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RODRIGO DA SILVA LIMA

DA NOTA AO SOM: EXPLORANDO


TERRITÓRIOS HARMÔNICOS

CAMPINAS
2009

i
RODRIGO DA SILVA LIMA

DA NOTA AO SOM: EXPLORANDO


TERRITÓRIOS HARMÔNICOS

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes


da Universidade Estadual de Campinas para
obtenção do Título de Mestre em Música.

Orientador: Prof. Dr. Silvio Ferraz Mello Filho

CAMPINAS
2009

iii
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP

Lima, Rodrigo da Silva.


L628d Da nota ao Som: explorando territórios harmônicos. / Rodrigo
da Silva Lima. – Campinas, SP: [s.n.], 2009.

Orientador: Prof. Dr. Silvio Ferraz Mello Filho.


Dissertação(mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Artes.

1. Varèse, Edgard. 2. Música – Séc. XX. 3. Composição


(Musica). 4. Musica - Analise. 5. Analise harmonica (Musica). I.
Mello Filho, Silvio Ferraz. II. Universidade Estadual de Campinas.
Instituto de Artes. III. Título.

(em/ia)

Título em inglês: " From the Pitch to the sound: exploring harmonic
territories.”
Palavras-chave em inglês (Keywords): Varèse, Edgard. ; Twentieth-century
music ; Musical composition ; Music - Analysis; Music - Harmonic analysis.
Titulação: Mestre em Música.
Banca examinadora:
Prof. Dr. Silvio Ferraz Mello Filho.
Profª. Drª. Marisa Barcello Rezende.
Profª. Drª. Denise Hortência Lopes Garcia..
Data da Defesa: 12/08/2009
Programa de Pós-Graduação: Música.

iv
v
Dedico este trabalho à minha família.

vii
AGRADECIMENTOS

À minha família, Maria, João, Ricardo, Vanessa e Roberto, pelo carinho e apoio
incondicional durante este trabalho e ao logo de toda minha vida musical.
Ao meu orientador Silvio Ferraz, pelos conselhos e explicações, pela amizade
sempre generosa demonstrada em todas as etapas da pesquisa.
Aos meus professores Sérgio Nogueira, Estércio Marquez Cunha e Enéias Áquila,
pela inestimável atenção e amizade que dispuseram durante toda minha formação musical.
Aos amigos e companheiros do mestrado, Alexandre Ficagna, Luis Felipe, Manoel
Freire, Marcos Maia e Vanessa Rodrigues, pelo companheirismo e pelas discussões sempre
profícuas.
Ao amigo Maurício De Bonis, pela tradução do abstract.
À Mariana Quezado, pelo carinho e apoio durante a elaboração do projeto inicial.
À FAPESP, que financiou e possibilitou esta pesquisa.

ix
“La musique n’est ni une histoire, ni une tableau, ni
une abstraction psychologique ou philosophique.
Elle est tout simplement la musique.”

Edgard Varèse

xi
RESUMO

Este trabalho tem por finalidade avaliar determinados aspectos que nortearam
algumas das principais especulações realizadas no campo da harmonia na música do século
XX. Dentre os objetivos estiveram presentes: apontar as premissas e estratégias que fizeram
parte de cada novo território harmônico, bem como explorar a ideia do uso de “matrizes
harmônicas” como princípio composicional. Aliado a isso, ressaltamos também as relações
entre as estratégias composicionais, via manipulação de alturas, e suas resultantes enquanto
timbre e sonoridade. Para tanto, foram escolhidos compositores que em algum momento
fizeram do timbre harmônico e da matéria sonora mais um elemento caracterizante dentro
do processo composicional. Dentre os compositores figuraram: Claude Debussy, Arnold
Schoenberg, Igor Stravinsky, Edgard Varèse, Pierre Schaeffer, Olivier Messiaen, Pierre
Boulez e Flo Menezes. No caso de Varèse, justificamos sua significativa presença no
trabalho por julgarmos sua relação com a matéria sonora, seu próprio material
composicional, precursora na música do século XX. Por este motivo, fez-se necessário uma
análise de Intégrales visando uma maior aproximação do seu idioma composicional e de
suas estratégias para a escrita do timbre. Paralelamente aos estudos, tivemos como
resultado uma série de obras compostas pelo autor onde a utilização de “matrizes
harmônicas” passou a ser um aspecto relevante para o processo composicional, uma espécie
de guia da sonoridade.

Palavras-chave: música do século XX, composição, “matrizes harmônicas”, Edgard Varèse.

xiii
ABSTRACT

This study has the goal of evaluating certain aspects that guided some of the main
speculations in harmony in twentieth-century music. Among its objectives are: to point out
the premisses and strategies that took part in each new harmonic territory, as well as to
explore the use of harmonic matrixes as a compositional principle. At the same time we
underline how compositional strategies relate by means of pitch manipulation, and their
results in timbre and sonority. To achieve this, we chose composers that in some point
made use of harmonic timbre and sound matter as a distinctive element in the
compositional process. Among them stand: Claude Debussy, Arnold Schoenberg, Igor
Stravinsky, Edgard Varèse, Pierre Schaeffer, Olivier Messiaen and Pierre Boulez. In
Varèse's case, we justify his significant appearance by judging his relation to sound matter,
and his own composition material, as pioneering in twentieth-century music. For this
reason, an analysis of Intégrales became necessary, aiming at a closer approach to his
musical idiom and his strategies for the writing of timbre. Besides the studies, we had as a
result a series of works composed by the author in which the use of harmonic matrixes
became a relevant feature in the compositional process, a sort of a guide to sonority.

Keywords: twentieth-century music, composition, “harmonic matrixes”, Edgard Varèse.

xv
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................1

CAPÍTULO I
DA NOTA AO SOM................................................................................................7

1.Por um novo território...................................................................................7


2.A sonoridade a partir da “escritura” em Claude Debussy.............................13
3.Algumas construções harmônicas em Igor Stravinsky.................................18
4.Edgard Varèse e Pierre Schaeffer: por uma emancipação do Som..............22
5.O “Som-cor” de Olivier Messiaen................................................................32
5.1 Os complexos sonoros: “efeito vitral”, “Acorde da ressonância”, “Acorde de
ressonâncias contraídas” e “Acorde do total cromático”......................................34

CAPÍTULO II
O USO DE MATRIZ HARMÔNICA COMO PRINCÍPIO
COMPOSICIONAL..............................................................................................43

1. A “Matriz” serial: Structures Ia de Pierre Boulez…………………….…..46


2. Multiplicações e matrizes em Le Marteau sans Maître de Pierre
Boulez...........................................................................................55
3. A “matriz harmônica” como princípio composicional......................60
3.1.“Matrizes harmônicas” em Edgard Varèse......................................61
4. “Sinfonia” de Luciano Berio...........................................................74
5. Matriz harmônica em Rèpons (1981-84) de Pierre Boulez................79
6. TransFormantes I (1983) de Flo Menezes...................................................83

CAPÍTULO III
APONTAMENTOS, ESTRATÉGIAS E RELATOS COMPOSICIONAIS....89

1. Intégrales (1925): Edgard Varèse................................................................89


1.2. A estrutura interna: o ‘cristal harmônico’..................................................91
2. A escrita do timbre em Intégrales................................................................115
3. Linhas de afeto: relatos composicionais......................................................121

CONCLUSÃO.......................................................................................................135

BIBLIOGRAFIA...................................................................................................142
ANEXOS................................................................................................................146

xvii
INTRODUÇÃO

No limiar do século XX a música de concerto se viu tomada por um anseio de


renovação, o que consequentemente desencadeou uma série de especulações no campo
formal, rítmico e, sobretudo, no campo das alturas. Compositores na busca por alternativas
diante do velho sistema tonal se voltam não apenas à busca de novas estratégias frente ao
material harmônico, mas também e, significativamente, para o seu aspecto “tímbrico”. Fato
esse já mencionado por Arnold Schoenberg (1874-1951) no último capítulo do seu tratado
de Harmonia (1911). Essa crescente valorização de uma harmonia de timbres irá afetar o
próprio Schoenberg em sua obra Farben – “Cores” (1909), a terceira das Cinco peças para
Orquestra do Op. 16, bem como seu discípulo Anton Webern (1883-1945) com suas
“melodias de timbres” (Klangfarbenmelodien). Além disso, havia uma forte tendência por
agrupações harmônicas cada vez mais complexas as quais já prenunciavam no Adagio da
Décima Sinfonia de Gustav Mahler (1860-1911) e no Prometheus (1910) do russo
Aleksandr Skryabin (1872-1915).
Tal anseio especulativo no campo das alturas vê em Claude Debussy (1862-1918)
os preceitos que regiam uma “boa” harmonia serem substituídos por construções que se
apoiavam em grande medida apenas na qualidade “tímbrica” e sonora dos acordes. Não
bastando, encontramos neste mesmo compositor uma escrita musical atuando como um
meio de modelar sonoridades e “cor” instrumental. Já no caso de Igor Stravinsky (1882-
1971) poderíamos falar de uma espécie de refuncionalização do material “tonal-modal” que
acabou por proliferar uma série de novos agregados sonoros. Neste caso, basta lembrarmos
o incisivo “acorde” de “Danses des adolescentes” em Le Sacre du Printemps (1913). Por
outro lado, encontramos o compositor ítalo-germânico Ferruccio Busoni (1866-1924)
propondo uma renovação para além das alturas. Busoni em seu livro Esboço para uma

1
Nova Estética Musical de 1907 já visionava a inclusão de instrumentos eletrônicos e
procedimentos microtonais para a nova música de concerto.
É nesse contexto de territórios diversos que surge a figura do compositor Edgard
Varèse (1883-1965). Movido em grande parte pelas ideias de Busoni e por um desejo de
emancipação das velhas certezas musicais, tais como a arbitrariedade do sistema
temperado, é que Varèse irá dar início ao seu projeto de liberação do som. O que está em
jogo para ele não é mais o velho desenvolvimento clássico de temas e motivos, mas sim, a
própria transformação do som, esse aqui inseparável de suas “massas” e “planos sonoros”.
Ou seja, Varèse se ocupa de esculpir o próprio som. É, sobretudo, por essa aproximação do
fenômeno sonoro proporcionado por sua música que justificamos a significativa presença
de Varèse no presente estudo.
O resultado de tal postura vareseana fez com que ele produzisse uma série de obras
totalmente independente das soluções encontradas por seus contemporâneos Schoenberg,
Bartók, Stravinsky e Webern. Tais soluções advêm de uma relação que fez da matéria –
Som – material composicional a qual se valia ainda de uma gama de intervalos
privilegiados e de noções de acústicas, essa última em decorrência do seu contato com os
escritos do físico alemão Hermann Helmholtz (1821-1894). É imbuído de tais ideias que
Varèse escreveria as obras que melhor definiriam sua poética do som organizado, “son
organisé”, são elas: Hyperprism (1923), Octandre (1923) e Intégrales (1925).
Nesse sentido, vários autores se ocuparam em abordar suas “massas sonoras” sob
diferentes aspectos. O compositor canadense Gilles Tremblay, por exemplo, em seu artigo
Acoustique et Forme Chez Varèse1 ressalta que o jogo de repouso e tensão dos “blocos
sonoros” se dá via o grau de reciprocidade entre os harmônicos que os compõe. Ou seja,
quanto maior for o grau de relação entre os harmônicos, maior será a estabilidade do bloco
e quanto menor for a correlação, maior será o grau de instabilidade. Por outro lado, o
compositor e ex-aluno de Varèse, Chou Wen-Chung em seu artigo Varèse: Sketch of the
Man and his Music nos atenta para a ideia de transmutações de “massas sonoras” em
Intégrales2. Já o compositor e teórico americano Larry Stempel, no artigo Not even
1
TREMBLAY, G. Acoustique et Forme Chez Varèse. Mâche, François-Bernard (dir). VARÈSE: vingt ans
aprés. La Revue Musical, Editions Richard-Masse. Paris 1985.
2
WEN-CHUNG, CHOU. Varèse: Sketch of the Man and his Music, Musical Quarterly, 1966.

2
Varese can Be Orphan 3 aponta os indícios do que viria a ser uma das características
do vocabulário harmônico vareseano focado em modelos de “construção em blocos”
fundamentados em uma matriz harmônica. Encontramos ainda os apontamentos de
Jonathan Bernard em seu artigo Pitch/Register in the music of Edgard Varèse 4 a
respeito de simetria e da ideia de projeção de uma mesma estrutura harmônica em
diferentes planos sonoros.
De fato, tal pluralidade de apontamentos sobre a poética vareseana nos
certifica não apenas sua singularidade dentro da geografia sonora da primeira
metade do século XX, bem como sua importância para o presente estudo. Varèse ao
fazer do Som material composicional e elemento indissociável de sua arquitetura sonora e
tímbrica, estabeleceu também um marco para as gerações seguintes de compositores como
Pierre Schaeffer e Iannis Xenakis.
Outro aspecto considerado em nosso estudo foi a mudança de paradigma da
harmonia cadencial para “matrizes harmônicas” quase atemporais no processo
composicional. Tal ideia diz respeito à participação de uma ou mais “estrutura harmônica”
na trama vertical da obra que por sua vez dinamiza o processo de proliferação de novas
estruturas. Este princípio matricial de origem predominantemente serialista, onde a
estrutura da obra tinha como referência uma matriz primeira, ou seja, a série dodecafônica
propriamente dita, adquire diferentes desdobramentos no percurso do século XX. Um dos
primeiros passos nesta direção foi dado em Farben de Schoenberg, pois seu “acorde”
onipresente constitui-se elemento determinante das relações harmônicas da peça. Por outro
prisma, encontramos compositores como Pierre Boulez onde as séries tendem a se
organizar verticalmente e com “densidades variáveis” produzindo, assim, um
conjunto de blocos sonoros. Veremos que em obras como Le Marteau sans Maître 5
(1953-1955) e Rèpons (1981-84), Boulez se valeu do uso de “matrizes” e de suas
Multiplicações de acordes para gerar novos blocos a partir de uma “matriz” primeira.

3
STEMPEL, L. “Not Even Varese Can Be an Orphan,” The Musical Quarterly 60, 1 (1974).
4
BERNARD, J. Pitch/ Register in the music of Edgard Varèse. Music Theory Spectrum, vol. 3
(Spring, 1981), pp.1-25.
5
Teremos como referência bibliográfica para o estudo de Le Marteau, o autor Lev Koblyakov e seu livro
Pierre Boulez: A World of harmony. 1990, New York: Harwood Academic Publishers.

3
Já no caso de Varèse, as estruturas harmônicas se encontram quase sempre estáticas em
suas configurações originais em que a permanência dos componentes intervalares gera uma
espécie de entidade sonora que circunscreve todas as etapas da obra. Ao analisar Intégrales
(1923-24), Octandre (1923) e Hyperprism (1922-23), fica evidente não apenas este aspecto
sonoro característico, bem como a predileção intervalar dada por Varèse a esses “blocos”,
sobretudo, intervalos de sétimas, segundas e nonas.
É diante de tal diversidade harmônica que prenuncia o século XX que pretendemos
lançar um olhar mais minucioso sobre suas particularidades. Ou seja, quais seriam as
premissas de cada novo território sonoro, bem como suas possibilidades agregadoras para a
composição musical. E mais, como se dá a relação entre as estratégias composicionais
utilizadas pelos compositores via manipulação de alturas (notas) e suas resultantes em
termos sonoros e “tímbrico”. Para tanto, dividimos todo o conteúdo em três capítulos
distintos e uma conclusão.
No primeiro pontuamos algumas propostas harmônicas que de alguma maneira
estiveram voltadas para uma equivalência “tímbrica” do som dentro da prática
composicional. Ou seja, buscamos um repertório onde o timbre e a sonoridade exercesse
também uma função estrutural. Deste modo, incluímos Debussy, Schoenberg, Stravinsky,
Varèse, Schaeffer e a ideia de “Som-cor” de Olivier Messiaen.
O segundo capítulo aborda um princípio matricial em que a estrutura da obra teria
como referência uma matriz primeira. De origem serial, tal ideia será aqui explorada não do
ponto de vista exclusivamente da série dodecafônica de Schoenberg, essa de caráter
predominantemente temático, mas do uso de uma “matriz harmônica” como princípio
composicional. Por este motivo, usaremos duas palavras bem próximas: matriz e matiz. A
primeira trata-se da escolha de uma ou mais “estrutura harmônica” de características
intervalares específicas que sirva de modelo para uma obra musical. Matiz, por sua vez,
seriam os desdobramentos ou gradações de sonoridades que a “matriz harmônica” inicial
sofre no decorrer da obra. Nesse sentido, o presente capítulo se aproxima mais de ideias
como as multiplicações de acordes encontradas em Le Marteau sans Maître e Rèpons de
Boulez e dos “blocos sonoros” onipresentes em Hyperprism, Octandre e Intégrales de
Varèse.

4
O terceiro e último capítulo está dividido em duas partes e uma conclusão geral. A
primeira delas é dedicada a uma análise de Intégrales sobre dois aspectos: o primeiro seria
acompanhar o desdobramento ao longo da obra das três estruturas harmônicas anunciadas
em seus primeiros compassos. O segundo aspecto pretende delinear algumas estratégias
composicionais que estariam por trás da escrita do timbre em Intégrales. Para tanto,
adotaremos como referência principal o artigo Varèse’s architecture of timbre: mediation
of acoustics to produce organized sound do musicólogo francês Philippe Lalitte.
A segunda parte do capítulo final se ocupa de relatos composicionais sobre uma
série de obras realizadas durante o mestrado. Além de discorrer a respeito dos
procedimentos e ‘afetos’ que nortearam a escrita de obras tais como Matizes e Gestuelle,
procurou-se também abordar a predileção do autor pelo uso de matrizes harmônicas como
ponto de partida do processo composicional.
Por fim, todas as discussões diluídas nos três capítulos resultaram numa série de
reflexões cujo objetivo principal não foi solucioná-las de maneira unívoca, até porque
nosso objeto de estudo se faz interessante justamente por sua natureza heterogênea. O que
se objetivou em nossa conclusão geral foi reafirmar tal diversidade e principalmente
recapitular as diferentes faces do fazer “harmônico-sonoro” e “tímbrico” discutidos até
então. Portanto, o que temos aqui são apontamentos e reflexões cuja finalidade é revelar
novos caminhos para que, numa segunda etapa, possamos agregá-los ao ensino e à prática
composicional.

5
Capítulo I – Da nota ao Som

1. Por um novo território.

Eis que surge um novo território em música, ou mais precisamente, o mundo dos
sons enfim emerge da condição de resultante das práticas de escrita musical, seja ela
polifônica ou não, para um plano onde o som passa a ser o protagonista do universo criativo
do compositor, guiando-o e instigando-o a explorar novos territórios presentes no mundo
dos sons.
Na história da música ocidental é possível notar em cada período certas
características sonoras, as quais estariam diretamente ou parcialmente ligadas a algumas
práticas de escrita da época. Estas imagens ou ecos sonoros que povoam cada período da
música refletem bem o imaginário prático-criativo de seus compositores e de suas
necessidades expressivas frente aos padrões estilísticos de sua época. Poderíamos, por
exemplo, citar algumas sonoridades implícitas em práticas como a polifonia barroca, ou
num cânone de Ockeghem, ou ainda na homofonia do século XVIII. Não temos dúvida
quanto à presença do som nessas práticas musicais, mas é preciso ter em mente que essas
práticas citadas acima ainda não davam ao som o lugar que este ocuparia no século XX. A
sonoridade se fazia presente enquanto resultante, pois a qualidade tímbrica do som ainda
não constituía elemento relevante ao processo composicional que se bastava nas proporções
de notas, escalas e durações. Mesmo a atenção à instrumentação seria posterior.
Primeiramente passando pelo instrumento como elemento simbólico no renascimento,
depois a necessidade do equilíbrio das vozes instrumentais no século XVIII, para só então
ser tomado como timbre em Debussy. Não esquecendo, é claro, a antecedência em
Beethoven, Berlioz, Brahms, Liszt, pois basta lembrarmos a oitava sinfonia de Beethoven,
em que o [Lá] preso passa por diversos instrumentos, onde se configura uma evidente
mudança de timbre instrumental na permanência de uma mesma nota. Vale mencionar
antes de seguirmos que essa ideia de qualidade tímbrica do som sempre se fez presente de
alguma maneira em todas as épocas. O que muda é o conceito dado a essa ideia. E talvez o

7
que as unam seja uma necessidade expressiva presente em cada período da história da
música.
O interesse por uma qualidade tímbrica do som, ou por novas sonoridades em fins
do século XIX e início do XX, coincidiram com dilatação do sistema tonal juntamente com
a tendência de equiparar os doze sons da escala cromática. Poderíamos dizer que esse novo
território sonoro que surge seria fruto de uma mudança funcional, pois os sons, outrora
vistos como simples notas, deixam de se articularem em prol de uma hierarquia de funções
tonais para exercerem uma função mais sonora-tímbrica dentro da estrutura musical. Obras
como “Cloches à travers les feuilles” do segundo livro de Images (1907-1908) e Jeux
(1912) de Debussy já seriam um indício dessa mudança funcional.
Com tudo isso, não podemos mais seguir certas noções e conceitos tradicionais de
ritmo, melodia e harmonia como os que encontramos na tradição clássica. No início do
século XX esse triunvirato onipresente do discurso musical (ritmo, melodia e harmonia) se
expande para fora dos limites até então nunca vistos na música ocidental. Não seria difícil
perceber esse alargamento, basta lembrarmos-nos da renovação rítmica no Sacre de
Stravinsky, da “harmonia de timbres” em Farben de Schoenberg, o ruído como mais um
elemento passível de organização em Ionisation de Varèse ou na extrapolação da
Klangfarbenmelodie – melodia de timbres – com Anton Webern. Portanto, não se pode
mais fazer uma leitura deste repertório à luz da tradição clássica. Essa renovação no âmbito
da sonoridade, foco do presente estudo, nos conduziu a novas formas de perceber o
fenômeno sonoro e consequentemente nos colocou em direção aos grandes “complexos
sonoros”, melodias de timbre, “harmonias de timbres”, “som-cor” e “massas sonoros”. É
por esse novo universo sonoro e tudo aquilo que implica em sua realização que nos
direcionamos agora.

“No mundo musical, a revolução mais brutal e marcante que ocorreu nos últimos anos não
teve origem num questionamento qualquer da escrita musical (serial ou outra), mas, mais
profundamente, no mundo dos próprios sons, ou seja, no universo sonoro gerido pelo compositor.”
(MURAIL, 1980, p. 56)6

6
MURAIL, T. “A Revolução dos Sons Complexos”. Cadernos de estudos: Análise musical, nº5. São Paulo,
Atravéz, 1992, pp. 55-72. Tradução de José Augusto Mannis.

8
De início, não podemos negar que a libertação das amarras presentes no sistema
tonal e mais a busca crescente de alguns compositores por certas formações abstratas com
os sons, possibilitou uma maior aproximação da matéria sonora em si, e consequentemente,
uma maior reflexão a respeito dos novos procedimentos especulativos diante dela.
Muitas foram as tentativas de renovação do material sonoro harmônico no limiar do
século XX. Alguns compositores como Stravinsky se voltam inicialmente para um tipo de
interação de elementos folclóricos não ocidentais estabelecendo, assim, um tipo de
vocabulário “tonal-modal”7, o qual teve grande influência da música dos nacionalistas
russos8. A tríade Schoenberg-Berg-Webern, por sua vez, segue em direção ao atonalismo
dodecafônico a partir da herança cromática deixada por Wagner, Strauss e Mahler. Não
menos importante seria a presença dos franceses Edgard Varèse e Olivier Messiaen, o
primeiro por escolher nos anos vinte o som como material básico compositivo inaugurando
um caminho sem precedente histórico, já o segundo por ter o “som-cor” (le son-couleur)9
como um dos pontos centrais de sua poética. Mais adiante iremos abordar com mais
detalhes alguns dos compositores citados acima e suas relações frente ao material sonoro.
Essa renovação crescente do léxico harmônico refletiu diretamente na sua
complexidade. Schoenberg já ressaltava no último capítulo do seu tratado de Harmonia10
intitulado, ‘valorização estética dos complexos sonoros de seis e mais sons’ essa
valorização da sonoridade. De início ele reconhece no som três dimensões: altura, timbre e
intensidade, sendo a altura a mais explorada até o momento. Ele acrescenta ainda que:
“A valorização da sonoridade tímbrica [Klangfarbe = cor do som], da segunda dimensão do
som, encontra-se, portanto, em um estágio ainda muito mais ermo e desordenado do que a
valorização estética destas harmonias nomeadas por último. Apesar disso, ousa-se tenazmente
alinhar e opor sonoridades meramente conforme o sentimento, e ainda não ocorreu jamais a alguém
exigir de uma teoria que ela estabeleça as leis segundo as quais se possa fazê-lo.” (SCHOENBERG,
1999 p.578).

Em sua obra Farben – “Cores” (1909), Schoenberg busca por essa equivalência
tímbrica do som dentro da prática de escrita composicional. O que nos chama a atenção de
7
ANTOKOLETZ, E. Bela bartók: Um estúdio de la tonalidad y la progresión em la música del siglo XX
8
Essa influência do nacionalismo russo seria, sobretudo, de compositores como Mussorgski e Rimiski-
Korsakov.
9
MESSIAEN, Olivier. Conférence de Notre-Dame. Paris: Alphonse Leduc, 1978.
10
SCHOENBERG, A. Harmonia. São Paulo, Unesp, 1999. Obra traduzida para o português por Marden
Maluf.

9
imediato nesta obra é a maneira como ele realiza essa gradação contínua do timbre, ou da
Klangfarbenmelodie – melodia de timbres. Na análise de Charles Burkhart de Farben
(BURKHART, 1973-1974), ele ressalta, sobretudo, o diferencial desta obra com toda a
tradição orquestral que conhecíamos até então. Na história da orquestração, o que tínhamos
era uma mudança de instrumentação mais lenta que a mudança das alturas. Em Farben,
essas mudanças ocorrem, ou mais rápidas que as alturas, ou ao mesmo tempo. Com isso,
temos uma matização de cor orquestral nunca antes vista na história da música. Para tal,
Schoenberg parte de um material harmônico inicial básico formado pelas seguintes notas
[dó, sol#, si, mi, lá] o qual o serve de matriz 11 para todo o discurso harmônico da peça.
Vale citar aqui o livro Ouvir o Som12, do compositor Paulo Zuben, onde temos uma análise
mais detalhada de Farben na qual o autor demonstra o esquema completo da estrutura
harmônica desta obra.

Figura 1 - Acorde onipresente em Farben de Schoenberg.

Ao longo da obra, todo o material harmônico é constantemente permutado entre


diversos timbres instrumentais da orquestra (figura 2) e que consequentemente transforma a
Klangfarben, a cor do som, a cada momento. Para cada acorde há uma nova
instrumentação, e por sua vez, uma nova cor. Não podemos deixar de mencionar neste
momento o nome de Anton Webern (1883-1945), aluno de Schoenberg, pois esse sim faria
da Klangfarbenmelodie um aspecto inseparável da sua obra. Sua Sinfonia Op. 21 de 1928 é
um exemplo célebre nesse sentido.

11
Cabe esclarecer que no presente trabalho abordarei duas palavras muito próximas: matriz e matiz. A
primeira trata-se da escolha de um “bloco harmônico” de características intervalares especificas que sirva de
modelo sonoro para uma obra musical. Matiz, por sua vez, seriam as gradações de sonoridades que a “matriz
harmônica” inicial sofre no decorrer da obra.
12
ZUBEN, P. Ouvir o Som, SP: Ateliê, 2005.

10
A partir disso, podemos arriscar dizer que o timbre e tudo aquilo que implica na
transformação do sonoro, passa neste momento a ser uma constante no universo criativo de
vários compositores, e mais do que isso, um marcador estético. Eis então um novo campo a
ser cultivado em música, ou como disse Schoenberg sobre o timbre: “é, portanto, o grande
território, e a altura, um distrito” (SCHOENBERG, 1999, p.578). Boulez, não menos
preciso, diz a respeito de Farben que o timbre passa a “ser utilizado por si mesmo,
funcionalmente” (BOULEZ, 1995, p.314). É importante frisar neste momento que
“funcionalmente” para Boulez, diz respeito à função estrutural que o timbre exerce na obra,
e não uma simples função de ilustrar algo externo.

11
Figura 2 - Trecho da troca de instrumentação em Farben, 1º página.

Essa expansão do vocabulário harmônico em fins do século XIX, sobretudo com o


ultracromatismo do período Wagner-Strauss e que veio a culminar com os vienenses
Shoenberg, Berg e Webern no século XX, marca uma direção no léxico harmônico do

12
início do século passado. Por outro lado, e não menos significativo, é a postura do francês
Claude Debussy. Sua personalidade pouco conformista frente aos dogmas tradicionais dos
conservatórios fez com que seu vocabulário harmônico emergisse da dualidade Dominante-
Tônica para uma harmonia muito mais comprometida com o timbre e a sonoridade do que
propriamente àquelas hierarquias funcionais que encontramos no tonalismo. Para ele, o
critério de escolha do acorde passa a ser não mais a função que este exerce, mas
principalmente o timbre ou cor que este possui. Essa renovação sonora em Debussy, onde
os acordes ganham total independência e o timbre se revela como um dos aspectos
marcantes de sua poética, pode ser vista não apenas na singularidade do seu manejo
orquestral, mas, sobretudo em sua obra para piano. Desse modo, tentaremos pensar o
timbre, neste momento, não mais como resultado da combinação instrumental, essa, até
certo ponto tão desgastada, mas enquanto fenômeno sonoro dotado de força própria e de
um poder sugestivo inesgotável.

2. A sonoridade a partir da “escritura” em Debussy

André Boucourechliev em seu artigo - Debussy La revolution subtile13, irá dizer


que não é deste timbre “resultante” que se trata aqui, mas de uma escritura –
respectivamente da percepção – do fenômeno sonoro enquanto timbre. O modelo para essa
sua análise será o timbre na música para piano de Debussy, mais precisamente em “Cloches
à travers les feuilles” do segundo livro de Images (1907-1908). Ele justifica sua escolha
pela obras para piano dizendo: “[...] elas permitem acessar seus meios e modelar, o quanto
possível, aquilo que constitui a essência da obra, a saber, sua concepção, a escritura e a
percepção do timbre tais quais eles estão construídos via o ritmo, ou seja, o tempo”.
Se pensarmos no piano como um instrumento “monocromático”, de uma só cor,
temos um desafio maior, pois estamos na ausência das cores da “paleta” orquestral.
Lançado o desafio, é preciso agora criar os próprios mecanismos e ferramentas para a
produção do timbre instrumental. Boucourechliev propõe que o timbre ou a sonoridade
estaria diretamente ligado ao que ele chamou de “formantes rítmicos”, ou seja, a
13
Les chemins de La musique, Fayard: Paris (1988). Tradução não publicada: Silvio Ferraz.

13
sobreposição de camadas temporais de valores distintos juntamente com modos de ataques
distintos implicaria diretamente em uma qualidade tímbrica específica.
Antes de seguirmos, seria bom esclarecer que Boucourechliev irá usar o termo
“formantes”, este emprestado da física acústica, de maneira que as componentes parciais
que formam um determinado som são vistas aqui em “ocorrências rítmicas”. Ou seja, cada
“formante” rítmico seria uma espécie de parcial, sendo assim, a sobreposição desses
parciais rítmicos implicaria na formação de um determinado som ou timbre instrumental.
Na figura abaixo de “Cloches” encontramos uma estrutura sonora de quatro formantes:
primeiramente temos um ritmo longo (as semibreves), compasso 1 e 2, o qual se sobrepõe a
um ritmo com durações mais curtas (as colcheias), onde cada um deles possui um modo de
ataque específico (legato e staccato). Temos aí uma primeira sonoridade “constituída pela
escritura” diz Boucourechliev.

Figura 3a. Cloches à travers les feuilles comp. 1, 2, 3.

No terceiro compasso é mantido o “formante” em colcheias ao o qual se sobreporão dois


outros “formantes” no registro agudo, sendo que o “formante” constituído pela nota longa
“fundamental” (semibreve) é substituído por uma semibreve agora.

Figura 4b

14
O terceiro “formante” é apresentado por um fluxo ondulado ascendente e descendente de
semicolcheias em tercinas e a ele se sobrepõe um quarto “formante”, em colcheias no
agudo. Neste quarto “formante”, seus últimos valores, um alongado e outro diminuído,
completam assim uma estrutura sonora de quatro “formantes” os quais numa ação
simultânea, segundo Boucourechliev, moldam uma sonoridade específica do conjunto.

Figura 5c.

É como se as características sonoras de cada “formante” se amplificassem no conjunto


sonoro durante a simultaneidade dos “formantes” em sua evolução temporal. E essa
amplificação resulta num timbre ou “cor” global em que cada “formante” seria uma espécie
de pigmento de “cor” específica a se somar com as outras dentro da textura.
Na análise de Boucourechliev, é ressaltada ainda a contribuição do pedal sustentado
e o pentatonismo14, esse último como um afastamento da tonalidade. Nesse sentido, o
aspecto estático das alturas é algo bastante curioso, pois são sempre as mesmas notas. Esse
congelamento das alturas fez com que o ritmo ganhasse uma maior atenção na obra de
Debussy, e a partir disso, sua função passa a ser a de matizar as gradações de “cor” de cada
“formante” dentro da estrutura musical, mantendo assim, o interesse do contínuo sonoro da
obra. Pois no caso de Debussy, já podemos observar sua predileção para uma “harmonia de
timbres” e ao aspecto estático das alturas, isso, em oposição aos grandes desenvolvimentos
temáticos da tradição clássica que pressupõe ao motivo temático “consequências” 15. Sobre
dar “consequências” ao material temático, o filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969)
a denominou como “forma musical dinâmica” (ADORNO, 1989, p.128) e que sua

14
Segundo Silvio Ferraz, o fato do texto original existir em forma de rascunho antes da publicação, talvez
Boucourechliev tenha querido escrever hexatonismo ao invés de pentatonismo.
15
Cf. Fundamentos da Composição Musical de Arnold Schoenberg. São Paulo, Edusp, 1993.

15
hegemonia na música ocidental se encontra desde a escola de Manheim até a segunda
escola vienense com Schoenberg, Berg e Webern.
Voltando ainda a Debussy e aos “formantes rítmicos” de Boucourechliev. De fato,
Boucourechliev observa que essa simultaneidade de “formantes” não é um contraponto a
quatro vozes, até por que, diz ele, seria monótono, pois se trata sempre das mesmas alturas.
Se pensarmos em um contraponto rítmico, não estaria muito equivocado, pois a
independência das linhas rítmicas em “Cloches” de Debussy é um fato irrefutável. Mas o
que está em jogo aqui não é propriamente a individualidade de cada formante, disso não
temos dúvida e nem tampouco da sua importância, mas é preciso perceber que o resultado
sonoro é da ordem do todo amalgamado. Boucourechliev vai dizer: “que o conjunto dos
formantes constitui o som na sua evolução”; “o todo é da ordem do tempo musical”.
Outro aspecto ressaltado por Boucourechliev é o da emissão sonora, que na obra de
Debussy se tornou um detalhe inseparável da sua busca por modelar o timbre.

Figura 6d - Cloches de Debussy, comp. 24.

Vejamos no exemplo acima que o grande acorde que ressoa durante todo o compasso é
cortado por duas semifrases, uma em colcheias pontuadas no registro médio do piano, em
fortíssimo, e a outra no extremo agudo, em pianíssimo, como mostram as setas. Para
Boucourechliev, é preferível, neste caso considerar o tipo de emissão sonora do que sua
classificação harmônica, pois a ressonância desse acorde de onze notas influi diretamente
no timbre do conjunto.

16
Para finalizar, Boucourechliev nos atenta para o acorde final de “Cloches” e sua
escritura singular de intensidade como podemos ver na figura abaixo.

Figura 7e. Acorde final de Cloches.


.
Para ele, o retardo do acorde de sol menor pouco interesse tem em vista da ousada anotação
de intensidade exigida por Debussy, ou seja, o crescendo e decrescendo sobre uma só nota.
Até porque se trata de um piano e não de instrumentos de cordas, sopros ou metais, os quais
naturalmente realizariam essa variação de intensidade. Com isso, Boucourechliev vai dizer
que Debussy quer “anotar o não-anotável à sua época”. É como se Debussy quisesse mover
alguma coisa dentro do espectro, diz Boucourechliev. Ou seja, “quer a todo preço
singularizar este Sib, “forçá-lo” após o dó# precedente”.

Figura 8 - Klavierstücke nº5 de Stockhausen.

17
Boucourechliev lembra ainda que esse detalhe de escritura focada no resultado sonoro que
encontramos em Debussy, pode ser visto anos depois num estágio extremo da emissão
sonora em Klavierstücke nº5 de Karlheinz Stockhausen, como mostra a figura acima. Em
Klavierstücke nº5, esse detalhe de escritura e, principalmente, de exigência interpretativa
levaria as pesquisas de Debussy com a emissão sonora ao extremo. Pois Stockhausen
escreve intensidades diferentes para cada nota do acorde, como mostram as setas no
exemplo oito. Boucourechliev vai dizer a esse respeito que talvez não seja realmente
tocável nas intensidades precisas, mas que essas diferenças aproximadas de emissão já
implicariam num resultado sonoro no mínimo diferente.
No caso de Klavierstücke nº5 é preciso dizer que se trata de uma extrapolação do
serialismo integral dos anos 50 aos quatro parâmetros do som16. Vale comentar que a obra
de Debussy seria retomada na metade do século XX por Stockhausen e György Ligeti,
sobretudo do ponto de vista textural em obras como Jeux e La Mer17·.

3. Algumas construções harmônicas em Igor Stravinsky

Contemporâneo de Debussy, Igor Stravinsky não foi menos inovador no que


concerne à ampliação das possibilidades harmônicas nesse início de século XX. Seu
vocabulário foi e continua sendo motivo de reflexão quando se trata de especulações a
respeito de novas construções com os sons. Vale lembrar neste momento a amizade entre
Debussy e Stravinsky e a influência que o primeiro exerceu em sua obra. O musicólogo
Elliott Antokoletz, em seu livro Bela Bartók: Um estúdio de la tonalidad y la progresión
em la música del siglo XX, nos lembra que: “as sonoridades coloridas e exóticas das
partituras de Debussy são assimiladas e transformadas em um violento idioma de acentos
rítmicos no Le Sacre du Printemps (1913) de Stravinsky, mas as transformações (próprias
de Debussy) das estruturas tradicionais modais e pentatônicas em formações simétricas,

16
A respeito dos procedimentos seriais de Stockhausen, ver em: Wörner Karl. Stockhausen, life and works.
Londres: Faber E Faber. 1973, p.92; Stockhausen, Karlheinz. “Momentform”, “Composition par groupes:
Klavierstuck I”, in: Contrechamps, nº9. Paris: l’ Age d’ home. 1988, p.16.
17
STOCHAUSEN, K. Texte zur Elecktronischen und Instrumentalen Musik, vol. 1. Koln: 1963. Apud:
ZENCK, Claudia. “Debussy: Profect and Seducer’’, in: Cahiers Debussy, Nouvelle série, 6, Genève,
Minkoff, 1982, pp. 16-21.

18
dentro de uns desenhos de sons estáticos isolados, podem ser encontradas nos mosaicos das
formas de Stravinsky ao longo de toda sua obra”. (ANTOKOLETZ, 2006, p.10).
O repertório harmônico stravinskiano é sempre lembrado por suas relações com o
diatonismo, polimodalidades, harmonia estática, tríade Maior-menor, poliacordes, escalas
octatônicas etc. Mas o que temos aqui é uma nova maneira de articular todo esse material,
seja por procedimentos de permutações de alturas, ou pelas “coagulações horizontais e
verticais” de materiais aparentemente simples mencionados por Boulez (BOULEZ, 1995,
p.77), ou ainda por “empilhamento de estruturas heterogêneas” como afirma o compositor
Paulo Zuben. (ZUBEN, 2005, p.36). A história da música herdou de tais procedimentos
stravinskianos uma nova paleta sonora que se tornaria referência definitiva após o
nascimento de obras como Le Sacre, Petruchka e na Symphonies of Wind instruments, esta
última composta em memória de Debussy.
Gostaria de fazer uso de mais uma colocação de Boulez a respeito do Sacre que me
parece bastante pertinente para se entender um pouco desse universo harmônico
stravinskiano. Boulez observa como característica marcante dessa obra um “cromatismo
vertical” em oposição a um “diatonismo horizontal”18. Tal oposição apontada por Boulez,
em que o cromatismo se faz verticalmente a partir de sobreposições de linhas diatônicas,
pode ser vista no trecho abaixo do “Jeux des cites rivales”.

Figura 9 - “Cromatismo vertical” a partir da sobreposição de dois seguimentos melódicos diatônicos em “Jeux
des cites rivales” no Sacre de Stravinsky.

18
BOULEZ, P. Notes of an Apprenticeship, trans. Herbert Weinstock (New York: Knopf, 1968), p. 74.

19
No exemplo acima19, temos na verdade uma sobreposição de dois tetracordes, [Sol-Fá-Mi-
Ré] e [Sol#-Lá#- Si-Dó#], o que justifica a colocação de Boulez, pois estes dois tetracordes
vistos separadamente demonstram sua qualidade diatônica. Por outro lado, uma abordagem
vertical deste trecho valida sua configuração cromática. Na análise do musicólogo Pieter
Toorn, em seu livro Stravinsky and the Rite of Spring, ele ressalta sobre esse mesmo trecho,
em “Jeux des cites rivales”, que se trata de uma estrutura escalar octatonica, (Fig.10), muito
presente no vocabulário de Stravinsky e que, sem dúvida, seria uma herança do compositor
Russo Rimsky-Korsakov20, de quem Stravinsky foi aluno.
Poderíamos lembrar que esses dois tetracordes mencionados estão relacionados por
um intervalo de trítono, outro modelo de sobreposição muito comum em Stravinsky, o qual
remete ao famoso acorde de Petruchka, em que temos duas tríades maiores sobrepostas
[Lá#-Dó#-Fá#] e [Dó-Mi-Sol] o que também resulta numa escala octatonica [Dó-Dó#-
(Ré#)-Mi-Fá#-Sol-Lá-Lá#] com a omissão do [Ré#] 21.

Figura 10 - Escala octatonica usada em "Jeux des cites rivales”.

Seguindo esta ideia, vale dizer que esse “cromatismo vertical”, em oposição a um
“diatonismo horizontal” apontado por Boulez, pode ser observado não somente em termos
de sobreposição de seguimentos melódicos, mas também nas sobreposições de acordes. Se
lembrarmos do famoso acorde da “Danses des adolescentes” (Fig. 11)22 da Sagração,
veremos que a sobreposição dos acordes se dá por intervalo de meio-tom o que configura
um bloco cromático. Mas, ao separá-los, teremos um acorde de sétima da dominante [Eb-

19
Exemplo retirado do livro Stravinsky and the Rite of Spring, The Beginnings of a Musical Language
do autor Pieter C. van den Toorn. UNIVERSITY OF CALIFORNIA PRESS Berkeley · Los Angeles ·
Oxford 1987. The Regents of the University of California. P. 127.
20
Podemos encontrar o uso da escala octatonica em Rimsky-Korsakov em sua ópera Sadko (1897).
21
PIETER, C. T. The music of Igor Stravinsky, New Haven, Yale University Press, 1983, pp.31, 33.
22
Allen Forte sobre este acorde nos afirma em seu livro The harmonic organization of the rite of Spring, que
nele está contido uma das séries de sete sons mais importantes e mais usada ao logo de toda a Sagração da
Primavera. (Forte, 1978, pp. 35 e132).

20
G-Bb-Db] e uma tríade de mi maior [Mi-Sol#-Si], os quais podem ser facilmente
relacionados às suas respectivas escalas diatônicas. No entanto, o resultado sonoro que se
busca aqui é da ordem do todo, do amálgama sonoro como já mencionamos aqui neste
trabalho. Este tipo construção de blocos em Stravinsky confirma a ideia de que a Sagração
é atravessada por sobreposições de acordes e pequenos módulos escalares incompletos
(tetracordes, pentacordes), segundo análise do compositor Silvio Ferraz apresentada em
aula.

Figura 11 - Sobreposição de acordes na “Danses des adolescentes”, Sacre.

A partir do exemplo acima, não teríamos dificuldades em afirmar que esse procedimento de
sobreposição de acordes em Stravinsky seria uma ‘verticalização’do tratamento que ele
realiza com a sobreposição de seguimentos melódicos. Ou seja, temos aqui uma inversão,
uma disposição no sentido oposto do “diatonismo horizontal” que agora é aplicado
verticalmente. Na ‘Danse Sacrale’, (Fig.12), encontramos este mesmo princípio de
construção de sonoridades a partir de sobreposições de um acorde de sétima da dominante
[Ré-Fá#-Lá-Dó] e da tríade menor [Mib-Solb-Sib], sendo que [Solb] é aqui analisado como
enarmonia de [Fá#]23.

Figura 12 - Sobreposição de acordes em “Danse Sacrale”, Le Sacre.

23
Cf. Pieter Toorn em sua análise de ‘Danse Sacrale’ em Stravinsky and the Rite of Spring, The
Beginnings of a Musical Language. UNIVERSITY OF CALIFORNIA PRESS Berkeley · Los Angeles
· Oxford 1987. The Regents of the University of California. P. 202.

21
Estes quatro primeiros compassos da “Danse Sacrale” acima, poderiam ser reduzidos em
cinco acordes e em duas possíveis escalas octatonicas, como mostra a figura abaixo.

Figura 13 - Redução dos quatro primeiros compassos de “Danse Sacrale”.

Fica claro aqui o controle que Stravinsky faz do cromatismo, pois o ciclo só se
inicia novamente no quinto compasso após a apresentação de toda a gama cromática que se
dá no quarto compasso, como podemos ver na figura 12 acima.
De fato, essa nova adequação que Stravinsky faz do material harmônico-escalar, o
qual até certo ponto nos é bastante familiar, mas que se fez inovador no seu agenciamento,
é sem dúvida uma das suas contribuições mais célebres para esse novo território sonoro.
Quando Boulez nos atenta sabiamente para essa oposição entre “cromatismo vertical” e
“diatonismo horizontal” na obra deste compositor, ele não apenas nos coloca diante de um
Stravinsky inovador, mas, sobretudo nos revela uma possibilidade a mais no controle do
cromatismo e também em como agenciar tais estruturas dentro do discurso musical.

4. Edgard Varèse e Pierre Schaeffer: por uma emancipação do Som

A experiência de Edgard Varèse com o material sonoro, ou por sua tentativa de


“liberação do som” é no mínimo uma experiência singular, para não dizer precursora na
história da musica ocidental. Sua obra nos legou, dentro da perspectiva fenomenológica do
som e da acústica, noções que até então eram de domínio exclusivo da ciência, e que só se
tornariam palpáveis para a arte musical com o advento da música concreta e eletrônica.

22
“Eu trabalho muito - sobretudo no sentido de “som” que para mim é a sólida base da música,
meu elemento bruto. O intelectualismo do intervalo é para mim um fator que não tem nada a ver com
o nosso tempo e os novos conceitos”24. (VARÈSE, 1983, p.125).

Ao eleger o Som como material básico de todo seu discurso composicional e assim
transferindo para a matéria25 o status de material, Varèse irá de certa maneira antecipar o
ideal proposto por Pierre Schaeffer décadas depois com sua “escuta reduzida”, elaborada no
seu Traité des Objets Musicaux (1966).

“É o próprio som que eu viso, é a ele que identifico” (SCHAEFFER, 1966, p.268).

Nesse sentido, podemos observar que tanto Varèse quanto Schaeffer aspiram por um
contato mais direto com o fenômeno sonoro em si. O primeiro com uma aplicação
diretamente composicional, enquanto que o segundo, numa primeira etapa, elabora uma
espécie de exercício pedagógico para uma nova escuta musical. Vale salientar aqui que essa
abordagem particular de Varèse frente ao material sonoro não somente abriria caminho para
os concretistas Pierre Schaeffer e Pierre Henry, mas também se tornou uma alternativa a
mais frente ao serialismo nos anos 50 para compositores como Iannis Xenakis, György
Ligeti e Karlheinz Stockhausen. Essa alternativa possibilitou ao serialismo, não apenas uma
dilatação no tratamento das alturas dentro da série, mas principalmente, no tipo de
transformação do sonoro e suas consequências no resultado formal da obra.

Seguindo pelo prisma da sonoridade e tendo em vista a abordagem de Varèse frente


ao material sonoro onde a forma musical seria a própria expansão e contração do som.
Caberia lembrarmos o quanto essa ideia de forma e material seria motivo de muitas
discussões nos anos 50, quando então se iniciam dois movimentos musicais: a musique
concrète, de Pierre Schaeffer e a elektronische Musik, liderado por Stockhausen. No ideal
schaefferiano frente à música concreta, o material e a escuta eram indispensáveis para sua
construção e apreensão. Essa escuta está ligada diretamente com a proposta de depuração
dos objetos sonoros via ‘escuta reduzida’ (Livro IV do Traité, p.270). Sobre esta
24
VARÈSE, Écrits. P.125, 1983.
25
Matéria e material são pensados aqui da seguinte maneira: o primeiro se refere à matéria sonora em seu
estado bruto e o segundo, por sua vez, seriam as transformações da matéria sonora em material composicional
com suas relações internas, afetivas e estruturais.

23
depuração, podemos dizer que ela é uma espécie de filtro que, ao retirar causas externas ao
objeto, como fonte sonora e relações musicais, (como arpejo ou elementos desse tipo), traz
à tona a matéria, o som, e seus matizes de cor e textura.

A ‘escuta reduzida’ se dá aí, no momento em que eliminamos qualquer significação


relacionada ao material sonoro. Para isso, Schaeffer se apropria de dois conceitos
importantes de Husserl: o primeiro seria a ‘redução fenomenológica’ juntamente com o
époché. Atingir a escuta do objeto-sonoro depende de uma ‘transcendência do sujeito’,
afirma Schaeffer, ou seja, é preciso esquecer seus significados, suas causalidades e
qualquer tipo de referencial exterior a ele, para que, numa segunda etapa, nossa percepção
se volte apenas para o som. “Eu deveria libertar-me do condicionamento criado por meus
hábitos anteriores, passar pela prova do époché” (SCHAEFFER, 1966, p.267, 270) “O
époché é a abstenção de qualquer tese”, suspensão de qualquer julgamento.

Valeria aqui, ainda, seguirmos um pouco mais ao percurso desta ideia schaeffereana
na busca da autonomia do som. Schaeffer busca o som através desta redução de Husserl, ele
fala isto claramente, mas se olharmos para a história da arte, sobretudo a pictórica e
musical, notaremos que ele não está sozinho na busca por essa autonomia, pois da mesma
maneira que a cor se tornou autônoma na composição pictórica dos impressionistas e o
gesto da linha na dos expressionistas, e mais; da mesma maneira que a harmonia se tornou
autônoma na composição dos polifonistas e se tornou harmonia em um Montoverdi,
certificamo-nos desse caminho em direção a uma autonomização de tais parâmetros. É esta
autonomização das partículas que compõe a música que acontece no jogo de
autonomização do som. O som que era o suporte da música, se torna a música e isto nasce
via Webern (com os timbres instrumentais serializados), via Schoenberg (a autonomia do
colorido das misturas instrumentais em Farben) e via Varèse (a matéria sonora passando a
ter status de material). É neste caminho que encontramos Schaeffer numa tentativa lógica,
através desta redução de Husserl, de trazer não somente o ouvinte médio, mas o músico
para a música dos sons, pois nele, esta autonomização do som já estava presente. A sua
fundamentação é posterior e está voltada para um novo solfejo musical. Enfim, é para o
Som que a nossa escuta se desnuda agora.

24
Voltando a Varèse, ele também não se limita às origens mecânicas do som, ou com
o tratamento dado às alturas e notas, essas tão recorrentes no sistema tonal e na música
serial. Sua busca com essa composição a partir do som está mais voltada para os grandes
“agregados sonoros” e seus desdobramentos no espaço. Ou seja, não é simplesmente a
dissonância produzida por um intervalo de segunda menor que lhe atrai, e sim, o tipo de
perfil ou rugosidade que esse intervalo produz em suas “massas sonoras”. A esse respeito,
o compositor Silvio Ferraz acrescenta: “o som é a ideia, é a sua forma que a música expõe;
a forma é visível, pois ela é o próprio tratamento, as transformações mesmas do som”
(FERRAZ, 1998, p. 52). Nesse sentido, podemos pensar em uma possível antecipação de
Varèse aos ideais da música concreta idealizada por Pierre Schaeffer nos anos quarenta.
Isso porque as estratégias composicionais utilizadas por Varèse visam sempre à forma que
essas exercem sobre a matéria sonora. E mais, na música concreta a manipulação do
material sonoro é a base para sua construção, procedimento, diga-se de passagem,
indissociável da poética vareseana.

Ao eleger o ruído como mais um elemento passível de organização dentro de uma


estrutura musical, Varèse nos coloca frente a um novo universo de relações e de escuta. Sua
atenção para os sons não temperados da percussão, não somente é um bom exemplo disso,
mas principalmente suas realizações em Poème electronique (1958) e Déserts (1954).
Nestas, o uso de recursos eletrônicos o auxiliaram na organização desses novos materiais
que, no caso do Poème, podem ser vistos como objetos-sonoros no sentido schaeffereano
do termo.
Fazer emergir as qualidades internas do som é o que propõe a música de Varèse,
principalmente quando ele utiliza, por exemplo, uma textura estática a qual possibilita ao
ouvinte perceber as diversas nuanças da matéria sonora. Esse típico procedimento
vareseano pode ser encontrado em obras como Intégrales (1924) para pequena orquestra e
percussão. Nela, podemos observar um jogo de “radiação sonora” - como dizia o próprio
Varèse - ou de “refração”26 entre bloco agudo e bloco grave (Fig. 14).

26
Refração, aqui, está diretamente ligado com o desejo de Varèse em criar “uma impressão auditiva de
deformação prismática”. Quando olhamos um graveto na água, ele está espetado parte para fora e parte para
dentro da água, então, a impressão que temos é que ele está dobrado, ou seja, há uma refração, uma
deformação da imagem inicial que tínhamos do graveto fora da água.

25
Figura 14 - Intégrales, comp. 4, 5 e 6, altura real.

No primeiro exemplo acima essa ideia de “refração” ou “deformação prismática” pode ser
vista da seguinte forma: tomemos a nota [Sib] da clarineta como nosso fio condutor ou
objeto-sonoro inicial da estrutura que, ao se deparar com um tipo ‘metafórico’ de prisma,
inicia um processo de “refração”27 ou mudança da onda sonora em direção ao agudo, bloco
A [Lá-Mib-Si] e ao grave, bloco B [Do-Mi-Do#]. É como se esse som inicial [sib] da
clarineta fosse decomposto em pequenas fatias de sons, os quais privilegiam os intervalos
de sétimas, nonas e segundas (Fig. 15).

Figura 15 - Projeção de sétimas, segundas e nonas a partir da nota central (Sib) em Intégrales.

27
Em óptica: “quando um raio de luz passa obliquamente do ar para a água, do ar para o vidro etc., muda de
direção na superfície de separação, isto é, o raio é dobrado ou refratado. Esta refração de um raio de luz
depende dos dois meios, e, em menor escala da cor ou da freqüência da luz” (p.105). Ference, M., Lemon, H.
B., Stephenson, R. Curso de Física Ondas (som e luz). Editora Edgard Blücher Ltda – São Paulo. “S.d.”

26
Lembremos também que a escolha desses blocos em Varèse está relacionada com o
grau de estabilidade ou instabilidade desejado por ele. O compositor canadense Gilles
Tremblay, em seu artigo Acoustique et Forme Chez Varèse28, observa que esse jogo de
repouso e tensão nos blocos em Varèse se dá de duas maneiras: primeiramente aquele dos
sons harmônicos naturais e suas resultantes, provocando entre os sons um reforço recíproco
de intensidade, repouso e estabilidade, e o segundo de frequências estranhas engendrando,
por suas próprias redes, perturbações, tensões e desestabilizações (TREMBLAY, 1985
p.31). Ou seja, quanto maior for o grau de relação entre os harmônicos, maior será a
estabilidade do bloco e, quanto menor for à correlação, maior será o grau de instabilidade
do bloco.

Voltando ainda para a ‘metáfora do prisma’, poderíamos dizer que esse tipo de
construção em Varèse, onde o total cromático é gerado a partir de uma nota central, pode
ser visto também em Hyperprism (1923) e Octandre (1923). Na primeira, é o dó sustenido
inicial do trombone que desencadeia todas as reflexões no espaço, enquanto na segunda,
temos uma escala cromática espacializada em que, depois de sua apresentação pelo oboé,
irá congelar as notas nas regiões em que apareceram, favorecendo procedimentos de
permutação e de transformações simétricas29. De fato, temos aqui um dos aspectos que o
diferenciava de seus contemporâneos dodecafonistas que estipulavam a gama cromática
previamente, pois em Varèse, ela se dá durante o caminhar da própria obra musical.

Figura 16 - solo do oboé no início de Octandre.

28
TREMBLAY, G. Acoustique et Forme Chez Varèse. Mâche, François-Bernard (dir). VARÈSE: vingt ans
aprés. La Revue Musical, Editions Richard-Masse. Paris, 1985.
29
Sobre simetria em Octandre ver MOURA, Eli-Eri. Interaction between the Generative Cell and
Symmetrical Operations in Varèse’s Octandre. Contemporary Music Review Vol. 23, nº1, March 2004, pp.
17-44.

27
Figura 17 - Redução da escala cromática espacializada acima pelo oboé em Octandre.

Essas “radiações sonoras”, ditas por Varèse, refletem bem a sua preocupação quanto
à projeção do som no espaço30. Tais projeções podem ser vistas no espelhamento de seus
“agregados sonoros” (Fig. 18), ou na colisão de suas “massas sonoras”, criando assim,
define Varèse, uma:

“[...] sensação de que se trata de fenômenos de penetração ou de repulsão, e de que certas


transmutações que se sucedem sobre determinados planos sejam projetadas sobre outros, que se movem
em velocidade distinta e em diversas direções”31 (Fig. 19) (VARÈSE, pp 57-58, 1996).

Figura 18 - Redução da Zona de reflexão em Hyperprism, acorde espelhado, comp. 16.

Se observarmos a figura dezenove abaixo32, notar-se-ão tais planos sendo projetados


sobre outros como disse Varèse. Chou Wen-Chung, em seu artigo Varèse: Sketch of the
Man and his Music, nos dá uma ideia de como tais transmutações e massas se sucedem em
Intégrales. Chou, de início afirma que essas ‘massas-sonoras’ estão baseadas em cinco
grupos de três notas cada: I = [Láb-Sib-Ré], II = [Fá#-Sol-Sib], III = [Fá#-Sol-Láb], IV =
[Ré-Sol-Láb], V = [Sol-Láb-Sib], os quais derivam do solo do trompete no compasso 10.
Sendo que o conteúdo intervalar é determinado por alguma permutação vertical ou linear.
30
Cabe dizer que tal preocupação de Varèse teve origem nas leituras que fez dos físicos Hoene Wronski e H.
Helmholtz; o que o levaria a dizer: “graças a ele [Wronski], sem dúvida, comecei a conceber a música como
sendo espacial”. “Helmholtz foi o primeiro a me fazer perceber a música como sendo uma massa de sons
movendo-se no espaço e não uma série de notas ordenadas como me haviam ensinado”. Écrits, p.153; p.180.
31
Varèse, E. Novos instrumentos e nova música. Música eletroacústica: história e estéticas. 1996.
32
Exemplo retirado do artigo Varèse: Sketch of the Man and his Music de Chou Wen-chung p.159, Musical
Quarterly, 1966.

28
No compasso 25, temos a transmutação ou inversão do grupo II [Réb-Mi-Fá] (trompetes e
clarineta em Eb) estabelecendo, assim, uma primeira camada no registro médio agudo.

Figura 19 - Colisão de “massas sonoras” em Intégrales, comp. 25, 26 e 27.

Em seguida emergem três versões do grupo III [Fá#-Sol-Láb]. A primeira seria formada
pela trompa, clarineta em Eb e o oboé [Mib-Réb-Ré], onde a nota [Réb] funciona como
nota pivô entre os grupos II e III. O segundo grupo seria a ‘camada’ nos graves com os três
trombones [Lá-Sib-Si], a qual é rapidamente refletida no agudo com a clarineta em Sib e os
piccolos [Fá#-Sol-Sol#] completando, assim, a ultima ‘camada’ deste trecho. O fato dessas
“massas-sonoras” ou ‘camadas’ emergirem repentinamente em tempos e velocidades
diferentes, onde as alturas são sempre as mesmas, não só interfere na mudança de tensão
como também cria um diferente ângulo em relação de espaço-tempo, diz Chou (CHOU,
1966, p.159).
Se pensarmos ainda nessa insistência de Varèse em repetir o mesmo bloco sonoro
ou massas-sonoras como vimos nas figuras acima, vale dizer que essa permanência
contribui, e muito, para a descontextualização das causalidades, sendo essa
descontextualização, a principal via de acesso para uma verdadeira ‘escuta reduzida’ no
modelo Schaeffereano. Lembrando ainda o artigo de Tremblay, ele comenta que a longa
duração dos blocos em Varèse tem o propósito de tornar perceptível a complexidade dos

29
mesmos33. Por outro lado, pode-se dizer que essa longa duração auxilia na saturação de
componentes como altura, fonte sonora, notas e durações, e com isso, permanece não
apenas a complexidade dos blocos sonoros dita por Tremblay, mas principalmente as
qualidades da matéria. Ou seja, a partir do momento em que esses componentes perdem por
saturação sua identidade diante do objeto, o fenômeno sonoro em si ganha força,
permanecendo somente as variações de massa e perfis. Como afirma Ferraz em seu Livro
das Sonoridades: “em uma música concreta, o som ganha forma e materialidade ao mesmo
tempo em que é ouvido, apreendido” [FERRAZ, 2005 p.59].
Assim deve ser a nossa intenção de escuta diante do objeto. “Escutando o objeto
sonoro, que nos apresenta uma porta que range, podemos perfeitamente desinteressar-nos
da porta, para interessar-nos apenas o rangido” (SCHAEFFER, 1966 p. 271). Nesse
sentido, os Études aux objets de Pierre Schaeffer, se mostram como um bom exemplo da
sua produção musical e de sua busca por uma autonomia do som. Dentre eles poderíamos
citar o 'Étude aux allures'(1958) como um bom modelo de tal busca por uma emancipação
do som, ou como diria Schaeffer “da história energética que relata a gênese de cada
momento do som”34. A respeito dos Études, comenta o compositor Rodolfo Caesar:
“certamente é o mais claro modelo de depuração do ser dos sons, pela eliminação de
referências causais ou semânticas”. Caesar ressalta ainda que, o 'Étude aux allures' “...
auxilia o ouvinte pondo em música uma depuração de objetos sonoros, onde raramente se é
remetido a uma causalidade exterior”35. Pode se dizer que a allure é a história sequencial no
tempo do perfil dinâmico juntamente com envelope dinâmico e envelope espectral de um
determinado objeto. Sua morfologia é exposta no tempo pelo som. Um exemplo de allure
seria o Farben de Schoenberg, onde a cor muda com a oscilação espectral do corpo sonoro
continuamente.
Antes de concluirmos, vale ilustrar aqui a ideia de envelope dinâmico e a dimensão
que tal procedimento adquiriu na obra de Varèse muito antes das pesquisas de Schaeffer,
sobretudo àquelas escritas nos anos 20, sendo esse talvez seu período criativo mais fértil.

33
Ibidem, p.42
34
SCHAEFFER, P. Traité Des objets Musicaux, p. 548.
35
CAESAR, R.O époché. LaMut. Disponível em:< http://acd.ufrj.br/lamut/lamutpgs/schaeffs/schae02.htm>.
Acesso em: 25 jun. 2007.

30
Sobre isso Schaeffer irá dizer: “o perfil dinâmico de um objeto é o envelope das variações
do som durante sua duração, o qual pode ser representado em uma curva”. (SCHAEFFER,
1966, p.549). Vale também esclarecer que Varèse, além de ter um cuidado com a notação
de dinâmica, articulação, controle de intensidade, timbre, questões acústicas e de projeção
do som, ele ainda se apropria de tais envelopes dinâmicos com intuito de transformar a
constituição de suas “massas sonoras”.

Em Octandre (1923), podemos observar tal aplicação de envelope, e nesse caso,


Varèse demonstra porque é um compositor singular e inovador na música do século XX.
Ao usar o envelope dinâmico invertido, ele antecipa um procedimento composicional que
posteriormente se tornaria um “clichê” na música eletroacústica por conta do advento da
fita magnética. Nos 'Étude aux sons animes' (1959) de Schaeffer, podemos observar o uso
demasiado do envelope dinâmico invertido. Voltando ao Octandre de Varèse, temos aqui
um bom exemplo de tal envelope, o qual revela sua preocupação quanto ao comportamento
de suas projeções sonoras e consequentemente da morfologia que este exerce no material
sonoro. (Fig. 20). Sobre esta passagem em Octandre, Ferraz irá dizer que, Varèse “... se
vale de um som composto por ataques e reataques das trompas e posteriormente o
transforma duplamente: inverte o seu envelope dinâmico, e separando este som em
camadas de “parciais”, ele faz com que tais camadas sejam defasadas, de modo a criar um
segundo objeto sonoro a partir do primeiro”36 (FERRAZ, 2002, p.10).

Figura 20 Octandre, comp. 19.

36
FERRAZ, S. “Varèse: A composição por imagens sonoras”, Música Hoje, vl. 16, Belo Horizonte, Escola
de Música da UFMG, 2002, p.10.

31
Considerações finais sobre Varèse e Schaeffer.

É interessante notarmos aqui como Varèse e Schaeffer, dois compositores franceses,


e principalmente, dois compositores de momentos musicais bastante distintos, estão com
seus ouvidos voltados para as características do sonoro. Por outro lado, essa opção pelo
som, ou por fazer dele o material principal que movimenta e dinamiza o processo, seja ele
para uma escrita acústica em Varèse ou eletroacústica no caso de Schaeffer, estabelece de
uma vez por todas para a música de concerto uma possibilidade até então pouco explorada.
Não podemos esquecer também que nessa relação com o sonoro, Varèse é o precursor, ou
como disse um dia Schaeffer:

“Nos caminhos por onde andávamos, Varèse, o americano, fora por muito tempo nosso
único grande homem, e em todo caso, o precursor exclusivo”. (SCHAEFFER, 1957, p. 20).

De certa maneira, essa valorização frente ao material sonoro se tornou uma característica da
música francesa desde Berlioz, Debussy, Messiaen até um compositor espectral como
Gerard Grisey.

Enfim, essa busca por uma emancipação do Som nesses dois ícones da música do
século XX, não apenas deixou um legado para o próprio fazer musical, no que concerne a
um experimentalismo com as possíveis gradações que a matéria sonora oferece, mas,
sobretudo, nos nossos processos perceptíveis diante do objeto sonoro. Varèse, por um lado,
preconizou uma escuta concreta por fazer do som o seu material básico inventivo e
exploratório, Schaeffer, por sua vez, estabelece o solfejo e as ferramentas para essa escuta
que visam às qualidades internas do fenômeno sonoro emancipado de qualquer pré-
julgamento.

5. O “Som-cor” de Olivier Messiaen

Para concluirmos nossa caminhada por este novo território das sonoridades,
falaremos agora do som-cor (le son-couleur) de Olivier Messiaen. Segundo ele, o som-cor é
a ligação que a música estabelece com dois fenômenos distintos: cores complementares e

32
ressonância natural dos corpos sonoros. Messiaen não atribui uma cor a uma única nota; a
cor é da ordem do todo, do amálgama sonoro ou complexos sonoros37. A origem do termo
se encontra em dois fatos que marcaram a vida do compositor. O primeiro seria o contato
de Messiaen com o pintor Charles Blanc-Gatti, que, por conta de uma patologia
neurológica, enxergava as cores dos sons. E o segundo seriam os vitrais das Igrejas
europeias, em especial os da Sainte Chapelle de Paris, visitado pelo compositor, pela
primeira vez, aos 10 anos de idade (MESSIAEN, 1988, p. 5).
O som-cor pode ser descrito através de ferramentas composicionais como as que
encontramos em suas permutações de notas de um mesmo complexo sonoro, porém, na
permanência de um mesmo baixo, o que dá ao acorde uma “multicoloração” ou “efeito-
vitral”, do qual falaremos mais adiante. Assim como Schoenberg, Messiaen formaliza seu
pensamento a respeito dos acordes e da cor dos acordes, o que permite apresentar sua ideia
em itens separados, com clareza.
Em suas conferências de Notre-Dame e Kyoto, Messiaen afirma que o som-cor
mantém uma relação direta com três aspectos: os modos de transposições limitadas38, que
são modos transponíveis somente certo número de vezes, o “éblouissement”; e, por fim, os
complexos sonoros (MESSIAEN, 1988, p.7). Apesar de ser uma ideia abstrata, o ‘som-
cor’, Messiaen vai salientar que existem ferramentes composicionais para produzir cores
nos sons. A partir disso tentaremos exemplificar alguns desses procedimentos de Messiaen
diante dos complexos sonoros.
Antes de seguirmos aos complexos sonoros, vale aqui esclarecer a ideia de
“éblouissement”. O compositor Tadeu Taffarello em seu artigo, Um olhar crítico sobre
duas conferências de Olivier Messiaen, nos diz que o “éblouissement” “[...] é uma
sensação, pretendida pelo autor, que deve ser provocada em seus ouvintes. As ferramentas
das quais ele se utiliza para tanto, são a música religiosa e o som-cor” (TAFFARELLO,
2007, p.7). Na Conferência de Kyoto, a partir de sua análise de Transfiguration, Messiaen
define o ‘éblouissement’ como:
37
TAFFARELLO, T. Um olhar crítico sobre duas conferências de Olivier Messiaen. Este artigo tem como
base as duas conferências pronunciadas por Olivier Messiaen em Notre-Dame e Kyoto. MESSIAEN, Olivier.
Conférence de Notre-Dame. Paris: Alphonse Leduc, 1978 e Conférence de Kyoto. Paris: Alphonse Leduc,
1988.
38
MESSIAEN, O. Technique de mon Linguage Musical, 1944 p.5

33
“Uma sensação colorida interior análoga àquela que produzem sobre os olhos as rosáceas,
as vidraças e os vitrais das grandes catedrais góticas; alguma coisa de extraordinário e sagrado que
nos transporta a um mundo de uma luz muito forte para a nossa razão”. (MESSIAEN, 1988, p. 14).

Na Conferência de Notre-Dame, ele segue no percurso dessa ideia ao afirmar que o


“éblouissement”:
“É a percepção do além, do invisível e do inexprimível, que pode ser feita com a
ajuda do som-cor”. (MESSIAEN, 1978, p. 2)

5.1 Os complexos sonoros

# Efeito-Vitral

Acordes com inversões transpostas sobre o mesmo baixo. O efeito vitral se trata de
seguidas permutações das notas de um complexo sonoro em diferentes registros, porém
na permanência de um mesmo baixo. Essa nota no baixo não precisa, necessariamente,
pertencer ao acorde. Para Messiaen, essas mudanças produzem acordes com cores
análogas, porém não semelhantes. Vejamos abaixo um exemplo de efeito-vitral
construído sobre o baixo de Dó#-Réb.

Figura 21 - Efeito vitral de Messiaen39.

Em Technique de mon Linguage Musical, Messiaen propõe um efeito-vitral ou


multicoloração do ‘acorde sobre dominante’ dispondo-o a diferentes inversões do acorde
assim em appoggiatura sobre uma nota comum (Dó#-Réb):

39
Exemplo retirado do Technique de mon Linguage Musical de Messiaen, p.37.

34
Figura 22 - Efeito-vitral com “acorde sobre dominante” com notas acrescentadas em appoggiatura.

Esse “acorde sobre dominante” mencionado por Messiaen, se trata do acorde que contém
todas as notas da ‘gama maior’, o qual pode ser visto em diversas passagens do "Quatuor
pour la fin du Temps". Seguem abaixo duas formas desse acorde usado por Messiaen e
exemplificado por ele em sua Technique de mon Linguage Musical.

Figura 23 - Duas formas do “acorde sobre dominante” usado por Messiaen.

# “Acorde da ressonância”

O “acorda da ressonância” de Messiaen nada mais é do que um acorde construído a


partir dos harmônicos ímpares da série harmônica trazidos para um contexto temperado. No
capítulo XIV de Technique de mon Linguage Musical, ele trata o “acorde da ressonância”
como: “Efeitos puramente imaginários, assimiláveis por uma longínqua analogia ao
fenômeno da ressonância natural”. (MESSIAEN, 1944, p.51).

35
Figura 24 - “Acorde da ressonância” e a série harmônica constituída pelos harmônicos ímpares a parti
da ressonância do Dó grave.

Como já foi mencionado aqui, o ‘som-cor’ mantém uma relação direta com os modos de
transposição limitadas. No caso do “acorde da ressonância”, este está ligado, segundo
Messiaen, ao modo III.

Figura 25 - III Modo de transposição limitada e seu acorde resultante.

Figura 26 - “Acorde da ressonância” em efeito-vitral.

No efeito-vitral acima, retirado de sua obra Résurrection, podemos ver não apenas as
permutações das notas em registros diferentes, mas também o baixo sendo transferido
do registro grave ao agudo, o que proporciona ao complexo sonoro uma nova cor a cada
mudança de registro ou um novo “perfume”, para usar uma expressão do próprio
Messiaen. Ainda neste exemplo, podemos notar que no último dos três acordes da
ressonância, é acrescentado o 17ª harmônico (nota Ré), completando assim o total
cromático neste pequeno compasso.

36
# “Acorde de ressonâncias contraídas”

Acordes com duas cores: a cor do acorde appogiatura e a cor do acorde real,
complicadas pelos sons resultantes graves reconduzidos ao médio contra as outras
notas.

Figura 27 - Acorde appogiatura e acorde real e os sons resultantes no grave.

Na figura40 acima, temos as duas primeiras partes do que compõe o “Acorde de


ressonâncias contraídas” (o acorde appogiatura e o acorde real), pois os sons
resultantes [Ré-Mi] não foram ainda reconduzidos ao registro médio. A gênese deste
acorde, segundo Messiaen, se encontra num acorde de nona da dominante, com a tônica
(láb) no lugar da sensível (sol). (MESSIAEN, 1949-1992, P.150)

Figura 28 - Gênese do “Acorde de ressonâncias contraídas”.

Já na figura abaixo temos a contração das duas ressonâncias [Ré-Mi] ao registro médio.
Ou seja, Messiaen faz ouvir junto às duas notas da ressonância com a appogiatura e
com o acorde real todo em posição fechada.

40
Os exemplos que se segue foram retirados do Traité de Rythme, de Couleur, et D’ Ornithologie de
Messiaen. Tome VII, Alphonse Leduc 1949-1992 Paris p. 158, 159 e 160.

37
Figura 29 - Com as resultantes graves contraídas.

A partir da contração das resultantes graves ao registro médio, Messiaen irá propor uma
série de transposições destes dois acordes, ou melhor, dessas duas ‘cores’ que nos darão
12 conjuntos formados pelo acorde appogiatura e acorde real e, consequentemente,
uma série de 24 acordes de cores diferentes. No Traité de Rythme, de Couleur, et D’
Ornithologie (vol. VII), Messiaen propõe um quadro das cores desses acordes onde
cada acorde tem sua cor especifica. Para termos uma ideia, os dois primeiros acordes da
figura trinta abaixo, são classificados respectivamente da seguinte maneira: o primeiro
sendo amarelo, violeta malva, cinza chumbo e, o segundo, verde claro, violeta, cinza
chumbo. Ou seja, ele cria toda uma gradação de cores com essas diferentes
transposições do “Acorde de ressonâncias contraídas” como podemos ver abaixo:

Figura 30 - série de 24 acordes de 'cores’ diferentes.

Podemos encontrar esse “Acorde de ressonâncias contraídas” em sua obra La


Transfiguration de Notre Seigneur Jésus-Christ para coro misto, sete instrumentos
solistas e grande orquestra (1965-1969).

38
Em seu Traité d’ ornithologie, rythme et couleur, Messiaen cita ainda outra versão
deste “Acorde de ressonâncias contraídas”, o qual pode ser visto logo no início da
segunda e sétima peça do seu "Quatuor pour la fin du Temps" e que, naturalmente, se
aplica às diversas transposições e contrações como foi dito acima. Nessa segunda
versão, fica bem clara a sua relação com o “acorde da ressonância”, já exemplificado
aqui neste trabalho.

Figura 31 - Segunda versão do “Acorde de ressonâncias contraídas” usado por Messiaen.

# “Acorde do total cromático”

Para finalizar essa incursão pelas ferramentas composicionais que Messiaen utiliza
para produzir “cores” nos sons, finalizamos com o “Acorde do total cromático”:
conjunto de doze sons, compreendendo oito sons coloridos e quatro sons suplementares
agudos que reentram na ressonância dos oito primeiros. Não se trata de um cluster. No
Traité de Rythme, de Couleur, et D’ Ornithologie, Messiaen afirma ter usado esse
acorde pela primeira vez na conclusão da quinta peça de “La Transfiguration de Notre
Seigneur Jésus-Christ”.

Figura 32 - “Acorde do total cromático” usado em La Transfiguration.

39
Podemos observar na figura acima que Messiaen monta esse acorde a partir de duas
tétrades bastante conhecidas. A primeira (acorde inferior), seria um acorde de quarta e sexta
de [Mi] maior onde está subentendido a ressonância natural do [Mi] grave. Messiaen irá
dizer no Tratié que esse acorde, mesmo tendo o [Mi] grave subentendido e a força da terça
maior [sol#], não determinam a cor do conjunto. (MESSIAEN, 1949-1992 P.182). A sexta
ajuntada nesse acorde [dó natural] faz parte da ressonância natural, afirma Messiaen. Já o
acorde superior se trata de um acorde de sexta de [Mib] menor com a nona ajuntada onde o
[Sib] ou [Lá#] pode ser subentendido como o 11ª harmônico da ressonância natural do [Mi]
grave.
Temos aqui o que seria a ‘matriz harmônica’ do “Acorde do total cromático”,
faltando apenas os quatro sons suplementares agudos que reentram na ressonância dos oito
primeiros [Ré, Dó#, Sol e Lá]. Estes sons suplementares são tratados por Messiaen como
harmônicos secundários, o que justifica sua aparição por último no conjunto.
Igualmente ao “Acorde de ressonâncias contraídas”, Messiaen irá propor também ao
do total cromático, uma série de 12 transposições, o que dará um quadro com doze cores
diferentes deste acorde. O exemplo acima se trata da nona transposição do “Acorde do total
cromático”, o qual Messiaen define em cores da seguinte maneira: duas zonas vermelhas
lado a lado, uma grande zona vermelha rubi, uma zona vermelha carmin e, em menores
proporções, as quatro notas suplementares todas juntas em volta de um circulo azul
cinzento, claro e brilhante. (MESSIAEN, 1949-1992 P.182).

40
Figura 33 - O desdobramento do “Acorde do total cromático” na quinta peça de La Transfiguration de Notre
Seigneur Jésus-Christ.

41
Na figura acima, de Transfiguration, fica claro o porquê de Messiaen não considerar esse
acorde como um cluster, pois é evidente seu agenciamento e controle na condução das
vozes do coro e do grupo instrumental. Podemos ver ainda os oito sons coloridos
distribuídos entre o coro e as cordas e, por fim, o piano solo no papel de articular os quatro
sons suplementares [Ré, Dó#, Lá, Sol] do total cromático no registro superagudo como
mostra a seta.
Para concluir, valeria ressaltar sobre a etimologia do “Acorde do total cromático”.
Messiaen, no Tratié, nos revela sua surpresa ao se deparar com a Sinfonia em Sol menor
(K. 550) de Mozart, principalmente com o trecho final desta obra, para ele revolucionária.
O que chamou a atenção de Messiaen nesta Sinfonia foi o fato de que esse “Acorde do
total cromático” pode ser visto já no final desta sinfonia, não de forma explícita, mas
contendo toda a gama cromática. O mais extraordinário desta passagem de Mozart não é a
terça maior e a terça menor [Ré e Réb], afirma Messiaen, mas o que se segue, pois a
audição deste trecho não o deixava com dúvidas quanto à presença desta ‘outra
sonoridade’.

Figura 34 - Trecho cromático no final da Sinfonia em Sol menor (K. 550) de Mozart.

42
Capítulo II - O uso de “matriz harmônica” como princípio
composicional

A ideia de “matriz”41 ou “matriz harmônica” já foi discutida por um grande número


de autores no decorrer do século XX. Este princípio matricial teria origem, sobretudo, na
música serial onde a estrutura da obra tinha como referência uma ‘matriz’ primeira, ou seja,
a série dodecafônica de Schoenberg propriamente dita. O que acabou interressando à
história da análise musical recente são os resultados nascidos de cada um dos métodos que
se valeu da ideia de matrizes. Poderíamos destacar aqueles que envolveram leitura
numérica e que permitiram a localização de tal forma de pensamento como, por exemplo, o
trabalho de Allan Forte42. Tal pensamento tende a favorecer mecanismos de geração de
famílias de notas e intervalos a partir de uma matriz primeira. Outro mecanismo relevante
de geração de notas seria as multiplicações de acordes43 criado por Pierre Boulez no início
dos anos de 1950. Boulez, diferentemente de Schoenberg, que dava à série um caráter mais
temático, fez desta um conjunto de pequenos blocos44 proveniente do agrupamento vertical
da série os quais, num segundo momento, são multiplicados um pelos outros. Com isso, a
série original de Boulez se expande em blocos de sons mantendo, desta forma, uma
estrutura intervalar comum a todos eles. No entanto, daremos aqui prioridade aos
mecanismos que estão relacionados diretamente ao processo de compositores como Boulez,
Varèse, Berio e outros.

41
Cabe esclarecer novamente que, no presente trabalho, abordarei duas palavras muito próximas: matriz e
matiz. A primeira trata-se da escolha de um “bloco harmônico” de características intervalares específicas que
sirva de modelo sonoro para uma obra musical. Matiz, por sua vez, seriam as gradações de sonoridades que a
“matriz harmônica” inicial sofre no decorrer da obra.
42
FORTE, A. The Structure of Atonal Music. New Haven, Yale University Press, 1973.
43
BOULEZ, P. A Música Hoje. São Paulo, Perspectiva, 1986. Ver também em Menezes, Flo. Música
Maximalista São Paulo, Edirora UNESP 2006.
44
Segundo Federico Monjeau em seu livro, La Invención Musical, uma série de 12 sons é dividida em cinco
grupos, um de quatro sons, outro de três, dois de dois e outro de um som. Este tipo de agrupamento da série
em Boulez pode ser encontrado em sua obra, Le Marteau sans maître de 1955.

43
O século XX nos legou uma série de especulações harmônicas onde os
compositores, na busca de uma nova alternativa de estruturação frente ao saturamento do
sistema tonal, optaram, em alguns casos, pelo uso desse mecanismo matricial-harmônico de
características intervalares específicas, e porque não dizer timbrísticas. Recordemos aqui,
por exemplo, o acorde onipresente [dó-sol#-si-mi-lá] em Farben (“cores”), de Schoenberg,
como uma das primeiras tentativas de estruturação harmônica a partir de um “acorde”
modelo. Ou ainda a figura emblemática do compositor Russo Aleksandr Skryabin (1872-
1915) que, ao elaborar seu “acorde místico”, usado em sua obra Prometheus (1910) para
piano, orquestra, órgão e coros, inaugura uma das primeiras construções harmônicas por
sobreposição de quartas usada sistematicamente na história da música ocidental.
Derivações deste “acorde místico” ainda podem ser encontradas nas obras para piano como
a Sonata nº7, nº8 e em Vers la flamme, esta última de 191445.

Figura 35 - “Acorde místico” e seus desdobramentos na obra de Skryabin.

Por outro lado, encontramos uma sonoridade harmônica bastante característica, porém
distinta, em compositores como Edgard Varèse, Pierre Boulez e Luciano Berio 46 que, em
um dado momento de suas obras, fizeram uso de um material harmônico de base
conferindo a essas uma sonoridade bastante particular. No caso de Varèse, podemos
encontrar, sobretudo, nas obras da década de vinte, recorrências de “blocos” em que a
permanência dos componentes intervalares gerava uma espécie de ‘entidade sonora’ que
circunscrevia todas as etapas da obra. Ao analisar obras como Intégrales (1923-24),
Octandre (1923) e Hyperprism (1922-23), fica evidente não apenas este aspecto sonoro
45
GROUT, D. J./ PALISCA, C. História da Música Ocidental. 1988, Gradiva.
46
A escolha destes três compositores se deve, sobretudo, ao fato de termos abordagens distintas quanto ao uso
de estruturas ou “matrizes harmônicas” como material básico de uma obra. Por outro lado, esta escolha revela
também a capacidade que tal processo matricial tem de agregar diferentes pontos de vista quanto ao manejo
harmônico dentro do processo composicional reforçando, assim, sua profícua diversidade sonora.

44
característico, bem como a predileção intervalar dada por Varèse a esses “blocos”,
sobretudo, intervalos de sétimas, segundas e nonas. Segundo Boulez, encontramos em
Varèse uma “constante preocupação com a eficiência dos acordes que se tornam objetos; a
função dos acordes não é mais tradicionalmente harmônica e ela aparece como valor de um
corpo sonoro, calculado em função dos harmônicos naturais, das ressonâncias inferiores e
diversas tensões necessárias à vitalidade do corpo sonoro” (BOULEZ, 1995, p. 202).
Contudo, não podemos afirmar ainda que Varèse pré-determinava esses blocos ou
“matrizes harmônicas” antes de iniciar a composição da obra propriamente dita, mas estas
‘matrizes’ se dão no decorrer da construção da própria obra. O que nos parece ser um ato
prévio seria a composição intervalar destes ‘blocos’, haja vista sua vasta incidência em suas
obras. Ou seja, existe em Varèse um vocabulário harmônico e intervalar particular cuja
escolha está diretamente ligada à composição do próprio som e também para o grau de
estabilidade ou instabilidade desejado por ele em seus “blocos sonoros”.
Além disso, usaremos como referência o trabalho do compositor e teórico
americano Larry Stempel que em muitos de seus artigos não descartou a presença
de possíveis “matrizes harmônicas” em obras de Varèse.
Boulez, por sua vez, fez uso sistemático de uma “matriz harmônica” em algumas de
suas obras. Em Rèpons (1981-1984), por exemplo, para seis solistas, 24 instrumentistas e
processamento em tempo real, Boulez parte de uma “matriz harmônica” de base composta
por sete notas para gerar os acordes a serem tocados pelos solistas nas suas respectivas
entradas. Berio, em Sinfonia (1968-1969), também fez uso da permanência de um “acorde”
básico, [Dó-Mib-Sol-Si], que no desenrolar do primeiro movimento impõe sua “cor” e
sonoridade característica, estabelecendo assim uma unidade harmônica e sonora para a
obra.

Figura 36 - “Matriz harmônica” em Rèpons de Boulez.

45
Não poderíamos deixar de mencionar neste capítulo o trabalho do compositor
brasileiro Flo Menezes, tão relevante para o presente estudo. Menezes, ao longo de sua
carreira tem se dedicado à pesquisa de novas “entidades harmônicas” e “arquétipos
harmônicos” em suas composições e escritos teóricos. Em seus livros Apoteose de
Schoenberg (Tratado sobre as Entidades harmônicas) e Música Maximalista, Menezes não
apenas aborda novas construções harmônicas em clássicos do século XX, bem como revela
seus procedimentos composicionais em obras como Apologia dos arquétipos (1984) para
contrabaixo e piano e TransFormantes I (1983) para orquestra de cordas e piano. Nesta
última, observa-se a permanecia de uma “entidade harmônica”47 de base, a qual percorre
todas as etapas da construção harmônica da obra48.
Contudo, exemplificaremos no decorrer deste capítulo alguns destes aspectos
citados acima, sobretudo, como Varèse, Berio, Menezes e Boulez lidam com a presença
constante de uma “matriz sonora” em suas respectivas obras.

1. A “Matriz” serial
Structures Ia de Pierre Boulez

A reiteração contínua de uma unidade musical, como foi o caso da série de


Schoenberg no dodecafonismo49, se tornou um recurso indispensável para a nova música do
século XX que não contava mais com o sistema tonal agindo como polo referencial para a
toda macro estrutura da obra. A série como entidade abstrata e onipresente desempenhou
naquele momento um papel primordial para Schoenberg e seus discípulos dando a eles um
suporte maior em termos de organização do material por este novo território ausente agora
das funções tonais. André Boucourechliev, em seu livro A linguagem Musical, irá dizer
que o dodecafonismo: “antes de ser um sistema coerente de composição, a série surge como

47
Por entidade harmônica entende-se uma agregação intervalar (horizontal ou vertical, ou ambas ao mesmo
tempo) de mais de dois elementos (notas, frequências), a qual institui alguma singularidade constitutiva do
ponto de vista de sua saturação (ou de sua estrutura harmônico - intervalar). (Menezes, 2006, pp. 32-33)
48
Apoteose de Schoenberg 2º edição Ateliê Editorial 2002 São Paulo. Música Maximalista. 2006, Editora
UNESP São Paulo.
49
O dodecafonismo propriamente dito tem início em sua forma “estrita” na obra para piano Fünf Klavierstuck
Op. 23 de Schoenberg em 1923.

46
um sistema de oposição a toda a nostalgia da tonalidade (a começar pela do próprio
Schoenberg que, aliás, ele nunca suprimiu totalmente...).” (BOUCOURECHLIEV, 1993, p.
34). Por outro lado, o dodecafonismo nos legou ferramentas composicionais e um
pensamento estrutural focado, sobretudo, em novas possibilidades de agenciamento das
alturas a partir de uma unidade básica, configurando assim uma alternativa composicional
para as próximas gerações.

“A ideia mais importante do método de Schoenberg não é a dodecafônica em si, se não os


conceitos adjacentes a ela de permutação, simetria e complementariedade por inversão, invariação na
transformação, construção de agregados, sistemas fechados, propriedades vizinhas como
determinantes compositivos, transformações de superfícies musicais mediante operações pré-
definidas etc. Em cada uma destas ideias ou em conjunção com muitas outras se centra, com
distintos graus de intensidade, a música de compositores tão diferentes entre si como Bartók,
Stravinsky, Schoenberg, Berg, Webern, Varèse etc.” (PERLE, 2006, p. 13) 50

Posteriormente, os mecanismos de manipulação com a série se expandem para além das


alturas, acumulando desta forma um alto grau de complexidade ao agregá-los aos outros
parâmetros da música. No serialismo do pós-guerra encabeçado por Boulez: “a série de
alturas continuou reinando, porém mais violentamente que antes: agora todos os
'desenvolvimentos' derivam de uma matriz que, por sua vez, é derivada de uma série de
alturas” (MONJEAU, 2004, p.83). Vale esclarecer que esses “desenvolvimentos”
mencionados por Monjeau acima, não apenas fazem referência ao controle das alturas, mas,
sobretudo, sua aplicação a outros parâmetros da música como, modos de ataque,
articulação, ritmo, e intensidade, o que é próprio do serialismo integral do pós-guerra. Ou
seja, através desta alta organização de todos os parâmetros musicais, o serialismo integral
almejou uma maior coerência a partir da relação mútua de tais parâmetros.
Boulez, na Structures I (1952) para dois pianos, a série de alturas, durações, ataques
e intensidades foram submetidas a um rigor extremo de organização. Tal organização
paramétrica usada por Boulez teve como base a série de alturas usada por Oliver Messiaen

50
PERLE, G. Composición Serial y Atonalidad (Una introducción a la música de Schönberg, Berg y Webern).
2006 Idea Books, Barcelona Espanha.

47
em Mode de Valeurs et d´intensités (1949). Tomemos como referência a análise de György
Ligeti51 e de Federico Monjeau52 de Structures I.
Monjeau, em seu livro La invención Musical, refere-se a esta obra de Messiaen
como sendo a via de acesso ao serialismo integral de Boulez. Segundo Monjeau, Messiaen
em Mode de Valeurs et d´intensités: postulava três modos melódicos de doze notas (cada
um em um registro diferente do piano), três séries de durações (uma para cada modo
melódico), doze modos de ataque e uma tabela de sete intensidades. Mas esta genealogia
não é de todo modo natural. Vale mencionar ainda que as séries em Messiaen comportam-
se mais como uma entidade sonora fixa no desenrolar da obra do que propriamente um
dispositivo que sirva para engendrar novas séries como encontramos em Boulez.

Figura 37 - Série usada por Messiaen em Mode de Valeurs et d´intensités e por Boulez em Structures I.

Em Structures I, Boulez, a partir da série original usada por Messiaen, elabora uma matriz
numérica na qual tanto a primeira fila como a primeira coluna se encontra a série original.
Deste modo, Boulez obtém todas as possibilidades de transposição sobre os graus
consecutivos da série. Por exemplo, a série O2 se inicia com as notas 2, 8, 4, 5..., ou seja,
Ré, Dó#, Sol#, Sol... , onde é mantida a ordem intervalar da série original e assim se segue
consecutivamente por todos os graus da série original. Deste modo, chegamos à seguinte
matriz:

51
LIGETI, G. Neuf Essais Sur La Musique. Éditions Contrechamps, 2001. (pp. 89-126).
52
MONJEAU, F. La Invención Musical. Editorial Paidós SAICF, Buenos Aires 2004, pp. 78-83.

48
Figura 38 - Matriz I a partir da série original, O1.

Similarmente ao dodecafonismo de Schoenberg, Boulez realiza a série original em espelho


de maneira que os intervalos descendentes se voltam ascendentes e vice-versa, obtendo-se
assim a série invertida:

Figura 39 - Série invertida, I1.

Usando novamente o mesmo raciocínio aplicado na série original acima, obtemos uma
segunda matriz numérica:

Figura 40 - Matriz II invertida, I1.


A partir destas duas matrizes numéricas elaboradas a partir da série original (O1) e
invertida (I1), Boulez estabelece algumas diretrizes, afirma Monjeau: as linhas paralelas

49
proporcionam as séries de alturas e durações, e as diagonais (que não chegam a constituir
séries de doze elementos) se relacionam com as sequências de valores, intensidade e modos
de ataques. O fato de termos um número para cada elemento das distintas séries facilita
nosso entendimento quando esses são reconduzidos a valores musicais. Por exemplo, o
número 3 na série original representa a nota [Lá] que, por sua vez, representa na série de
durações a semicolcheia pontuada PP na série de intensidades e staccato em uma tabela de
dez articulações e modos de ataque.

Figura 41 - Representação das séries de durações, intensidades e modos de ataques e como cada uma delas se
relaciona numericamente com a série de alturas original O1.

Matriz A O1 Matriz B I1

c c d
d

a b

Figura 42 - Sequências de intensidades destacadas na diagonal em azul na matriz O1 e na matriz I1 em verde.

50
A partir das duas matrizes acima obtemos quatro grupos de valores de intensidades:
A (azul claro): 12 7 7 11 11 5 5 11 11 7 7 12
ffff mf mf fff fff quasi p quasi p fff fff*53 mf mf ffff

B (verde claro): 5 2 2 8 8 12 12 8 8 2 2 5
quasi p ppp ppp quasi f quasi f ffff* ffff* quasi f quasi f ppp ppp quase p

C (azul escuro): 2 3 1 6 9 7 7 9 6 1 3 2
ppp pp pppp mp f mf mf f mp pppp pp ppp

D (verde escuro): 7 3 1 9 6 2 2 6 9 1 3 7
mf pp pppp f mf ppp ppp mf f pppp pp mf

Para um maior esclarecimento a respeito desta automatização dos parâmetros


musicais aplicada por Boulez em Structures Ia, vejamos como se dá a distribuição das
séries na primeira página da obra (Fig.43): de início, o piano I apresenta a série original de
alturas O1 (1, 2, 3...) enquanto que o piano II se encarrega de apresentar a série invertida
I1(1, 7, 3, 10, 12...); quanto ao ritmo, o piano I apresenta uma série de durações
provenientes da matriz invertida, RI5, ou seja, o retrogrado da inversão a partir da quinta
nota da série (12, 11, 9, 10,...); figura 42, primeira fila de baixo para cima, lida da direita
para esquerda na matriz B da série I1. Por sua vez, o piano II, em um movimento simétrico,
apresenta respectivamente a série proveniente da matriz original em sua forma retrogradada
(matriz (O1), lida de baixo para cima e da direita para a esquerda, 5, 8, 6... etc.). Por fim, as
intensidades transcorrem em ffff no piano I obedecendo ao primeiro valor (12) da diagonal
principal da matriz original (O1), (Fig. 42, tabela A) e o piano II, em quasi piano realiza o
valor (5) referente ao primeiro número da diagonal respectiva da matriz invertida (I 1), (Fig.
42, matriz B).

53
Ligeti em seu artigo, Décision et Automatisme dans la Structures Ia, observa uma constante divergência no
uso destas intensidades, pois há casos onde ele encontra ff no lugar de fff e fff no lugar de ffff. (Ligeti, 2001, p.
97).

51
Figura 43 - Primeira página de Structures IA, compassos 1-7, onde é possível observar a distribuição
simultânea da série original (O1), piano I, e a série invertida (I1), piano II.

52
O1 I1

Figura 44 - Sequências em destaque de modos de ataque na matriz O1 e I1.

Quanto ao plano das articulações, Ligeti nos atenta para o fato de que as diagonais usadas
para a ordenação dos modos de ataque, não incluem na primeira parte da obra, os números
‘4’ e ‘10’. Ou seja, no lugar de uma série de 12 modos de ataque temos uma série de 10: (1,
2, 3, 5, 6, 7, 8, 9, 11, 12). Deste modo, temos na primeira página de Structures Ia o piano I
em legato, referente ao primeiro valor (12) da diagonal principal da matriz invertida,
enquanto que o piano II, corresponde ao valor (5 “normal”) da diagonal respectiva da
matriz original.
Evidenciamos nesta breve explanação sobre Structures Ia de Boulez uma total
“matematização do processo composicional”54, fruto não apenas de uma época marcada pela
busca de novos mecanismos de estruturação musical, mas, e, sobretudo, da necessidade de
Boulez, naquele momento, em pensar a organização do material sonoro via processos
matemáticos que pudessem garantir a interdependência através da automatização dos
parâmetros musicais e, com isso, assegurar uma maior coerência. Ou seja, ao submeter à
série a várias transformações geométricas, expressadas através de matrizes como vimos
acima, Boulez não só encontrou um mecanismo de automatização de tais parâmetros
musicas, bem como, uma coerência interna ao material de base. E essa coerência é
garantida, sobretudo, porque os segmentos da figura transformada, no nosso caso, a série, é

54
Ver em Galante, D. Le Matrici come espressione delle isometrie nel procedimento compositivo di Pierre
Boulez: la serialità integrale in Estructura I per pianoforti. G. R. I. M. Departament of Mathematics,
University of Palermo, Itália. “Quaderni di Ricerca in Didattica” nº16, 2006. Disponível em:
<http://math.unipa.it/~grim/quad16_galante_06.pdf>. Acesso em: 28 de Nov.2007.

53
sempre geometricamente igual aos da figura original. Há neste caso uma ‘isometria’ 55 no
processo composicional, estabelecendo assim um princípio unificador interno de simetria
entre as transformações das séries.

“Quando se estuda, sobre as novas estruturas (do pensamento lógico, da matemática,


da teoria física...), o pensamento dos matemáticos ou dos físicos de nossa época, mede-
se, seguramente, o imenso caminho que os músicos devem ainda percorrer antes de
chegar à coesão de uma síntese geral. Nossos métodos empíricos, aliás, não favorecem
absolutamente um caminho coletivo que conduza a esta síntese”. (BOULEZ, 1986, p.27).

Notamos, portanto, que Structures Ia além de configurar um novo modelo de


ação estrutural em música através do seu serialismo integral, trouxe ao universo
composicional uma adequação de processos matemáticos agindo e agenciando
diretamente as estruturas de base estabelecidas pelo compositor. Por outro lado,
sabemos que esse automatismo extremo de Structures Ia de Boulez, tão criticado
por Ligeti e Xenakis 56 , não demoraria a evoluir segundo Monjeau para formas
menos esquemáticas e musicalmente mais genuínas sem, é claro, abandonar o
conceito de “parametrização” como é o caso de Le Marteau sans Maître (1955).

“Podemos dizer que os serialistas não inventaram arbitrariamente a matematização da


música, mas confirmaram um desenvolvimento que Max Weber, na sua sociologia da
música, identificou como a tendência dominante da mais recente história musical: a
progressiva racionalização da música. Ela alcança sua realização na construção integral.”
(ADORNO, 1964, p.657) 57 .

Vale mencionar que essas matrizes em Boulez desempenham outro papel


importante para ele que é de criar uma espécie de “reservatório de notas”, onde o
compositor tem a possibilidade de sacar uma infinidade de conjuntos de alturas.
Isso também demonstra o quanto seu processo composicional se valeu das relações
numéricas no intuito de estabelecer maior controle dos parâmetros musicais

55
Isometria é uma transformação geométrica que, aplicada a uma figura geométrica, mantém as distâncias
entre pontos. Ou seja, os segmentos da figura transformada são geometricamente iguais aos da figura original,
podendo variar a direcção e o sentido. Os ângulos mantêm também a sua amplitude.
56
Cf. Xenakis, “La crise de la musique sérielle”, em Baltensperger, 1995, pp. 595-597.
57
Essa citação de Theodor Adorno trata-se do seu texto “Dificultades para componer música”, que faz parte
de Impromptus: Serie de artículos musicales impresos de nuevo, trad. de Andrés Sánchez Pascual, Barcelona,
Laia 1985.

54
naquele momento. Recordando Varèse, diríamos que em Boulez encontramos um
“reservatório de notas” e no primeiro um reservatório de sons que no decorrer da
obra são submetidos a um constante processo de deformação. Um típico exemplo
de deformação sonora em Varèse pode ser observado no tratamento que ele dá a
uma determinada estrutura harmônica ou “objeto-sonoro” no decorrer de uma obra.
Em Intégrales, por exemplo, a reiteração de um dado “objeto” é sempre marcada
por pequenas mutações na sua escritura original. Isso acarreta a cada articulação do
“objeto” numa nova transmutação de sua sonoridade inicial. A este respeito, o
compositor Silvio Ferraz em seu artigo Varèse: a composição por imagens sonoras,
ressalta que “o próprio modo do conceber o objeto e sua escritura já traz as
possibilidades de suas transmutações pela ação de diversos filtros espectrais
associados à simples ideia de um som composto por parciais” 58 . No exemplo abaixo
de Intégrales é possível ter uma ideia destas pequenas mutações na escritura de um
determinado “objeto-sonoro”.

Figura 45 - Deformação sonora nos compassos 36 e 38 de Intégrales.

2. Multiplicações e matrizes em Le Marteau sans Maître de


Pierre Boulez.

58
Ver mais sobre estratégias composicionais e sonoridades na obra de Varèse, em Ferraz, 2002, Varèse: a
composição por imagens sonoras. Músicahoje, 8.

55
Veremos agora como Boulez expande a noção de matrizes fazendo com que
elas, não apenas estabeleçam novas séries como vimos em Structures I, mas séries
que engendrarão complexos harmônicos. Ou seja, séries que se organizam
verticalmente e com “densidades variáveis” 59 para, em seguida, serem
multiplicadas, umas pelas outras, gerando assim novos complexos harmônicos.
Temos aqui as Multiplicações de acordes 60 que Boulez colocaria em prática em sua
obra Le Marteau sans Maître (1953-1955) para contralto e seis instrumentos.
Flo Menezes, em Apoteose de schoenberg, observa que: “a técnica das
multiplicações não necessita, a rigor, de ser utilizada inequivocamente como
técnica exclusivamente acórdica” (MENEZES, 2002, p.415). Menezes está se
referindo ao fato de que em Le Marteau, Boulez também usa os aglomerados
harmônicos gerados, a partir de tais multiplicações, de forma melódica pela flauta.
A série de “densidades variáveis” mencionada acima se refere a uma nova
maneira que Boulez encontrou de organizar uma série de alturas em pequenos
blocos. Segundo Lev koblyakov, em seu livro Pierre Boulez: A World of
harmony 61 , Boulez divide a série em grupos de frequências ou blocos, aplicando a
ela a seguinte proporção: 24213. Cada elemento deste corresponde ao número de
sons existente em cada grupo. Não bastando, Boulez submete aos grupos uma
espécie de “rotação” ou permutação circular de modo que a próxima sequência tem
início sempre a partir do segundo elemento, por exemplo: a primeira “rotação” da
série [24213] seria [42132] e assim por diante, até produzir cinco derivações da
série.

59
MONJEAU, 2004, p. 83.
60
Sobre multiplicação de acordes ver, em Boulez, A Música Hoje. Perspectiva, Coleção Debates, 3ª edição
1985, pp. 78-79.
61
KOBLYAKOV, L. Pierre Boulez: A World of harmony. 1990 New York: Harwood Academic
Publishers.

56
a b c d e

Figura 46 - Divisão da série em cinco grupos usada no primeiro ciclo de Le Marteau.

A multiplicação por sua vez consiste em transpor as relações intervalares de


um grupo aos graus de outro, assim novos grupos serão produzidos. Segundo
Koblyakov ao multiplicarmos todas as possibilidades de combinação dos cinco
grupos [aa, ab, ac, ad, ae, ba, bb,... etc.,] teremos um total de vinte cinco novos
grupos, ou seja, vinte cinco novos blocos harmônicos configurando, assim, um
verdadeiro “reservatório de notas”.

Figura 47 - Matriz do total de possibilidades de multiplicação dos grupos da série.

ba

Figura 48 - Multiplicação do Grupo ‘b’ x ‘a’ resultando um complexo sonoro (ba) de sete notas.

Temos na figura acima um pequeno esboço do processo de multiplicação de


dois grupos ou blocos de características intervalares distintas. O processo consiste
em transferir, neste caso, os componentes intervalares do grupo ‘b’ para o grupo
‘a’. Ou seja, inserimos as sequências intervalares de ‘b’ [3M, 6M e 2M], sobre os

57
graus do grupo ‘a’ a partir de cada nota que o compõe, (Fig. 48), segundo
compasso. Uma vantagem desta técnica bouleziana é que ela possibilita estabelecer
uma rede harmônica através de uma unidade intervalar comum que se propaga por
todos os blocos durante as multiplicações.
O resultado final da multiplicação na figura 48 acima foi um bloco sonoro de
sete notas. Em princípio, teríamos que ter um complexo de oito notas, já que os
componentes correspondentes aos blocos eram de quatro sons e dois sons, ou seja,
4 x 2. Por tanto, temos aqui um aspecto bastante recorrente à técnica de
multiplicações de acordes de Boulez, que é o surgimento de notas comuns durante
o processo. Koblyakov comenta a este respeito que, quando dividida a série em
cinco grupos, como é o caso do primeiro ciclo de le marteau, o número de sons de
uma multiplicação não proporcionará um complexo sonoro com mais de dez sons 62 .
Em nossa figura 48 tivemos a nota [Si] comum aos dois blocos iniciais.

Figura 49 - Matriz de multiplicações construída a partir da série original usada no primeiro ciclo
de Le marteau 63 .

62
Ver os diagramas de todas as multiplicações do primeiro ciclo de Le Marteau em Koblyakov. Pierre
Boulez: A World of harmony, pp. 137-138.

58
Na figura 49 temos uma matriz construída a partir da série original (primeira
fila), onde as demais filas seriam uma transposição da série original com suas
respectivas multiplicações. O interessante aqui é observar a realização musical dos
blocos resultantes do processo de multiplicação. Ao compararmos o início de L’
Artisanat Furieux (terceiro movimento de Le Marteau), com a segunda fila da
matriz [ba, bb, bc, bd, be], constatamos que cada compasso contém um subgrupo
comum (uma transposição da multiplicação do grupo ‘b’) e que, Boulez, ao
transcrevê-los para o solo da flauta, mantém a mesma ordem em que eles aparecem
na matriz de multiplicação e praticamente mantém os mesmos registros, (Fig. 50).
Isto confirma que esta técnica de Boulez não é uma “técnica exclusivamente
acórdica” como bem mencionou Flo Menezes, mas uma técnica que possibilita criar
“campos harmônicos” amalgamados por relações internas comuns, bem como
estruturas musicais passíveis de agenciamento vertical e horizontalmente.

[ ba ] [ bb ] [ bc ] [ bd ]

[ be ]

Figura 50 - Trecho inicial de L’ Artisanat Furieux de Le Marteau, compassos 1-5, flauta


em sol soa uma quarta justa abaixo.

Notemos, para terminar com as multiplicações de acordes, que Boulez mais


uma vez tem a preocupação de estabelecer relações internas ao material como
63
Exemplo construído a partir do diagrama de Koblyakov, onde ele demonstra todas as multiplicações usadas
por Boulez no primeiro ciclo de Le Marteau, pp. 137-138.

59
vimos nas várias transformações simétricas da série em Structures I. No caso das
multiplicações, temos um isomorfismo nos blocos, ou “objetos isomórficos” para
usar um termo de Boulez que, ao fim do processo de multiplicação assegura
relações intervalares comuns. Ou seja, existe sempre uma correspondência
intervalar no produto final. Recordemos aqui a figura 49 acima e veremos que
todos os blocos em ‘b’ [ba, bb, bc, bd, be] terão a estrutura ‘b’comum a todos eles.
Contudo, esta breve exposição reflete bem o pensamento bouleziano e a sua
total atenção às consequências que tais mecanismos exercem na estrutura interna da
obra. Compreende-se assim: “a importância que existe em encontrar métodos de
engendramento que criem redes de relações privilegiadas entre os objetos que elas
suscitam” (BOULEZ, 1986, p. 79).

3. A “matriz harmônica” como princípio composicional.

Um dos objetivos deste capítulo, e talvez o mais importante dele, seria o de


suscitar o interesse por mecanismos próprios de agenciamento de uma dada
‘estrutura harmônico’ dentro do processo composicional. Direcionar tais
mecanismos para criação de novos “campos harmônicos” 64 , onde o próprio
compositor crie suas relações internas e “funcionais” de acordo com as
necessidades de cada obra e, sobretudo, de acordo com as características intrínsecas
presente no material harmônico inicial. Essa possível “nova funcionalidade
harmônica” é identificada por Flo Menezes como uma variação contextual de uma
dada “entidade harmônica”. Menezes comenta que: “ao constituir em si mesma a
nova trama referencial dos intervalos, a variável que antes, na era tonal, resumia-se
em alteração em relação à tríade, passa a constituir-se em variação contextual da
própria entidade harmônica”. (MENEZES, 2006, p.42).

64
A referência aqui a “campos harmônicos” trata-se de uma analogia ao sistema tonal onde encontramos dois
deles, o modo maior e menor, ambos com características distintas, porém, comungam das mesmas
hierarquias funcionais e da tríade como construção intervalar predominante. No caso da matriz harmônica,
não perdemos a possibilidade de constituir um ‘campo harmônico’, ele apenas figura-se numa maior
diversidade sonora, visto que suas propriedades intervalares são móveis.

60
Neste sentido, a técnica de multiplicações de acordes de Boulez que vimos
mais acima se mostrou como um bom exemplo, ou seja, a possibilidade de agenciar
uma gama bastante ampla de blocos sonoros, sendo que todos eles estarão ao fim de
cada processo conectados por redes intervalares comuns. Além do que, se pode
obter uma sonoridade característica para cada material harmônico, já que os
constituintes intervalares de cada matriz inicial podem ser diferentes a cada
processo de multiplicação, pois não se trata aqui de um sistema fechado ao modelo
triádico encontrado no sistema tonal, mas uma técnica móvel no que concerne às
relações intervalares.
Poderíamos ainda pensar a sonoridade, essa decorrente das especulações
com a matriz inicial, como uma espécie de “tonalidade”, onde as funções tonais
seriam agora substituídas por uma funcionalidade sonora, uma “cor”, previamente
estabelecida pelo compositor. Essa sonoridade inicial, por sua vez, estaria sujeita a
gradações no percurso da obra através de mecanismos de permutação de alturas,
filtros 65 , contração e expansão no registro dos constituintes intervalares etc. Assim,
não somente teríamos uma mudança no conteúdo harmônico inicial, mas uma
“modulação” de sonoridade, um novo território. Enfim, deseja-se aqui suscitar as
possíveis gradações do objeto inicial sem necessariamente se ater a uma condução
linear do mesmo, mas na tentativa de articular a sonoridade como se esculpíssemos
o Som a exemplo de Varèse.

“A ação da música não é só de viver e percorrer o território, é também a de desfazer o


território, de tirar o giro do seu centro e lançá-lo sabe-se lá onde”. (FERRAZ, 2005, p.84).

3.1 “Matrizes harmônicas” em Edgard Varèse


Compositor de extrema singularidade, não somente pelo tratamento dado ao
material sonoro-harmônico, mas, e, sobretudo, pelo seu empenho durante a
primeira metade do século XX em trazer para a música de concerto

65
Ver os filtros das alturas de Brian Ferneyhough, em Menezes 2002, pp. 425-428 e em Ferraz 1998, p. 227,
nota de rodapé.

61
questionamentos quanto ao uso de novos instrumentos 66 , do ruído como material
musical, do não temperamento via instrumentos de percussão, bem como do seu
pioneirismo no uso de recursos eletrônicos para a nova música. Além disso, Varèse
extrapolou o conceito de forma em música ao pensá-la como resultante de um
processo onde um determinado material de base era submetido a contínuas
transmutações no decorrer da obra. Sua obstinada preocupação quanto à projeção
do som no espaço o fez levar em conta também aspectos acústicos do som através
da correlação entre os harmônicos de um determinado bloco sonoro na busca por
uma maior ou menor instabilidade do mesmo 67 .
Seguimos na tentativa de trazer à tona não apenas às características do
vocabulário harmônico vareseano, mas também apontar os possíveis modelos ou
matrizes harmônicas que deram ao seu vocabulário um caráter sui generis em meio
à explosão do Neoclassicismo stravinskyano e do serialismo vienense das primeiras
décadas do século XX com Schoenberg, Webern e Berg.
Um dos autores a abordar essa ideia de ‘matrizes’ na obra de Varèse é o
compositor e teórico americano Larry Stempel. Stempel, em seu artigo Not even
Varese can Be Orphan 68 , aponta os primeiros indícios do que viria a ser uma das
características do vocabulário harmônico vareseano, bem como seus modelos de
“construção em blocos” fundamentados em uma matriz harmônica. Stempel busca
estes primeiros indícios na obra para voz e piano, Um grand sommeil noir 69 , de
1906, onde se pode observar uma significativa influência de Debussy. Nela Stempel
destaca a sonoridade do último bloco (terceiro compasso, figura 51) cuja
construção intervalar em segunda menor, trítono e quarta justa ou quinta justa,

66
Ver mais no texto de Edgard Varèse, Novos Instrumentos e nova música, traduzido por Flo Menezes no
livro, Música Eletroacústica História & Estéticas, Endusp – Editora da Universidade de São Paulo 1996, pp.
57-58.
67
Cf. TREMBLAY, G. Acoustique et Forme Chez Varèse. Mâche, François-Bernard (dir). VARÈSE: vingt
ans aprés. La Revue Musical, Editions Richard-Masse. Paris, 1985.
68
STEMPEL, L. “Not Even Varese Can Be an Orphan,” The Musical Quarterly 60, 1 (1974): pp.46-60
69
Segundo Gilberto Assis de Oliveira, em sua dissertação, Edgard Varèse: A busca pela liberação do som,
PUC/SP 2000, esta obra para voz e piano de Varèse teria sido reconstituída por Chou Wen-Chung. Isso se
deve também ao fato de que boa parte da obra de Varèse até 1912 ter sido destruída por um incêndio no
período em que o compositor viveu em Berlim por volta de 1913.

62
[Sib-Dób-Fá]. antecipam o conteúdo de uma das primeiras “construção em blocos”
(building blocks) encontrada no vocabulário vareseano, afirma Stempel.

Figura 51 - Início de Um grand sommeil noir de 1906, para voz e piano de Varèse.

Tal construção pode ser observada anos depois no início de Arcana, obra para
grande orquestra que Varèse concluiu em 1927. Em Arcana temos a repetição do
mesmo bloco intervalar [Mi-Sib-Lá] cuja relação de segunda menor, trítono e
quarta justa são permutadas e deslocadas em oitavas como mostra a figura abaixo.

Figura 52 - A ‘matriz’ no início de Arcana de 1927.

Stempel aponta ainda como uma possível antecipação desta ‘matriz’


vareseana em Debussy, mais precisamente em sua canção L’ Ombre des arbres de
1888. Stempel observa que a tal construção intervalar vista em Um grand sommeil
noir de Varèse já se manifestava em Debussy onde o bloco vareseano [Sib-Dób-Fá]
é precisamente uma inarmonia com [Lá#-Si-Mi#] encontrado em L’ Ombre (Fig.
53). Neste pequeno trecho de L’ Ombre, essa relação intervalar não é articulada
verticalmente como vimos em Varèse, aqui ela se dá espaçadamente e em registros
diferentes. Nela, além do bloco [Lá#-Si-Mi#], se observa também o bloco [Mi#-Mi-
Si] e, em registros separados, a voz do baixo com a voz registro médio articulam

63
outra transposição da matriz vareseana, [Dó#-Sol#-Ré]. Essa diferença na maneira
de articular a matriz intervalar não impede de ouvirmos tal sonoridade encontrada
no bloco vareseano e tampouco de termos dúvidas quanto à influência que Debussy
exerceu no primeiro Varèse, mesmo quando esse afirma sua maior preferência
pelos escritores, pintores e físicos de sua época do que propriamente de músicos 70 .

Figura 53 - Trecho de L’ Ombre des arbres de Debussy.

Para Stempel, essa construção intervalar em Debussy seria fruto da


conjunção dos componentes intervalares da matriz [Sib-Dób-Fá] e mais sua
transposição que, quando sobrepostas, se estabelece um seguimento escalar
octatônico 71 . Vale mencionar que, no caso de Varèse, tal escala não se fez presente
em seu vocabulário a não ser em alguns poucos trechos de Amériques de 1920.

Figura 54 - Material harmônico - escalar em L’ Ombre des arbres de Debussy.


O que parece ser bastante relevante agora, é perceber os desdobramentos de
tal matriz intervalar apontadas por Stempel nas obras posteriores de Varèse,
70
CHAROBNNIER, G. Entretiens avec Edgard Varèse (Paris, 1970), p.25.
71
Em se tratando de Debussy, vale ressaltar que ele, em boa parte, não está pensando em escalas apenas, mas,
e, sobretudo, na possibilidade de construir sonoridades a partir de tais estruturas. O compositor Silvio Ferraz,
em uma de suas aulas sobre o assunto acrescenta que: “Para Debussy e Varèse, e o próprio Boulez, é
imensamente importante a disposição das notas na tessitura, as distâncias intervalares são importantes, e são
elas (guiando uma sonoridade) que acabam por fazer o ‘vitral’ do acorde posicionando-o como o compositor
imagina sua sonoridade e não apenas as notas”.

64
sobretudo, àquelas da década de vinte onde, de fato, temos a consolidação do léxico
harmônico vareseano.
Vale lembrar aqui que o compositor Didier Guigue, em seu artigo Varèse's
Hyperprism - A guide to pitch and timber analysis of wind instruments section72, aponta
quatro acordes ‘matrizes’ em Hyperprism, como mostra o exemplo abaixo. Guigue
comenta que os doze sons da escala cromática são divididos em quatro eixos de simetria de
sétima maior em terno das notas sib, dó#, mi e sol. É evidente que não se trata aqui do
mesmo acorde matricial apontado por Stempel, mas eles compartilham do mesmo
princípio.

Figura 55 - Acordes matrizes em Hyperprism.

Voltando à matriz mencionada por Stempel, poderíamos dizer que não é


difícil encontrar evidências de que Varèse faria dessa matriz um modelo harmônico
de grande relevância para seu vocabulário. Esse estrato intervalar da matriz de [2m,
4#, 4j ou 5j] 73 percorre várias de suas obras da década de vinte, dentre elas
destacamos Octandre (1923) para oito instrumentos, Intégrales (1923-25) para
onze instrumentos de sopro e percussão e Arcana (1926-27) para grande orquestra.
Nas figuras 57, 58 abaixo, de Octandre veremos não apenas a matriz
harmônica sendo aplicada, mas também o tratamento em rotação dos seus
constituintes intervalares [2m, 4# e 4j], o que possibilita a Varèse uma maior
variedade sonora a partir de uma matriz primeira. A ideia de rotação se dá quando
há projeções de uma determinada estrutura intervalar em registros diferentes e nas
suas respectivas inversões. Por exemplo, uma segunda menor sendo projetada em
uma sétima maior ou nona menor. Vejamos na figura abaixo a construção de uma
72
GUIGUE, D. Disponível em: <http://phillal.club.fr/PAGES/HPPM/Guigue/guigue.html>. Acesso em: 5
de Ago. 2007
73
As abreviações 2m = segunda menor, 4# = trítono, 4j = quarta justa e 5j = quinta justa.

65
série de blocos a partir de uma matriz harmônica usando apenas esse mecanismo de
rotação intervalar.

Figura 56 - Rotações intervalares da matriz original.

Seguimos com Octandre, onde temos na figura abaixo uma melodia iniciada
pelo oboé e seguida pela flauta e clarineta completando na cifra onze uma
transposição da matriz apontada por Stempel [Mi-Sib-Lá]. Por sua vez, o trompete
com o oboé e flauta, ainda na cifra onze, apresentam outra transposição da matriz,
sendo que neste caso, o intervalo de segunda menor presente na matriz original está
projetado em sétima maior [Láb-Sol-Dó#].

Figura 57 - Redução dos compassos 9-11 do primeiro movimento de Octandre, onde se observa a
ocorrência da “matriz” mencionada por Stempel.

Avançando ainda mais neste primeiro movimento de Octandre, encontramos outra


variante da matriz original fruto das rotações intervalares que mencionamos acima.
No compasso 19, o bloco [Sol-Dó-Fá#], tocado pelo contrabaixo, trombone e
trompete e retomado em uma nova transposição [Mi-Lá-Mib] na última seção deste
movimento (compasso 27), demonstra, sem dúvida, não apenas uma predileção de
Varèse por essas relações intervalares mencionadas por Stempel, mas, e, sobretudo,
nos coloca diante de uma sintaxe harmônica bastante singular deste compositor.
Varèse estabelece modelos ou matrizes harmônicas – intervalares que possibilitam
a ele um controle do “campo harmônico sonoro”, sendo que esse é ainda passivo de

66
gradações através de mecanismos como o de rotação que age diretamente na
disposição dos intervalos da matriz e consequentemente na sonoridade dos blocos.

Figura 58 - Uma segunda variante da matriz em Octandre, compassos 19-27.

É possível encontrar essa mesma matriz em obras da última fase de Varèse, como é
o caso de Déserts de 1950-54, para instrumentos de sopro, piano, percussão e três
interpolações de sons eletrônicos. Veremos outra operação muito comum em
Varèse que é a transferência de uma mesma estrutura para novos registros.
Jonathan Bernard, em seu artigo Pitch/Register in the music of Edgard Varèse 74 , irá
chamar tal procedimento de projeção. Na figura abaixo temos a estrutura [Sol#-Ré-
Lá] dos tímpanos no compasso 29 sendo duplicada, ou projetada, no compasso 30
pelos metais [Sib-Mi-Si]. Vale lembrar que essa estrutura apontada por Bernard se
trata da mesma matriz intervalar mencionada por Stempel mais acima.
Não é difícil encontrar tais projeções na obra de Varèse, pois a construção
de suas massas sonoras passa diretamente por tal variação do material sonoro. O
compositor brasileiro Paulo Zuben, em seu livro Ouvir o Som, nos atenta ainda que
além dos mecanismos de rotação e projeção Varèse “também utiliza procedimentos
específicos para a fissão de massas – simultaneidade de elementos divergentes – e
fusão intervalar – acordes inarmônicos que transformam a percepção de intervalos
dissonantes em escuta de aglomerados indivisíveis, isto é, em compostos
tímbricos” (ZUBEN, 2005, p. 98). Sobre a ideia de projeção, Varèse comenta:

74
BERNARD, J. Pitch/Register in the music of Edgard Varèse. Music Theory Spectrum, vol. 3
(Spring, 1981), pp.1-25.

67
“Eu procuro na projeção do som a qualidade de uma terceira dimensão, na qual, as
irradiações sonoras assemelhem-se aos raios de luz emitidos por um projetor... um
prolongamento, uma viagem no espaço”. (VARÈSE, 1983, p.89)

Metais

Tímpanos

Figura 59 - Projeção em Déserts, comp. 29-30.

Bernard, ainda em seu artigo, comenta que tais mecanismos de projeção e rotação
em Varèse ganham maior evidência através do timbre. Para Bernard, Varèse, além
de realizar uma combinação entre projeção e rotação de uma determinada estrutura
que se expande a outros registros, ele se vale ainda da modulação tímbrica para
enfatizar a troca de planos sonoros (Fig. 60) entre o bloco de madeiras e metais.
Neste caso, recordemos aqui que Varèse, em seu importante texto Novos
instrumentos e Nova Música 75 de 1936, já ressaltava a importância do timbre como
“elemento caracterizante” nas transmutações de suas massas sonoras. Para ele o
timbre era como as cores de um mapa geográfico que, ao separar distintas áreas, as
tornavam parte integrante da forma.
Se analisarmos com mais detalhe os blocos harmônicos abaixo em Déserts,
fica evidente que Varèse está sempre trabalhando com alguma matriz harmônica,
uma estrutura modelo, que se projeta em diferentes direções e registros. Ao
tomarmos aqui o primeiro bloco das madeiras [Fá-Ré-Fá#] como ponto de partida
do processo, se observará que Varèse, ao projetá-lo no espaço, mantém seus
constituintes intervalares, sobretudo, o intervalo de nona menor que se mantém fixo
sempre nas extremidades. Já o mecanismo de rotação é aplicado, neste caso, aos
intervalos internos dos blocos numa espécie de permutação circular entre terça
maior e sexta menor. É como se tivéssemos uma ação centrífuga onde os intervalos

75
Texto traduzido por Flo Menezes em seu livro, Música Eletroacústica História e Estéticas. Edusp – Editora
da Universidade de São Paulo 1996, pp. 57-58.

68
das extremidades tendem sempre a se afastar do centro, tendo como consequência,
uma ação centrípeta que mantém suas permutações no interior dos blocos a cada
projeção.

Figura 60 - Projeções e rotações em Déserts, comp. 63-65.

O que temos evidenciado nesta breve incursão pelo vocabulário harmônico


vareseano, é que todos esses mecanismos de transformação do sonoro (rotação,
projeção, expansão etc.) se caracterizam sempre por uma estrutura modelo na base,
uma matriz harmônica que sofre contínuas ‘transmutações’ 76 . Essas
‘transmutações’, por mais profundas que sejam, sempre mantém alguma
familiaridade em sua estrutura intervalar. Em Arcana, por exemplo, é possível
notar em três momentos distintos da obra, que nos pontos de maior densidade
vertical, suas massas sonoras preservam sempre estruturas harmônicas matriciais.
Isso é demonstrado na figura 61 abaixo, onde separamos três dessas massas
sonoras de densidades diferentes: compassos 3, 26 e 240 da obra.

76
Sobre ‘transmutações’ ver em Chou Wen-chung, Varèse: Sketch of the Man and his Music p.159, Musical
Quarterly, 1966.

69
Figura 61 - Recorrência de matrizes harmônicas em diferentes trechos de Arcana.

70
Figura 62 - Primeira página de Arcana.

Nestes três momentos distintos de Arcana é possível notar como Varèse se


apossa de pequenas estruturas harmônicas como matriz para compor as relações

71
internas de suas massas sonoras. Sem dúvida, aqui, uma importante analogia ao
fenômeno de cristalização 77 tão fascinante para Varèse.
Notemos então que no primeiro complexo sonoro de sete notas (compasso 3,
fig. 61) três estruturas básicas compartilham o estrato intervalar [2m, 2M e 7M],
possivelmente, consequência de alguma rotação. Este estrato intervalar será
mantido nos dois complexos sonoros seguintes de dez e onze notas. É importante
mencionar aqui que o intervalo de [2m] pode estar projetado em suas duas
inversões possíveis, ou seja, [9m] e [7M].
Nos retângulos da figura 61 podemos observar as estruturas internas em
separado, ou pequenos blocos, para termos uma ideia clara do desdobramento que
tais matrizes ganham nestes pontos de maior densidade vertical. Elas são aqui parte
de uma arquitetura sonora maior, ou uma porção elementar do cristal imaginário de
Varèse. Seu agrupamento amplifica a qualidade inarmônica de suas massas sonoras
que somadas a diferentes modos de ataque e saturação dinâmica, nos revelam uma
parcela significativa da poética vareseana que, em muitos casos, “sacrifica as
figurações melódicas em favor de uma tensão acústica” (PIENCIKOWSKI, 1991,
pp.88)78 .
Podemos encontrar ainda este mesmo estrato intervalar [2m, 2M e 7M] em
Intégrales, no final da primeira seção com seu complexo sonoro de onze notas,
(Fig. 63). Neste caso, temos duas projeções da matriz, uma no extremo agudo do
bloco, com os piccolos e clarineta [Fá#-Sol-Sol#] e outra no extremo grave, com os
trombones [Lá-Sib-Si]. Duas estruturas de construção simétrica muito comuns em
Varèse.

77
Varèse, em ocasião de uma palestra proferida por ele na Universidade de Princeton em 1959, intitulada
“Rhytmus, Form und Inhalt” (Ritmo, Forma e Conteúdo), ele relaciona sua ideia de forma com o processo de
cristalização. “O cristal é caracterizado tanto por uma forma externa definida, quanto por uma estrutura
interna definida. A estrutura interna é baseada na unidade do cristal – o menor agrupamento de átomos que
possui a ordem e composição da substância. A extensão da unidade no espaço forma todo o cristal. Porém,
apesar da relativa variedade limitada das estruturas internas, as formas externas dos cristais são ilimitadas. [...]
A forma do cristal em si é mais a resultante do que um atributo primário. A forma do cristal é a consequência
da interação de forças atrativas e repulsivas e do empacotamento ordenado do átomo.” Esta citação foi
retirada do livro Ouvir o som, do compositor Paulo Zuben, pp. 95-96.
78
PIENCIKOWSKI, R. Fonction relative du Timbre. Em Le timbre, Metaphóre pour la
Composition, pp. 82-89. Paris: IRCAM/ Christian Bourgois, 1991.

72
Contudo, vale mencionar antes de finalizarmos essa pequena incursão pelo
universo harmônico vareseano, que o compositor Paulo Zuben em seu livro Ouvir o
Som, não apenas discute tais aspectos harmônicos, mas também trás à tona outras
estruturas e estratégias composicionais de grande relevância para o entendimento
do vasto vocabulário vareseano.
De todo modo, é preciso ter em mente quando se trata da obra de Varèse que
o seu vocabulário não se resume simplesmente ao agenciamento das alturas na
busca de uma coerência prévia de um determinado material harmônico - intervalar.
Na verdade, sua maior característica não está no material em si, ou seja, nas
matrizes harmônicas, nos estratos intervalares de segundas, sétimas e nonas. Essa
característica precisa ser construída, é preciso esculpir a sonoridade. E é isso que
faz Varèse: organiza o som na busca de um resultado tímbrico em suas massas e
complexos sonoros.

Figura 63 - Simetrias em Intégrales, comp. 28-29.

Esse diferencial do seu vocabulário reside, sobretudo, nas estratégias de


transformação do sonoro que Varèse adota, dentre as quais poderíamos citar:
saturação espectral, espacialização do som, uso constante de envelope dinâmico
para dar ênfase em diferentes extratos de um mesmo complexo sonoro, síntese
instrumental, modulação tímbrica, som diferencial, fusão e fissão sonora,
preocupações acústicas etc. Enfim, Varèse afirmava que sua música era “som
organizado” e que ele “não era um músico, mas alguém que trabalhava com as

73
frequências e intensidades” 79 . Não estou aqui para dizer se Varèse é ou não um
músico, disso não tenho dúvida, mas acrescentaria que ele não é um compositor
apenas de ‘notas organizadas’, mas alguém que compõe como se esculpisse sons e
timbres, as notas aqui, são apenas uma parte dos componentes que possibilitam a
construção da arquitetura sonora vareseana.

4. “Sinfonia” de Luciano Berio

Veremos agora como Luciano Berio, no primeiro movimento de sua Sinfonia


(1968) para oito vozes e orquestra, fez uso de um material harmônico bastante
reduzido e ao mesmo tempo engenhoso. Seguramente poderíamos nomear aqui duas
estruturas harmônicas básicas que lhe servem de matriz para todo o arcabouço
sonoro que envolve este primeiro movimento da obra.

Figura 64 - Início da Sinfonia, Luciano Berio.

79
VARÈSE. Écrits. P.178, 1983.

74
Numa espécie de microcosmo harmônico, os seis primeiros compassos da
Sinfonia estabelecem duas estruturas que, uma vez apresentadas, preservam suas
alturas e seus registros nas subsequentes aparições dentro do movimento. Ou seja,
diferentemente de Varèse onde suas matrizes harmônicas eram projetadas em
diferentes registros; no caso de Berio elas são fixas, seus registros e notas são
congelados.
Estas duas estruturas estão destacadas na figura 65 abaixo: estrutura [A], um
complexo harmônico de oito notas e a estrutura [B], um acorde menor com sétima
maior bastante conhecida do sistema tonal que aqui ganha uma nova função que
não é tonal e sim sonora, uma “entidade harmônica” referencial quase onipresente.

Figura 65 - Redução do material harmônico do início da Sinfonia, compassos 1-6.

O complexo harmônico [A], articulado pelas oito vozes no início da obra, é


conduzido primeiramente ao bloco [B], o qual se mantém estático por oito
compassos sendo substituído, em seguida, por uma saturação harmônica num
grande tutti orquestral no compasso 11, cifra (A) da obra. Se olharmos este
complexo sonoro de 12 notas abaixo (Fig. 66), veremos que a estrutura [A] se
mantém em seu mesmo registro e com as mesmas notas 80 .
Poderíamos pensar aqui em uma espécie de “harmonia complementar” como
comentou Theodor Adorno em sua filosofia da nova Música. Grosso modo, nesta
“harmonia complementar” os acordes se complementam uns com os outros onde o

80
Sobre saturação harmônica presente neste movimento da Sinfonia de Luciano Berio, ver mais em Flo
Menezes, Luciano Berio et la Phonologie: Une approche jakobsonienne de son oeuvre. Publication
Universitaires Européennes, Série XXXVI – Musicologie, vol. 89. Verlag Peter Lang, Frankfurt a. M. –Wien-
Bern-Paris-New York 1993.

75
repouso recairia agora, na ausência das funções tonais, sobre um complexo sonoro
de doze sons. Ou seja, é como se cada complexo sonoro almejasse as notas
restantes da gama cromática.

Figura 66 - Saturação harmônica, Sinfonia comp. 11.

Segundo Adorno, esta complementariedade se dá quando não há


“procedimentos harmônicos fundamentados no tempo do baixo cifrado, mas em
planos sonoros estáticos em si, que comportam somente uma escolha entre os doze
semitons e que repentinamente se modificam em outros, que produzem os sons
restantes”. (ADORNO, 1974, p.69). No caso da Sinfonia de Berio, temos duas
estruturas iniciais (A) e (B) que, somadas, correspondem a uma gama de dez notas
[Ré-Lá-Dó-Mib-Fá#-Sib-Dó#-Mi-Sol-Si] faltando para o total cromático apenas
[Sol# e Fá]. Estas duas complementam o total cromático no compasso onze.
Podemos observar também como Berio se utiliza de um recurso muito
comum em Varèse que diz respeito à variação tímbrica aplicada a uma estrutura
harmonia estática. Um bom exemplo deste tratamento se encontra sobre a matriz
harmônica B [Dó-Mib-Sol-Si], onde em apenas três compassos (34, 35 e 36 do Iº
Mov.) ela é submetida a dez diferentes timbres instrumentais. São eles: madeiras,
trompas, trompetes com surdinas, órgão elétrico, harpa, cordas, cordas em tremulo
ponticello, piano em stacato, cravo e coro. Somado a isso temos ainda uma série de
dinâmicas e articulações que contribui ainda mais para o interesse deste pequeno e
brilhante trecho da obra. O que Berio realiza aqui é uma constante
refuncionalização tímbrica de uma estrutura harmônica que permanece congelada a
um mesmo registro. Este tipo de tratamento é de garante relevância quando se trata
de estruturas estáticas, sejam elas harmônicas ou melódicas, pois a cada momento é

76
possível ter a sonoridade renovada e, consequentemente, o interesse musical.
Recordemos que essa refuncionalização constante de uma determinada estrutura
harmônica usada por Berio remete muito bem a klangfarben (cor do som) de
Schoenberg em Farben.
Este primeiro movimento da Sinfonia demonstra bem como Berio consegue
construir uma unidade sonora a partir de duas estruturas básicas que se tornaram
aqui o centro gravitacional da peça. Todo o percurso deste movimento gira em
torno de tais ‘matrizes harmônicas’ numa ação que hora prevalece uma ou outra
estrutura, ou ainda numa ação simultânea das duas estruturas, como mostra a figura
abaixo.

Figura 67 - Três últimos compassos do primeiro movimento da Sinfonia. Parte do piano com
ocorrência das matrizes A e B.

Neste caso, podemos observar nos três últimos compassos que o material
harmônico-melódico articulado pelo piano trata-se das duas estruturas harmônicas
matriciais [A] e [B]. Temos aqui o que poderíamos chamar de um microcosmo
harmônico de todo este movimento da Sinfonia, pois além de Berio reunir as duas
matrizes harmônicas, ele utiliza o total cromático que prevaleceu por todo o
movimento. Na redução deste trecho (Fig. 68) fica claro este microcosmo como já
tínhamos evidenciado na saturação harmônica do compasso onze com o seu
complexo sonoro de doze notas [Sol-Ré-Fá-Dó-Lá-Mib-Fá#-Sib-Dó#-Mi-Sol#-Si].

77
Figura 68 - Redução da parte do piano dos três últimos compassos do primeiro movimento da
Sinfonia.

De fato, essas duas estruturas adquirem uma importância significativa para


Berio dentro da obra. Elas não são aqui percebidas apenas por uma análise
estrutural nas entrelinhas, mas, sobretudo, por sua qualidade sonora claramente
identificada pela escuta. O referencial sonoro destas duas matrizes harmônicas na
obra é tanta que Berio as retoma no último movimento da Sinfonia. Neste caso,
temos nos três últimos compassos o coro com a matriz [B] e as cordas com a matriz
[A] em sobreposição com exceção dos violinos em divise sustentando a “matriz”
[B] até o fim do movimento (Fig. 69).

78
B B

Figura 69 - Trecho final do último movimento da Sinfonia de Luciano Berio. Sobreposição das
duas “matrizes harmônicas”, [A] e [B].

5. Matriz harmônica em Rèpons (1981-84)81 de Pierre Boulez


81
Obra estreada em 1981 e revisada nos anos seguintes. Fazia uso do equipamento criado por Giuseppe di
Giugno e sua equipe no IRCAM (Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique), chamado 4X. O
desenvolvimento de sistemas dedicados a operações de DSP (Digital Signal Processing) no final dos anos 70,
possibilitou o aparecimento das primeiras peças interativas, cujos processos eletrônicos de processamento não
eram realizados inteiramente nos estúdios, mas durante a apresentação de uma obra musical. Rèpons é uma
obra bem sucedida nesta nova adequação entre tecnologia e invenção musical. Nela, 24 instrumentistas com
seis solistas são distribuídos espacialmente pela sala de concerto, juntamente com um sistema eletroacústico

79
Inspirada em formas antífonas, onde o canto de um solista é respondido pelo coro,
Rèpons faz referência a essa forma através do diálogo entre seis solistas e um grupo
instrumental formado por vinte quatro músicos. Os solistas são: Cimbalom, piano1,
Xylophone dobrando com glockenspiel, Harp, Vibraphone, Piano2 dobrando com
sintetizador. Somado a esse instrumental temos ainda o processamento em tempo
real que faz com que os diálogos solistas – grupo sejam expandidos por um processador
eletrônico dando assim a ideia de deslocamento pelo o espaço físico da sala e pelo espaço
sonoro dos timbres e alturas.
Rèpons nos aparece aqui como um excelente exemplo quanto ao uso de
matrizes harmônicas como princípio composicional. A obra é construída a partir de
um conjunto de cinco acordes de sete notas que por sua vez potencializa a
proliferação de outras estruturas na obra. Segundo Boulez, grande parte do material
harmônico em Rèpons pode ser atribuído a estes cinco ‘acordes’, os quais são tocados por
todo o conjunto no início da obra.
Na figura 70, abaixo, podemos observar tais ‘acordes’ na disposição em que se
encontram nos esboços do compositor82. Boulez comenta ainda que boa parte da escrita da
peça pode ser vista como uma série de derivações de acordes baseados em transposições.
Para entendermos melhor essa afirmação vejamos como Boulez, a partir da “matriz
harmônica” [Sib-Ré-Sol-Lá-Dó-Fá-Si], constrói os acordes que serão tocados pelos seis
solistas em suas respectivas entradas.
No artigo Computers In Music, Boulez e Andrew Gerzso fazem quatro
considerações a respeito do material harmônico em Rèpons e os mecanismos de
derivação para a construção dos acordes dos seis solistas.

que recebe os sinais de áudio dos instrumentos solistas (capitados por microfones), para processá-los e
distribuí-los pelos alto-falantes em tempo real.
82
Teremos aqui como referência principal para os comentários a respeito de Rèpons, o artigo
Computers In Music, Pierre Boulez and Andrew Gerzso Scientific American, avril 1988, vl. 258
n°4 Copyright Ircam – Centro Georges-Pompidou 1988,1999.

80
‘Acordes’ 1 2 3 4 5

Acorde básico, ‘matriz’.

Figura 70 - Material harmônico em Rèpons.

1°- Transposições, ou deslocamentos em alturas de cinco acordes básicos


constituem a maior parte do material harmônico em Répons;
2°- Os acordes que são tocados pelos solistas nas suas entradas são todos derivados
de um acorde básico (acorde destacado no retângulo do exemplo acima);
3°- Deslocando o acorde básico (5) duas 8ª acima, mais meio tom acima, e depois
duas 8ª abaixo e um meio tom abaixo, obtemos os acordes tocados respectivamente
no glockenspiel e no 2° piano;
4°- Os acordes para os outros solistas são construídos pela combinação das partes
de cima e de baixo dos três acordes e deslocando as alturas uma 8ª acima ou
abaixo, de tal forma, que as notas dos acordes caiam dentro de duas oitavas mais
meio tom, (Fig. 70).

81
Na figura seguinte é possível notar como são distribuídos alguns dos cinco
acordes no início da obra com as madeiras, cordas e metais. No caso dos metais
temos a matriz básica [Sib-Ré-Sol-Lá-Dó-Fá-Si] sendo apresentada em sua totalidade
num grande arpejo, cifra [b] (Fig. 71). As madeiras aqui estão com o ‘acorde’ 1
[Fá#-Lá-Ré-Sol-Fá-Sib-Mi-(Fá)] na ausência do fá natural que aparece nas cordas.

‘Acorde 1’
Madeiras

Cordas

‘ Acorde base’ 5
Metais

Figura 71 - Início de Rèpons com madeiras, cordas e metais com a matriz básica83.

Neste início de Rèpons há uma privilegiada permanência da nota [si] em todos os


‘acordes’ que, por conseqüência, faz desta, uma nota polar dominante nesta abertura da
obra. Lembremos que esta nota [si] trata-se da nota superior do quinto acorde, ou seja, a
matriz harmônica básica da obra. Vale citar as palavras do próprio Boulez a respeito da
polarização:
“[...] Havia procurado construir formas melódicas que comportavam retornos sobre
determinadas notas; tais retornos provinham da sobreposição dos organismos: obtinha, assim,
polarizações. Senti bem cedo que, sem polarização, não saberíamos mais onde estaríamos, pois não
teríamos nada a que se ater. [...] Mais tarde, construí acordes que retornavam e se multiplicavam
sobre si mesmos [...] A percepção os analisa como transposições que se sobrepõem”84.

83

Exemplo retirado do artigo The instrumental and vocal music, de Susan Bradshaw, que se encontra
no livro Pierre Boulez, A SYMPOSIUM Edited by William Glock, 1986. pp. 127-229.
84
Citação de Pierre Boulez retirada do livro Música Maximalista, do compositor Flo Menezes. 2006,
Editora UNESP São Paulo, p.240.

82
Temos visto ao longo deste capítulo diferentes estratégias de manejo com o
material harmônico e todas elas, de alguma forma, comungam na sua gênese com a escolha
de uma estrutura modelo, uma matriz – harmônica - sonora que se prolifera pela obra. No
caso de Rèpons não temos a noção perceptiva da matriz básica como temos, por exemplo,
no primeiro movimento da Sinfonia de Berio, onde podemos identificar através da escuta
as estruturas [A] e [B]. Em Rèpons, tal aspecto se evidencia mais seguramente com papel e
lápis, mas isso não impede de percebermos uma sonoridade característica, um perfil
familiar no decorrer da obra.
Jean-Jacques Nattiez em seu artigo Rèpons e a crise da “comunicação” musical
contemporânea85 comenta que “o primeiro papel da matriz é preparar o material de base,
realizar as escalas, os circuitos intervalares, as relações de durações e de potenciais de
proliferação em meio aos quais o compositor faz sua escolha”. (NATTIEZ, 19--, p. 13). De
fato esta observação de Nattiez encontra ressonância não só em Boulez, mas em boa parte
dos autores mencionados neste capítulo, pois o uso de uma matriz harmônica pressupõe
justamente a construção de um campo de relações que possibilite ao compositor caminhar
menos em falso pelo surpreendente universo sonoro.

6. TransFormantes I86 (1983) de Flo Menezes

TransFormantes I para orquestra de cordas e piano do compositor paulista Flo


Menezes, aponta para outra abordagem quanto ao uso de um ‘acorde matriz’ como material
básico para uma composição. Menezes não fará uso apenas de um ‘acorde matriz’ e sim de
uma grande variedade de “arquétipos harmônicos”87 que se tornaram emblemáticos para a
história da harmonia.
Diferente dos demais compositores aqui mencionados, que em boa parte
optavam por uma estrutura “original”, Menezes, pelo contrário, faz uso de um

85
NATTIEZ, J. J. Rèpons E A Crise Da “Comunicação” Musical Contemporânea. Tradução
Carlos Kater. Caderno de estudo: análise musical 13.
86
Tomamos como referência para esta explanação de TransFormantes I os comentários do próprio
compositor em seu livro Apoteose de Schoenberg, Ateliê Editora 2002 2ª edição, pp. 316-329.
87
Segundo Flo Menezes entende-se por “arquétipo harmônico” “as relações harmônicas culturalmente já
guardadas na memória auditiva (repertorial) da música ocidental”. (Menezes, 2006, p.34).

83
recurso metalinguístico onde cita literalmente estruturas harmônicas conhecidas da
história da harmonia como, por exemplo, o acorde de Farben de schoenberg. Neste
sentido, explica Menezes: “os arquétipos de uso típico de algum compositor
serviram-me de alavanca para que, em meio a esta especulação composicional,
pudesse introduzir arquétipos de texturas composicionais no seio de minha própria
obra”. (MENEZES, 2002, p. 322).
Deste modo, Menezes irá criar três séries (A, B e C) de sete acordes cada,
levando em conta, segundo o compositor, a “composição de perfis (melódicos)”. Na
figura abaixo temos a relação das três séries de acordes e o compositor
correspondente de cada “arquétipo harmônico” ou a denominação adquirida
durante sua consolidação na história da harmonia.

Figura 72 - Material harmônico de base para TransFormantes I onde M = móvel e E = estático.

Além disso, Menezes irá dividir estas três séries de acordes, o que dá um
total de vinte um acordes, em duas categorias no intuito de preservar as
características mais intrínsecas de cada “arquétipo harmônico”. A primeira diz
respeito quanto à mobilidade, ou seja, a possibilidade de transposição sem que a
entidade seja descaracterizada. Para isso ele define dois tipos de acordes: móveis ou

84
estáticos. Os móveis, segundo Menezes, são aqueles com maior tendência a
ciclicidade intervalar, por exemplo, o arquétipo em quartas de Webern ou acorde
diminuto, (A2) e (B1) respectivamente (Fig. 72). Já os estáticos são aqueles que
mantêm as mesmas notas da primeira aparição histórica, por exemplo, o acorde
emblemático da Sagração de Stravinsky e o acorde de Farben de Schoenberg, (C2)
e (B7) respectivamente.
A segunda categoria diz respeito à origem do arquétipo. Se ele é de
proveniência geral ou específica. O de proveniência geral, ou de uso comum, diz
respeito, segundo Menezes, aos de uso coletivo, que fizeram parte do repertório de
uma série de compositores. Dentre estes “arquétipos” de uso comum Menezes
destaca: o de quinta aumentada (A1), tríade perfeita maior (B4), função de
dominante (B5), arquétipo de quartas (B6), cluster (C6) e o arquétipo de quintas
(C7). Os arquétipos 88 de uso específico são aqueles casos mais isolados onde um
determinado arquétipo está ligado diretamente a uma obra específica e de uso mais
“individualizado” por parte de algum compositor. Na figura 72 acima, seriam os
arquétipos de Stravinsky (C2 e C3), Schoenberg (B7), Debussy (C1), Mahler (B2 e
B3), Berg e Pousseur (C5).
Esta multiplicidade harmônica adotada por Menezes como material de base
para TransFormantes I, além de estar diretamente ligada aos anseios investigativos
do compositor quanto à diversidade arquetípicas da harmonia, ela também reflete a
“múltipla e complexa textura” desejada pelo compositor. Menezes toma essa
diversidade como ponto de partida para “criar uma nova forma musical que tivesse
como base o problema do formante tímbrico”. Grosso modo, esses formantes
referem-se aos componentes parciais que formam um determinado som que exercem forte
influência na qualidade tímbrica dos agregados harmônicos. Com isso, Menezes irá
considerar cada arquétipo de TransFormantes I como um formante da história da
harmonia.

88
Este termo “arquétipo” é usado antes por Henri Pousseur em seu livro “L’ Apothéose de Rameau – Essai
sur la Question Harmonique”, Musiques Nouvelles, Tome XXI, fasc. 2-4 de la Revue d’ Esthétique, Éditions
Klinscksieck, Paris, 1968, pp. 105-171.

85
Na figura seguinte temos a última página de TransFormantes I onde é
possível notar esta múltipla relação textural a que foram submetidos os “arquétipos
harmônicos”, bem como identificar a procedência dos arquétipos usados por
Menezes:

Figura 73 - Última página de TransFormantes I.

86
Podemos nomear no decorrer desta página (Fig. 37) da obra, os referentes
arquétipos e compositores. Por exemplo, no compasso 277 temos o arquétipo
Webern (A2), compasso 280 Mahler (B3) e o de função tônica (B4), compasso
281com os arquétipos de dominante (B5) e de quartas (B6). No compasso 282,
predomina o arquétipo de Farben de Schoenberg (B7), o qual é articulado em
diferentes registros. Já no compasso 283 temos uma sequência de arquétipos
iniciada com Debussy (C1), Stravinsky (C2 e C3), Berg (C4) e Pousseur. Por fim,
os compassos 284 e 286 trazem respectivamente os arquétipos cluster (C6) e o
arquétipo função tônica (B4) mais uma vez.
Não podemos esquecer aqui a preocupação de Menezes em estabelecer
também suas próprias entidades harmônicas em meio a essa pluralidade de
arquétipos provenientes de outros compositores. Em TransFormantes I há uma outra
estrutura que não se encontra entre os arquétipos mencionados na figura 72.
Menezes irá denominá-la de “arquétipo” TransFormantes [Dó-Mib-Fá-Fá#-Lá-Si-
Láb-Sol], o qual, segundo o autor, percorre todas as etapas da obra. É possível
identificá-la nos compassos 284, 285 e 287 do fragmento da obra acima no exemplo
trinta e seis numa sequência de arpejos. Este “arquétipo” TransFormantes pode ser
encontrado também em outras obras subsequentes do compositor como Apologia
dos Arquétipos (1984) e Micro-Macro – Liedforma de Amor a Reg (1983).

Figura 74 - Arquétipo – TransFormantes.

Antes de encerrarmos, cabe lembrar que TransFormantes I sofreu influência


direta de duas obras de grande heterogeneidade harmônica. A primeira seria
Apostrophe (1964) do compositor belga Henri Pousseur e a outra o Prelúdio nº2
(1977) para piano do compositor brasileiro Willy Corrêa de Oliveira. Willy, em seu

87
Prelúdio, faz uso também de uma série de “arquétipos harmônicos” que se
tornaram significativos para a história da harmonia, sobretudo aqueles que Menezes
denomina de uso especifico, como por exemplo, o arquétipo-Farben e o “acorde de
Tristão”.
Enfim, depois desta diversidade de ações composicionais frente ao uso de
estruturas, ou “matrizes harmônicas” como princípio composicional, ou ainda
“arquétipos harmônicos” como acabamos de ver em Flo Menezes, temos a certeza
de que tal princípio é, no mínimo, passivo de inúmeras abordagens.
Sua vantagem reside talvez, e este é um dos aspectos que o presente capítulo
deseja suscitar, na possibilidade que cada compositor tem em criar o seu próprio
“campo harmônico”, suas redes estruturais - harmônicas - intervalares de acordo
com suas necessidades estéticas e composicionais. Ou seja, criar um ambiente
sonoro, um matiz particular para cada obra, até porque a sonoridade é muito mais
resultante da manipulação e das estratégias a qual se submete o material de base do
que propriamente da “matriz harmônica” em si. A matriz primeira é apenas o
‘pigmento’ inicial do quadro, é preciso antes de qualquer coisa esculpir a
sonoridade e seus matizes.

88
Capítulo III – Apontamentos, estratégias e relatos
composicionais.

1. Intégrales (1925): Edgard Varèse

Figura 75 - Primeira página de Intégrales.

89
A noção de uma nova espacialidade em música e, consequentemente, de uma nova
perspectiva do som enquanto material composicional foi, sem dúvida, para Varèse, as
maiores e mais instigantes preocupações enquanto criador suigeneris que foi. Ao pensar a
música como “som organizado”, na qual não havia mais ambiente para o velho tonalismo e
menos ainda às arbitrariedades do sistema temperado, Varèse desenvolve ao longo de sua
trajetória ideias como “blocos sonoros”, “compósitos sonoros”, “massas”, “planos” e
“zonas de intensidade”. Segundo o próprio compositor essas zonas seriam “diversificadas
mediante diferenças de timbre e de intensidade, e por meio de tal processo físico, no que
diga respeito à sua percepção, assumirão cores, dimensões e perspectivas diferentes”89.
Desta forma, Varèse introduz ao vocabulário musical ideias novas para uma música nova.
Nesse sentido, nossa abordagem analítica propõe, sobretudo, uma investigação
voltada para o interior de tais “massas” e “blocos sonoros” no intuito de revelar as possíveis
estruturas harmônicas que estariam por trás de cada construção sonora. E mais, qual seria o
modelo ou ‘matriz harmônica’ recorrente em suas “zonas de intensidade”, até porque a
construção intervalar em Varèse está diretamente relacionada a uma qualidade tímbrica
desejada.
Intégrales, para onze instrumentos de sopros e quatro percussionistas figura,
juntamente com Octandre e Hyperprism, como uma das partituras mais significativas do
repertório vareseano. Nela é possível identificar não apenas a nova concepção de som como
objeto que se move no espaço, mas também suas estratégias de transmutação de um
determinado ‘bloco sonoro’ no decorrer da peça. A composição da obra teve início no
verão de 1924 em Paris e foi concluída e estreada no ano seguinte em Nova York.
Segundo o próprio Varèse, Intégrales teria sido concebida para uma projeção
espacial90. Ou seja, o que está em jogo para ele não é mais o tradicional tratamento temático
entre uma ideia antecedente e suas consequências como tínhamos no desenvolvimento
clássico91. Intégrales se comporta mais como uma série de variações no domínio do som, é
ele o material a ser trabalhado e projetado em diferentes camadas e direções no espaço. Isso

89
VARÈSE, E. Novos Instrumentos e Nova Música. Música eletroacústica: história e estética. P.58, 1996
90
OULLETTE, F. (1966). Edgard Varèse. Paris: Editions Sechers. P. 83.
91
Ver a ideia de antecedente e consequente em Schoenberg. Fundamentos da Composição Musical. EDUSP
1991.

90
explica sua predileção por blocos estáticos, pois a variação não se dá no sentido clássico-
temático como já foi dito, e sim, em termos de transmutações sonoras de uma mesma
estrutura harmônica. Ou seja, seria mais apropriado dizer que, neste caso, tratam-se de
variações de sonoridades onde o estatismo dos blocos favorece uma permutação timbrística
instrumental. E mais, segundo Gilles Tremblay em seu artigo Acoustique et forme chez
Varèse, o estatismo seria uma forma de colocar em evidência a própria complexidade dos
blocos92. Enfim, Varèse dá continuidade ao legado iniciado por Debussy onde a música
passa a ser uma “forma de arte onde a unidade de base é o som em vez da nota” (LANDY,
2007 p.17) 93.
Seguimos agora na tentativa de revelar a composição harmônica dos blocos em
Intégrales, esta, vista aqui como estrato inicial do timbre, e seus desdobramentos no
caminhar da obra. Num segundo momento passaremos a especular as particularidades da
escrita do timbre em Varèse, tendo como referência o artigo Varèse’s architecture of
timbre: mediation of acoustics to produce organized sound, do musicólogo francês Philippe
Lalitte.

1.2 A estrutura interna: o ‘cristal harmônico’

Nos cinco primeiros compassos de Intégrales constatamos três estruturas básicas com
intensidade, tempo e localização espacial definidas. Tais estruturas ou matrizes harmônicas,
como propõe o presente trabalho, seriam modelos sonoros cujo conteúdo intervalar
exerceria forte influência no resultado tímbrico dos aglomerados harmônicos. Ao longo da
peça, as matrizes sofrerão diferentes projeções e transmutações, ou seja, Varèse varia suas
formas em detrimento de uma maior ou menor instabilidade harmônica desejada.

92
TREMBLAY, G. Acoustique et Forme Chez Varèse. Mâche, François-Bernard (dir). VARÈSE: vingt ans
aprés. La Revue Musical, Editions Richard-Masse. Paris, 1985, p.45
93
LANDY, L. Understanding the Art of Sound Organization. Cambridge: The MIT Press, 2007.

91
Figura 76 - As três ‘matrizes harmônicas’ iniciais em Intégrales, comp. 1-5.

Outros autores também ressaltam os três blocos iniciais como estruturas


características em Intégrales. Tremblay por exemplo, autor já citado acima, aborda essas
três “matrizes” como blocos harmônicos cuja oposição entre eles se dá pelo maior ou
menor grau de tensão em sua composição acústica. Ou seja, configura-se repouso quando
se trata dos harmônicos naturais e suas resultantes e temos uma maior tensão quando se
trata de frequências que engendram perturbações e instabilidade a uma determinada série
harmônica94. Na figura 77 abaixo, se considerarmos o (Dó) grave do trombone como
fundamental, fica claro o aumento da instabilidade, pois os harmônicos estão cada vez mais
distantes da fundamental. Por exemplo, a nota (Si) na flauta piccolo seria o 15º harmônico,
o (Dó#) no segundo trombone o 17º harmônico e o (Mib) na clarineta o 19º harmônico. Eis
aqui uma poética de alternância entre estados de tensão e repouso ressaltados por Tremblay.
Sua reflexão sobre tal aspecto acústico em Varèse coloca ainda a exploração da dinâmica
sempre conjugada com as mudanças de estados de tensão e repouso.

Figura 77 - As três estruturas iniciais de Intégrales segundo Tremblay.


94
Idem. p.37.

92
Voltando às matrizes, podemos encontrar nelas os estratos intervalares que
predominam nas estruturas harmônicas vareseanas: segundas, sétimas e nonas. Além disso,
Intégrales revela novas relações intervalares de sexta e terça, possibilitando diferentes
agenciamentos de blocos com os já citados intervalos de segundas, sétimas e nonas. Vale
mencionar novamente a esse respeito o belíssimo trabalho de Paulo Zuben em seu livro
Ouvir o Som95. Zuben, ao discorrer sobre obras como Hyperprism, Octandre e Intégrales,
ressalta o estrato elementar de segunda maior cromática como estrutura predominante dos
blocos harmônicos em Varèse. É muito pertinente o apontamento de Zuben, pois ao longo
desta análise de Intégrales veremos o quanto tal estrato de segunda se faz presente,
sobretudo, projetado em sétimas e nonas. Na figura abaixo temos algumas projeções do
estrato de segunda maior como forma de ilustrar o funcionamento de tal mecanismo:

Figura 78 - Projeções do estrato de segunda maior cromática.

Vejamos agora, não apenas o desdobramento das três matrizes de Intégrales, mas,
sobretudo, o comportamento generativo que estas exercem em cada seção da obra. Para
tanto, teremos como referência formal da obra a análise feita por François-Bernard
Mâche96. A parir da divisão formal que propõe Mâche, comentaremos as diferentes
gradações harmônicas em cada seção da obra.
Mâche divide Intégrales em três grandes partes com subdivisões internas a cada
uma delas:
1º SEÇÃO, compasso 1 a 93
A primeira seção da obra compreende os compassos 1 a 93. É nesta seção que se
estabelecem as três primeiras ‘matrizes harmônicas’:
- Matriz I: seguimento melódico inicial da clarineta em Mib [Ré-Láb-Sib];
95
ZUBEN, P. Ouvir o Som, SP: Ateliê, 2005.
96
TREMBLAY, G. Acoustique et Forme Chez Varèse. Mâche, François-Bernard (dir). VARÈSE: vingt ans
aprés. La Revue Musical, Editions Richard-Masse. Paris, 1985. pp.110-128.

93
- Matriz II: madeiras no registro agudo [Lá-Mib-Si];
- Matriz III: registro grave com os trombones [Dó-Mi-Dó#].

Os primeiros vinte e nove compassos desta seção nos confirmam o porquê do


estatismo ser um dos aspectos em Varèse tão mencionados por seus analistas. De fato, esse
início de Intégrales é emblemático nesse sentido. Varèse congela as três matrizes em suas
alturas originais cujo interesse musical é desempenhado agora por uma constante variação
na emissão sonora. Ou seja, diferentes formas de ataque e de intensidade nas matrizes II e
III juntamente com pequenas deformações e incrustações na matriz I, faz desse breve trecho
um dos melhores exemplos da poética vareseana. O que antes tínhamos como determinante
para o interesse musical (desenvolvimentos temáticos, modulações, sequências de notas,
escalas etc.) é agora substituído por outros mecanismos. O determinante para Varèse neste
momento é colocar o próprio som em evidência. O interesse não está mais na quantidade de
notas ou acordes em sucessão, mas em fazer nossa percepção se ater às variações contidas
num material sonoro de proporção reduzida. A sucessão aqui é da própria sonoridade. As
modulações se dão agora no plano sonoro, é o próprio som e suas diferentes maneiras e
formas de ocupar o espaço que estão em jogo. É como se Varèse tivesse pensando não mais
em um contraponto de linhas melódicas, mas em uma polifonia de blocos sonoros cuja
independência entre eles se dá através do timbre e da emissão sonora. Para termos uma
noção, vejamos abaixo a variedade de “envelope dinâmico” a que são submetidas as
matrizes II e III durante os primeiros 29 compassos da obra. Ao mantê-las estáticas, Varèse
transfere o interesse para uma constante variação de intensidade e modos de ataque. Com
isso, teremos diferentes emissões sonoras do mesmo bloco estático:

Matriz II, madeiras: [f > morrendo], [f > pp], [ff f > p], [p < f > pp], [p > morrendo], [f >
p < ff], [sf p.]97;
Matriz III, trombones: [sf p < f >morrendo], [sf p < f > pp], [sf f p < ff > pp], [f p < f >],
[pp < mf > ppp], [f p < ff].

97
Os símbolos > e < são respectivamente decrescendo e crescendo.

94
Cabe mencionar que na matriz I as deformações se dão quase sempre por adição
ou subtração de alturas e valores rítmicos, os quais são conjugados ainda com uma
alternância tímbrica entre clarineta, oboé e trompete.

Figura 79 - Material harmônico-melódico que compõe os primeiros 29 compassos de Intégrales.

Todo este primeiro momento da obra culminará num grande clímax no compasso 29 com
um complexo sonoro de onze notas. É possível notar que uma das estruturas internas do
bloco seja justamente o estrato de segunda maior cromático que compõe simetricamente os
registros graves e agudos do complexo harmônico. Ou seja, a clarineta em (Sib) juntamente
com as flautas picolos, compõe o primeiro estrato de segunda maior cromático [Fá#-Sol-
Sol#] e os trombones o segundo estrato [Lá-Sib-Si].

95
Figura 80 - Primeiro clímax de Intégrales: complexo harmônico de onze notas, compasso 29.

Outro aspecto que podemos observar nesse complexo sonoro de onze notas é como
Varèse se ocupava da ideia de projeção de suas estruturas sonoras. Nesse caso, notamos
claramente a projeção de um mesmo bloco, porém em planos sonoros e alturas diferentes.
Os dois blocos, [Fá#-Sol-Sol#] e [Lá-Sib-Si] são na verdade o estrato de 2ªM cromático

96
projetados em nonas menores e de forma simétrica, (Fig. 81). Lembremos que esse
intervalo de nona menor faz parte da estrutura intervalar da matriz III e sua presença na
obra acontece de forma recorrente.

Figura 81 - Redução do complexo sonoro de onze notas com os estratos de 2ªM projetados nas extremidades
do bloco, Intégrales compasso 29.

A partir do compasso 32 até o compasso 53 teremos uma espécie de reprise ou


“transmutação” como diria Tremblay das mesmas estruturas já vistas anteriormente. É
como se Varèse deslocasse suas ‘matrizes sonoras’ iniciais para diferentes regiões do
espaço sonoro. Ao deslocá-las, elas sofrerão distorções na sua forma original e,
consequentemente, haverá uma ‘modulação’ de sonoridade no bloco.
Para termos uma noção da “transmutação” de blocos em Varèse, vejamos o
apontamento do próprio Tremblay a este respeito. A ideia é muito simples. Tremblay
explica que a partir da inversão do bloco formado pelos três trombones no início da peça,
matriz III [Dó-Mi-Dó#], seguida ainda de uma ampliação em ½ tom do intervalo de nona
menor e contraindo em ½ tom a terça maior, obtemos o novo bloco [Lá-Sol#-Si]. Este novo
bloco é formado pelos dois trompetes e o trombone tenor a partir do compasso 36 da obra.

Figura 82 - “Transmutação” de blocos em Intégrales.

97
Ainda nesse pequeno trecho, entre os compassos 32 e 53, Varèse repete a mesma
estratégia de transformação do sonoro a partir do congelamento de quatro estruturas
básicas, como mostra a figura abaixo. Uma delas seria o bloco mencionado acima formado
pelos trompetes e o trombone tenor [Lá-Sol#-Si] no registro médio. O segundo bloco [Fá#-
Dó] com o trombone baixo e trombone contrabaixo compondo o registro grave cuja
estrutura intervalar encontra-se presente nas matrizes I e II. Em seguida, temos no registro
agudo o terceiro bloco com as madeiras, [Dó#-Ré-Mi-Mib-Fá], o qual a cada reiteração
sofre pequenas deformações em sua arquitetura e consequentemente no resultado sonoro. O
último bloco desse trecho é na verdade uma transposição da matriz I proveniente do solo
inicial da clarineta e que agora é realizada pela trompa no compasso 37, (Fig. 83).

Deformação sonora do bloco das madeiras


Bloco [dó#-ré-mi-mib-fá]

Matriz I.

Bloco [lá-sol#-si]

Bloco [fá#-dó]

Figura 83 - Quatro estruturas estáticas compondo um grande “objeto sonoro”. Tais estruturas se mantêm
congeladas por 18 compassos em Intégrales, acima comp. 36-37-38.

98
Outro aspecto importante a ser observado na figura acima seria essa constante
‘projeção espacial’ de blocos ou ‘objetos sonoros’ nos três registros básicos: grave, médio e
agudo. Lembremos que tais blocos são quase sempre derivações diretas ou parciais do
material inicial representado pelas matrizes I, II e III. Tal segmentação de estruturas
localizadas preenchendo os espaços em Intégrales é, de fato, uma nova maneira de pensar a
organização musical para Varèse; “[...] eu concebi Intégrales para projeção espacial do
som, a qual é suscetível de ser obtida com meios acústicos que não existiam então”98. Eis
aqui um dos motivos para não falarmos numa sistematização da forma em Varèse ou de
formas pré-estabelecidas, pois para ele, essa era consequência direta de uma contínua
interação entre grupos de sons e de estratégias para sua transformação. Ou seja, são essas
estratégias composicionais que dinamizam o percurso do som no espaço, dando a ele vida
expressiva. O compositor francês François-Bernard Mâche aponta alguns mecanismos de
variação presentes nesse contínuo sonoro vareseano, são eles: variações de âmbito,
velocidade da projeção, perfil dinâmico e expansão e contração temporal.

“Existe uma ideia, a base de uma estrutura interna, expandida e dividida em diferentes formatos ou
grupos de sons, mudando constantemente de forma, direção e velocidade, atraída e repelida por várias
forças. A forma da obra é a consequência dessa interação”. (VARÈSE, 1998, p.1345)99

Cabe dizer, que essa constante construção e desconstrução do sonoro em Varèse,


juntamente com as elevadas taxas de reiterações de pequenas estruturas são, sem dúvida,
aspectos marcantes em Intégrales. O compositor Silvio Ferraz, ao comentar a constante
reiteração de estruturas em Varèse, salienta que tais blocos ou “objetos sonoros” são
bastante simples e que, apesar de suas expansões e compressões temporais, eles mantêm
sempre o mesmo perfil100. De fato, trata-se aqui da busca por um movimento espacial do
som a partir da escritura musical. Diríamos que essa escritura passa diretamente pela ideia
de “som organizado” tão almejado por Varèse. Os agenciamentos de suas estruturas estão
sempre voltados para o formato que tal organização exerce sobre o material sonoro.

98
VARÈSE, E. Écrits, Ed. Christian Bourgois, Paris 1983, p.128. [...] j'ai conçu Intégrales pour la projection
spactiale du son, susceptible d'être obtenue avec des média acoustiques qui n'existaient pas alors.
99
VARÈSE, E. Rhythm, form and content. Source readings in music history. P.1345, 1998.
100
FERRAZ, S. Varèse: A composição por imagens sonoras. Musicahoje 8, maio de 2002 p.10.
Revista de pesquisa musical do Depto. de teoria geral da música da UFMG – Belo Horizonte.

99
Segundo Iannis Xenakis, “Varèse trabalhara no interior mesmo do som. Ele pesquisara a
arquitetura própria do som em si [...]”101. Vale mencionar que o próprio Varèse em sua
época dizia que a música atual “certamente baseia-se sobre o som e para além das notas”102.
Eis aqui a primazia do pensamento vareseano, ou seja, a matéria, o som em seu estado
bruto no papel de material composicional.
Varèse, ao se deixar influenciar por ideias como a do matemático Hoëne Wronsky
(1778-1853): “a música é a corporificação da inteligência que existe nos sons”103, acabou
incorporando, não apenas o som como material passivo de organização, mas também a
ideia de espacialidade em música. Com isso, ele estabelece uma nova perspectiva para a
música do século XX, a qual influenciaria gerações seguintes de compositores como Pierre
Schaeffer e Xenakis. Para o compositor francês Jean-Claude Risset “Varèse aparece como
o precursor da música do som, eletroacústica, digital ou espectral, que se apega, em vez de
organizar notas, a compor o som em si”104.
Antes de seguirmos com as observações a respeito das estruturas internas em
Intégrales, vale destacar uma estratégia bastante interessante na escritura minuciosa em
Varèse. No compasso 54 temos uma espécie de bloco ressonante construído a partir do
prolongamento feito pelas clarinetas e o trompete I da melodia tocada pelo trompete II,
exemplo sete abaixo. É como se acionássemos um pedal de sustentação no momento exato
em que o trompete II articula sua frase. De fato, Varèse consegue através de uma escrita
pontual simular não apenas a ressonância do trompete II, ao prolongar três de suas notas,
mas também de criar uma sensação de profundidade, uma nuvem sonora. Tal estratégia de
escrita instrumental pode ser encontrada em Hyperprism, no compasso seis com o naipe de
trompas. O compositor Paulo Zuben denomina tal procedimento vareseano de “linhas
reverberantes; notas que passam pela melodia deixam rastros [...]”105. Poderíamos dizer
também que se trata de uma “sonoridade inventada pela escrita”, sonoridade essa já

101
XENAKIS, I. “Il s’em est fallu de peu qui’il passe inaperçu”,Tribune de Lausanne, 14 novembre 1965 1p.
Varèse avait travaillé la chair même du son. Il avait recherché l'architecture même du son en soi[...]
102
VARÈSE, E. Écrits, p.129.
103
VARÈSE, E. Écrits, p.115
104
RISSET, J. C. Varèse et la révolution électrique : de l’électrotechnique au son numérique, p.27. Artigo
incluido no livro Edgard Varèse : Du son organisé aux arts audio organizado por Timothée Horodyski e
Philippe Lalitte. L’ Harmattan, Paris 2007.
105
ZUBEN, P. (2005), p. 116.

100
explorada por Debussy no início do século passado 106. Para Pierre Schaeffer, o
detalhamento da escrita vareseana visa, sobretudo, o “objeto sonoro”:

“A precisão da notação de Varèse concerne tanto às acentuações e às relações de nuanças


quanto à maneira de atacar os instrumentos, em vista de lhes tirar o máximo de variedade... Mas,
sobretudo, ele visa à fabricação de objetos sonoros de formas definidas, por diversos procedimentos:
passagem de um instrumento ao outro sobre uma mesma nota, ataques complexos de um instrumento
de som fixo com um instrumento de percussão, relações de materiais [matières] inusitados (tam-tam
e piano empregados por golpes compactos de sons no grave)” (SCHAEFFER, 1973, p.63)107.

Figura 84 - Simulação de ressonância a partir da escrita, Intégrales comp.54.

Vejamos agora o segundo complexo harmônico de onze notas (compasso 78) que
antecede o fim da primeira seção de Intégrales. Não muito diferente do primeiro, Varèse,
neste caso, constrói novamente um grande bloco de qualidades inarmônicas108 por meio de
aglutinações de diferentes frequências e de uma violenta saturação dinâmica. Tal acúmulo
de frequências faz com que percamos totalmente a percepção de uma altura definida,
restando-nos apenas um espesso som complexo:

106
Ver mais a este respeito em Didier Guigue, Estética da Sonoridade: premissas para uma teoria. III
Seminário Música Ciência e Tecnologia, São Paulo, Departamento de Música ECA-USP, 2008. vl. 1. p. 7-16.
107
SCHAEFFER, P. La musique concrète. Paris: Presses Universitaires de France, col. Que Sais-Je?, 1967;
ed. revisada, 1973.
108
Inarmônicos são os sons de alturas indefinidas (gongos e ruídos coloridos, por exemplo) cujos parciais
multiplicam a frequência fundamental, não só por números inteiros, como também por números fracionários.

101
Figura 85 - Segundo complexo harmônico de onze notas, Intégrales comp. 78.

Por outro lado, podemos certificar de que, na organização desse segundo complexo
harmônico, há novamente as projeções em nonas e sétimas do estrato de segunda maior.
Além disso, temos como estrutura interna um novo modelo de projeção desse mesmo
estrato, (Fig. 86). Varèse o trata aqui de forma espelhada onde o bloco grave com os
trombones [Lá-Sib-Si] é projetado no registro agudo como as madeiras, [Fá-Fá#-Sol], numa
relação simétrica. Lembremos que em Hyperprism, Varèse já havia usado uma série de
acordes espelhados na tentativa de estabelecer uma movimentação interna em suas
“massas-sonoras”109.
Não há dúvida de que um dos aspectos marcantes de Intégrales seja a elevada taxa
de reiterações de pequenas estruturas como é o caso do estrato de segunda maior e das
109
Sobre acordes espelhados em Hyperprism, ver Silvio Ferraz, 2002, p.9.

102
‘matrizes’ e suas ‘transmutações’. É como se Varèse se apropriasse de tais estruturas e
fosse apenas permutando durante o caminhar da peça, uma “(re-) construção geométrica
do espaço”110 sonoro.

Figura 86 - Projeção de blocos e estruturas internas do complexo harmônico, Intégrales comp. 74 -78.

2º SEÇÃO, compasso 93 a155

O início da segunda seção de Intégrales é marcado por um “tema” no mínimo


curioso por seu aspecto diatônico. Este “tema”, sem precedentes na obra, é tocado pela
trompa e trompete a partir do compasso noventa e três cujo acompanhamento feito pelos
três trombones se encarrega de distorcer tal aspecto diatônico. Poderíamos sugerir aqui uma
ideia de colagem onde dois elementos aparentemente desconexos são colocados lado a
lado. Tal ideia já era almejada por Varèse no limiar do surgimento dos meios eletrônicos.
Para ele, o advento da eletrônica; [...] “enriqueceu a música de novos sons, e tornou
possível a simultaneidade de elementos sem nenhuma relação entre eles” (VARÈSE, 1983,
p.175 - grifo nosso). Tendo em vista que os meios eletrônicos só surgiriam de fato na
década de 1950111 poderíamos imaginar que Varèse, no caso de Intégrales, estivesse
110
CODRON, MARC. Prémices des concepts de spatialité et d’espace distribué das l’oeuvre de Varèse.
Artigo publicado no livro Edgard Varèse: Du son organisé aux arts audio, organizado por Timothée
Horodyski e Philippe Lalitte. L’ Harmattan, Paris 2007, p.75.
111
Nessa década Varèse produziu duas obras usando recursos eletrônicos, Déserts (1954) e Poème
électronique (1958).

103
antecipando essa ideia de colagem de elementos díspares em um meio instrumental. Ou
talvez buscando delimitar suas “zonas de intensidades” mediante jogo tímbrico e dinâmico
e com isso estabelecendo, no decorrer da obra, pequenos oásis sonoros.

Figura 87 - “Tema” diatônico com a trompa e trompete em dó, Intégrales compassos 93-100 p.21-22.

Uma escuta atenta da obra revela não apenas a ideia de colagem de blocos
distintos, mas também nos remete para a ideia de corte, ruptura do fluxo, como aqueles
encontrados por toda Sacre de Stravinsky. No caso de Intégrales, o corte está enfatizado,
sobretudo, por sua mudança de intensidade, mudança no perfil melódico e na rítmica
incisiva reforçada pelo naipe da percussão. Vejamos na figura abaixo um resumo das
alturas desse pequeno trecho constituído por duas camadas: a primeira delas seria o “tema
diatônico”, com a trompa e trompete em dó em uníssono e a segunda, com o bloco grave
dos trombones [Réb-Láb-Mib]. A parte da percussão omitida aqui seria uma terceira

104
camada e sua função seria basicamente de reforço dinâmico do bloco harmônico dos
trombones.

Figura 88 - Resumo das alturas, “tema” diatônico e bloco harmônico, Intégrales compassos 93-94/99-100.

De fato não há precedentes desse “tema” em Intégrales e menos ainda do seu tipo
de perfil melódico em graus conjuntos. Por outro lado, o bloco em quintas [Réb-Láb-Mib],
que acompanha o “tema”, pode ser visto em outros momentos da peça e em diferentes
transposições como mostra a figura 90.
Um olhar mais detalhado de ambas as estruturas, “tema” e bloco harmônico, nos
certifica de que essa escolha não foi por acaso, pois ao sobrepô-las Varèse mantém sua
gama intervalar predominante de sétimas e nonas e ainda estabelece uma série de
perturbações em virtude de nenhum dos seus parciais coincidirem. Ou seja, os parciais da
fundamental [Ré] entrarão em batimento com os da fundamental [Réb], ocasionando assim
um mascaramento, mesmo que parcial, do diatonismo presente no “tema”.
Valeria mencionar ainda a forte semelhança entre o “tema diatônico” vareseano e o
tema do "Jeux des cites rivales”, no Sacre de Stravinsky. Ambos possuem o mesmo perfil
melódico em graus conjuntos e a mesma relação diatônica apoiada numa determinada nota
eixo; [Ré] no caso de Varèse e [Sol] em Stravinsky:

Figura 89 - Semelhanças entre o “tema” vareseano de Intégrales e o do “Jeux des cites rivales” no Sacre de
Stravinsky.

105
Compassos. 54-59 comp. 93-100 comp. 172-173

Figura 90 - Outras ocorrências do bloco em quintas, Intégrales.

Após esses oito compassos de “tema”, Varèse realiza outro corte no fluxo
adicionando um novo e distinto bloco sonoro a partir do compasso 107. Tal bloco
permanecerá por dez compassos sem nenhuma alteração em seu conteúdo harmônico o que
nos faz constatar mais uma vez o uso do estatismo como forma de evidenciar a própria
transformação do som. Por outro lado, talvez seja mais apropriado nesse caso pensarmos
em um grande “compósito harmônico” estático, pois Varèse consegue condensar o total
cromático em um mesmo bloco sonoro. Esse pode ser dividido em duas camadas: a
primeira delas seria o bloco [Fá-Mi-Lá], com os dois trompetes e trombone tenor e a
segunda, com as madeiras e o trombone baixo. Essa segunda camada alterna em dois blocos
as nove alturas restantes onde uma contínua permutação de valores rítmicos se encarrega de
renovar e esculpir o som a cada compasso.

106
Figura 91 - “Compósito harmônico” esculpido por seguidas permutações rítmicas, Intégrales comp. 107/09.

Recordemos aqui que essa estrutura rítmica já estava presente no solo inicial da clarineta
em (Mib) nos primeiros compassos da obra. Não se trata de um caso isolado, mas de um
procedimento recorrente. Esse ‘motivo’ rítmico prenunciado pela clarineta é reiterado
diversas vezes e em diferentes instrumentos e momentos da obra; mas sua presença é
sempre acompanhada por algum tipo de transformação, sobretudo do tipo adição ou
subtração de seus valores.

Figura 92 - Reiterações e permutações do ‘motivo’ rítmico prenunciado pela clarineta no início de Intégrales,
comp. 04/107/109.

107
Na figura abaixo temos o resumo das alturas do “compósito harmônico” e suas
relações de oitavas assinaladas nos dois blocos que se alternam. Neste caso, optamos em
manter as oitavas no resumo abaixo por acreditarmos que seu papel não se resume a um
simples dobramento como outrora, mas por ser um fator determinante no resultado sonoro
do bloco. No vocabulário vareseano, timbre e harmonia são dois componentes
indissociáveis de sua arquitetura sonora, pois sua organização intervalar ocorre sempre em
detrimento do som desejado: “deve-se pensar em termos de som e não em termos de notas
sobre o papel” (VARÈSE, 1983, p.145).

Blocos alternados do “compósito”

‘Transmutação da Matriz III’


Figura 93 - Resumo das alturas que compõe o “compósito harmônico”, Intégrales comp. 107.

Não é por acaso que as relações de oitavas aqui se completam justamente nos
encontros de segunda menor e maior como mostram os círculos na figura acima. Varèse
almeja com isso interferir na velha percepção que temos de um som de altura definida
sugerindo-nos, no lugar, uma harmonia de timbre. Um dos recursos para isso seria a ideia
de fusão112 sonora como forma de estabelecer uma saturação harmônica. A figura 93 acima
demonstra bem tal ideia, pois temos três blocos harmônicos distintos compondo um só
objeto sonoro munido de toda gama cromática. O que se escuta nesse caso, não são mais
alturas e notas, e sim timbres moldados por um tratamento minucioso de dinâmica e modos
de ataque. Além disso, se observa entre os compassos 107 e 116 a percussão modelando
praticamente todas as entradas dos instrumentos de sopros. Vale ressaltar que nessa busca
por novos sons, a percussão foi para Varèse um aliado indispensável, um dispositivo a mais
assegurando tais características inarmônicas de seus blocos.

112
“Notas ou objetos sonoros diferentes aglutinam-se de forma a construir um objeto mais complexo”
(ZUBEN, 2005, p. 149).

108
Seguindo em direção ao fim da segunda seção de Intégrales temos um ‘coral’ com
os metais numa espécie de interlúdio antes de uma breve recapitulação do “tema diatônico”
no compasso 131. Esse ‘coral’, que tem início no compasso 121 e segue até o compasso
126, tem como estrutura intervalar recorrente as relações de 7ª maior, 3ª maior e 9ª menor,
todas elas fazem parte da matriz III apresentada pelos trombones no início da obra. Na
figura abaixo podemos perceber claramente a presença dos estratos da matriz III na
composição dos blocos. Eles podem ser observados tanto em sua forma original [Ré-Fá#-
Eb], bem como onde as relações intervalares são permutadas: [Fá-Ré-Fá#] ou ainda, [Sib-
Lá-Dó#].

Figura 94 - Configuração intervalar da matriz III presente na composição dos blocos no ‘coral’ com os metais,
Intégrales, comp. 121-123.

Após esse ‘coral’, Varèse retoma no compasso 131 o “tema diatônico” e segue em
direção ao terceiro complexo harmônico. É interessante notarmos aqui a maneira como
Varèse constrói esse trecho, além disso, fica evidente mais uma vez sua predileção pelas
construções em blocos. Essa gradação harmônica que compõe esse trecho é elaborada a
partir de uma série de blocos projetados em diferentes registros num processo acumulativo
que culminará com o terceiro complexo harmônico de onze notas no compasso 154. A
estrutura a ser projetada nasce da sobreposição do “tema diatônico” polarizado em [Ré] e
do bloco com os trombones [Réb-Láb-Mib]. O resultando é uma estrutura muito próxima
da matriz II a qual é articulada no compasso 135 com as madeiras [Ré-Láb-Mib], (Fig. 95).
Esse bloco sofre uma sequência de projeções que segue das madeiras, registro agudo, para
o registro médio com os trompetes e trompa [Sib-Mi-Lá] e em seguida é direcionado ao
registro grave com os trombones [Dó-Fá-Si]. Não bastando, o bloco dos trombones conclui
toda essa gradação harmônica sobre uma transposição da matriz III [Ré-Fá#-Mib] no

109
compasso 152. Enfim, temos neste caso três transposições de uma mesma estrutura, ou
matriz harmônica113, que se movem no espaço sonoro com timbre, intensidade e articulação
distinta. Varèse se apropria de uma estrutura modelo que muda de “Cor” a cada projeção no
espaço.
‘3º Complexo harmônico’

Figura 95 - Projeções de blocos em direção ao terceiro complexo harmônico, comp. 131-154 de Intégrales.

3º SEÇÃO, compasso 155 a 224.

Um aspecto que chama atenção nessa última parte da obra é a justaposição de


pequenas seções onde Varèse direciona nossa atenção às estruturas iniciais da obra. Ao
todo são cinco pequenas seções distintas. A primeira delas, compassos 155 a 182, é
marcada inicialmente por um solo de oboé o qual configura dentro da obra o momento de
menor densidade vertical e horizontal:

Figura 96 - Solo de oboé no início da terceira e última seção de Intégrales, comp. 161-167.

113
Trata-se da escolha de um “bloco harmônico” de características intervalares específicas que sirva de
modelo sonoro para uma obra musical.

110
Este solo segue os padrões vareseano de construção de ‘temas’, ou seja, circunscrever uma
nota eixo, fá neste caso, enfatizando-a através de seguidas repetições. Vale mencionar que
esse padrão é comum a quase todos os seguimentos melódicos em Intégrales. Tal
característica pode ser encontrada também em Hyperprism no solo inicial do trombone que
circunscreve a nota dó# durante as primeiras páginas da obra.
Após o solo de oboé, Varèse faz inserções do ‘tema’ inicial114 da obra a partir da
anacruse do compasso 168 com o trompete em dó. Neste caso, trata-se de uma versão
transposta do tema da clarineta meio tom acima acompanhado por um bloco ressonante
com as madeiras [Fá#-Sib-Mi]. Esse bloco nas madeiras é na verdade uma transposição da
matriz I, sendo que aqui ela se encontra invertida, (Fig. 97).

Figura 97 - Inserções do ‘tema’ inicial com trompete em dó acompanhado por uma transposição da matriz I
nas madeiras, Intégrales comp. 168-169.

Na segunda pequena seção, compasso 183 a 200, Varèse segue pulverizando o


espaço sonoro com figuras provenientes do ‘tema’ da clarineta, sobretudo, o motivo inicial
que dá origem à matriz I. Em seguida, entre os compassos 190 e 193, temos outra
intervenção do oboé em um solo sobre dois estratos de segunda maior, [Fá-Fá#-Sol] e [Sol-
Láb- Lá]. Na sequência, se observa a volta de outra estrutura ou “objeto sonoro” 115
amplamente explorado na primeira grande seção da obra. Esse ‘objeto’ é construído com o
naipe de trombones e é composto por duas camadas: a primeira delas seria os glissandos
seguidos de notas repetidas no trombone tenor e, a segunda, com o trombone baixo e
contrabaixo sustentando as notas pedais no grave:

114
Tema apresentado nos primeiro quatro compassos de Intégrales pela clarineta em mib.
115
Cf. SCHAEFFER , P. Traitée des objets musicaux, Paris: Seuil.
1966.

111
Comp. 48 1º seção 3º seção comp.196

Figura 98 - Reiteração de “objeto sonoro” usado na primeira seção de Intégrales, comp. 48 e 196.

Não se esquecendo de ressaltar, é claro, os glissandos do trombone tenor dentro do âmbito


do já mencionado estrato de segunda maior [Lá-Lá#-Si] e [Fá-Fá#-Sol], esse amplamente
explorado por Varèse em toda a obra.
A terceira pequena seção, compassos 200 a 205 é, na verdade, uma repetição da
primeira a qual foi marcada pelo solo de oboé. Na presente seção, o solo se encontra
transposto uma terça menor abaixo e vem acrescido de um acompanhamento realizado pelo
trombone tenor, trompete em ré, trompa, oboé e clarineta em mib. A quarta pequena seção,
compassos 206 a 217, reafirma outra estrutura modelo usada por Varèse, sobretudo, nos
compassos 105, 108 e 144 da segunda grande seção da obra. Podemos comparar a presença
de tal estrutura no compasso 144 e sua reiteração um tom abaixo no compasso 206, (Fig.
99). Além disso, constatamos mais uma vez a presença de blocos sonoros compostos por
trítono e quarta justa, [Sib-Mi-Lá] e [Láb-Ré-Sol].

Figura 99 - Outro “objeto sonoro” reiterado proveniente da segunda seção, Intégrales, comp. 144 e 206.

Chegamos à última das cinco microsseções que compõe o percurso final de


Intégrales. Formada pelos sete compassos finais, 218 a 224, essa não difere das já descritas

112
anteriormente, pois Varèse reitera em igual medida outra estrutura familiar. Para tal
propósito coube ao ‘coral’ de metais, presente na segunda seção da obra, compassos 121 a
125, ser reprisado antes do ‘grand finale’ com o clímax do último complexo harmônico de
onze notas. O ‘coral’ é aqui reutilizado praticamente em sua forma original onde os ajustes
são por motivos estruturais localizados como, por exemplo, sua transposição uma terça
menor abaixo. Os cinco compassos pertencentes à sua primeira aparição, 121, 122, 123,
124 e 125, correspondem exatamente aos cinco compassos que antecedem o complexo
sonoro final da obra, são eles: 218, 219, 220, 221 e 222. Destacamos aqui quatro compassos
do ‘coral’ referentes à segunda seção da obra e mais quatro da sua reiteração nos
compassos finais, (Fig. 100).

2ª seção, comp. 122 a 125 3ª seção (final), comp. 219 a 222

Figura 100 - ‘Coral’ de metais, última estrutura a ser reiterada na seção final de Intégrales. Compassos 122 a
125 e 219 a 222.

Por fim, chegamos ao último dos quatro complexos sonoros. Esses agiram por toda
a peça como uma espécie de ‘marco’ referencial, um sinal de demarcação entre as seções da
obra. Na figura abaixo temos um resumo do último ‘complexo harmônico’, esse
diferentemente dos anteriores com onze notas, é composto apenas por dez, tendo o lá e o ré
como notas ausentes. Além disso, prevalecem na configuração dos blocos os intervalos de
terças, sétimas e nonas como possíveis “transmutações” da matriz III.

113
Figura 101 - Último ‘complexo harmônico’ e o resumo de suas configurações internas, Intégrales, comp. 223-
224.

O que vimos nessa terceira e última grande seção foi uma sucessão de colagens de
estruturas e planos sonoros retirados da primeira e segunda seção. Varèse parece trabalhar
com módulos sonoros que se adaptam e se moldam a diferentes propósitos dentro da peça.
Ele os reorganiza de acordo com as necessidades exigidas a cada nova remodelação do
espaço sonoro. Sobre esses aspectos que envolvem a construção de uma obra musical o
próprio Varèse nos dá uma direção das ideias presentes em seu processo criativo:

“O desenvolvimento musical cresce pouco a pouco graças à repetição de certos elementos que
se apresentam sempre sob diferentes aspectos, e o interesse aumenta graças à oposição de planos e

114
graça ao movimento das perspectivas. Se os temas reaparecem, eles ocupam sempre uma função
distinta num meio novo (os volumes)”. (VARÈSE, 1983, p. 64) 116.

Por outro lado, essas conexões entre estruturas que se renovam, se reiteram e se
deformam durante o caminhar da obra e passa a ser um aspecto unificador dentro desse
arcabouço sonoro que Varèse nos propõe em Intégrales. O compositor Silvio Ferraz, a esse
respeito, sugere ainda a ideia de integral matemática:

“Todos os elementos se ligam ao primeiro elemento da peça, como se este fosse a sua integral, o
que não significa que eles estejam ligados entre si. Diga-se também que não é do primeiro elemento
que nascem os outros, não, ele é a resultante de todos os outros, ele é que deriva do restante da peça,
sendo assim o traço comum entre os objetos e sonoridades que o seguem (suas antiderivadas)”.
(FERRAZ, 2002, p.6)

Enfim, Intégrales além de confirmar a predileção de Varèse pelos “blocos sonoros”


de três sons, reconhecidos inicialmente com as três “matrizes harmônicas”, nos revela outra
possibilidade de organização formal através de justaposição de módulos, camadas e
‘objetos sonoros’ que se adaptam a diferentes propósitos dentro da obra. Não há mais um
desenvolvimento nos moldes clássicos, mas contínuas remodelações de um mesmo objeto
que tende a ocupar diferentes lugares do espaço sonoro. Por outro lado, é preciso ter em
mente que esses “blocos sonoros” de três sons não são objetos estáticos, mas manifestações
de um processo como bem alertou Jonathan Bernard em seu livro The Music of Edgard
Varèse117. Em outras palavras, temos que vê-los como imagens de uma progressão musical.
Diríamos ainda, uma progressão que faz do timbre um elemento caracterizante e totalmente
unificado ao processo de construção da obra.

2. A escrita do timbre em Intégrales

Já foi dito neste trabalho que Varèse, ao eleger o Som como material básico para sua
música, estabeleceu uma nova perspectiva fenomenológica do som e da acústica. De fato,
ele trouxe ao universo musical noções que eram até então de domínio exclusivo da ciência
116
VARÈSE, 1983, p. 64.
117
BERNARD, J. The music of Edgard Varèse, Yale University Press 198, p.77.

115
e que só se tornariam palpáveis para a arte musical com o advento da música eletrônica. Por
esse motivo, tentaremos enumerar algumas ideias e fatos que permearam o projeto
vareseano de liberação do som, e mais, quais estratégias composicionais estariam por trás
da escrita do timbre em Intégrales. Até porque, analisar essa obra apenas em termos de
material temático ou construção intervalar, é correr o risco de perder um detalhamento de
escrita musical sem precedentes. Além disso, cabe dizer que essa escrita minuciosa foi sem
dúvida uma das principais ‘armas’ utilizada por Varèse na busca pela emancipação do som.
Para tanto, teremos como referência principal o artigo Varèse’s architecture of
timbre: mediation of acoustics to produce organized sound118 do musicólogo francês
Philippe Lalitte.

Antecedentes ao projeto de “Liberação do som”

Segundo Lalitte, o projeto vareseano de liberação do som nasce de seus encontros


regulares, de 1908 a 1913, com o compositor ítalo-alemão Ferruccio Busoni (1866-1924).
Busoni, em seu livro Esboço para uma Nova Estética Musical, afirmava que “a arte
musical nasceu livre, e a liberdade é sua vocação” (BUSONI, 1907, p. 23-24). A partir daí
Varèse irá buscar um universo musical aberto a todos os fenômenos sonoros:

“Me tornei uma espécie de Parsifal diabólico, não em busca do Santo Graal, mas da bomba que faria
explodir o mundo musical e deixaria entrar todos os sons pela brecha, sons, que à época – e talvez
ainda hoje – chamávamos de ruídos”. (VARÈSE, 1983, p.154)

Os primeiros efeitos da “bomba que faria explodir o mundo musical” ecoa em


Amériques (1918-1921) com suas sirenes e um arsenal de percussão sem precedentes na
história da musica de concerto119. Varèse, em Amériques, passa a tratar a percussão não
mais como simples reforço orquestral ou de cor, mas como uma “trama independente,

118
LALITTE, P., « Varèse’s architecture of timbre: mediation of acoustics to produce organized
sound », Proceedings of the 2nd Conference on Interdisciplinary Musicology (CIM05), Montréal
(Québec), Canada, 10-12 mars 2005.
119
Para a execução de Amériques são necessários nove percussionistas. Podemos encontrar também o uso de
sirenes em hyperprism e Ionisation.

116
conduzindo um desenvolvimento ou oposição às massas da orquestra.” Tal posicionamento
frente à percussão terá seu ponto máximo em Ionisation (1931), obra exclusivamente
escrita para um grupo formado por treze percussionistas.
Além das ideias de Busoni, Lalitte menciona outra influência exercida pelo pintor
francês Albert Gleizes (1881-1953), tido como o teórico do cubismo. Para Lalitte é bem
provável que a ideia de projeção do som almejada por Varèse seja fruto desse contato com
as ideias de Gleizes. Pois os cubistas estavam naquele momento interessados nas teorias de
espaço cúbico ou esférico do matemático alemão Georg Friedrich Bernhard Riemann
(1826-1866). A partir desse contato com Riemann, os cubistas estabelecem três inovações
pictóricas, afirma Lalitte:

1º. Deformação plástica de objetos em termos de dimensão;


2º. Rejeição da perspectiva herdada da renascença, em benefício da justaposição
de múltiplos pontos de vista;
3º. Reunião em um só quadro de imagens disparatadas.

Somado a isso, entram ainda as ideias de outro matemático e físico, o francês Henri
Poincaré (1854-1912) que, juntamente com as ideias de Riemann, estabelece um modelo de
geometria “não-euclidiana” que tenta demonstrar uma 4º dimensão120. Isso não só
alimentou a busca por um espaço pictórico novo para os pintores do cubismo, mas fez com
que Varèse explorasse em música uma quarta dimensão através da projeção do som no
espaço, afirma Lalitte. O próprio Varèse já ressaltava tais ideias:

“A música, hoje, conhece três dimensões: uma horizontal, uma vertical, e um movimento de
crescer e decrescer. Eu poderia juntar uma quarta, a projeção sonora... um sentimento de projeção, de
viagem no espaço, para o ouvido como para o olhar”. (VARÈSE, 1983, p.91)

120
Em seu livro Science et Hypothèse publicado em 1902, Poincaré explica como “se pode representar um
mundo a quatro dimensões, partindo da analogia com a nossa visão, que nos projeta na retina um quadro a
duas dimensões”. Os objetos têm três dimensões, explica Poincaré, porque os vemos sequencialmente em
diferentes perspectivas. Prossegue Poincaré, “tal como se pode fazer num plano a perspectiva de uma figura a
três dimensões, pode-se representar uma figura a quatro dimensões. E podem-se tomar várias perspectivas de
pontos de vista diferentes, dando-nos essa sequência de perspectivas a visão que teria um ser que se
deslocasse num espaço a quatro dimensões”.

117
Outro aspecto importante seriam as implicações das teorias do físico alemão
Hermann Helmholtz (1821-1894) na escritura vareseana. Em 1905, Varèse descobre o
tratado de acústica Théorie Physiologique de La musique fondée sur l’étude des sensations
auditives121 (Helmholtz 1863), o qual, além de tratar de problemas puramente acústicos
(natureza das ondas sonoras, decomposição da série de Fourie, sons parciais, batimentos
etc.) e do funcionamento do aparelho auditivo, esse aborda também aspectos
exclusivamente musicais como afinidades de sons, gamas, tonalidades, instrumentação etc.
É a partir desse contato com as teorias de Helmholtz que Varèse segue em direção à música
do som, o som como material passivo de organização. Tais teorias possibilitaram a ele uma
nova ideia de música, um mundo sonoro muito mais próximo daquilo que ele almejava
enquanto compositor122.

“Helmholtz foi o primeiro a me fazer perceber a música como sendo uma massa de sons
movendo-se no espaço e não como uma série de notas ordenadas como me haviam ensinado”
(VARÈSE, 1983, p. 180)

A segunda parte do tratado de Helmholtz talvez seja a que mais interessou


inicialmente a Varèse por tratar do estudo dos sons simultâneos, sons resultantes e
batimentos. Eis aqui as ideias que se tornariam a base para a escrita do timbre em Varèse,
explica Lalitte. Sobre os sons resultantes, Lalitte nos comenta que: “quando tocamos dois
sons A e B simultaneamente se produz sons de combinação não pertencentes à série
harmônica dos dois sons emitidos. Os sons resultantes podem ser adicionais (soma de
frequências) ou diferenciais (diferentes frequências)”. (LALITTE, 2005, p.5). O “som
diferencial”, segundo Helmholtz, é a combinação de duas frequências senoidais, [f1 e
f2] onde o resultado da subtração [f2 - f1] (reconhecendo-se que f2 é maior que f1) seria
o som diferencial propriamente dito ou som da diferença. Para tanto, sua percepção
auditiva exige que os sons originais sejam tocados bem fortes. Eis aqui uma das possíveis
explicações do porque Varèse explorou tanto as intensidades extremas e os diferentes

121
HELMHOLTZ, H. Théorie Physiologique de La musique fondée sur l’étude dês sensations auditives.
Traduzido do alemão para o francês por M. G. Guévoult, Paris: Edtions J. Gabay, 1990.
122
Nesse contexto incluiríamos ainda o matemático Hoëne Wronsky (1778-1853) como outra influência.
Varèse era adepto a definição de música de Wronsky: “a música é a corporificação da inteligência que existe
nos sons”.

118
tipos de “envelope dinâmico” em seus “blocos sonoros”. Sem dúvida uma busca por
agregar qualidades inarmônicas através de batimentos e sons resultantes.
Antes de terminarmos valeria mais uma vez nos ater ao interior do primeiro
“complexo harmônico”, compasso 29, tendo em vista as colocações de Lalitte sobre cálculo
de frequências como forma de reforçar um determinado som.
Antes, vale primeiramente observar a construção do âmbito do ‘complexo sonoro’,
o qual é composto por três blocos distintos, ou “formantes” como prefere Lalitte, onde dois
deles são simétricos: [Lá0-Sib1-Si2] com trombones e [Fá#4-Sol5-Sol#6] com piccolos e
clarineta em Sib, sendo que cada um se encontra dentro de um âmbito de 26 semitons. Já o
bloco central, [Mib3-Fá3-Mi4-Dó#5-Ré5] com oboé, clarineta em mib, trompete em ré e dó
e trompa, abrange 23 semitons. Com isso Varèse obtém uma construção intervalar simétrica
num âmbito de 71 semitons, (Fig. 102)

Figura 102 - Estrutura intervalar simétrica num âmbito de 71 semitons compondo o primeiro complexo
harmônico de 11 notas, Intégrales, comp. 25-29.

Sobre o cálculo de frequências, Lalitte observa que a simetria em volta do eixo


central (Mi4), tocado pelo trompete em ré, é igualmente calculado em função de sons
resultantes. Eis aqui um possível uso do método de Helmholtz que mencionamos mais
acima. É provável que Varèse tenha calculado as frequências para que os sons resultantes
reforcem os sons presentes no “formante” [Mib3-Fá3-Mi4-Dó#5-Ré5]. Ou seja, cada som
presente no “formante” central, exceto a nota mais aguda ré, é reforçado por um som

119
resultante, observa Lalitte:

I. 311.3 (Mib3) + 349.23Hz (Fá3) = 660.36 Hz = Mi4 (659.26 Hz);


II. 349.23 Hz (Fá3) + 659.26 Hz (Mi4) = 1108.49 Hz = Dó#5 (1108.73);
III. 659.26 Hz (Mi4) – 349.23 Hz (Fá3) = 310.03 Hz = Mib3 (311.13 Hz);
IV. 659.26 Hz (Mi4) – 311.13 Hz (Mib3) = 348.13 Hz = Fá3 (310.03 Hz).

Os outros sons adicionais ou diferenciais reforçam, segundo Lalitte, os harmônicos


da nota fundamental (Lá0) do complexo sonoro. Por outro lado, a nota dó, esta ausente do
complexo harmônico, pode ser encontrada a partir do cálculo de frequências em Ré5 –
Dó#5= dó1, ou ainda, Ré5 – Mi4= Dó4. É evidente que Varèse reserva uma atenção
especial para o “formante” central, pois além de tais fenômenos acústicos agindo no
reforço com os sons resultantes, observa-se ainda sua rítmica particular seguida de ataques
acentuados dando ao “formante” uma destacada presença no grande bloco sonoro.
Para finalizar, vale mencionar que a escrita do timbre em Intégrales encontra
também um forte aliado no conjunto da percussão para qual Lalitte nomeia três funções
básicas:
I. “Ressonância” com gongos e tam-tams;
II. “Excitação” com caixa clara e rufo de caixa;
III. “Ataque” com caixa clara e “tambor basco”.

Neste sentido, a percussão não apenas tem vida própria dentro da obra com seus planos
sonoros independentes, mas também se torna passiva de síntese, como por exemplo,
dobrando os ataques dos sopros, causando assim, pequenas distorções no timbre de cada
instrumento. Tal ação da percussão pode ser vista por quase todas as páginas de Intégrales.
Enfim, a justaposição de todos esses elementos heterogêneos que vimos tais como
síntese instrumental, simetria intervalar, fenômenos acústicos, formas de ataque e diferentes
“envelopes dinâmicos” faz com que toda essa ‘arquitetura do timbre’ em Intégrales seja
mais um aspecto indissociável do processo composicional e, sobretudo, de uma abordagem
analítica da obra. O timbre passou, de fato, a ser o “grande território” como bem

120
preconizou Schoenberg nas últimas páginas de Harmonia. Varèse, ao desbravar esse novo
território forjou estratégias e fez do timbre “uma dimensão também estruturante” em
música.

3. Linhas de afeto: relatos composicionais

Relatar os passos que envolvem o ato de escrever música é uma tarefa um tanto
delicada, sobretudo porque os passos nem sempre seguem uma trajetória retilínea durante o
caminhar do processo composicional. Há sempre no caminho diferentes linhas de afeto para
as quais estamos sujeitos a um arrebatamento que pode ser tanto enriquecedor ao projeto
inicial, bem como colocá-lo o em xeque, o que em muitos casos resulta num abandono por
completo do plano inicial da obra.
Mas o quê seria tal afeto? Como ele se dá? Este é aqui uma espécie de estímulo, um
contágio afetivo, aquele que coloca em movimento uma ideia, uma ação, um desejo, um
fazer. Sua força pode se manifestar, por exemplo, quando nos encontramos a improvisar
sem muita pretensão ao piano e num dado instante nosso ouvido se vê assaltado por uma
determinada passagem harmônica ou mesmo por um pequeno gesto sonoro. O contágio não
está excluído ainda de uma conversa informal com um amigo, de uma escuta, da leitura de
um poema ou partitura. Talvez tenhamos aqui um pouco do que fala Nietzsche em seu livro
“Vontade de Potência”: “vontade de potência é esse impulso interior da força que gera um
movimento”123. O certo é que uma vez contaminado por ele, passamos a projetar, numa
espécie de surto criativo, suas possíveis combinações, gradações e formas; como quem
rabisca o início de uma tela ou sonoridades no pentagrama.
São esses cruzamentos, muitas vezes concomitantes, de linhas de afeto que nos
mantêm em constante reflexão e questionamento durante o percurso que envolve a criação
de uma obra musical. É “a canção do mais-adiante”124, pois estamos sempre nos
revisitando, tirando uma nota do lugar ou refazendo a introdução. Compor é, antes de tudo,
um ato fragmentado em linhas que tendem ao infinito, pois entre o ato de escrever e o
123
NIETZCHE, F. Vontade de Potência. Parte I. Editora Escala coleção Mestres Pensadores.
124
Trecho retirado do poema Águas da Serra do livro Magma de João Guimarães Rosa. Ed. Nova Fronteira,
1997.

121
contágio do afeto há sempre um tempo e um espaço que se renova e nos atravessa
constantemente...
É imerso por esses contágios que circunscreve o ato de escrever música que durante
o mestrado realizei uma série de composições para instrumento solo, conjunto de câmara e
orquestra. Mesmo não muito à vontade tentarei relatar os passos que fizeram parte de
algumas composições que escrevi entre 2006 e 2008, correndo o risco, é claro, de ausentar
alguns “pormenores” que permearam minhas decisões durante tais composições125.
Iniciarei este pequeno relato recordando um detalhe bastante significativo, não
apenas para meu trabalho composicional, mas que também se tornaria um dos temas
centrais da minha pesquisa no mestrado. Nos últimos sete anos tenho buscado estabelecer
uma identidade harmônica em minhas composições, isso em virtude de uma insatisfação
quanto ao resultado harmônico sonoro dos trabalhos que vinha realizando em fins da
década de 90 e início de 2000. Tal período de busca coincide com os anos que passei no
Departamento de Música da Universidade de Brasília (UNB)126, onde então cumpria com
grande entusiasmo minhas obrigações de aluno do curso de composição. Curiosamente, é
neste período, após uma leitura despretensiosa das teorias dos biólogos chilenos Humberto
Maturana e Francisco Varela e da ideia de “autopoiese”, que começo a pensar na
possibilidade de construção de uma obra musical a partir de uma estrutura harmônica
previamente estabelecida. A ideia de “autopoiese”, inaugurada por Maturana e Varela,
“refere-se à produção contínua de si mesmo pela vida”127. De raízes gregas, “autopoiese”
“si mesmo” (auto) e fazer (“poiein” como em poesia). Trata-se aqui da capacidade que os
seres orgânicos, essas “entidades autopoéticas”, têm de perpetuar-se através da atividade
química e da movimentação das moléculas. Ou seja, um organismo que se autossustenta e
que se autorregenera num perpétuo metabolismo.
É a partir desse pressuposto “autopoético” que me coloquei a pensar na
possibilidade de estabelecer um ambiente sonoro previamente para minhas composições.

125
Todas as composições citadas aqui estarão nos anexos da dissertação.
126
Não poderia deixar de mencionar e agradecer neste momento o importantíssimo apoio que tive dos
professores dessa instituição, sobretudo, aos compositores Conrado Silva e em especial ao Sérgio Nogueira
por sua generosidade de amigo e de professor dedicado aos meus anseios criativos.
127
MARGULIS, L. e SAGAN, D. O que é vida? Ed. Jorge Zahar 2002 São Paulo, p.31-34.

122
Para tanto, passei a ter como ponto de partida uma matriz primeira 128, uma “célula”
geradora no papel de “entidade” harmônica “autopoético” dinamizando as relações
verticais da obra. Claro que tudo isso de uma maneira bastante intuitiva e pouco estruturada
inicialmente, mas que naquele momento me parecia ser uma ideia bastante fértil para
minhas novas experimentações no campo da harmonia. Com isso, a composição de uma
nova peça passou a ser precedida sempre pela escolha de uma ou mais ‘matrizes
harmônicas’. É como se eu escolhesse as ‘cores’ antes de iniciar a pintura do quadro.
Vale ressaltar que tal estágio de escolha das matrizes, ou sonoridades, leva às vezes
mais tempo do que o trabalho de composição da obra em si. Recordo-me, por exemplo,
que em Matizes (2006)129, para flauta e grupo instrumental, passei mais de um mês para
decidir o material harmônico e pouco mais de vinte dias para compor a música. Tal aspecto
não chega a ser uma regra, há casos como em Gestuelle (2007), para seis instrumentos onde
a matriz foi deduzida a partir de um grande gesto melódico formado por uma sequência de
37 notas. Sobre Gestuelle comentaremos mais adiante.

Matriz I matriz II “Pacote” de 9 notas ?

Figura 103 - Rascunho das duas ‘Matrizes harmônicas’ usadas em Matizes.

Depois de estabelecido o material harmônico, dá-se início a outra prática bastante


comum dentro do processo que antecede a escrita da música propriamente dita. Trata-se da
etapa onde busco estabelecer novas relações harmônicas, gestos sonoros, possíveis “temas”
e figurações rítmicas a partir do material inicial. Isso ocorre em muitos casos durante
128
Vale mencionar que não se trata aqui de uma ideia original, sobretudo, se pensarmos que tal estratégia
remete ao princípio serial de derivação estrutural vinculado a uma matriz primeira.
129
Obra comissionada pelo Programa de Pós-Graduação Música em Contexto do Departamento de Música da
Universidade de Brasília (UNB) e foi composta em julho de 2006 e dedicada à flautista Beatriz Magalhães
Castro. Sua instrumentação consiste em flauta (solista), oboé, clarineta sib, trompa, violino, violoncelo,
contrabaixo e percussão. A estreia nacional se deu em agosto do mesmo ano em Brasília durante o XVI
Congresso da ANPPOM tendo como solista o flautista Thales Silva. Uma segunda estreia da obra ocorreu em
dezembro de 2006 em Madrid pelo grupo espanhol Sonor Ensemble, durante a cerimônia de premiação do
XVII Premio Jóvenes Compositores promovido pela Fundación Autor e Centro para la Difusión de la Música
Contemporánea CDMC.

123
longas “improvisações” que se alternam entre o piano e o papel de rascunho... Eis aqui a
elaboração de um banco de dados, uma espécie de catalogação dos materiais que me
interessaram num primeiro momento e que, por este motivo, passam a fazer parte do
processo como material de consulta até a finalização da obra.

Matriz I matriz II

Figura 104 - A realização das ‘matrizes harmônicas’ em Matizes, compassos 15 -16, partitura em dó.

Por outro lado, cabe dizer que o fato de ter estabelecido alguns materiais e
parâmetros inicialmente, não me impede que durante o processo de escrita da música
alguns sejam postos de lado. Há sempre espaço para uma reelaboração, mudando alguns
gestos de lugar, sobrepondo outros, permutando a estrutura intervalar da matriz ou mesmo
colando materiais vistos inicialmente como incongruentes. Tal jogo às vezes me leva por
verdadeiros labirintos, o que não chega a ser um problema, muito pelo contrário, é a meu
ver um aspecto um tanto sedutor, pois é quase sempre em meio aos labirintos que me
deparo com as soluções de continuidade mais satisfatórias. Compor talvez seja um pouco
disso mesmo, criar labirintos, elaborar uma saída após tatear um pouco para em seguida
cairmos em outro labirinto e assim sucessivamente até darmos por satisfeito o jogo.

124
Outro aspecto que fez parte da criação de Matizes foi estabelecer para a primeira
grande seção apenas o “pacote” de nove notas proveniente das duas matrizes, (ver Fig.103).
Vale mencionar que esse conjunto de notas (Dó#, Ré#, Mi, Fá, Fá#, Sol#, Lá, Dó, Ré) se
faz presente não apenas verticalmente na obra, mas ele também me serve de material
escalar para as inúmeras linhas que cortam a peça, sobretudo, nas partes solo da flauta.

Figura 105 - Solo da flauta construído a partir da permutação de seis notas, ré, dó#, mi, mib, dó e fá#,
provenientes das matrizes I e II, Matizes, comp. 19-21.

Para as notas ausentes (Si, Sib e Sol) do “pacote” inicial reservei momentos
específicos para então fazerem parte do jogo. É só após 76 compassos, trabalhando
exclusivamente com o “pacote” de nove notas, que introduzo o (Sib) e o (Si) natural. Tal
momento coincide com a seção central da obra onde a dilatação do tempo e o jogo de
ataques e ressonâncias demarcam este pequeno território de sonoridades e “cores” que
almejei para Matizes, (Fig. 106). Por sua vez, a nota (sol), ausente até o momento, surge
apenas na última seção130 da obra completando assim o total cromático. Confesso que tal
diluição do total cromático ao longo da obra não foi um aspecto previamente estabelecido,
mas algo que se deu durante o caminhar da própria peça. Eu diria que se trata de uma típica
decisão localizada que, por sua vez, acaba se estabelecendo como parâmetro estrutural
dentro dos diversos níveis de organização que envolve a composição de uma obra. Tais
relações estão ainda sujeitas a uma série de remodelações durante o processo, pois como
mencionei anteriormente, compor é uma ação fragmentada, porém contínua em seu refazer
o que já foi feito. É assim que me vejo quando escrevo música, sempre remodelando um
mesmo material na busca por novas formas e novas “cores”. Ou seja, sigo buscando
diferentes ângulos sonoros a fim de me manter desperto e apaixonado durante o percurso.
Nesta direção, me recordo que para a última parte de Matizes, estabeleci uma série
de reiterações, colagens e sobreposições de materiais provenientes da primeira seção. Tais
materiais foram tratados como verdadeiros ‘módulos’ que se adaptam a diferentes
130
A última seção tem início no compasso 91, letra [E] de ensaio.

125
ambientes sonoros. Um olhar mais atento sobre a partitura perceberá facilmente tais
detalhes de construção. Além disso, Matizes talvez seja um dos meus primeiros trabalhos
composicionais onde me coloco a pensar a escrita como um meio de esculpir timbres e
sonoridades em música. Isso em grande parte motivado pela ideia de “formantes rítmicos”
de André Boucourechliev mencionado no primeiro capítulo da dissertação. É por este e
outros motivos que passei a pensar o fenômeno sonoro também enquanto timbre.

Figura 106 - Ataques e ressonâncias sobre Sib e Si na seção central de Matizes, comp. 77-79.

Em obras como ‘Gradaciones y Líneas de afecto’(2007) para violoncelo e grupo de


câmara, Gestuelle e Quando se muda a paisagem (2008), para orquestra de câmara, tal
ideia de esculpir sonoridades passou a ser um conteúdo extremamente relevante dentro do
processo e consequentemente explorado com mais meticulosidade.

126
Gestuelle131 para seis instrumentos é um caso particular no que diz respeito ao
conteúdo harmônico inicial, pois todo ele foi deduzido de um pequeno trecho pertencente a
uma obra132 para flauta solo escrita um mês antes. Tal trecho recortado da peça de flauta é
tratado em ambas as obras como um grande gesto composto por 37 notas, mas não estão
excluídas versões fragmentadas dele. Ou seja, ele não foi necessariamente concebido para
ser escutado apenas em sua sucessão original. Em Gestuelle, por exemplo, ele se presta
também, e, sobretudo, a um tratamento simultâneo de pequenos recortes, numa espécie de
heterofonia a qual visa sempre uma maior ou menor densidade textural. É ele que dinamiza
a evolução da peça a partir do seu retalhamento.
Articulado numa sequência de 37 notas, o gesto foi organizado a partir da série
numérica de Fibonacci (1, 2, 3, 5, 8, 13...,). Com isso, o divido em duas sequências de
notas, ambas articuladas em registros diferentes. No registro superior [A], temos a série
Fibonacci em sua forma decrescente (13, 8, 5, 3, 2, 1) e no registro inferior [B], em sua
forma crescente (1, 2, 3, 5...,).

Figura 107 - Rascunho inicial de Gestuelle e as estruturas harmônicas retiradas do ‘grande gesto’ de 37 notas.

131
Obra composta em novembro de 2007 para clarineta, trompete, piano, violino, violoncelo e percussão.
Teve sua estréia mundial em 25 de outubro de 2008 no Théâtre Dunois de Paris pelo grupo francês Ensemble
Aleph durante o 5e Forum International des Jeunes Compositeurs2008.
132
Trata-se aqui de Entrelinhas, para flauta solo, escrita em outubro de 2007.

127
Vale ressaltar que a opção pela série Fibonacci surgiu como uma estratégia rápida e
simples para ordenar a sequência de notas em registros diferentes e a partir disso deduzir
duas matrizes harmônicas. A primeira delas é construída a partir das notas articuladas no
registro inferior [B] (Dó#-Ré-Mi-Mib) e uma segunda matriz de nove sons é derivada das
notas do registro superior [A] (Fá-Fá#-Lá-Sib-Dó-Ré-Mib-Láb-Si). Ambas mantendo o
eixo comum [Ré-Mib].
Durante toda a peça o gesto será deformado e fragmentado em outros pequenos
gestos. É como se depois do quadro pronto eu o recortasse em vários pedaços para em
seguida recombiná-los. Tal combinação, ou jogo de quebra-cabeça, não visa
necessariamente encontrar a forma original do quadro, mas de criar um novo quadro sonoro
a partir da justaposição, colagens e sobreposições de seus fragmentos. Neste caso, a ideia
de heterofonia passa a fazer parte do jogo como uma importante ferramenta de construção.
Ou seja, como “repartição estrutural de alturas idênticas, diferenciadas por suas coordenas
temporais divergentes, manifestada por intensidades e timbres distintos” como bem definiu
Pierre Boulez a heterofonia133. É possível observar tal “repartição” do grande gesto já na
primeira página da obra, bem como a matriz I sendo articulada em fortíssimo pelo
vibrafone na cabeça do primeiro compasso da obra, ver a figura abaixo:

133
MENEZES, F. Música Maximalista. São Paulo, Edirora UNESP 2006, p. 235.

128
Figura 108 - Primeira página de Gestuelle.

A idea de “repartição estrutural de alturas”, seja de alturas idênticas ou não, ou


ainda mecanismos de rotação intervalar da matriz harmônica; permutações de durações
rítmicas de um determinado gesto; sobreposição ou justaposição de um mesmo gesto com
durações rítmicas diferentes ou defasadas no tempo. Enfim, tudo isso circunscreve ao lado
das intermitentes linhas de afeto os passos que compõe a construção da obra. Além disso,
há sempre uma necessidade de compor esculpindo imagens 134 sonoras sobre o pentagrama.
Ou seja, uma composição, um pequeno universo de cores, sons e ritmos. Quanto maior for
o encantamento por essas imagens e sonoridades, maior será o grau de comunhão no ato de

134
Gosto da ideia de imagem, pois além de me ater ao perfil sonoro e seu desdobramento no espaço, me atrai
também contemplar a própria representação do som enquanto imagem visível no papel. Ao compor timbres e
sonoridades, deixamos sempre rastros, linhas, círculos, pontos e curvas sobre a partitura.

129
escrever a música. É talvez essa comunhão, a única coisa verdadeiramente relevante
durante o processo.

Figura 109 – Inserção do grande gesto no piano enquanto que, em sua volta, o violoncelo, vibrafone
e trompete realizam versões da matriz I em métricas diferentes, Gestuelle, página 21, comp. 57-59.

Seguindo essa ideia de esculpir imagens sonoras sobre o pentagrama, me recordo


agora de duas passagens distintas onde me ocupei de tal aspecto. A primeira delas é em
‘Gradaciones y Líneas de Afecto’135 e a segunda em Quando se muda a paisagem. Em
‘Gradaciones’ estabeleço quatro camadas com alturas congeladas (madeiras, violoncelo-
percussão, piano e cordas) onde o interesse é transferido para a sobreposição de diferentes
“formantes” rítmicos proporcionando, desta forma, uma ‘cor’ distinta para cada camada e,
consequentemente, uma sensação de gradação sonora no todo simultâneo:

135
Obra dedicada ao compositor Silvio Ferraz.

130
Figura 110 - Sobreposição de camadas “distintas” em ‘Gradaciones y Líneas de Afecto’.

No caso de Quando se muda a paisagem136, a imagem sonora foi construída a partir


da justaposição de pequenos gestos deslocados no tempo. Para um deles, em destaque na
figura abaixo, seria mais apropriado denominá-lo de módulo sonoro, pois não o desenvolvo
no decorrer da música, mas o readapto a diferentes propósitos dentro da peça. Os outros
gestos em sua volta mantêm sempre algum vínculo, ou melhor, são contaminados por ele,
seja no perfil ou no aspecto rítmico – intervalar. Eis aqui um contágio de linhas de afeto no
próprio discurso musical. O resultado é uma revoada de pontos sonoros que, ao circularem
sobre o pentagrama, deixam traços e imagens...

136
Obra vencedora do “Tercer Premio Iberoamericano Rodolfo Halffter de Composición 2008”, no México.
Sua estreia ocorreu no dia 24 de setembro no Festival Instrumenta Contemporánea realizado na Cidade do
México pela Camerata de las Américas, sob a direção do maestro espanhol José Luis Castillo.

131
Figura 111-Justaposição e sobreposição de pequenos ‘gestos’ em Quando se muda a paisagem, comp. 84-85.

Analogamente, encontramos também tal ideia de imagens sonoras, camadas e gestos

132
em obras para instrumento solo como é o caso de Circuncello137 (2006) para violoncelo e
Los recuerdos de lunes138 (2007) para piano. Não se trata aqui de um procedimento
exclusivamente das obras de câmara ou orquestral como foi exemplificado acima, mas algo
que é inerente ao ato de criação. Talvez seja uma necessidade interior como colocou
Kandinsky, ao discorrer sobre a questão da forma em seu livro Do espiritual na Arte. Ou
seja, “o aparecimento das formas no tempo e no espaço há de explicar-se pela necessidade
interior que rege tal tempo ou tal espaço”139.
Enfim, tudo isso é, no mínimo, aspirações ou linhas de afeto como falei
inicialmente. O certo é que tal arrebatamento potencializa a realização de uma ideia, seja
ela musical ou pictórica. E é, curiosamente nesse estágio de arrebatamento, que me ocorrem
quase sempre pequenos fleches do que seria o resultado final (a forma). São esses fleches,
ainda que disforme em sua totalidade, que potencializa o caminhar em direção ao formato
final da ‘imagem’ e dos objetos e gestos sonoros que a compõe. Portanto, a criação é
também, e neste caso, uma forma de saciar um desejo de visão ou mesmo uma necessidade
interior que nos aflige. Não se trata necessariamente de uma busca pelo novo, mas pelo
próprio prazer da busca e do envolvimento com sua natureza especulativa. Eis aqui a
“canção do mais-adiante”...

137
Obra estreada no VIII Festival Internacional de Música Contemporânea 2008, em Santiago do Chile, pelo
violoncelista Celso López.
138
Obra estreada em 2007 na Staatliche Hochschule für Musik Karlsruhe (Alemanha),
pelo pianista Marcelo Gama.
139
KANDINSKY, W. Do Espiritual na Arte. Martins Fontes, São Paulo 2000, p.145.

133
4. CONCLUSÃO

Ao longo deste trabalho abordamos alguns aspectos que permearam uma série de
especulações frente ao material harmônico na música de concerto do século XX. Vimos no
primeiro capítulo que o manejo da harmonia se direcionou significativamente por
resultados mais timbrísticos. De fato, o timbre passou a protagonizar as decisões de alguns
compositores ao determinarem suas estruturas harmônicas. Constatamos neste sentido, uma
mudança funcional significativa dentro do processo de criação, pois como já foi dito aqui,
os sons, antes vistos como simples notas, deixam de se articular em prol de uma
hierarquização tonal ou modal para exercerem uma função tímbrica, ou seja, são tidos
agora como mais um dos elementos condutores da estrutura musical. Além disso, tal busca
por uma equivalência tímbrica do som, (Klangfarbe = cor do som), em relação aos demais
parâmetros da música contribuiu para o surgimento de uma série de novas estratégias e de
novos “complexos harmônicos”. Foi o que vimos, por exemplo, em Farben de Schoenberg,
onde um único “agregado sonoro” serviu de ponto de partida para toda uma rede harmônica
impregnada por uma sonoridade particular. Ou ainda Debussy, com uma harmonia já
desvinculada das forças tonais em função de um trabalho minucioso de escritura e
modelagem do timbre instrumental. Com isso, os ‘acordes’ em Debussy se tornaram
entidades perceptíveis enquanto timbre. Outra contribuição neste sentido é aquela
proveniente das construções harmônicas de Igor Stravinsky, diretamente relacionadas a um
“cromatismo vertical” em oposição a um “diatonismo horizontal”. Tal métier stravinskiano
não se limitou a seguimentos melódicos, mas se expandiu para a sobreposição de diferentes
estruturas harmônicas, gerando assim, agregados sonoros mais complexos como, por
exemplo, o da “Danses des adolescentes” que vimos no Le Sacre du Printemps.
Ao longo da dissertação foi possível vermos também o quanto de uma escuta
concreta já se fazia presente e definitiva em Edgard Varèse, observável tanto em suas obras
composicionais quanto em seus escritos. Sua relação frente ao material sonoro se

135
aproximava em muito dos ideais que Schaeffer iria propor anos depois com a ‘escuta
reduzida’ elaborada no seu Traité des Objets Musicaux. Ambos, a partir de uma nova
perspectiva fenomenológica do som e da acústica nos legaram não apenas um novo solfejo,
mas, sobretudo, nos aproximou às qualidades internas do fenômeno sonoro emancipado de
suas causalidades.
Num terceiro passo nesta definição do som como elemento primordial da
composição musical, tivemos a proposta de som-cor (le son-couleur) de Olivier Messiaen
que, mesmo partindo de um quadro de referências metafóricas, serviu de base juntamente
com modos de transposições limitadas para estabelecer uma série de novas estratégias e
complexos harmônicos “multicoloridos”, como é o caso do “efeito-vitral”. Tal
multiplicidade de territórios nos levou a concluir, no primeiro capítulo, o quanto a crescente
busca anunciada por Schoenberg de uma equivalência do som-timbre dentro do processo
composicional no século XX de fato se concretizou. Além disso, e talvez mais importante,
foi que tais especulações agregaram para ao métier composicional uma série de novas
estratégias que via manipulação de alturas estabeleceu definitivamente um novo território
sonoro e tímbrico em música.
No segundo capítulo, vimos como a ideia do uso “matrizes harmônicas” como
princípio composicional ocorreu de forma distinta em compositores como Boulez, Varèse,
Berio e Flo Menezes. Em Boulez, por exemplo, vimos que suas matrizes derivam
predominantemente de uma série de alturas e que elas não são entidades fixas, mas
estruturas que engendram novos blocos a partir de técnicas como a Multiplicação de
Acordes. No caso de Varèse, notamos que suas matrizes se aproximam mais da ideia de
“objeto sonoro”140, pois o que se evidencia ali são as propriedades da matéria (Som) através
de contínuas repetições acompanhadas sempre por algum tipo de deformação. Neste
sentido, o estatismo associado às “matrizes harmônicas” confirma sua predileção em tornar
perceptível a própria transformação do fenômeno sonoro, como foi o caso das três
‘matrizes’ do início de Intégrales. Além do estatismo, vimos também que a ideia de
projeção e rotação fez com que suas matrizes percorressem diferentes pontos do espaço

140
“Objeto sonoro” está pensado aqui na acepção que Pierre Schaeffer dá a este em seu Traité des Objets
Musicaux.

136
sonoro agregando a elas ainda um caráter espacial, aspecto determinante para a poética
vareseana.
Outro exemplo importante apresentado neste capítulo, refere ao primeiro
movimento da Sinfonia de Luciano Berio. Poderíamos dizer que Berio fez uso de um
recurso muito comum em Varèse que diz respeito à refuncionalização tímbrica de uma
estrutura harmônica “congelada” em um mesmo registro. Neste sentido, vale
recordar das inúmeras permutações de timbre instrumental que o seu acorde
‘matriz’, [Dó-Mib-Sol-Si], sofreu no decorrer do primeiro movimento da Sinfonia.
Por outro lado, é notável como Berio, a partir de duas estruturas harmônicas
básicas, estabeleceu uma unidade sonora, uma espécie de “campo harmônico”, pois
não se trata aqui de um recurso composicional perceptível apenas do pondo de vista
da análise estrutural minuciosa, mas, sobretudo, por sua qualidade enquanto
fenômeno sonoro claramente identificado pela escuta. Já o compositor brasileiro Flo
Menezes, fez uso de uma heterogeneidade harmônica atípica em relação aos
compositores aqui mencionados. Menezes, partindo de recursos metalinguísticos fez
uso de uma série de “arquétipos harmônicos” já conhecidos da história da harmonia
ocidental para criar seu arcabouço sonoro inicial.
Com tudo que foi discutido no segundo capítulo, não apenas nos certificamos
de que tal princípio matricial é passivo de inúmeras feituras no campo da harmonia,
141
mas também de sua eficácia em estabelecer “campos harmônicos” distintos a
cada obra. Ou seja, não perdemos a possibilidade de constituir um determinado “campo
harmônico”, ele apenas figura-se, neste caso, numa maior diversidade sonora. Isso se dá em
virtude de que agora suas propriedades intervalares-harmônicas são móveis e não mais
centradas na tríade como construção intervalar predominante, como foi nos últimos quatro
séculos de sistema tonal. Além disso, poderíamos concluir seguramente que, para Varèse,
Boulez, Berio, Menezes, e no próprio Debussy, passa a ser imensamente importante a
disposição das notas na tessitura. As distâncias intervalares são determinantes para este

141
Entender “campo harmônico” mais como uma espécie de “cor” sonora - tímbrica do que propriamente um
sistema hierárquico como àquele presente no sistema tonal.

137
novo território, são elas (guiando uma sonoridade) que acabam por fazer o “vitral” do
acorde posicionando-o como o compositor imagina sua sonoridade e não apenas as notas.
No terceiro capítulo aprofundamos nossas observações sobre o tratamento
“harmônico” e as estratégias usadas por Varèse na escrita do timbre em Intégrales. Vimos
em nossa análise, que o processo vareseano reside, sobretudo, numa série de variações no
domínio do som. Neste sentido, as três “matrizes harmônicas” iniciais foram determinantes,
pois uma vez estabelecido os estratos intervalares (o guia da sonoridade), ele passa a
deformá-las numa série de estratégias: variação de “envelope dinâmico”, “transmutação”
das matrizes, adição ou subtração de alturas e valores rítmicos, modulação tímbrica,
espelhamento de ‘acordes’ e “contração temporal”. Constatamos ainda, que a ideia de
projeção espacial do som não é aqui mera abstração compositiva, mas algo inerente ao
pensamento composicional vareseano. Ao almejar o deslocamento de suas massas sonoras
no espaço, ele estabeleceu uma nova sistematização da forma, essa, não mais nos moldes
clássicos do desenvolvimento contínuo, mas como consequência direta da interação de
mecanismos de construção e desconstrução do espaço sonoro. E mais, são essas conexões
entre estruturas que se renovam, se deformam e se reiteram durante o caminhar da obra que
dão a ela um aspecto unificador dentro da arquitetura sonora. Por outro lado, vimos também
como as “matrizes harmônicas” iniciais estiveram presentes na ideia de projeção sonora e
na composição dos complexos sonoros. De fato, Varèse não as perde de vista, aspecto
comprovado em virtude do grande número de reiterações na obra, elas foram tratadas como
uma espécie de módulo sonoro que se adapta constantemente a diferentes propósitos. Além
disso, figurou ao lado de tais matrizes o estrato de 2ª maior cromático (projetado em
sétimas e nonas) como mais um guia da sonoridade presente em Intégrales. Não bastando,
somaram-se a tudo isso noções de acústica onde a alternância entre estados de tensão e
repouso dos “blocos sonoros” em Varèse, estariam diretamente relacionados ao grau de
familiaridade entre os componentes harmônicos e suas resultantes. Intégrales nos confirma
não apenas que sua construção, a partir de “blocos sonoros”, esses reconhecidos
inicialmente com as três “matrizes”, seja um aspecto indissociável de sua arquitetura, mas
também nos certifica de que a poética vareseana, antes de ser a do “som organizado”, é
uma poética que se estabelece via contínuas deformações da própria matéria sonora.

138
Outro aspecto discutido no terceiro capítulo foi a escrita do timbre em Intégrales.
Neste caso, tivemos como uma das referências principais, o artigo Varèse’s architecture of
timbre: mediation of acoustics to produce organized sound, do musicólogo francês Philippe
Lalitte. Vimos que a liberação do som almejada por Varèse foi suscitada por uma série de
fatores, dentre eles: os escritos de Ferruccio Busoni e do pintor francês Albert Gleizes, este
último, tido como um dos teóricos do cubismo, as ideias de sons simultâneos, sons
resultantes, sons parciais e batimentos, contidas no tratado de acústica do físico Hermann
Helmholtz e também as teorias do físico Henri Poincaré sobre uma possível representação
de um mundo a quatro dimensões. Além disso, vimos que Varèse fez dos instrumentos de
percussão um aliado inseparável para a emancipação do ruído como mais um elemento
passivo de organização em música. A percussão com Varèse deixou de ser um simples
reforço dinâmico dos naipes da orquestra para assumir sua própria trama independente
dentro do espaço sonoro. Vimos também que o uso de recursos acústicos como o cálculo de
frequências foi utilizado para reforçar determinados harmônicos de um complexo sonoro.
Somado a isso, vimos que a predileção de Varèse pelas intensidades extremas, aliada a
diferentes tipos de “envelope dinâmico”, buscava agregar aos “complexos harmônicos”
qualidades inarmônicas através de batimentos e sons resultantes. Contudo, não podemos
negar que tal detalhamento de escrita em Intégrales tenha demonstrado que o timbre passou
a ser também “uma dimensão estruturante” em música. Acreditamos que seja inadmissível
para qualquer estudo sobre o métier composicional presente em Intégrales, não levar em
conta tal aspecto de escrita, pois seria desconsiderar um dos componentes que guiam sua
sonoridade.
Antes de finalizar, cabe dizer que o fato de todas as etapas do trabalho terem a obra
de Edgard Varèse como referência, possibilitou uma visão mais ampla quanto ao
desenvolvimento de sua harmonia. Tal desenvolvimento delineou uma trajetória que se
iniciou nas harmonias de Debussy em Um grand sommeil noir (1906), chegando até os
complexos harmônicos de onze notas de Intégrales. Poderíamos concluir que a
escrita de Varèse não se tornou atonal repentinamente ou, como ele próprio disse:
“minha linguagem é naturalmente atonal” 142 , mas que ela é fruto de uma evolução

142
VARÈSE, Ecrits. P.64

139
do próprio compositor diante do material sonoro e de suas necessidades enquanto
criador. Segundo Philippe Lalitte 143 , o atonalismo em Varèse se dá entre 1908 e
1918. Gilberto Assis de Oliveira Rosa, em sua dissertação de mestrado 144 , nos
recorda que as obras deste período foram destruídas em um incêndio em Berlim no
ano de 1913, restando apenas o poema sinfônico Bourgogne (1908), que próprio
Varèse se encarregou de destruir em 1960. Por este motivo, o marco de sua
produção tem início em Amérique, composta entre 1920 e 1921. Ainda em torno do
atonalismo vareseano, Lalitte levanta a hipótese da existência de um suposto
diagrama desenhado por Varèse em Berlim em 1910, onde os doze sons do total
cromático são organizados em seis pentagramas 145 . Lalitte prossegue dizendo que a
organização do total cromático, aqui, é representada sob a forma de um acorde de
doze sons contendo onze intervalos (Fig. 112 abaixo). O diagrama foi encontrado,
segundo Lalitte, pelo compositor Chou Wen-Chung em uma partitura aparentemente
escrita por Varèse. Os primeiros indícios do uso de acordes com doze sons se deram
exatamente em Amérique para grande orquestra.

143
LALITTE, P. Densité 21,5 de Varèse: um condensé d’harmonie-timbre. P.265, 2007. Collection Arts 8
UFR Arts, Philosophie et Esthétique Université Paris 8. HORODYSKI, T. & LALITTE, P. Edgard Varèse :
Du son organisé aux arts audio organizado. L’ Harmattan, Paris 2007.
144
ROSA, G. A. Edgard Varèse: a busca pela liberação do som. PUC São Paulo, 2000.
145
LALITTE, P. P.265, 2007.

140
Figura 112 – Reprodução do suposto diagrama desenhado por Varèse em Berlim, em 1910, representando o
total cromático.

Especulações à parte, diríamos depois de tudo que a postura vareseana frente à


matéria sonora e em relação aos seus contemporâneos foi, no mínimo, suigeneris. Caberia
delinear agora um novo estudo que se proponha a investigar os desdobramentos de tal
postura vareseana nas gerações seguintes. Postura esta amplificada, por exemplo, em
compositores como Iannis Xenakis (1922-2001), Gérard Grisey (1946-1998), Hugues
Dufourt (1943-) e Tristan Murail (1947-), onde a música passa a ser uma sucessão de
sonoridades guiadas por uma escrita que leva em conta, não apenas as estruturas internas do
som (espectro sonoro, série harmônica), mas também procedimentos composicionais
análogos aos utilizados na música eletrônica. Enfim, é diante de tão vasto território que
almejamos permanecer nossas reflexões futuras cuja escolha se limitará apenas ao grau de
sua reverberação para a prática composicional.

141
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145
ANEXOS

146
Rodrigo LIMA

Matizes
Para flauta e grupo instrumental
For flute and ensemble

Full Score
Copyright 2006 Rodrigo LIMA
Instrumentation
Flute – solista
Oboe
Clarinet in Bb
French Horn in F
Violin
Violoncello
Contrabass

PERCUSSION: 1 player
Snare drum
2 tom tom
Triangle
Triangle suspended
Suspended Cymbal-crash
Splash suspended
Tambourine (pandeiro sinfônico)
1 Tam-tam
Gong grave
Bass drum

Performing Notes:
The score is notated in C

Duration: 10 minutes
Obra comissionada pelo Programa de Pós-Graduação Música em Contexto do Departamento de Música
da Universidade de Brasília (UNB) e dedicada à flautista Beatriz Magalhães Castro. A estréia mundial foi
realizada em agosto durante o XVI Congresso da ANPPOM 2006 em Brasília tendo como solista o
flautista Thales Silva. Em dezembro do mesmo ano Matizes é apresentada em Madrid (Espanha) pelo
grupo espanhol Sonor Ensemble no Museo Centro de Arte Reina Sofía durante a cerimônia de premiação
do XVII Premio Jóvenes Compositores promovido pela Fundación Autor e Centro para la Difusión de la
Música Contemporánea CDMC.
À Beatriz Castro

Score in (C )
Matizes Rodrigo LIMA

4 Duration: 10' for flute and ensemble 3 4


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Copyright 2006 by Rodrigo LIMA 'XVII Premio Jóvenes compositores 2006 Fundación Autor- CDMC' in
lidio.rodrigo@gmail.com Madrid, Spain.
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(To play the center of the cymbal susp. with the tip of the stick) (tam-tam)

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∏ Julho de 2006, Brasil

(*) = decrescendo al niente 21 Rodrigo LIMA


lidio.rodrigo@gmail.com
www.portalatino.com/rodrigolimacompositor
Rodrigo LIMA

Quando se muda a
paisagem
Para orquestra de câmara
For chambre orchestra

Full Score
Copyright 2008 Rodrigo LIMA
INSTRUMENTATION
Rodrigo LIMA

Gestuelle for ensemble

Full Score
Copyright 2007 Rodrigo LIMA
Dedicated to Ensemble Aleph

4
Score in (C)

Energico Ritmico,q = 56
Gestuelle
2 Rodrigo LIMA
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for six instruments
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*) [ nota tocada no registro mais agudo sem altura definida / Premier: Ensemble Aleph 5th International Forum for young composer, 25
Notes jouées dans le registre le plus aigu sans hauteur définie] out. 2008 Théâtre Dunois - Paris France

Copyright 2007 by Rodrigo LIMA


lidio.rodrigo@gmail.com
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34 Nov. 2007, Goiânia Brasil
Rodrigo LIMA

Gradaciones y líneas de afecto


For violoncello and ensemble

Full Score
Copyright 2007 Rodrigo LIMA
A Silvio Ferraz
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longa
1

6 Score in (C)
Gradaciones y líneas de afecto
2 4
Rodrigo LIMA,junho 2007
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7 5
Calmo sostenuto,q = 50 para violonchelo y conjunto instrumental
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Copyright by Rodrigo LIMA 2007


lidio.rodrigo@gmail.com
Acell. poco a poco . . . . . . . . .

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T= tasto, P= ponticello le point de contact de l'archet se partindo da corda, o ponto de contato do 6
déplacera, en fonction de la duréearco se deslocará em função da duração da
du passage, vers le chevalet. passagem, em direção ao cavalete.
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28 Campinas-SP, junho 2007
Brasil
Rodrigo LIMA

Los recuerdos de lunes


Para piano solo

Copyright 2007 Rodrigo LIMA


À Renata Lima
los recuerdos de lunes
for solo piano Rodrigo LIMA
Duration, 7'
[2007]

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Copyright 2006 Rodrigo LIMA


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Circuncello - 2006, Rodrigo Lima


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Molto Sostenuto, q = 40

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sul ponticello

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Circuncello - 2006 Rodrigo Lima 4 Campinas - SP, outubro


2006, Brasil
Performing notes

quarter-tone up
# pizz bartok
b quarter-tone down sub. cresc. "as fast possible"

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