre meu corpo duplamente ungido.

E os rios e o mar
se farão caminho
de todos os meus desejos

enquanto a selva amada sacudirá de júbilo suas cúpulas.

A minhas palavras eu direi:

— Eu não mentia ao gritar-vos!

Deus dirá a meus amigos:

— Certifico

que ele viveu convosco esperando este dia.


De súbito, com a morte,
minha vida se fará verdade.

Por fim, terei amado!

O espetáculo — tão freqüente para mim estes últimos


anos — de tantas diárias mortes “estúpidas” não deixou de ser
um revulsivo purificador de minha Esperança. Como o é a
constante notícia e também a visão de tantos desastres mortais
em que o progresso e a técnica se fazem morte fulminada,
desafio a toda presunção. Como o é também o sofrimento —
sem voz nem voto? — destas inúmeras crianças nascidas para
sofrer, para morrer. E tanta dor humana que me procura e
que recebo, impotente. E a persistente, crescida, insolúvel situação
de injustiça que carcome o Mundo, que vai roendo na
gente, aqui, diariamente, os ossos mesmos da Paz.

Escrevi, na nota preliminar de Clamor Elemental, que “a


amargura ou a tristeza não negam a Esperança: purificam-na
(comprometem-na, acrescentei depois), dão-lhe sua razão de
S£r desde a base, multiplicam-na repartindo-a...”

Agora o repito. E acrescento esta confissão-chicotada que


o P. Llanos me transmitiu numa carta sua: “Nós temos Esperança,
mas os que esperam são eles”.

Minha Fé, há muito tempo, é a Esperança.

E “a Esperança cristã não é somente um ‘depois’ que


nos ajuda a viver; não é algo; é Alguém”, dizia o Cardeal
Feltin.

Minha Esperança tem nome e sobrenome: Jesus Cristo


Ressuscitado.

A Páscoa de Jesus Cristo que é “Nossa Páscoa”, é a verdadeira


razão de minha Esperança. Espero porque creio que
ELe ressuscitou e é “a Ressurreição e a Vida”.

Quando descobri, ainda seminarista, que a Graça é “já” a


Glória, “a Glória às escuras”, como dizíamos, e que vivemos,
já ;aqui na terra a única Vida Eterna que viveremos para
sempre; creio que desabaram, para mim, de uma vez, todos os
alicerces das dicotomias. (¡Não quero dizer que o “como” se
vive esta única Vida Divina, pela Graça, aqui e lá, não me
pareça profundamente diferente. Todos sabemos que a terra
“ainda não” é o Céu...)

A total História humana era a única História da Salvação.


Todo ensaio de humana alegria e toda desesperança humana.
todo esforço que o Homem realiza, cada passo que o Homem
dá, a intra-histórica esperança da luta marxista, a morte sobretudo
dos que morrem pela Causa do Homem, aos golpes,
talvez às cegas, de quantos tentam construir o futuro melhor...
tudo se transformava em tensão escatológica, em “profissão”
— lúcida ou louca — de “Esperança total”. E “a Esperança
não decepciona” (Rom. 5,5).

“A Terra é o único caminho que nos pode levar ao Céu”,


repeti infinitas vezes com o inesquecível P. Charles de nossas
leituras missionárias.

Toda espera se fez Esperança. “Saber esperar” era saber


viver, ativos, despertos, com as lâmpadas bem providas e acesas...
“se é que mantemos a inteireza e a gozosa satisfação
da Esperança” (Hb. 3,6).

“Não, Camus, a Esperança não é a resignação. A resignação


é só o silêncio da Esperança. Mas a Esperança
tem palavras de Vida Eterna! Resignar-se não é ainda
esperar. E pode muito bem ser o contrário”. (Diário,
l.° de abril de 70.)

Paulo descobriu o pecado, segundo Liger, como uma realidade


universal, renitente ao Evangelho. Paulo descobriu também,
segundo ele próprio diz, que a Graça superabundou onde
abundou o pacado.

A Esperança “decifra” tudo “em esperança”. Ela é como


Moema, a índia do romance, “em cujo rosto até a morte é
bela”. Por ela, a Natureza misteriosa e temida passa a ser o
Cosmos harmonioso; a Sociedade passa a ser Humanidade; a
Humanidade passa a ser Igreja; a História passa a ser Reino
e Parusia.

Para mim, Teilhard não foi um visionário. Não “entendo”


o Mundo. O Homem me surpreende cada dia. Eu mesmo sou,
para mim, cada dia, uma nova surpresa. Não entendo a vida.
Menos ainda entendo a morte. (“Esta plantação — o cadáver
na terra — só Deus a faz crescer”, ponderava um dos nossos
improvisados coveiros, enterrando o corpo de seu companheiro,
também peão.) Mas creio. Espero! (Não me perguntem pelo
inferno — que nem nego nem entendo. Sei que é um dogma
de Fé que não pode contradizer o Amor universal que é Deus
e o Mistério de Cristo que é a Redenção do Homem, criado
por Amor, nascido em não sei que pecado, mas renascido na
Graça de Cristo.)

O chamado diálogo Igreja-Mundo é muito mais que diálogo.


A Igreja e o Mundo não são duas realidades frente a
frente nem paralelas. Onde e quando o Mundo se torna ou não
se torna Igreja?

“Tanto amou Deus ao Mundo que lhe deu seu Filho


único” (Jo. 3,16). No Mundo, o Verbo se fez carne e é
missão sacramental da Igreja descobri-lo e enunciá-lo e reali-
zá-lo como encarnado no Mundo.

A Secularização e a nova sacralidade, a Teologia da Transcendência


e a Teologia da Libertação tornam-se uma só perspectiva
e uma só tarefa. Onde acaba a Natureza, onde começa
a Graça? “Tudo é Graça!” Tudo é Cristo: Sua Glória e sua
Cruz, a sede d’Ele e o rosto d’Ele, no qual nós damos crédito
a Deus ou seu rosto anônimo em qualquer destes “irmãos
pequenos” que a gente alimenta ou veste ou conscientiza ou
defende...

Creio que Deus é Amor.

Creio que o Criador não zomba de suas criaturas.

Creio que Cristo já venceu o pecado e a Morte.

Creio que a morte em Cristo já é a Ressurreição.

Creio que “a criação inteira geme em dores de parto, na


esperança de ser libertada da servidão da corrupção, para participar
da gloriosa liberdade dos Filhos de Deus” (Rom. 8,
20-22).

Creio que, naquele dia, Deus “enxugará toda lágrima de


nossos olhos e já não haverá morte, nem pranto, nem gritos,
nem fadigas, porque o Mundo antigo terá passado” (Apoc.
21,4).

Creio que “quando se manifestar o que seremos, seremos


semelhantes a Ele, porque o veremos tal qual é” (I Jo. 3,2),
“cara a cara” (I Cor. 13,12). (“Quando chegarmos, seremos
totalmente homens”, dizia Inácio Mártir; “livres, livres, enfim!”,
suspirava, agonizante, Luther King.)

Entrementes, com todos os que crêem, com todos os que


lutam, com João e a esposa, eu grito a mais certa palavra
que se tem escrito neste Reino da Morte e da Esperança:
“Vem, Senhor Jesus!”

Vamos, todos juntos, fazer com que Ele venha?


Composto e impresso nos
Estab. Gráficos Borsoi S.A.
Industria e Comércio, à
Rua Francisco Manuel, 55
— ZC-15, Benfica, Rio de
Janeiro, RJ
intrínsecamente crê na Divindade, e que
seja ao mesmo tempo comunista. A crença
religiosa e o marxismo-leninismo são absolutamente
incompatíveis, em virtude de
princípios filosóficos fundamentais. Falar
de “padre comunista” é uma incongruência,
uma antítese, a não ser que se suponha nào
se tratar de um padre, mas de um comunista
militante que escolheu a Igreja desde
a juventude e passou a vida dizendo missas
e comendo hóstias em troca de um bom
disfarce para suas verdadeiras idéias. Convenhamos
que é fantasioso demais. Não se
escamoteia assim uma tão grande vocação
e uma crença tão inabalável.

A leitura do livro de D. Pedro Casaldá-


liga revela com clareza o religioso convicto,
inspirado, imbuído de um sentimento de
solidariedade cristã que nenhuma ameaça
pode demover. Aqui são descritas as lutas
do povo daquela região contra a opressão
imposta pelos latifundiários, luta em que
contaram com o apoio da Igreja na pessoa
de seu bispo. Foi um tempo difícil, pessoas
morreram, e tornou-se necessário ter muita
fé e muita consciência da importância daquele
esforço para poder levá-lo adiante.
Tudo isto faz da narrativa que se irá ler
uma autêntica saga pela conquista da liberdade.
A nosso ver não é — como muitos
querem — uma obra ofensiva aos princípios
democráticos. Pelo contrário. É uma
defesa desses princípios no que cies têm
de mais elementar, e também uma lição
de integridade pessoal e de uma forma de
Amor que encontra na Fé seu fundamento
mais profundo.

Editora Civilização Brasileira


Creio na Justiça e na Esperança

— originalmente publicado em castelhano — é livro que encerra


ampla profissão de fé do autor, o bispo de São Félix
do Araguaia,

D. Pedro Casaldáliga

—r prelado que sofreu ataques covardes, continuos e violentos,


pelas corajosas posições que assumiu em favor dos pobres e
perseguidos daquela diocese de Mato Grosso. A leitura deste
livro de

D. Pedro Casaldáliga

revela com clareza o religioso convicto, inspirado, imbuído de


um sentimento de solidariedade, de uma integridade pessoal e
de uma forma de Amor que encontram na Fé seu fundamento
mais profundo.

Mais um lançamento de categoria da

CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

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